A verdade

Nós, seres que refletem sobre o Cosmos, temos um problema com a verdade: nos parece que, quanto mais a cercamos com as mãos, mais ela escapa por nossos dedos, nos mostrando que moramos numa praia ainda maior e mais cheia de pequeninos grãos de areia do que um dia ousamos imaginar...
Disse o Rabi da Galileia, “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Analise esta frase de forma puramente racional, e me diga então o que seria a verdade: um homem? Um deus? Uma doutrina? Um livro, onde tais palavras foram registradas? Ora, ainda que consiga responder a tais questões, esta resposta será a sua, servirá somente para você, baseada na sua interpretação da vida, e de ninguém mais. Ainda que existisse mesmo um Manual da Verdade Absoluta, isto não nos diria nada sobre a verdade: pois caberia a cada um de nós interpretar suas palavras a sua maneira.
Vejamos um exemplo, “Disciplina é liberdade”... Diga isto para um policial militar ou um operador de tráfego aéreo e ele provavelmente discordará veementemente – é justamente a supressão da liberdade de fazer o que bem entender, e seguir regras e normas rigidamente estabelecidas, o que permite que cumpram o seu serviço da maneira que deve ser cumprido, para que o menor número possível de pessoas inocentes morra em decorrência de assaltos ou acidentes. Diga a mesmíssima frase para um zen budista, ou alguém que, através da domesticação dos desejos desenfreados da mente, encontrou a sua verdadeira vontade, e ele não só concordará, como abrirá um largo sorriso com o coração – um coração livre.
Mas, estranho de se pensar, e se encontrarmos um budista militar, não haverá momentos em sua vida em que ele precisará seguir normas rígidas de disciplina de guerra e paz, independentemente do que diga o seu coração durante tais períodos? E se o sonho da sua vida fosse justamente o serviço militar? E se ele se sente tão bem cumprindo aquelas ordens patrióticas que, ao mesmo tempo em que às cumpre, ainda se sente o homem mais livre do mundo? Há muitos que compreendem os soldados como agentes de guerra e de morte, mas em princípio o bom soldado é justamente aquele que, em todos os momentos, busca o caminho mais breve possível para a paz, e zela por ela, e a abençoa, e agradece por não ter de disparar nenhum tiro em toda a manhã em que o sol nasce em terras livres.
Nos dias de Einstein, por exemplo, ainda se acreditava, cientificamente, que o Cosmos era eterno, que não teve início nem teria fim, e que jamais poderia estar se expandindo. Foi Georges Lamaître, padre e astrônomo belga, quem propôs primeiramente a teoria que, de tão absurda para a época, foi rotulada de forma sarcástica por um radialista daqueles tempos como Big Bang, ou “a grande explosão”. Somente muitos anos depois, após a descoberta da radiação cósmica de fundo, que fora prevista pelos cosmólogos que defendiam a teoria, é que ela foi alçada de vez ao status de teoria científica mais aceita para o início do universo, e dentre os físicos atuais são raríssimos aqueles que levantam algum questionamento relevante acerca da sua validade.
No entanto, não foi à toa que muitos cientistas da época a questionaram: era de fato uma verdade bíblica demais para ser realmente verdade. Um universo inteiro que cabia na ponta de um alfinete ou num ovo cósmico primordial, e que se expandiu para se tornar tudo o que há... Como pensar cientificamente sobre algo assim? Como bem resumiu Terrence McKenna: “A ciência moderna se baseia num princípio: dê-nos um milagre espontâneo e a gente explica o resto. Este milagre se chama Big Bang”.
Claro, muitos cientistas hoje se justificam dizendo que este universo pode muito bem ser apenas um de infinitos outros universos de um vastíssimo multiverso, e isto parece acalmar suas inquietações... No entanto, não somente o multiverso não pode ser empiricamente comprovado (como Javé ou Ganesha ou os discos voadores), como a sua preposição por si só não chega a resolver o problema lógico: e de onde surgiu o multiverso? Claro, podemos nos acalmar pensando que o multiverso, ou o Cosmos, é tudo o que é ou foi ou será, incriado, infinito e eterno. Einstein, Espinosa e tantos outros bem mais antigos ficariam satisfeitos, mas quem poderá dizer que esta é a verdade derradeira, absoluta?
O Rabi também nos disse que “somos deuses”, e noutra parte dos Evangelhos, nos revelou que “dia virá em que faremos tudo aquilo que ele tem feito, e ainda muito mais”. Se ele já andou sobre as águas deste mar, se já velejou fundo em seu barquinho, se já mergulhou e nos trouxe peixes para alimentar a nossa fome espiritual, não é porque devemos nos contentar com olhar e aplaudir, mas porque devemos arregaçar as calças e segui-lo, mar adentro.
E assim, velejadores de nós mesmos, também seremos o caminho, a verdade e a vida, e que cada um interprete isso como seu coração achar melhor, pois que em realidade eu lhes digo: não há outra forma de verdade.
A fonte secreta de suas almas precisa brotar e desaguar pelos córregos murmurantes até o mar; e assim o tesouro de suas profundezas infinitas seria revelado aos seus olhos abertos.
Mas não usem balanças para pesar tais tesouros desconhecidos; e não busquem explorar as profundezas de seu conhecimento com uma vara ou uma sonda, pois o Eu é um oceano sem limites e imensurável.
Não digam, “Encontrei a verdade”, mas sim, “Encontrei uma verdade”. Não digam, “Encontrei o caminho da alma”, mas sim, “Encontrei a alma andando em meu caminho”. Pois a alma anda por todos os caminhos.
(Khalil Gibran, trecho de O Profeta)
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Crédito da imagem: Steve Halama/unsplash
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