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27.4.18

As grandes questões do ocultismo (tomo final)

« continuando do tomo III


Imagine esta noite, há dez mil anos, fria e úmida, nalgum canto europeu onde tudo o que os homens sabiam acerca de outros homens se resumia a tribos que foram vistas de passagem pela margem da floresta, e que logo se esconderam dos olhares estranhos. Um mundo ancestral, onde vivíamos isolados, andarilhos vivendo da caça e da coleta, temerosos dos trovões e da raiva dos deuses. Conectados, em todos os momentos, à Natureza em nossa volta, ao ponto de nem precisar lhe dar um nome: a Natureza já era todo o mundo.

Alguns poucos dentre nós eram escolhidos, geralmente desde a infância, para serem os discípulos do xamã da tribo, aprendendo com ele todos os dias e todas as noites a se comunicar com os espíritos de antigos heróis e sábios tribais, assim como com os seres etéreos da natureza; e, de vez em quando, até mesmo com alguns dos seus deuses. Um xamã abandonava seu corpo, sua mortalha, para ir habitar do outro lado, e então o seu discípulo assumia o seu lugar, e logo escolheria outro para também um dia lhe substituir no futuro, pois que nenhuma tribo era capaz de sobreviver por muito tempo sem o auxílio daquele que se comunica com espíritos, que dá conselhos sobre as caçadas e conhece todos os segredos das ervas medicinais.

Imagine esta noite, ao redor da fogueira, onde o velho xamã canta (acompanhado de alguns tocadores de tambor) antigos poemas sobre caçadas épicas, tempos de fartura de frutos, e metamorfoses de seu próprio ser com diversos animais – vivenciadas em transe profundo, no único lugar onde todos os seres fantásticos, os espíritos, os deuses e demônios existem incontestavelmente: a mente humana.

Nessa era, quando todos os conhecimentos espirituais eram centrados na figura do xamã, a magia sequer tinha um nome. Por se tratar “de tudo o que tem relação com o espírito humano”, ela não precisava realmente ser rotulada, reduzida a uma palavra, um signo... no entanto, se um xamã fosse intimado a falar acerca da sua teologia, ele provavelmente responderia como um sacerdote xintoísta respondeu a Joseph Campbell: “nós não temos teologia, nós dançamos”.

Desde os primórdios da humanidade, a mente e o espírito sempre encontraram caminhos propícios para transbordar sua subjetividade no mundo objetivo, para de alguma forma estranha, tornar possível a migração de informações do mundo das ideias, do mundo interior, onde tudo é fluido, onde tudo pode ser simplesmente imaginado, até o mundo das coisas, até o mundo exterior, onde tudo tem corpo e forma, onde tudo tem o seu tempo de nascer, viver e morrer. Assim, sempre nos pareceu (e para a maioria de nós ainda parece) que este mundo dito objetivo é mais como uma passagem, um entrecruzamento de vias férreas, onde os trens de nossas vidas podem apitar uns para os outros, por breves períodos, até que precisem novamente zarpar para a próxima estação.

Lá no início de tudo, lá, muito antes da linguagem, a magia já brotava como uma espécie de noivado com a consciência. Através da magia, o que era somente imaginado pôde, passo a passo, ser transferido para o mundo lá fora. Na falta de um nome melhor, lhe chamamos A Arte...

Enclausurados no fundo das cavernas, com pouquíssima iluminação, se valendo de sangue animal e de tintas arcaicas, os xamãs gravaram no ventre da própria Terra imagens de suas caçadas, do que vivenciavam em seus transes, e da morte e renascimento em suas próprias iniciações, quando também eles vieram desvanecer no ventre da Mãe, para renascerem como filhos de Gaia, irmãos de todos os demais xamãs do mundo. E isto, que hoje chamamos de arte rupestre, nada mais foi do que o surgimento da pintura.

Muitos também aprenderam a talhar a pedra não somente para produzir pontas de lanças e flechas, como para trazer ao mundo das formas sólidas as figuras dos mais antigos deuses, sobretudo a Deusa Mãe, com suas formas fartas, garantidora da vida e da fertilidade da tribo. Assim surgiu a escultura.

Da música e da poesia nós já falamos, mas considere como ambas foram reunidas com danças e encenações, quando já não bastava mais somente contar uma história: era preciso reencená-la novamente, e quantas vezes fossem precisas, nas noites em que a tribo rememorava antigos acontecimentos dignos de nota. Muito tempo, e algumas civilizações depois, tais encenações passaram a ser independentes da religião em si, e foram chamadas de teatro pelos gregos antigos. Conforme a ópera e o próprio cinema não poderiam ter surgido sem o teatro, há que se considerar que todos eles ainda derivam, em última instância, da Arte.

Finalmente, foi inventada a escrita, e todas as histórias ancestrais puderam fluir da mente daqueles que as recitavam de memória para os símbolos que, se eram incapazes de trazer consigo todo o sentimento, toda emoção daqueles que um dia cantaram ao redor das fogueiras ancestrais, ao menos podiam registrar com exatidão inimaginável algo que se passava tão somente na mente do xamã. Milhares de anos depois, o próprio ocultismo iria se basear largamente na forma como certas palavras são recitadas, assim como no estilo com a qual elas eram guardadas nos livros e nos grimórios. A isso tudo nós também demos outro nome: literatura.

É bem verdade que os primeiros magi (magus, no singular) eram sacerdotes do zoroastrismo, que mais tarde vieram a ser rotulados de “praticantes de magia” pelos gregos, que ironicamente não viam o que eles faziam com bons olhos. Assim, quando a Arte recebeu o nome “magia”, foi mais por um acidente da história. É curioso como, mais ou menos desde essa época, tudo o que era realizado pelas religiões dos povos estrangeiros foi considerado “magia”, sobretudo como forma de diferenciação para com as práticas sagradas da religião oficial do próprio país. Até hoje é fácil se encontrar coisa parecida: “macumba é magia negra, mas as minhas simpatias, as minhas orações aos santos, isso é tudo coisa de Deus”.

Na realidade, como pudemos ver, desde o xamanismo antigo, a própria religião, a própria religação a Natureza, ao Cosmos e aos deuses, esteve indissociada da Arte. Religião também é, e sempre será, uma forma de magia (uma das mais antigas, por sinal).

Aliás, quando a então famosa pitonisa de Delfos, Temistocleia, iniciou Pitágoras em seus conhecimentos ocultos, ela ainda poderia ser rotulada como “religiosa”. Foi somente quando o próprio Pitágoras ganhou sua fama (basicamente evangelizando a sabedoria de sua mestra), que ele eventualmente foi chamado de “filósofo”: amante (filos) da sabedoria (sophia). Assim surgiu a filosofia no Ocidente, e também ela, obviamente, é filha da Arte.

Desde Demócrito os antigos “filósofos da Natureza” (título que, aliás, foi assumido por alguns desta estirpe até poucos séculos atrás) começaram a focar sua atenção também nos eventos que ocorrem lá fora, e investigaram tanto os átomos quanto as constelações. Eratóstenes já sabia que a Terra não era plana cerca de 2 séculos antes de Cristo, e chegou a calcular sua circunferência com precisão invejável. Mas foi alguma espécie de deus ou semideus, Hermes o Três Vezes Grande, quem antecipou em milênios a física de partículas e o estudo de outros sóis e outros mundos: pelo menos desde a antiga Grécia ele já havia arriscado dizer que “tudo vibra, e nada está parado”, e que as leis que regem o Alto são as mesmas que regem o que acontece por aqui.

Quando Nicolau Copérnico publicou o seu célebre Das revoluções das esferas celestes, algumas linhas abaixo da primeira ilustração do heliocentrismo estava descrita a sua maior inspiração: Hermes Trimegistus. Diz a “história oficial” que a Igreja mandou um de seus monges (Giordano Bruno) para a fogueira simplesmente por defender que a Terra girava em torno do Sol. Eles preferem ignorar o que realmente se passou, e como Bruno quis fundir o cristianismo com o hermetismo, criando uma nova religião cósmica. Tivesse tido sucesso, o mundo ocidental seria hoje muito, muito diferente...

Em todo caso, fato é que o que havia se iniciado lá em Demócrito hoje está plenamente consolidado na era moderna: a separação definitiva entre a Arte e a ciência, entre a alquimia e a química, entre a astrologia e a astronomia, entre o conselho xamânico e a psicanálise.

Diz o atual dogma científico que nada do que escapa ao puramente objetivo deve ser considerado pela ciência. Nem sempre foi assim, mas hoje a Academia prefere relegar o que pode ser chamado de “sobrenatural” as “esquisitices da mente” e ao efeito placebo. Que seja, que a magia seja a arte de se catalisar efeitos placebo. E, quanto à mente, bem, é justamente nela que se passa toda a nossa existência, seja ela “esquisita” ou “normal” (não sabemos o que é mais estranho).

Foi mais ou menos assim que a Arte se decompôs em inúmeras partes, infindáveis campos de estudo, incontáveis maneiras de se contemplar a Natureza. No entanto, se pudéssemos voltar atrás, e reconciliar toda a nossa sociedade de acordo com os preceitos arcaicos do xamanismo, ainda seríamos divididos entre caçadores e artistas. Ora, felizes aqueles que não necessitam caçar para sobreviver, e podem se dedicar plenamente a Arte, e a sua Grande Obra. Para isso, sim, meus irmãos, para isso vale a pena estar aqui, para isso vale a pena apontar nossos espelhos pequeninos para a luz do Alto, a luz que se encontra espalhada por tudo o que há, mas que ainda é invisível para quem se arrasta sonolento pela existência.

Acorde! Recorde que você é um homem, que veio de uma estrela, que está em uma estrela, que irá para outra estrela...

Imagine esta noite, há dez mil anos, com você sentado ao redor da fogueira. Imagine, sinta como a sua chama lhe aquece. Feche os olhos e veja: na sua frente, do outro lado da fogueira, está um xamã ancestral, também de olhos fechados. Ele abre os olhos, e lhe encara... de alguma forma, você sabe, você sempre esteve lá. Isto é Ars Magica.

Pouse suavemente. Os mensageiros orientam...


raph’18

***

Crédito das imagens: [topo] TASS/Vladimir Smirnov (xamã siberiana); [ao longo] Sisse Brimberg/National Geographic (arte rupestre na caverna de Lascaux, França); Google Image Search (Angkor Wat).

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24.4.18

Deus é nosso amor (Reflexões no YouTube)

Em meu segundo vídeo na TV Aberta das Internetz, falo um pouco mais sobre as diversas formas de se conceber a Deus, tanto as ocidentais quanto as orientais. Também veremos como Joseph Campbell foi um sujeito fod@, e como os sábios hindus já debatiam assuntos divinos complexos desde pelo menos a época de Cristo:

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20.4.18

As grandes questões do ocultismo (tomo III)

« continuando do tomo II

Seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu (Oração do Pai Nosso)


Muitos devem conhecê-lo como “aquele ocultista inglês que apareceu na capa do disco dos Beatles”, outros ainda como “o profeta do novo Aeon de Hórus”; mas Aleister Crowley preferia se autointitular “Mestre Therion”, ainda que a mídia de sua época o chamasse de “o homem mais perverso do mundo”. Não se pode dizer que Crowley passou desapercebido por aqui...

Quanto a ser um ser perverso, eu preferiria guardar esse tipo de julgamento para assassinos em massa, torturadores e defensores da tortura, terroristas em geral, gente que suga sangue de verdade dos outros – Crowley nunca fez nada disso, pelo menos que se saiba. No entanto, se você julga que “todo ocultista é perverso porque trata com o Demônio”, então talvez seja melhor reler o que já foi dito no tomo I.

Na verdade, Crowley foi uma espécie de Allan Kardec bem mais liberal, principalmente no que tange ao sexo e a participação em ordens esotéricas. Eu explico: assim como Kardec, que codificou sua obra-prima (O Livro dos Espíritos) a partir de perguntas e respostas a jovens médiuns incorporadas, Crowley fez algo parecido com o seu Livro da Lei, com a diferença relevante que se valeu da mediunidade de sua própria esposa na época, ao contrário do fundador espírita, que recorreu a quatro adolescentes.

Bem, na verdade há mais diferenças: enquanto Kardec jamais psicografou diretamente de algum espírito, Crowley na realidade usou a mediunidade da esposa apenas para ter o contato inicial com uma entidade espiritual chamada Aiwass, que por sua vez falava em nome de Hórus, o antigo deus egípcio dos céus. Foi “escutando a voz de Aiwass ditando por sobre o seu ombro esquerdo”, sem ser visto, que Crowley redigiu todo o Livro da Lei. Segundo o ocultista, a voz era “de um timbre profundo, musical e expressivo, com tons solenes, voluptuosos e tenros, flamejante e despida de tudo que não fosse o conteúdo da mensagem. Não um baixo, talvez um rico tenor ou barítono”.

Assim sendo, o seu processo de escrita pode ser considerado profético; como ocorreu com Maomé, que redigiu o Alcorão também pelo ditado do anjo Gabriel (neste caso, com a ajuda de secretários letrados). Mas, seria Aiwass um anjo? Um espírito? Um aspecto do inconsciente do próprio Crowley? Seja como for, o que importa é a mensagem, não como ela chegou a este mundo... e a mensagem de Crowley fala sobretudo de Vontade. Não uma vontade como outra qualquer, o desejo de tomar um sorvete, ou de comprar um carro – nada disso, ele falou de thelema, e a sua lei foi resumida neste trecho relativamente conhecido do público em geral:

Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei.
O amor é a lei, amor sob vontade.

“Torne-se aquilo que você é”
Friedrich Nietzsche resgatou esta antiga frase de Píndaro mais ou menos na mesma época em que Crowley também buscava, justamente, descobrir a si mesmo, saber o que na realidade habitava em seu ser mais profundo.

Saber quem se é não deixa de ser um primeiro passo necessário para se tornar o que se é. Assim sendo, também podemos traçar um paralelo até o antigo templo de Delfos, onde segundo Platão, Sócrates leu e foi decisivamente inspirado pela frase: “conhece-te a ti mesmo, e conhecerás aos deuses e ao universo”.

Curiosamente, não há nada mais difundido na modernidade ocidental, nada mais na moda, do que as frases marqueteiras que lhe incentivam a “encontrar o que realmente ama”, e seguir em frente a partir dali, rumo à felicidade... O problema é que o que você ama, do ponto de vista de nosso mundo consumista, invariavelmente estará fora de você, será um produto. Existem variações, é claro, às vezes você mesmo pode ser o produto, como as musas fitness que estão sempre em forma, sempre felizes, sempre “profundamente espiritualizadas”.

Mas, se o caminho para nossa essência fosse tão simples, se as agências de marketing pudessem de fato realizar o mergulho em nós mesmos, todos já seríamos profundamente místicos: não, é só o caminhante quem pode mergulhar; instrutores de mergulho, ou pior, manuais de natação, jamais substituirão tal experiência.

Talvez fraquejemos. Talvez, como Crowley, nós não consigamos seguir 100% do tempo as nossas próprias instruções angelicais, e acabemos mais hedonistas, mais epicuristas que se perderam da ataraxia, do que gostaríamos de admitir. Mas ninguém disse que o caminho para a Verdadeira Vontade seria simples como um passeio no parque. Também já nos disse o doce rabi: “não vim trazer a paz, mas a espada”. Também nós mesmos precisaremos caminhar isolados no deserto, para também sermos tentados pelos nossos próprios demônios, para que possamos compreender, para que possamos saber, enfim, qual é a nossa Vontade, a nossa thelema.

A alma do universo inteiro
Para facilitar a compreensão da lei trazida ao mundo por Crowley, talvez seja mais fácil recorrer a outro monumento do ocultismo britânico, Mr. Alan Moore [1]:

Quando cumprimos a vontade de nosso verdadeiro Eu, nós estamos inevitavelmente cumprindo com a vontade do universo. Na magia, ambas as coisas são indistinguíveis. Cada alma humana não é, de fato, uma alma humana: é a alma do universo inteiro. E, enquanto você cumprir a vontade do universo, é impossível fazer qualquer coisa errada.

Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com “E” maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.

Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura? Creio que é por isso que as pessoas mergulham no álcool, nas drogas, na televisão, em qualquer dos vícios que a cultura nos faz engolir, e pode ser vista como uma tentativa deliberada de destruir qualquer conexão entre nós e a responsabilidade de aceitar e possuir um Eu superior, e então ter que mantê-lo.

Entendem agora como a espada do Cristo era, de fato, afiada? É impossível alcançar nossa alma, nossa Verdadeira Vontade, sem antes morrer para a “vontade do ego”, sem antes morrermos para nossa natureza animal e renascermos, como o próprio Cristo, na plena posse de nossa natureza humana, no sentido mais pleno de “ser humano”.

Faze o que tu queres: porém há poucos que conseguem estar de fato conectados, todo o tempo, a este “tu”, a este Eu superior, para cumprirem a sua própria Vontade.

Há de ser o todo da Lei: não há Lei maior do que a Lei do Cosmos, da Natureza, do Sagrado. Somente ela dá conta da totalidade de nossa existência, e de todas as demais existências, em todos os tempos, em todos os cantos do universo.

O amor é a lei: não há em todo o universo algo mais eterno, mais transcendental, mais primordial que o amor. O amor é a essência da realidade, e tudo o que há segue em seu caminho tão somente para despertar a sua própria compreensão do que vem, de verdade, a ser o amor.

Amor sob vontade: fôssemos criados já como seres plenamente amorosos, na plena compreensão do amor, seríamos como anjos, como autômatos criados para servir as leis universais, e não seres humanos que, em sua animalidade, em sua Vontade, conseguem evoluir por si próprios. Há Vontade porque alguém lá no Alto não quis que fôssemos robôs.

Assim é que se cumpre a Lei e a Vontade do Céu, e se Crowley lhes parece um mensageiro demasiado sinistro, saibam que o antigo rabi da Galileia não disse coisa muito diferente. Esta é uma tradução mais fidedigna do trecho do Pai Nosso com o qual iniciamos este tomo (veja quem tiver olhos para ver):

Faze com que se realize a tua vontade, na terra, à imagem do céu (Oração do Pai Nosso; tradução ecumênica)


» No tomo final: Ars Magica.

***

[1] Trecho do doc The Mindscape of Alan Moore.

Crédito das imagens: Google Image Search (respectivamente: Aleister Crowley e Alan Moore).

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18.4.18

Fé e Razão (Reflexões no YouTube)

Começo minha carreira no YouTube trazendo uma pergunta muito interessante da época do Orkut, e aproveito para falar um pouco de ceticismo, espiritualidade, médiuns, desmistificadores e, como não poderia faltar, Deus:

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Obs.: Até que para um vídeo inicial ficou bem razoável. Tive problemas com a definição da imagem (que só foram realmente percebidos após o envio do vídeo), mas pelo menos o áudio já ficou ok. Não liguem para a "estante torta" ao fundo; minha casa não está desnivelada, mas talvez ainda leve alguns vídeos para eu deixar tudo mais "horizontal".


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12.4.18

10 reflexões para o amadurecimento emocional

Não nascemos prontos. Quando éramos ainda crianças, aprendemos a reagir aos problemas da existência e dos relacionamentos com outras pessoas de maneira simples e inocente. Agredir quando se sentir agredido, repulsar quando tiver medo, paralisar-se diante do desconhecido, e por aí vai.

Freud criou a psicanálise a partir do estudo dessas reações infantis, denominando-as de neuroses. Para a psicanálise, todos nós somos neuróticos porque todos nós temos a tendência a reagir de maneira infantil aos nossos problemas. O confronto com a vida, por outro lado, nos força ao amadurecimento para podermos desfrutar dela. Ou estaremos condenados a uma vida de sofrimento causada por nossa própria inaptidão emocional.

Porém, amadurecer não é fácil. As reações infantis são mecanismos de defesas utilizados pelo sujeito desde sempre para não se haver com suas vulnerabilidades.

Quando éramos crianças, nos sentíamos indefesos diante do mundo. Dependíamos dos pais ou de outros adultos de tal modo que parecia impossível viver sem eles. Mas a proteção deles também possuía limites. A constatação de nosso desamparo diante do mundo externo, sua imprevisibilidade, a incapacidade de saber a intenção dos outros, significa que podemos nos machucar quando alguma coisa indesejada nos acontece. Assim desenvolvemos defesas para que não nos machuquemos desnecessariamente.

Socialmente, qualquer sinal de vulnerabilidade é mal vista. Acreditamos que precisamos sempre ser fortes. Na cultura, os homens são apresentados como autossuficientes, fortes e inabaláveis, as mulheres como independentes, sedutoras e inconsequentes. Existe a ideia de que o homem e a mulher ideal são conquistadores sem sinais de vacilação.

A ideia de que precisamos sempre ser confiantes, independentes e autossuficientes é extremamente nociva. Como, obviamente, ninguém é assim, nos acostumamos a construir barreiras emocionais para nos defender do mundo. Distanciamo-nos de tudo aquilo que pode nos tocar mais profundamente. Se por um lado nossas defesas são necessárias para não nos machucarmos, por outro elas nos tornam impessoais, inférteis para experiências mais profundas e recompensantes. Em outros termos, incapazes de viver experiências existenciais mais autênticas e satisfatórias.

Por sorte ou azar, há o amor. Quando nos apaixonamos por alguém e começamos a desenvolver uma relação de maior intimidade, somos forçados a nos confrontar com verdades que, na maioria das vezes, preferíamos ocultar ou esquecer.

No começo de uma relação, durante o período da conquista, queremos nos mostrar fortes, independentes, bem-sucedidos, ou seja, portadores de características excepcionais que seduzam quem desejamos. Porém, isso não se sustenta por muito tempo.

Na intimidade, revelamos quem verdadeiramente somos por trás das máscaras sociais que usamos para tentar encantar o outro. Falamos de nossas inseguranças, compartilhamos nossos medos, lidamos com as nossas falhas. Precisamos admitir nossas fragilidades ao mesmo tempo em que acolhemos também as imperfeições do outro. Isto é o amor, pois não há amor senão pelas faltas e incompletudes.

O amor é assim um grande catalisador do nosso amadurecimento emocional. Ele nos revela quais são nossas carências e inseguranças. Afinal, o que podemos dizer que é mais comum aos seres humanos do que querer amar e ser amado?

Ao contrário do que dizem os mais românticos, o amor não está acima de tudo. Existem condições para que seja possível ele se realizar. É possível amar alguém e mesmo assim não podermos estar juntos dessa pessoa porque a vida nos encaminha para diferentes direções. A neurose, porém, é uma incapacidade para amar mesmo quando estamos diante dele. Quando as barreiras que construímos desde a infância para nos proteger impedem que experiências mais autênticas toquem nossas fragilidades. Se esse confronto muitas vezes pode machucar, também pode ser libertador.

Veremos agora 10 reflexões emocionais e como o amor nos impulsiona a superá-las:

1. Sensibilidade
Temos emoções. Mas aprendemos que demonstrá-las – ser sensível, passional ou carinhoso – é sinônimo de fraqueza. O que é um grande engano. Reprimir seus sentimentos sob racionalizações, frieza ou aparente neutralidade lhe torna incapaz de expressar o que você realmente precisa dizer.

Por exemplo, muitas mães quando veem seus filhos crescerem e saírem de casa, ao invés de lhe dizerem “meu filho, você está indo embora, sentirei saudades de você porque lhe amo, por isso volte sempre que puder”, tentam amedrontar seus filhos criando terrores sobre os perigos do mundo externo, criticando suas escolhas amorosas ou de vida, na crença infantil que, motivados pelo medo, seus filhos não irão lhe abandonar.

Uma comunicação eficiente é uma comunicação sincera. Saber expressar seus sentimentos é fundamental, e – ao contrário do que se diz socialmente – não há nada de injusto numa motivação emocional.

2. Dependência
Todos nós somos dependentes. Sim, ninguém se basta por si mesmo. Precisamos de comida, abrigo, ideias, mas também de amigos, família ou mesmo companheiros de profissão para nos sentirmos reconhecidos.

Obviamente, não é interessante ser completamente dependente do outro. Alguém muito dependente se torna incapaz de fazer qualquer coisa sozinho, e está sempre demandando atenção e cuidados dos outros.

No entanto, querendo evitar um extremo, muitas pessoas caem em outro: a crença de que precisamos ser completamente independentes. Essas pessoas jamais admitem que precisam de alguém ou de alguma coisa. Conscientemente ou não, afastam todas as pessoas que poderiam estar ao seu lado, sentindo-se cada vez mais sozinhas.

Admitir que precisamos de algumas coisas é saudável. É humano.

Quando você está num relacionamento com alguém, é fundamental que a outra pessoa se sinta importante, tendo um lugar na sua vida. A incapacidade de demonstrar que algumas pessoas são importantes para nós pode fazer com que elas se afastem, já que não se sentem reconhecidas.

3. Apego
O sentimento de apego é outro sentimento mal interpretado. O apego faz parte da vida e o sentimos por tudo que julgamos importante para nós. Sempre que estamos diante de algo que amamos e queremos preservar porque nos faz bem, nos tornamos apegados àquilo.

Seu excesso é como a extrema dependência: a incapacidade de se pensar sem aquilo. O que, convenhamos, é falso. Por mais que você ame algo ou alguém, se um dia você vir a perder, a sua vida seguirá. É sempre doloroso. Mas a vida vai seguir.

Temos uma capacidade de nos reinventarmos que muitas vezes desconhecemos. Além disso, a vida sempre nos surpreende por caminhos que somos incapazes de prever.

Apegar-se é saudável. Ruim é pensar que não haverá vida possível depois. Mesmo se nos afastarmos do que amamos, as experiências, aprendizados e vivências adquiridas permanecem conosco.

4. Perda
Ninguém gosta de perder. Mas amar e perder estão relacionados de tal modo que não é possível o primeiro sem arriscar o segundo. Quando amamos algo, devemos estar cientes que é possível perder isso por inúmeras razões. Vai doer sim, mas a vida é assim.

Muitas pessoas evitam se aprofundarem numa relação porque antecipam a perda. Pensam que, porque um dia podem perder, é melhor nem começar. Este tipo de comportamento de evitação pode parecer vantajoso no começo, mas é ruim em longo prazo.

A vida é essencialmente finita. Somos incapazes de prever o futuro, portanto, não sabemos a duração de nada. Podemos apenas viver cada dia do modo que o temos. Um dia de cada vez.

5. Fragilidade
A esta altura já está claro que somos emocionalmente vulneráveis. No entanto, a sociedade moderna nos tornou excessivamente sensíveis às frustrações. Acostumados a muitas facilidades, experiências de lazer e entretenimento, fomos condicionados a desejar uma vida sempre prazerosa, e a nos sentirmos extremamente desconfortáveis frente a qualquer sinal de angústia.

Angustiar-se faz parte da vida. Existencialmente, a angústia é um dos sentimentos mais eficientes. Quando nos angustiamos por algo, isto é sinal de que aquilo é mais importante para nós do que admitimos. Quando ficamos ansiosos, tristes, preocupados, incomodados com algo, não significa que a coisa seja ruim, mas que ela nos é mais fundamental do que pensamos. Portanto, precisamos ter cuidado para não confundirmos nossas reações com a coisa em si.

Precisamos, na verdade, aprender a levar as coisas com maior leveza, nos reposicionando diante de determinadas preocupações e, acima de tudo, não ter medo de nos machucarmos. Na vida vamos nos machucar muitas vezes. Faz parte.

Depois de nos machucarmos, recuperamos. Mesmo assim aproveitamos tudo que antecedeu nos machucarmos. E assim a vida segue.

6. Insegurança
Conscientes de nossa fragilidade, nos sentimos inseguros quanto ao nosso destino. Queremos controlar tudo para que nada de ruim nos aconteça e assim não nos frustrarmos. O que é impossível. Não temos controle sobre a vida. Amar é sempre um risco. Envolver-se em qualquer coisa mais séria é lançar-se numa aventura sem garantias.

Experiências mais profundas e recompensantes só funcionam quando abrimos mão do controle, e assim deixamos que elas nos alcancem antes que nós controlemos até que ponto elas podem nos tocar. Novamente, a possibilidade de nos frutarmos não é suficiente para dizer que algo não valha a pena ser vivido. O medo pode ser uma ótima ferramenta para nos alertar sobre onde pisarmos. Mas ater-se apenas a ele pode ser paralisante quando falamos sobre sair de nossas couraças.

Quanto ao futuro, sozinhos ou acompanhados, nunca sabemos como ele será, e precisamos vivê-lo a cada dia sem garantias. Mais importante do que deter-se nas inseguranças é admitir que elas existem, e assim poder compartilhá-las com o outro. Constrói-se assim a confiança necessária para prosseguirmos.

7. Idealizações
Todos nós idealizamos o encontro amoroso. Esperamos alguém fantástico, belo, inteligente, interessante, assim como nas fantasias. Essas coordenadas são importantes e não devem ser ignoradas. Elas dizem sobre o nosso desejo. Apaixonamo-nos por pessoas que remetam a essas nossas necessidades.

No entanto, é ilusão acreditarmos que existirá alguém que se encaixará perfeitamente às nossas fantasias. O outro real é um ser humano como nós, com suas incompreensões, falhas, fracassos. Se não somos capazes de aceitar menos do que a fantasia, jamais conseguiremos amar. A felicidade no amor advém dessa aceitação, e não o contrário.

Desencaixes sempre existem. A questão é que uns são mais suportáveis que outros. Você deve encontrar a sua medida.

8. Aceitação
Todos nós queremos ser aceitos e compreendidos pelo que somos. Mas por medo de que, ao nos revelarmos como realmente somos, seremos ridicularizados pelo outro, nos escondemos em personalidades de fachada, na impessoalidade.

Não aceitamos nossas imperfeições porque acreditamos que precisamos ser perfeitos para sermos amados. Tal perfeição não existe, e muitas vezes são pelos motivos menos esperados que as pessoas se apaixonam por nós. Não porque parecemos bem-sucedidos, mas porque temos dúvidas sobre nosso sucesso. Não porque somos bonitos, mas porque temos inseguranças quanto a nossa identidade. São através dessas angústias que o outro é capaz de enxergar em nós um outro ser humano, se identificando e nos amando pelo que somos. Deste modo, conseguir entregar-se é fundamental para um relacionamento.

Abrir-se para o outro, como geralmente não podemos fazer com qualquer um, é uma das experiências mais recompensantes da intimidade.

9. Comprometimento
Comprometimento é uma daquelas palavras temidas na modernidade. Parece que se comprometer com o outro significa abrir mão de si, de sua liberdade, para cumprir com obrigações que não fazem parte do seu desejo. O que é um engano.

Comprometer-se é se responsabilizar pelo cuidado emocional de quem você ama. Entender que, da mesma forma que você se entrega a essa pessoa, você precisa cuidar do que essa pessoa entrega a você. Afinal, vocês assumem uma importância na vida um do outro. Não existe fórmula ou regras, mas cada relação implica em certos tipos de compromissos particulares a serem honrados.

Assumir compromissos é fazer escolhas sobre o que é prioridade para você. Na vida não é possível ter tudo. É preciso escolher ao que você deseja dar prioridade, e essas escolhas definirão quem você é.

Comprometer-se com algo além de você é uma experiência gratificante de descentramento. Perceber que há outras pessoas, e nem sempre se trata sobre você. E que, afinal, você pode ser feliz também fazendo outras pessoas felizes.

10. Abandono
Finalmente, o maior medo em questão de relacionamentos é ser abandonado. Você se lança numa relação, se abre, confia, e mesmo assim o relacionamento termina. Você se sente abandonado pelo outro. Seu investimento naquela relação não foi correspondido.

Temendo que esse momento possa ocorrer, muitas pessoas abrem mão de se comprometerem. Abandonam o outro antes de poderem ser abandonadas depois. É frustrante e doloroso se sentir abandonado por alguém em que você investiu tanto. No entanto, é preciso entender que as coisas são mais complexas do que parecem.

Talvez seja fácil se sentir abandonado se você olhar apenas pela sua perspectiva, mas, na realidade, alguma coisa não aconteceu para o outro do mesmo modo que aconteceu para você. Afinal, vocês são pessoas diferentes, e como tal podem estar em momentos, necessidades e tempos diferentes. Não há relação perfeita. Desencaixes sempre existem. Alguns relacionamentos conseguem ir com eles, outros não.

Entender que o outro também tem o seu momento é fundamental para poder aceitá-lo e amá-lo, seja qual for a sua decisão, mesmo quando esta não é a que você prefere.

Ao se sentir abandonado depois de um término, lembre-se de todas as pessoas que continuam na sua vida. Amigos, família e companheiros. Sem dúvida, há também outras pessoas que ainda vão surgir.

Trata-se de um verdadeiro acontecimento quando duas pessoas se encontram em amor. E mesmo que isso termine, não significa que não tenha valido a pena.

Em resumo, é preciso coragem para amar. Porque amar implica em se mostrar vulnerável, assumir seus sentimentos e estar disposto a encarar as dificuldades e frustrações da vida. Isso requer amadurecimento para sair de uma posição infantil de defesa para se lançar verdadeiramente nas possibilidades da vida.

Espero que, com esse texto, não se entenda que todos precisamos ter um relacionamento sério, namorar, noivar, casar, ter filhos, criar uma família para amadurecer. Não se trata de um roteiro pré-escrito e evolutivo para todas as pessoas. Não há fórmula correta para o amor, tampouco significa que só podemos amar dentro de um relacionamento.

O essencial do texto é que amadurecer emocionalmente não se trata de construir uma posição de fortaleza, dominância e controle, mas justamente o contrário. Como disse certa vez a poetisa Patti Smith:

“Eu vou me promover exatamente como eu sou, com todos meus pontos fracos e fortes. Meus pontos fracos são que sou sensível e geralmente insegura, e meu ponto forte é que não sinto vergonha disso”

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: [topo] Oziel Gómez/unsplash; [ao longo] Bruno Aguirre/unsplash

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10.4.18

As grandes questões do ocultismo (tomo II)

« continuando do tomo I

No caminho da mão esquerda nós tomamos a rota direta, que é muito mais extenuante, muito mais perigosa, e onde há maiores chances de uma queda (Zeena Schreck)


Bem, se eu já havia me metido numa enrascada ao tentar definir o que diabos é ocultismo, talvez neste momento tenha me colocado num problema ainda maior: o que são o caminho da mão esquerda e da mão direita, afinal de contas?

Se formos buscar nos canais tradicionais de informação – onde boa parte do ocultismo é entendida de forma tão superficial quanto um super-herói como Hércules (da Marvel), se comparado ao seu mito antigo – temos algo não muito diverso do maniqueísmo raso: “O caminho da mão esquerda é equiparado às maliciosas práticas da magia negra, enquanto o caminho da mão direita refere-se às práticas benéficas da magia branca”. Sim, isto se encontra na Wikipédia; não é a toa que tão poucos sabem o que é ocultismo...

Um dos problemas de se tentar definir o que é o chamado caminho da mão esquerda (Left Hand Path: LHP) e a sua “contraparte”, o caminho da mão direita (Right Hand Path: RHP), é que muitas vertentes ocultistas formaram opiniões diversas sobre eles. Há quem creia que só devemos falar em LHP; há quem diga que podemos falar em ambos, mas que não são exatamente opostos; há quem atribua características tão díspares para LHP e RHP, que fica quase impossível uma definição única. No entanto, há pelo menos uma espécie de “consenso geral”: o de que LHP vem de práticas espirituais heterodoxas, por vezes individuais; e o RHP, por sua vez, favorece as práticas ortodoxas, geralmente baseadas nos ensinamentos de uma coletividade eclesiástica.

Tudo teve início na Índia...
Talvez surpreenda a muitos ocultistas ocidentais, mas os termos LHP e RHP surgiram inicialmente na Índia, mais precisamente dentre os praticantes do tantra, que pode ser aqui brevemente resumido como o “ocultismo hindu” (na verdade ele é muito mais que isso; apenas não terei tempo para entrar no tema nesta série). No Oriente, o RHP, ou Dakshinachara, se refere a doutrinas e/ou grupos que seguem princípios éticos, morais e filosóficos mais rígidos e conservadores, com forte tendência ortodoxa; por sua vez, o LHP, ou Vamachara, se refere a doutrinas e/ou grupos com práticas heterodoxas em sua maioria, que reforçam e induzem o questionamento e a oposição moral, não adotando estruturas éticas e filosóficas complexas. É preciso lembrar, no entanto, que isso já é muito distante da dualidade infantil de “bem” e “mal”; ou de “magia branca” e “magia negra”.

Porém, se no ocultismo ocidental contemporâneo um praticante LHP pode dividir um mesmo auditório com um praticante RHP sem que necessariamente eles sejam facilmente identificados por sua aparência, vestimenta, acessórios, ou até pela forma de se expressar, na Índia, particularmente na Índia antiga, alguns seguidores do LHP eram instantaneamente percebidos por onde passavam (e ainda são, embora estejam praticamente extintos):

Os aghori são devotos de Kala Bhairava, uma manifestação do deus Shiva associada à aniquilação… do mal! Eles se submetem em sua rotina ritualística à necrofagia, caminham entre cadáveres e fazem utensílios com ossos humanos, justificando tal comportamento como uma prática não-dual, o contato com o verdadeiro Eu, transcendendo todos os tabus sociais. Apesar de não serem considerados “hindus” pelos indianos em geral, os aghori têm curandeiros reconhecidos por seus poderes ditos milagrosos. Devemos pensar na prática aghori como uma vacina, em que você se contamina com o que quer evitar, sendo que a diferença entre a imunização e a infecção está simplesmente na dose e na manipulação do agente. Os aghori provavelmente seriam percebidos por um turista ocidental desapercebido como mendigos imundos que se misturam com mortos... mas, é preciso lembrar que mesmo Jesus Cristo já abriu uma tumba, e fez um cadáver voltar à vida: “Lázaro, levanta-te e anda!”. Não sei se o Rabi da Galileia foi lá muito ortodoxo em suas práticas...

Outra possível compreensão da relação entre o ortodoxo e o heterodoxo que definem os caminhos é a relação entre a disciplina e a abstenção. Um praticante RHP vai preferir abster-se de alguns desejos tipicamente mundanos, como o sexo dito promíscuo ou o consumo excessivo de bebida alcoólica; já alguém da via LHP pode, justamente, buscar ativamente tais práticas, para colocar a sua própria disciplina em xeque. Ou seja: ao invés de evitar o “perigo”, ele irá buscá-lo conscientemente, como alguém que se vê maduro o suficiente para ser testado, para testar a si mesmo, em seus apegos e excessos mundanos. É por isso que alguns dizem que o LHP é um caminho mais direto, porém bem mais perigoso.

Por muito tempo o ocultismo ocidental não esteve muito distante dessa antiga definição hindu para os dois caminhos. Ainda no tempo de Éliphas Lévi, que muitos consideram o maior ocultista do séc. XIX, a chamada “Alta Magia”, que lida com os seres do Alto, com os espíritos etéreos e com o intelecto, esteve associada à ortodoxia cristã e ao RHP. Assim, ainda que nem sempre tenha estado tão claro, se pressupunha que havia uma “Baixa Magia”, para lidar com os seres da Terra, com os espíritos densos e com a intuição – esta, portanto, estaria ligada ao LHP. Até hoje, de fato, podemos encontrar classificações parecidas nos cultos e religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda.

No entanto, com a abertura e divulgação de parte do chamado conhecimento oculto para a população leiga e os não-iniciados em geral, um movimento que atravessou o séc. XX (com grande auxílio de Aleister Crowley) e culminou na era da internet, muitas tradições se intercruzaram e, de uma imensa salada mista de conceitos e interpretações, se acabou chegando, ironicamente, a uma ideia um tanto simples para se compreender os caminhos: expansão e restrição.

Desde o yin e yang oriental já se fala nisso: uma parte da natureza que é ativa e expansiva (yang), e a sua contraparte, passiva e restritiva (yin). Na Árvore da Vida da kabbalah, há o pilar direito, expansivo, e o pilar esquerdo, restritivo. Neste caso, a associação dos lados aos caminhos é natural: o RHP seria o pilar expansivo (direito), enquanto o LHP ficaria do lado restritivo (esquerdo). Tal visão “natural” dos caminhos parece ter agradado muita gente, e em geral se tornou quase que um consenso adicional à antiga interpretação que, como já vimos, veio desde o tantra hindu. É preciso atentar para um detalhe, no entanto: todo yang traz em si um pouco de yin, e todo yin traz um pouco de yang. Com isto em mente, penso que podemos aplicar o LHP e o RHP ao caminho espiritual de cada um de nós (um caminho que, invariavelmente, perpassa muitas vidas)...

Ovelhas pastoreadas e ovelhas desgarradas
A imensa maioria das crianças não guarda senão uma vaga intuição acerca das vidas anteriores. Muitas podem carregar traumas relacionados às inúmeras guerras religiosas de nossa história, mas eles não costumam vir à tona até que chegue a adolescência com sua rebeldia. Assim, a suposta “tábula rasa” de nossa mente precisa ser preenchida com conhecimento, e na maior parte do mundo o lado espiritual é contemplado pela ortodoxia eclesiástica em voga na região em que nascemos. Nos tornamos, enfim, ovelhas pastoreadas pelo ensinamento religioso tradicional, e por seus representantes.

Isto se dá por um imenso movimento de expansão em nossa mente, que passa boa parte da infância sendo inundada, martelada por todo tipo de conhecimento religioso, mais ou menos dogmático, a depender da sorte que tivemos, isto é: do país e da família em que nascemos. Quando iniciamos a formação de nossa personalidade adulta, entretanto, muitas vezes antigos traumas, ou antigas preferências pela heterodoxia, costumam vir à tona. É assim que muitas ovelhas se desgarram de seus rebanhos, se tornando “a ovelha negra da família”.

Esta sempre foi à essência do ateísmo: não necessariamente descrer em Deus, mas ser avesso às tradições, se recusar a praticar a religião estabelecida, não seguir o rumo da multidão, por vezes se isolar não somente em seu próprio pensamento, mas abdicar da sociedade como um todo. Claro que nos dias atuais, numa era hiperconectada, tal isolamento é cada vez mais raro – mas, estranho de se pensar: todo livre-pensador, todo fundador de novas doutrinas e religiões, necessariamente teve o seu momento de eremita, o seu tempo no LHP. Foi necessário restringir a expansão para encontrar as suas próprias ideias.

O próprio cristianismo surgiu de um homem assim. Cristo jamais teria se dignado a perambular pela Galileia com seu punhado de ovelhas desgarradas, falando tanto a homens quanto a mulheres, tanto a nobres quanto humildes, praticando os “milagres” mais estranhos (ao ponto de precisar ser “calado” pela tradição), se não fosse ele mesmo um fiel seguidor do LHP.

No entanto, a partir da consolidação e da imensa vitória do cristianismo enquanto doutrina, todas as discussões da Igreja primitiva foram sendo decididas, todos os dogmas foram sendo estabelecidos sobre as heresias, e de um ensinamento simples e profundo, “Amai ao próximo como a ti mesmo, e a Deus acima de todas as coisas”, toda uma construção se ergueu, com suas virtudes e seus vícios, para se consolidar em uma nova tradição. É desta forma que a maior parte dos santos católicos seguiram o RHP, evangelizando os ensinamentos de um andarilho exótico, maltrapilho, que fazia os mortos se levantarem e afirmava que podia ser consumido, ele próprio, através do pão e do vinho. Não há nada mais heterodoxo que isso.

O mago e o místico
Numa visão geral, todo mago está geralmente ligado a uma via não tradicional, não eclesiástica, enquanto todo místico surge do próprio seio das comunidades religiosas... mas, será que é sempre assim? No ocultismo, não é possível nos atermos a visões binárias, ao “bem” e ao “mal”, ao “branco” e ao “negro”. Assim como todo yin traz sua parcela de yang, e vice versa, o mesmo pode ocorrer aqui.

Por exemplo, em seu aspecto de “realização da vontade”, o mago é muito mais ativo, muito mais expansivo, muito mais associado à coluna direita da Árvore, e não à esquerda. Da mesma forma, em sua “contemplação de Deus”, o místico é muito mais passivo, estando ligado à coluna esquerda, e não à direita.

Por outro lado, quando “expande seu coração” para abarcar a tudo e a todos, o místico se porta de forma incomparavelmente mais expansiva que o mago, que em geral “se restringe ao seu próprio grimório”, ao seu próprio vocabulário, a sua própria linguagem mágica, abdicando de maiores explorações pelas egrégoras alheias.

Quanto à ortodoxia e à heterodoxia, podem ocorrer inversões ainda mais curiosas: o já citado Éliphas Lévi foi um mago grandioso que, em geral, esteve muito ligado à tradição católica; já em pleno século XIII, em meio ao islamismo tradicional, surgiu um místico sufi, Jalal ud-Din Rumi, que passou boa parte de seus dias simplesmente rodopiando e recitando poemas aos seus discípulos. Perto de Lévi, Rumi seria considerado um lunático.

É assim que todo mago e todo místico têm sua fase LHP e sua fase RHP, e por vezes eles conseguem seguir precisamente pelo meio, tomando o rumo direto, o rumo que salta um Abismo ainda mais infernal do que qualquer noite negra da alma. Há que se perguntar, após tantas elucubrações, por que afinal tanta gente se arrisca por tantos e tantos perigos? Por que seguem pelo RHP ou pelo LHP? Aonde se quer chegar com tudo isso?

Creio eu que todos nós, os ocultistas, buscamos por um campo...


Além das ideias de certo e errado,
há um campo. Eu lhe encontrarei lá.

Quando a alma se deita naquela grama,
o mundo está preenchido demais para que falemos dele.
Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um”
não fazem mais nenhum sentido.

(Rumi)

» No tomo III: a Verdadeira Vontade.

***

Fontes consultadas
O tema deste tomo é bastante complexo e certamente vai muito além dos meus parcos conhecimentos na área; tal texto jamais teria sido possível sem o inestimável auxílio do artigo O Caminho Sinistro (por XLR), do episódio 19 do Vortex Caoscast – Mão Esquerda para Destros, e das contribuições de Gabriel Leite Bueno, Maes Hughes e Dan Cruz (dentre outros) no grupo do Vortex no Facebook.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search/Geoglyphiks.com [ao longo] Reuters (Aghori de Varanasi, Índia); a1samurai @ DeviantArt.

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8.4.18

A noite negra da alma

Noite Negra .:.

"Não se engane, crescer é um processo doloroso! Observe a semente lançada no ventre da terra, o esforço da borboleta e a cadeia alimentar: o curso da vida nada possui de pacato e fleumático.

Apenas olhares superficiais enxergam paz; a perpetuação e o avanço na natureza acontece mediante força, atrito, luta e batalhas.

Olhos desatentos veem na natureza uma mãe romântica, inocente e meiga que acaricia placidamente sua prole. Ingenuidade. A 'Mater Natura' é uma sábia senhora que exigirá - da semente e de ti - energia, fibra e tenacidade para vencer as cascas, renascer e transmutar-se.

O ponto mais escuro da noite é o que antecede a beleza do alvorecer.

As mesmas leis de luz e trevas que regem a mecânica biológica guiam a marcha espiritual. Eis uma realidade retratada na ritualística Rosacruz, Maçônica e n'outras mil tradições religiosas/iniciáticas.

Antes da ressurreição, o Iniciado deve não apenas morrer mas também 'descer aos infernos' para reencontrar-se, depurar-se e sublimar-se.

O termo 'Noite Negra da Alma' foi cunhado primeiramente por {São} João da Cruz no século XVI. Parceiro espiritual de Tereza d'Avila, ele foi não apenas um taumaturgo e místico de primeiríssima linha mas, igualmente, um fino poeta.

'La Noche Oscura del Alma', descreve a ascensão da consciência divina e, per si, configura as dificuldades entre deixar o onde se está para germinar, florescer e frutificar o que se é.

Graças aos longos e profícuos artigos de Blavatsky para a revista da Sociedade Teosófica e estudos perpetuados em 'Pelas Grutas e Selvas do Hindustão', 'A Voz do Silêncio' e 'A Doutrina Secreta' (livros que recomendo enfaticamente!) é que a expressão ganha 'mapas' marcadamente esotéricos, retratando com exatidão a jornada espiritual: o árido deserto interno precede o oásis da Iluminação.

A 'Noite Negra da Alma' é mais que um período trevoso de dificuldades corriqueiras, trata-se de um ponto de mutação na história individual de quem se propõe ou vê-se 'obrigado' a caminhar, amadurecer e evoluir."

Caciano Camilo Compostela, Monge Rosacruz – Contato: facebook.com/ mongerosacruzcacianocompostela

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Crédito da imagem: Google Image Search

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4.4.18

As grandes questões do ocultismo (tomo I)

Nada é tão escondido que não possa ser revelado através de seu fruto (Paracelso)


Hoje uma boa parte dos leitores do meu blog provavelmente conhecem alguma coisa de ocultismo, e alguns até se consideram ocultistas. Eu, entretanto, só vim conhecer melhor o ocultismo após cruzar no caminho com o meu amigo Marcelo Del Debbio. Através dele, percebi que o ocultismo era algo bem diferente do que se julga na chamada “opinião popular”. Ainda assim, mesmo tendo adquirido um conhecimento mais aprofundado do tema, eu ainda sinto que muitas vezes faltam consensos e sobram divergências quando as próprias vertentes ocultistas dialogam entre si.

Há gente que crê que ocultista é somente quem já chegou a praticar algum ritual vestindo mantos e empunhando espadas ou adagas, há magos do caos que acham isso tudo uma besteira, enquanto há leitores da teosofia que se dizem ocultistas porque seguem os ensinamentos da Madame Blavatsky; há quem diga que se trata de uma ciência, há quem diga que é religião, há quem diga que não é nenhum dos dois... Ora, eu me pergunto se essa confusão toda não contribuí ainda mais para o descrédito do chamado ocultismo na opinião popular.

No fim das contas, talvez seja mais proveitoso tentar definir o ocultismo não pelo que ele é, mas pelo que ele não é:

Não, o ocultismo não é “coisa do Demônio”.
Não há associação mais direta quando mencionamos o termo “ocultismo” a um leigo do que ao “Demônio”. Tudo bem que contribuíram para isso muitos filmes e contos de terror ao longo da história, mas é estranho de se pensar: muitas vezes, até mesmo quem não acredita na existência de um Demônio, de um “Senhor de todo o mal”, ainda assim crê piamente que ocultismo e satanismo (seja o que isso for) são mais ou menos a mesma coisa.

A crença num Demônio Mal adversário de um Criador Bom pode ser traçada ao zoroastrismo, e sua presença no cristianismo se deve muito a antiga crença de Agostinho de Hipona, o grande doutor da Igreja, nas doutrinas de Mani (que era admirador, por sua vez, da dualidade zoroastrina). Agostinho, é claro, afirma ter deixado de lado suas crenças pagãs, assim com a sua antiga vida boêmia, mas uma coisa é afirmar “eu renego Mani”, outra é ter a absoluta certeza de que nada, mesmo que inconscientemente, foi transportado para o seu próprio pensamento. Como sabemos, Agostinho provavelmente esteve enganado sobre si mesmo nesse ponto.

No entanto, ainda que você mesmo creia nesse Demônio, talvez lhe surpreenda que o próprio criador do satanismo não acreditava nele. É difícil saber se as histórias acerca da vida de Anton LaVey são verdadeiras, pois ele mesmo admitiu ter mentido bastante (e, de certa forma, em boa parte o próprio satanismo de LaVey é uma grande zoação), mas a sua biografia não autorizada (e, portanto, mais fidedigna) nos conta que ele trabalhou alguns anos de sua juventude como organista (tocador de órgão) em bares e prostíbulos dos EUA nos anos 1940. Ora, ocorre que, nos mesmos locais onde ele foi contratado para tocar aos sábados, também achou emprego para tocar aos domingos, em cultos e espetáculos cristãos...

Então ele percebeu que os mesmos ditos cristãos que juravam seguir os preceitos de sua religião aos domingos, menos de 24 horas antes estavam pagando prostitutas nas casas noturnas em que LaVey tocava. Assim, o seu satanismo não surgiu nem de uma adoração a algum Demônio nem propriamente de um ódio intrínseco ao cristianismo: LaVey simplesmente não suportava era a hipocrisia de muitos dos cristãos da sua época.

Fosse hoje em dia, talvez ele já estivesse contente em criar uma página de memes zoando o cristianismo nas redes sociais. Mas, já lá pelos anos 1960, a sua forma de extravasar esse sentimento foi criando uma espécie de “religião zoeira”; que, no entanto, trazia muitos ensinamentos profundos retirados de vertentes ocultistas mais antigas que defendiam o chamado “caminho da mão esquerda” (do qual ainda falaremos mais para frente).

Nada disso, no entanto, tem qualquer coisa a ver com um Demônio real, muito menos com “pactos de venda de alma” e baboseiras desse tipo. Que há maldade no mundo, disso não temos dúvida; mas essa maldade está no coração dos seres (encarnados ou não), e não numa espécie de “bode expiatório cósmico”, condenado a ser a fonte de toda maldade pela eternidade. Nem no zoroastrismo antigo havia crença tão infantil...

No entanto, se formos considerar os demônios como aspectos negativos de nós mesmos, então um de seus grandes estudiosos, segundo consta na tradição judaico-cristã, foi justamente o Rei Salomão (sim, aquele carinha mesmo, lá da Bíblia). Uma das tradições magísticas mais conhecidas é a Ars Goetia, onde se estuda o sistema, dado de presente a Salomão pelos anjos, que lhe conferia poder e controle sobre os principais demônios conhecidos. Assim, se o ocultismo também lida com demônios (e não com “o Demônio”), saiba que isso vem desde Salomão.

Não, o ocultismo já não é mais um “conhecimento vedado”.
Segundo Del Debbio, a origem dos grupos ou ordens onde algum conhecimento precioso era “guardado” do resto das pessoas ocorreu ainda na época da construção das pirâmides, e perpassou séculos e séculos onde os segredos da construção de castelos, fortalezas, barcos, juntamente com a forja das armas e armaduras de metal, eram antes de mais nada questões militares, que tocavam a própria segurança de reinos e países, da mesma forma como até hoje os segredos para a produção de armas nucleares são vedados a maior parte das nações.

Ocorre que, nos primórdios da humanidade, a ciência, a filosofia e a religião ainda eram como “uma coisa só”, e é natural imaginar como os mesmos grupos que guardavam os segredos da construção de templos religiosos, por exemplo, guardavam igualmente os segredos de seus rituais mais profundos. Além disso, é preciso lembrar que durante boa parte de nossa história a grande maioria da humanidade foi iletrada, analfabeta. Os eclesiásticos tampouco ajudavam: foi somente em 1534, por exemplo, que uma tradução da Bíblia para o alemão alcançou o grande público, graças ao reformador Martinho Lutero. Até a Reforma, não era do interesse da Igreja Católica ter o seu maior livro sagrado acessível à leitura da maior parte da população. Por que será?

Foi também devido às perseguições da Igreja na Europa que boa parte das ordens secretas que sobreviveram até os dias atuais foi inicialmente formada. Elas não podiam simplesmente divulgar certos conhecimentos a qualquer interessado, não somente pela necessidade de um estudo anterior para que o leigo tivesse condições apropriadas de interpretar aqueles conhecimentos, como também pelo fato de que havia vários “olheiros” da Inquisição prontos para enviar qualquer infiel pra fogueira.

Felizmente, a humanidade evoluiu e, a despeito de suas mazelas, ao menos o advento da era racional-científica, desde meados do século XIX, acabou trazendo uma liberdade muito maior para o tráfego do antigo conhecimento oculto. Está certo que hoje esse tipo de conhecimento é considerado uma espécie de “heresia irracional” pela Academia (que esqueceu que foi graças a ele que a ciência moderna deu o seu grande salto, quando Copérnico e Galileu beberam nas fontes do hermetismo), mas ao menos ela não manda seus hereges para a fogueira – se contenta em ridicularizá-los por “falta de provas”, somente.

Hoje sites, blogs e canais do YouTube falam abertamente de ocultismo, e anunciam suas ordens e eventos para os que quiserem praticá-lo de fato. Porém, mesmo antes da era da internet, tal tipo de conhecimento já vinha sendo aberto ao grande público, passo a passo, sobretudo através da literatura. Desde Aleister Crowley ao próprio Alan Moore, exemplos não faltam.

Vivemos na era em que Baphomet é encontrado em imagens na internet associado ao Homer Simpson. É um tempo onde há tanta, tanta informação disponível, que não há mais real necessidade de se ocultar nada: o próprio mecanismo da web faz com que somente aqueles realmente curiosos, preparados ou não, encontrem o ocultismo.

O grande problema está, evidentemente, em se tratar tudo isso como uma grande brincadeira. Em ser um “satanista” somente para irritar os seus pais e “chocar a sociedade”; ou pior, em crer realmente em “contratos com o Demônio”: tudo isso demonstra que não basta saber ler para ser alfabetizado nos assuntos da alma. É preciso interpretar o mundo e, sobretudo, o seu próprio interior. Isso nenhum site, nenhum vídeo topzera do YouTube poderá fazer por você – e é justamente por isso que ainda há espaço para as ordens nos dias de hoje, ainda que elas não precisem mais ser totalmente secretas. Elas existem para auxiliar o verdadeiro caminhante.

Não, nem todo ocultista é “charlatão”.
De fato, a maioria não é. O ocultismo em grande parte trata dos assuntos da alma, das questões internas, da nossa interpretação do mundo, da nossa própria mente. A grande maioria dos alquimistas jamais acreditou realmente que poderia verter chumbo em ouro, mas acreditava na realidade na transmutação da alma ignorante e animalesca num ser apto a refletir a luz do Alto, num ser que constrói em si o seu próprio tesouro.

É muito fácil chamar Baphomet, Pã ou Cernunnos de demônios sem jamais ter se dignado a pesquisar 30 minutos na web acerca deles. É muito fácil associar os rituais de cura e outros efeitos medicinais ao chamado efeito placebo, sem saber explicar ao certo o que diabos ele é. É muito fácil colocar o tarot e a astrologia no mesmo saco dos “signos de jornal” e dos “trago a pessoa amada em 3 dias” sem antes buscar conhecê-los mais a fundo, nem que seja para entender melhor porque grandes homens e mulheres de nossa história o utilizavam para o seu processo de autoconhecimento.

É claro que existem charlatões no ocultismo, sobretudo pelo fato de que ninguém sabe ao certo definir o que é exatamente o ocultismo. Mas, se tem uma coisa que o verdadeiro ocultismo não é, é charlatanismo.

» No tomo II: o caminho da mão esquerda; o caminho da mão direita.

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Crédito das imagens: [topo] Rembrandt (A Festa de Belazar); [ao longo] Roe Mesquita.

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3.4.18

Viviane Mosé fala sobre a sociedade em rede

Ontem tive o privilégio de ver ao vivo, na Câmara Municipal de Campo Grande/MS, a palestra do maior pensador vivo do país, que por acaso é uma mulher, e se chama Viviane Mosé.

Iniciando seu discurso há 100 mil anos, desde o surgimento da consciência humana, passando pela descoberta de nossa mortalidade, pela agricultura e pela invenção de imprensa, Mosé chega enfim a grande revolução de nosso tempo, a internet, com todo o seu potencial maravilhoso e todas as suas revelações monstruosas de nós mesmos: uma sociedade deprimida em busca de algum rumo, em geral dominada pelos discursos fáceis, radicais, mas que tem a sua frente a imensa tarefa de aprender a viver em rede, a educar e ser educada, e a abandonar uma visão excessivamente racional da vida em prol de uma presença emocional, aqui e agora...

Tudo isso tentou falar a filósofa e poetisa de um fôlego só. Estejam preparados, não é vídeo para se ver sem prestar atenção. Se trata de um verdadeiro vendaval filosófico:

Obs.: Ela começa a falar em 00:14:50. Infelizmente o Facebook não permite inserção de tempo inicial num vídeo compartilhado desta forma.


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