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30.3.11

Símbolos e portais

Ainda não sei bem porque resolvi renovar o layout do blog de uma hora para outra, mas fato é que ocorreu pelo menos um caso curioso durante o processo...

A única coisa que tinha em mente, desde o início, era esta imagem de fundo, que remete ao elemento água.  Achei que este elemento seria interessante por remeter simbolicamente a certos conceitos que acredito casarem bem com o conteúdo do blog, como sentimento, subjetividade e fluidez. Até aqui, tudo certo, foi uma criação consciente.

A questão é que quando alterei a fonte da logo, “Textos para Reflexão”, achei que talvez ficasse legal ter uma caixa ao lado esquerdo, talvez um símbolo que pudesse ser utilizado como ícone, já que ocuparia um espaço menor. Então copiei o texto para dentro da caixa e iria escrever apenas um “T”, mas sem querer escrevi dois deles. Como existia um efeito aplicado às fontes da logo antiga, que as deixavam mais agrupadas, com a nova fonte ambos os “T”s se fundiram em uma espécie de portal. Tudo bem, o papo geek termina por aqui.

Ocorre que esta imagem de portal me remeteu imediatamente a uma imagem que já havia utilizado em uma série de artigos intitulada “Isto não é o nada”. Na terceira imagem do primeiro artigo da série, temos uma das fotos do genial Michael Kenna, de sua série “Silent world” (“Mundo silencioso”). Ora, até aqui eu sequer sabia o nome disso, apenas achei muito bonito – como, aliás, já achava antes – e resolvi colocar também no rodapé (está no rodapé das páginas no layout padrão).

Apenas após ter lançado o novo layout, e ter recebido alguns comentários acerca de sua simbologia, é que resolvi estudar o que diabos era aquela imagem de portal... Para minha surpresa, ela tem vários significados bem interessantes e profundos, alguns relacionados à imagem diretamente, outros indiretamente:

O torii
Um torii é um portão tradicional japonês, ligado à tradição xintoísta, e assinala a entrada ou proximidade de um santuário.

O torii é composto por dois pilares verticais, unidos no topo por uma trave horizontal (kasagi), geralmente mais larga que a distância entre os postes. Sob a kasagi há outra trave horizontal, (nuki) que une os dois pilares. Em torno desta estrutura básica, encontramos múltiplas variações, dependendo do estilo arquitetônico do Santuário e da sua divindade principal (saijin).

Os templos podem ter um ou mais torii, indicando a crescente proximidade do local sagrado. Quando são vários, há, geralmente, um maior que é chamado ichi no torii (“o primeiro torii”). Além disso, os torii também podem estar integrados na tamagaki ou vedação que circunda o santuário.

Os mais utilizados são a madeira e a pedra, mas não há restrições estabelecidas e, na atualidade, têm sido construídos torii com outros materiais.

Não há consenso acerca da origem dos torii. No entanto, simbolizam claramente a separação, mas também a proximidade, entre o mundo dos homens e o mundo dos kami (espíritos da natureza, protetores ancestrais, deuses, ou simplesmente Deus).

Ou seja, sem querer, acabei escolhendo um símbolo que talvez descreva melhor o blog do que eu jamais fui capaz de descrever... Bem, esta era a relação mais direta da imagem, mas encontrei outras...

O tau
O formato meio arredondado da fonte utilizada na logo fez com que o “T” ficasse parecido com o tau (τ ), que é a décima nona letra do alfabeto grego.

Até aqui nada demais, mas achei interessante que o tau fosse usado, em física e engenharia, para representar a constante de tempo. Não pelo que ela significa exatamente, mas pelo próprio conceito evocado pelas palavras – “constante de tempo”. Ainda tenho de pensar mais sobre isso.

O tau também era um símbolo adorado por São Francisco de Assis. É muito utilizado, até hoje, por franciscanos. São colares onde um tau de madeira pende sobre o peito. Quando era adolescente eu usei um desses por mais de um ano, não lembro bem porque – acho que porque achava legal, apenas.

O pi
Amigos também me lembraram que o símbolo parece o pi (π), outra letra grega, que na matemática representa a proporção numérica originada da relação entre as grandezas do perímetro de uma circunferência e seu diâmetro. Além de estar associado a forma do círculo, que é um símbolo da perfeição e da totalidade, a própria fórmula de cálculo do pi não possui uma valor final, o que remete a idéia de fractais geométricos e do próprio infinito...

Stonehenge
Finalmente, o símbolo me remeteu ao formato de algumas das pedras de Stonehenge (do inglês arcaico "stan" = pedra, e "hencg" = eixo)... Trata-se de um monumento megalítico da Idade do Bronze, localizado na planície de Salisbury, próximo a Amesbury, no condado de Wiltshire, no Sul da Inglaterra.

Constituí-se no mais visitado e conhecido círculo de pedras britânico, e até hoje é incerta a origem da sua construção, bem como da sua função, mas acredita-se que era usado para estudos astronômicos, mágicos ou religiosos.

***

Claro que não desconsidero a possibilidade de, como ser humano que sou, estar buscando por significados onde talvez não existam... Por outro lado, todo espiritualista sabe muito bem como sua intuição as vezes o guia de forma oculta e incerta, mas que muitas vezes também acaba por o surpreender com belos resultados – como uma poesia, uma oração, ou uma nova equação para a natureza.

O que posso dizer é, portanto, somente isso: que sejam bem vindos ao meu portal.

***

Crédito da imagem: Michael Kenna (Torii, Takaishima, Honshu, Japão, 2002).

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Novo layout

Se tudo correu bem, quando você abriu esta página, o blog já entrou com seu layout renovado. Para quem já conhecia o Textos para Reflexão, sejam bem vindos novamente... Para quem nunca tinha visitado antes, este é um bom momento para aprender sobre as novas – ou atuais – funcionalidades:

Aumentar/diminuir fontes
Você pode clicar nos botões da barra superior para controlar o tamanho das fontes dos posts. Achei que seria interessante permitir apenas o controle do conteúdo, para evitar quebrar o layout desnecessariamente.

Busca
Na busca só tivemos alteração de layout, achei melhor deixar o campo e as fontes bem maiores, para facilitar a usabilidade. A pesquisa continua abrindo uma página do Google que busca internamente no blog.

Menu principal (horizontal)
O antigo menu de “seções” agora esta horizontal e com nova distribuição. Alguns itens abrem sub-menus com mais opções, quando necessário. Em realidade esses itens buscam resultados de pesquisa por tags, de modo que não é um menu de categorias, mas de tags que denotam os assuntos mais abordados no blog.
Dessa forma, é possível que um mesmo post – seja artigo, conto, poesia, etc. – fale de assuntos diversos como “evolução e espiritualidade” ou “mitologia e ciência”, e dessa forma apareça em vários itens de menu diferentes.
Finalmente, procurei agrupar esses assuntos de uma maneira em que possa separar as áreas de interesse mais abrangentes para os usuários. Dessa forma um agnóstico pode se interessar por ler sobre Deus dentro do campo da filosofia, da mesma forma que um materialista provavelmente se interessa por ciência, e um budista talvez se interesse por ecumenismo.

Imagens dos posts
Ao clicar nas imagens da maioria dos posts, elas agora abrem em uma caixa flutuante no centro da tela, em seu tamanho maior. Ainda existe a possibilidade de abrir em uma nova janela, em todo caso, bastando para isso passar o mouse em cima da imagem e clicar no link correspondente.

Reflexões
Na coluna direita temos uma combo com as séries de artigos sobre temas específicos. Normalmente estes artigos contém as reflexões mais profundas do blog, e são escritos com um cuidado maior – daí serem a melhor forma de conhecer o blog a fundo.

Minha “carinha bisbilhoteira”
Eu honestamente achava que não gostavam muito dessa carinha no topo do blog (layout antigo), mas me enganei... Como alguns reclamaram de eu a ter retirado, e ninguém elogiou o fato de ela ter sumido, achei por bem incluí-la lá embaixo na coluna direita. Infelizmente não pude deixar no topo devido ao espaço que quis dar para a busca...

Arquivo completo
Na página inicial do blog, temos no rodapé o arquivo completo com todos os posts, agrupados mês a mês, desde o início em Novembro de 2006. Esses links são a melhor forma de navegar pelo blog inteiro, já que normalmente as páginas abertas pelo menu principal listam somente os últimos 10 a 20 posts de cada assunto (marcadores/tags). Sei que alguns leitores se prestaram a essa odisseia, no que fico muito grato!

Layout para celular
Na barra superior, logo acima da logo, temos um link para ajustar o layout do blog para celulares e outros dispositivos móveis, onde geralmente não há muito espaço horizontal na tela. A troca da layout deve ocorrer instantâneamente, e enquanto não cliar na opção de retornar ao layout padrão, sempre que retornar ao blog deverá visualizá-lo nesse layout (ou pelo menos enquanto durar o cookie que grava esta opção; Se demorar mais de uma semana para retornar, pode ser que precise clicar novamente para alterar o layout).
Alguns poderão gostar de ler os textos preenchendo toda a tela, mesmo num monitor normal... Sintam-se a vontade para ler o blog neste layout simplificado.
Também é possível acessar este layout diretamente pelo endereço de qualquer página do blog, bastando acrescentar "?mobile" ao final. Dessa forma, o endereço do blog abrindo diretamente em layout para celular seria http://textosparareflexao.blogspot.com/?mobile


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25.3.11

O fogo de Prometeu, parte 3

continuando da parte 2

O Sol é a estrela central do Sistema Solar. Todos os outros corpos do Sistema Solar, como planetas, asteroides, cometas e poeira, bem como todos os satélites associados a estes corpos, giram ao seu redor.

Sejamos como os girassóis

Poderemos então imaginar que, no final das contas, a fórmula sagrada de Einstein – E=MC² – é tão somente um arauto da destruição. Mas a mesma equação que produz a morte é essencial para a vida.

O universo é formado principalmente por elementos leves, como gases. Somente o hidrogênio representa cerca de 75% da massa detectada no espaço-tempo. Não fosse pelas reações nucleares nas fornalhas estelares, elementos pesados não existiriam, incluindo o carbono, no qual toda a vida na Terra é baseada.

Nas estrelas o que ocorre, no entanto, é a fusão nuclear, quando dois átomos se fundem e formam um outro núcleo de maior número atômico, liberando vasta energia e formando detritos, que são exatamente os elementos pesados. A fusão nuclear, apesar de produzir bem mais energia do que consome, só ocorre em ambientes com quantidades enormes de energia, como no calor das fornalhas estelares... Apesar de até hoje o homem não ter conseguido dominar este deus, é graças há fusão nuclear que existimos. Nós somos formados, literalmente, por poeira de estrelas, ou o que sobrou do choque atômico no fogo de Prometeu.

A Terra é a terceira pedra do Sol. Deve sua formação e manutenção quase que exclusivamente a esta estrela, que representa 99,86% da massa do Sistema Solar. Sua atração gravitacional, ou a curvatura que provoca no espaço-tempo, é a única coisa que nos impede de orbitar o vácuo cósmico, congelando na escuridão dentre as galáxias longínquas. A gravidade nunca nos falhou, e o Sol ainda nos auxiliará por bilhões de anos.

Desde a pré-história o homem já tem cultuado o Sol como um deus. O deus Invicto, que jamais perdeu a batalha contra a escuridão da noite... Os homens, entretanto, passam longe de terem sido os primeiros seres terrestres a prestar homenagens ao Sol. Foi graças à fotossíntese das plantas que toda a cadeia evolutiva da vida se tornou viável no planeta; Em última instância, nós realmente temos nos alimentado do Sol.

Mesmo o petróleo, este fétido ouro negro pelo qual os homens são capazes de fazer as guerras mais absurdas, nada mais é do que fruto da fotossíntese ao longo de milhões de anos, assim como qualquer outro combustível fóssil. Em nossa sede por energia na era moderna, temos buscado por soluções miraculosas, e foi assim que a fissão nuclear nos pareceu convidativa... Mas, será mesmo segura? Será mesmo que podemos bater no peito e dizer: “agora sim, nós temos exata noção do que ocorre, e podemos controlar totalmente a energia nuclear, jamais teremos outra Chernobyl...”? Acredito que a história fale por si só.

Não há nada de errado, diabólico ou “não-natural” com o uso da energia nuclear. Em realidade, ela é natural, como tudo o mais que compõe o Cosmos... O problema é insistirmos em fazer usinas em areia movediça, enquanto sempre tivemos uma Usina Central funcionando a pleno vapor. Porque não deixar que o Sol continue sendo a nossa usina nuclear? Afinal, ela sempre esteve lá, e nós temos recebido sua energia sem interrupções por bilhões de anos. Em todo caso, se um dia ela falhar, nossa última preocupação seria com o apagão no metrô.

Os girassóis são plantas originárias da América do Sul cultivada pelos povos indígenas para alimentação, foram domesticadas por volta do ano 1000 a.C. Elas tem esse nome porque acompanham a trajetória do Sol todos os dias, do nascente ao poente. Certamente os girassóis já reverenciavam o deus Invicto muito antes do homem ter surgido no planeta. Quem sabe não podemos aprender com eles? Sejamos, pois, como os girassóis!

As sementes do girassol produzem um óleo comestível, e sua produção anual ultrapassava 20 milhões de toneladas em 2008. Este óleo também serve para produzir combustível, o biodiesel, uma solução energética limpa e sustentável, muito embora continue sendo um sub produto da Usina Central.

E que tipo de energia enviada pelo Sol pode nos ajudar, afinal? Ora, a energia solar é a designação dada a qualquer tipo de captação de energia luminosa (e, em certo sentido, da energia térmica) proveniente do sol, e posterior transformação dessa energia em alguma forma utilizável pelo homem, seja diretamente para aquecimento de água ou ainda como energia elétrica ou mecânica. A radiação solar, juntamente com outros recursos secundários de alimentação, tal como a energia eólica e das ondas, hidro-eletricidade e biomassa, são responsáveis por grande parte da energia renovável disponível na terra. Apenas uma minúscula fração da energia solar disponível é utilizada. Ora, e a energia solar nada mais é do que a energia nuclear produzida num local seguro...

Os desertos do planeta recebem mais energia do Sol em seis horas do que todo o consumo da humanidade em um ano. Estima-se que apenas 1% da superfície de 9,1 milhões de quilômetros quadrados do Saara, onde o Sol brilha 4.800 horas por ano, seria suficiente para suprir as necessidades energéticas de todo o mundo. Esse potencial de fonte alternativa, no entanto, permanece até hoje mal aproveitado, pelas limitações logísticas que se impõem à geração de eletricidade em grande escala a partir da radiação solar. Um passo significativo no sentido de utilizar melhor a energia do sol foi dado em 2009, com a assinatura na Alemanha de uma carta de intenções num consórcio de doze empresas, que apresentou o Desertec, um projeto para produzir eletricidade no Saara, no norte da África, e abastecer a Europa.

Concluso, o megaprojeto teria uma capacidade instalada de 100 gigawatts. O sistema conseguiria atender a 15% da demanda europeia em 2050. Com ele seria possível produzir energia o bastante para suprir o Brasil por seis meses, ou o equivalente a quatro Itaipus. Seus idealizadores acreditam que, num mundo de crescente escassez energética e de necessidade premente de buscar fontes que não sejam de origem fóssil, são boas as chances de que o plano saia do papel. O investimento ganhou o apoio da chanceler alemã, Angela Merkel, e do presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso.

Os detratores da energia solar dizem que ainda é muito cara a produção de painéis solares, e que a simples produção dos mesmos já envolve um certo gasto de energia. Mas, convenhamos, será que não vale a pena investirmos nessa tecnologia? Ou será que o gasto nessas pesquisas chega sequer a 1% dos trilhões que são gastos no comércio de armas em todo mundo?

Tolos são os governantes que preferem gastar todos os seus recursos em armamento, apenas para assim poderem manter o domínio sobre territórios ricos em ouro negro, enquanto o deus Invicto, o que possibilitou nossa vida, e dos girassóis, e que em última instância produziu o próprio ouro negro, tem flutuado acima de nossas cabeças por todo esse tempo. Prometeu tem nos enviado seu fogo a cada momento, mas não aproveitamos... Talvez a guerra e os horrores dos desastres nucleares nos pareçam mais interessantes?

Se os governantes continuam cegos, saibam que hoje ao menos podemos, pouco a pouco, aproveitar a energia da Usina Central... Conforme a tecnologia para a produção de painéis solares caseiros vai ficando mais barata, cada vez mais projetos residenciais, particularmente na Europa, vão incluindo painéis nos telhados das casas. Não é uma solução tão vasta quanto os planos para usar o Saara como receptor global de energia solar, mas já é um começo... Um passo que já foi dado há alguns anos, aliás.

Quem sabe não chegue o dia em que produziremos nossa própria eletricidade em nossa casa, e dependeremos quase que somente dela para nossa manutenção diária, e inclusive o transporte em carros elétricos. Hoje, não é algo tão difícil de imaginar. Cada casa, um girassol... Não vai acontecer enquanto não tivermos vontade que aconteça.


Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu

- Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

***

Crédito das imagens: [topo] Andreas Rocha; [ao longo] Mirian Guarnieri.

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Links Mayhem (6)

O Projeto Mayhem foi criado em 2009 como centro de debates e discussões sobre temas Ocultistas e Herméticos. Agora, toda semana, os participantes do projeto divulgam os links mais interessantes para artigos nos blogs de outros participantes:

- Teoria da Conspiração - O Urso e a Panela
- Instituto ECO - Exercícios
- Mas Divago - A alegoria dos aquários multiplicados? Ou Cabala
- Artigo 19 - Introdução à Alquimia
- Hermetic Rose - Vídeos e Links do Frater Goya
- Autoconhecimento, Tecnologia e Liberdade - [Reflexões] O plantio e a colheita
- Labirinto da Mente - Vire a página
- Tipografia do Inferno - Grupo de estudos neurológicos
- Zzurto - ...
- O Véu de Maia [1]

***

[1] Este link é particularmente interessante para os que gostariam de seguir todos os blogs da lista acima de forma mais dedicada. Ele possuí um sistema que mostra automaticamente os últimos posts em todos esses blogs (incluindo, é claro, o Textos para Reflexão).

» Veja todos os posts sobre o Projeto Mayhem

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21.3.11

O fogo de Prometeu, parte 2

continuando da parte 1

Fissão Nuclear é a quebra do núcleo de um átomo instável em dois menores e mais leves, um processo físico normalmente catalisado pela colisão de nêutrons com o núcleo. Esse processo pode ser rotineiramente observado em usinas nucleares e/ou em bombas atômicas.

A floresta e o sarcófago

Einstein dispensa apresentações, sendo o célebre criador da equação que mudou o mundo, E=MC², o que nos demonstrou que toda matéria, tendo sido criada pela condensação da energia, pode uma vez mais se converter em energia, processo que ocorre a todo momento no núcleo das estrelas. O cientista alemão, entretanto, inicialmente não acreditou que este processo seria viável tão cedo, como disse: “a probabilidade de transformar matéria em energia equivale a atirar em pássaros no escuro num campo em que há pouquíssimos pássaros”.

A equação de Einstein parecia mais uma conclusão puramente teórica do que uma solução prática para a produção de vastas quantidades de energia. Era muito difícil “vencer” a integridade dos núcleos atômicos, sendo que para provocar uma fissão nuclear gastava-se muito mais energia do que se poderia produzir ao fim do processo... Foi Leó Szilárd, um jovem cientista húngaro, amigo de Einstein, quem primeiro compreendeu que o problema estava em se bombardear o núcleo atômico positivo com partículas de carga elétrica igualmente positiva: como sabemos, polos idênticos se repelem mutuamente. Szilárd teorizou que o recém-descoberto nêutron – como já diz o nome, de carga neutra – poderia ser usado para bombardear o núcleo atômico, sem ser repelido, portanto ligando-se ao próprio núcleo e o tornando instável. Núcleos atômicos instáveis se repartem em elementos mais leves, liberando grande quantidade de energia, e novos nêutrons, o que acarreta uma reação em cadeia: uma reação nuclear digna do fogo de Prometeu!

E todos sabemos como foi a história da corrida nuclear do século XX... Para nossa sorte, os nazistas não conseguiram construir a bomba atômica antes dos aliados, e Hiroshima calhou de ser a testemunha direta do que míseros 0,6g de massa podem fazer quando liberam sua energia em uma reação em cadeia. Após o fim da Segunda Guerra, essa corrida continuou por vias obscuras, numa guerra psicológica, fria como um sarcófago de chumbo, que colocou duas grandes potências, EUA e URSS, em polos opostos.

Sabe-se lá como, conseguimos virar o século sem termos nos exterminado em um inverno nuclear, e hoje felizmente as nações que alcançaram a tecnologia da bomba atômica estão aparentemente em um consenso de que o arsenal nuclear deva ser reduzido – muito embora provavelmente não o suficiente para que qualquer espécie de guerra atômica seja nalgum dia segura... Sim, pois em todas as guerras pregressas, os homens temiam pela morte de dezenas ou milhares – porém, na era nuclear, passaram a temer pela extinção de centenas de milhares, ou até mesmo de toda a espécie humana. Teria o temor irracional finalmente conseguido escapar da caixa de Pandora?

Disso não sabemos, mas existe um outro aspecto da corrida nuclear que passou desapercebido da maioria... É que a fissão nuclear não havia sido usada apenas para a produção de reações nucleares descontroladas, detonadoras de bombas, mas também para as controladas, no intuito de se produzir energia. E surgiram as usinas nucleares, grandes aliadas do desenvolvimento humano, da industrialização, de uma nova era para a humanidade. Em sua confiança cega, o homem acreditou mesmo que estava apto a controlar o fogo de Prometeu, a realizar na Terra o que era próprio de reações estelares. O homem acreditou que poderia aprisionar um deus, sem pensar devidamente nas consequências...

Claro que as coisas um dia dariam errado. O problema de lidar com a energia nuclear é que qualquer erro pode trazer consequências graves, muito graves... Em 1986 um dos reatores da usina nuclear de Chernobyl – então URSS, hoje Ucrânia – explodiu em pleno funcionamento, durante um teste de um mecanismo de segurança. Este evento catastrófico liberou radiação equivalente a 20 bombas de Hiroshima, e matou diretamente dezenas de pessoas; Mas indiretamente, conforme ocorreu com Madame Curie, pode ter causado cânceres letais em dezenas de milhares de pessoas, além de ter tornado as imediações da usina uma zona fantasma por talvez milhares de anos, já que muitos dos elementos expostos na atmosfera continuam radioativos por muito, muito tempo!

A solução encontrada pelas autoridades foi construir um imenso sarcófago de chumbo [1] em torno do reator exposto, numa tentativa de conter o veneno radioativo apenas naquele local... O problema é que existem inúmeras evidências de que a radiação contaminou o solo, a vegetação, e mesmo os animais que perambulam pela área. Embora ninguém saiba ao certo a extensão do estrago, o que se esperava é que ele fosse suficiente para fazer as nações repensarem o uso da energia nuclear. Como sabemos, não foi bem o caso...

Chernobyl, entretanto, ainda foi capaz de nos trazer uma lição ainda mais sombria e profunda: após o desastre, as imediações em torno da usina foram abandonadas por quase todos os humanos (alguns camponeses insistiram em continuar vivendo no local, mas obviamente não sobreviveram por muito tempo); Só que a fauna e a flora devastadas num primeiro momento, regeneraram com o passar das décadas, e hoje temos no entorno do sarcófago de Chernobyl a chamada Floresta Vermelha, o mais improvável dos refúgios naturais!

Se a radiação pode fazer mal aos seres vivos, e causar inclusive um grande aumento de mutações genéticas (em sua maioria, “maléficas”), ela não se compara a capacidade devastadora da civilização humana. Eis que, mesmo em meio à zona contaminada, os animais prosperaram, pois lá tiveram maiores chances de sobrevivência do que nas parcas zonas selvagens que ainda lhes restam naquela região do globo. Eis uma dura lição sobre a natureza humana.

Entre a floresta e o sarcófago, já foram registradas estranhas plantas com gigantismo, pássaros com penas estranhas, e outras anormalidades genéticas... Como saber o que surgirá de Chernobyl daqui a milhares de anos? Tomara que, se o homem realmente se aniquilar em um inverno nuclear, que pelo menos esses animais tenham tido algum tempo para, quem sabe, passar por alguma forma de mutação que os possibilite ter maior resistência à radiação.

Sim, pois tudo que o homem poderá fazer, se não souber usar ao fogo de Prometeu com sabedoria, é consumir-se no próprio fogo. Como o fogo é capaz de renovar todas as coisas, esperamos que no caso de uma tragédia global, uma próxima espécie consciente seja mais sábia. Pois o homem pode ir-se embora, mas a floresta e o sarcófago ainda restarão.

Na continuação, como aproveitar a usina que sempre esteve lá...

***

[1] Veja mais neste documentário da BBC: "Dentro do sarcógafo de Chernobyl" (em inglês).

Crédito das imagens: [topo] Gerd Ludwig/Corbis (Cemitério próximo a usina de Chernobyl); [ao longo] Gerd Ludwig/Corbis (Frutos radioativos). Nota: eu optei por não mostrar imagens muito fortes. Para quem tiver interesse, buscar por "Chernobyl - The Aftermath" no Google Images... Eu sequer posto o link aqui, pois há que se pensar bem antes de se dispor a ver algumas das imagens, sobretudo de crianças e do gado contaminado.

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19.3.11

O fogo de Prometeu, parte 1

Na mitologia Grega, Prometeu foi um titã defensor da humanidade, conhecido por sua astúcia e inteligência. Ele foi responsável por roubar o segredo do fogo divino e dar aos mortais, ato que foi punido pelos deuses de várias formas...

A caixa de Marie

Conta-nos um mito grego que Pandora foi à primeira mulher. Feita à semelhança das deusas imortais, destinou-a Zeus à espécie humana, como punição por terem recebido de Prometeu o fogo divino. Foi enviada a Epimeteu, a quem Prometeu recomendara que não recebesse nenhum presente dos deuses. Vendo-lhe a radiante beleza, Epimeteu esqueceu quanto lhe fora dito pelo irmão e a tomou como esposa.

Ora, tinha Epimeteu em seu poder uma caixa que lhe haviam dado os deuses, que continha todos os males. Avisou a mulher que não a abrisse. Pandora não resistiu à curiosidade. Abriu-a e os males escaparam. Por mais depressa que providenciasse fechá-la, somente conservou um único bem, a esperança. E dali em diante, foram os homens afligidos por todos os males.

A razão da presença da esperança com os males deve ser procurada através de uma tradução mais acurada do texto grego. A palavra em grego é elpís (£λπίς), que é definida como “a espera de alguma coisa”. Ela pode ser traduzida como esperança, mas essa tradução seguramente é arbitrária. Uma tradução melhor poderia ser "antecipação", ou até o temor irracional. Graças ao fechamento por Pandora da caixa no momento certo, os homens sofreriam somente dos males (como os vícios, as pragas e a violência), mas a humanidade não teve o conhecimento antecipado deles, o que provavelmente seria pior. Eles não viveriam o temor perpétuo dos males por vir, tornando suas vidas possíveis. Prometeu se felicita assim de ter livrado os homens da obsessão com a própria morte.

Como todos os mitos relevantes, a história de Prometeu, Epimeteu e Pandora é uma narrativa do que nunca existiu, mas que existe sempre, como dizia Campbell... Há muito tempo o homem tem se deparado com os segredos aparentemente insondáveis da natureza, e desde cedo houveram muitos que afirmavam que era inútil seguir adiante: não se podia desafiar aos deuses. Mas outros, tal qual Prometeu, não esmoreceram ante o desconhecido, e é precisamente graças a esses últimos que devemos boa parte de nossa filosofia, de nossa ciência, e porque não dizer, de nossa espiritualidade.

Este paradoxo entre a inconcebível natureza da Natureza – parafraseando Feynman – e o nosso esforço milenar para compreendê-la e domá-la, tal qual um tigre feroz, é algo que permeia toda a história de nossa cultura. Não é raro, mesmo nos dias atuais, vermos pessoas aflitas com os rumos atuais de nossa ciência, rumos que parecem desvelar segredos que não deveriam ser desvelados. Segredos que deveriam caber apenas aos deuses, não aos homens – desde a interferência nos processos de natalidade, passando pela clonagem, o uso de células embrionárias, a suposta tentativa de se criar “vida artificial”, até o mais perigoso dos fogos divinos, a energia nuclear... Porém, uma vez que montamos no tigre, não é possível domá-lo, mas também não é possível pular. O que podemos fazer é agarrar firmes em seu pêlo, e esperar pelo melhor.

Marie Curie foi uma cientista polonesa que exerceu a sua atividade profissional na França. Foi à primeira pessoa a ser laureada duas vezes com um Prêmio Nobel – de Física, em 1903, pelas suas descobertas no campo da radioatividade, e com o Nobel de Química de 1911, pela descoberta dos elementos rádio e polônio. Foi uma diretora de laboratório reconhecida pela sua competência, e certamente uma das maiores cientistas da história (contando-se homens e mulheres).

A radioatividade é um fenômeno – natural ou produzido pelo homem –, pelo qual algumas substâncias ou elementos químicos, chamados radioativos, são capazes de emitir radiações, as quais têm a propriedade de impressionar placas fotográficas, ionizar gases, produzir fluorescência, atravessar corpos opacos à luz ordinária, etc. As radiações emitidas pelas substâncias radioativas são principalmente partículas alfa, partículas beta e raios gama. A radioatividade é uma forma de energia nuclear, e consiste no fato de alguns átomos como os do urânio, rádio e tório serem “instáveis”, perdendo constantemente partículas alfa, beta e gama (raios-X). O urânio, por exemplo, tem 92 prótons, porém através dos séculos vai perdendo-os na forma de radiações, até terminar em chumbo, com 82 prótons estáveis.

Marie não sabia, mas a radioatividade, este campo da ciência que até hoje deve muito aos seus estudos, acabaria por decretar o seu fim. Ela morreu em 1934, de leucemia, devido, seguramente, à exposição maciça a radiações durante o seu trabalho. Madame Curie acabou por abrir sua própria caixa de Pandora, desvelando tais mistérios ocultos, mas extremamente perigosos, da natureza. Para nossa sorte (ou azar), Marie foi poupada de saber do perigo a que se submetia enquanto estudava a radioatividade... Não fosse por sua coragem, não em lidar com elementos radioativos aos quais desconhecia o perigo, mas em se impor a uma sociedade profundamente machista como uma eminente cientista, hoje certamente saberíamos ainda menos sobre os perigos e as aplicações práticas da radioatividade.

Como sabemos, nos dias atuais boa parte das armas de destruição em massa, assim como boa parte da energia produzida em usinas, vem da energia nuclear e da radioatividade... Certamente há muitos pacifistas e ecologistas que teriam preferido que jamais as tivéssemos descoberto, que Prometeu nos poupasse desse conhecimento. A natureza, porém, tem os seus próprios planos... O universo não está parado, tudo vibra e flui incessantemente, e toda vida e toda consciência estão destinadas a evoluir, passo a passo. Se o presente de Prometeu foi um conhecimento que nos fará avançar mais e mais na compreensão do Cosmos, ou o decreto de nosso fim, só o tempo, e o que faremos com ele enquanto sociedade, poderá nos dizer.

Há, no entanto, mais um mistério que talvez tenha passado desapercebido no mito de Prometeu e Pandora... Ora, se os deuses sabiam que não podiam confiar nos titãs, e sua astúcia e curiosidade, porque então iriam confiar nos filhos dos titãs? Sim, Prometeu roubou o fogo divino, mas foi precisamente com ele que criou o homem. E, ainda que Pandora tenha sido criada pelos deuses, me parece óbvio que eles já sabiam, de antemão, que ela também não resistiria à curiosidade – que abriria a caixa. Não se trata, portanto, de um teste de fidelidade, pois se os titãs houvessem controlado sua curiosidade, nenhum homem existiria... E, se Pandora não houvesse aberto a (maldita?) caixa, certamente não teríamos chegado a conhecimentos tão ocultos e perigosos, mas estaríamos estagnados!

Talvez os deuses não gostem mesmo da estagnação, e por isso seu maior divertimento tem sido pregar peças nos homens, e rir quando estes se sentem culpados por sua própria curiosidade. Eis que a curiosidade é, ela também, divina. Eis que devemos abrir a todas as caixas, de Pandora ou de Marie, e também domar a todos os tigres selvagens... Mas sem jamais perder o senso da responsabilidade, e o respeito a essa maravilhosa, e por vezes letal, natureza da Natureza.

Na continuação – quando as coisas dão errado: Chernobyl e a Floresta Vermelha.

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Crédito das imagens: [topo] Maicar.com (O roubo do fogo, pintura de Christian Griepenkerl); [ao longo] Wikipedia (Pandora, pintura de Jules Joseph Lefebvre).

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18.3.11

Links Mayhem (5)

14.3.11

O sexo e a morte

Ao contrário do que uma análise superficial possa dar a entender, muitas são as relações entre o sexo e a morte. Para começar, na história da vida, eles nasceram praticamente juntos: até 1 bilhão de anos atrás, só existia vida na Terra na forma de organismos unicelulares, o que vale dizer, não existia sexo nem morte, pois um organismo unicelular se reproduz sem necessidade de uma cópula, apenas dividindo-se em dois, e ao fazê-lo, ele "morre" como indivíduo, e as duas células em que se dividiu constituem sua descendência.

Parece prático, mas atravanca a evolução, que, como se sabe, depende da rápida transmissão aos descendentes das mutações "boas", assim consideradas por significarem adaptações evolutivas. É do interesse da espécie, portanto, que a linhagem dos portadores das adaptações evolutivas prospere o quanto antes. Mas como cada célula dá origem uma linhagem única e específica, cada uma delas é como uma gota no oceano. Até que os portadores das mutações "boas" se tornem majoritários, decorrerá um tempo imenso.

Foi então que surgiu o sexo e a morte. Agora, para haver reprodução, não basta que cada organismo faça cópias de si mesmo, ad infinitum. É necessário haver, não uma cópia, mas uma combinação, e é justamente isto o que oferece a reprodução sexuada. A cada cópula bem-sucedida, embaralham-se novamente os genes, produzindo uma variedade de resultados. Tal como no pôquer, teremos jogos bons e maus. Um único exemplar masculino, oriundo de um jogo "bom", pode transmitir suas boas cartas a uma variedade de fêmeas, dando origem, não a uma única, mas a várias linhagens. E depois? Bom, aí que entra a morte. É do interesse da espécie que as gerações novas, por serem portadoras das adaptações evolutivas, tornem-se majoritárias o quanto antes. Mas se os exemplares das gerações antigas, ainda mal adaptadas, tiverem um tempo de vida demasiado longo, eles passarão a fazer concorrência aos jovens, retardando-os em seu percurso. É necessário que os velhos desapareçam - e é para isto que há a morte [1].

Na verdade, o que a visão estritamente materialista nos traz – no sentido de tratar apenas da evolução física das espécies – é esta lição ancestral de que, sem sexo e sem morte, não haveria tamanha evolução de seres tão complexos quanto praticamente qualquer animal que vemos a olho nu, e inclusive o próprio homo sapiens. Em suma, para a natureza, o sexo e a morte se complementam, o primeiro atuando como agente potencializador da evolução, o último atuando como agente renovador.

Mas eis que surge a consciência e com ela tantas e tantas perguntas sem resposta. Se somos a forma do Cosmos conhecer a si mesmo, por vezes tememos que nada em todo Cosmos fosse capaz de aplacar nossa angústia perante a existência... Por isso não é de surpreender que tenha surgido nossa distinta visão espiritual do mundo, evento talvez exclusivo do homo sapiens, o que o destaca definitivamente de todos os outros seres terrestres na árvore da vida.

No ato do sexo profundo, realizado não somente com o corpo, mas também com alma, há um momento de êxtase onde a consciência é subitamente alterada, em muitos casos perdida ou esquecida... Nas tradições espiritualistas do Oriente, o sexo profundo é também chamado de pequena morte. Existe uma relação interessante entre ambos, a nível de processo de consciência e não apenas físico e material: ambos são uma espécie de encontro – no sexo encontramos o amor presente em outro ser afim; na morte, encontramos o amor presente no eterno renovar da vida. Pois que seria a vida, afinal, que não um supremo ato de amor, de criação? E o que seriam o sexo e a morte, senão os mecanismos pelos quais a vida segue o seu rumo?

Mas há que se ter uma visão equilibrada entre tais polos aparentemente opostos, para se conquistar um conhecimento abrangente em relação a existência, uma distinta paz de espírito própria dos sábios de outrora, das mais diversas tradições espiritualistas, que souberam tratar o sexo e a morte como dois lados da mesma moeda, como componentes sagrados da própria vida...

Sem tal equilíbrio, a sociedade se vê envolta em uma “esquizofrenia do politicamente correto”. Desde o advento do cristianismo até poucas décadas atrás, o Ocidente – e este é só um exemplo, pois os polos se alternam – passou por um longo período de aversão a exposição pública do sexo. Tal qual bonobos arrependidos, os homens e mulheres certamente continuaram a fazer sexo, e bastante, mas precisavam ocultá-lo da sociedade, e por vezes confessá-lo, em extrema vergonha, ao deus do confessionário. Interessante de se notar, entretanto, que nessa época a morte não era algo abominável – pelo contrário, era bastante comum a família toda, inclusive as crianças, se reunirem em torno de um parente moribundo, em sua própria casa, em sua própria cama, para se despedirem. O sexo era sujo, mas a morte era a promessa de purificação na vida eterna.

Após tanta supressão do sexo, a polaridade havia de se inverter. Então veio o pós-modernismo, o rock and roll e a revolução sexual do Ocidente. Desta feita, o sexo e o prazer eram exaltados e cada vez mais expostos a toda a sociedade – não importa se alguns não estavam tão interessados, era a época do advento da mídia de massa. E todos precisavam ver os exuberantes corpos nus de homo sapiens, a se admirar e se roçar tal qual bonobos ferozes: todos precisavam experimentar. Ser virgem era subitamente o mais novo pecado!

Mas, se o sexo era agora algo tão belo e prazeroso, a morte por sua vez tornara-se medonha e obscura. Até mesmo o envelhecimento haveria de ser mascarado. Era preferível morrer jovem, por alguma overdose sensorial, do que sequer imaginar habitarmos um corpo envelhecido e decrépito. E eis que a própria morte em si deveria ser algo disfarçado, “resolvido” e esquecido o quanto antes. Não se trazia mais os moribundos para morrerem em casa, mas os mantinham até onde fosse possível nos hospitais. As CTIs se tornaram o purgatório, e a cerimônia do velório um ritual macabro, do qual todos haviam de comparecer com certo asco, e fugir o mais breve possível, e daí esquecer...

Então, como diria o Dalai Lama, passamos a viver como se jamais fossemos morrer, e a morrer como se não tivéssemos vivido. Que nessa anestesia mental, ora ignoramos o sexo, ora ignoramos a morte. Mas nada parece ter resolvido nossa angústia: nem a espiritualidade superficial das religiões de barganha, nem a ciência superficial do modernismo tecnológico que pretende que seres sejam máquinas. Que não é pelo pagamento de orações, pelo recitar repetitivo de dogmas esquecidos, ou pela insistência em reconstruir nosso corpo, na esperança que pareça “eternamente jovem”, que encontraremos a solução.

A solução está tão somente em pensar, em abrir os olhos e ver, e assim melhor viver... E vivendo, conhecer a si próprio, o próprio corpo e cada uma de suas rugas, a própria mente e cada um de seus medos, o próprio espírito e cada uma de suas sombras. E quem sabe nalgum dia compreender, como os sábios de outrora, e de hoje, que desde épocas imemoriais, desde muito antes do despertar de nossa consciência, tudo já era assim: não existe propriamente nem o sexo nem a morte, mas antes de tudo, apenas o amor a gerar esse oceano de vida, em constante renovação.

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[1] Boa parte dos três primeiros parágrafos foi retirada de um artigo do escritor Pedro Mundim.

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Crédito das imagens: [topo] x-art; [ao longo] Sung-Il Kim/Corbis.

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11.3.11

Ras Tafari

Muitos creem que no mundo moderno não existe espaço nem oportunidade para o surgimento de novas religiões, aos moldes das religiões já milenares, mas a espiritualidade jamais deixará de nos surpreender... Em 2008, a Universidade de Hamburgo anunciou oficialmente que arqueólogos alemães, depois de uma pesquisa comandada pelo professor Helmut Ziegert, descobriram os restos do palácio da rainha de Sabá, datados do século X a.C., em Axum, uma cidade sagrada da Etiópia, sob um antigo palácio real. A rainha de Sabá foi, na Torá, no Antigo e no Novo Testamento, no Alcorão, na história da Etiópia e do Iêmen, uma célebre soberana do antigo Reino de Sabá. A localização deste reino pode ter incluido os atuais territórios da Etiópia e do Iêmen.

De acordo com a Torá e o Velho Testamento, a rainha de Sabá teria ouvido sobre a grande sabedoria do rei Salomão de Israel, e viajado até ele com presentes de especiarias, ouro, pedras preciosas, e belas madeiras, pretendendo testá-lo com suas perguntas, como está registrado no Primeiro Livro de Reis (10:1-13). O relato prossegue apontando a rainha como maravilhada pela grande sabedoria e riqueza do rei Salomão, e pronunciando uma bênção sobre a divindade do rei. Salomão respondeu, por sua vez, com presentes e "tudo o que ela desejou", após o qual a rainha retornou ao seu país. A tradição etíope posterior afirma com segurança que o rei Salomão realmente seduziu e engravidou sua convidada, e possui um relato detalhado de como ele o fez (no Kebra Negast, coletânea de mitos etíopes), um assunto de importância considerável para o povo etíope, já que a linhagem de seus imperadores remontaria àquela união.

Haile Selassie (1892–1975), nascido Tafari Makonnen e posteriormente conhecido como Ras Tafari, foi regente da Etiópia de 1916 a 1930 e imperador daquele país de 1930 e 1974. Herdeiro duma dinastia cujas origens remontam historicamente ao século XIII e, tradicionalmente, até o rei Salomão e a rainha de Sabá, Haile Selassie é uma figura crucial na história da Etiópia e da África.

O movimento rastafari ou Rastafar-I (rastafarai) é um movimento religioso que proclama Haile Selassie como a representação terrena de Jah (Deus). Ele nada mais seria do que o messias prometido. O termo rastafari tem sua origem em Ras ("príncipe") Tafari ("da paz") Makonnen, o nome de Haile Selassie antes de sua coroação. O movimento surgiu na Jamaica entre a classe trabalhadora e camponeses negros em meados dos anos 20, iniciado por uma interpretação da profecia bíblica em parte baseada pelo status de Selassie como o único monarca africano de um país totalmente independente e seus títulos de Rei dos Reis, Senhor dos Senhores e Leão Conquistador da Tribo de Judah, que foram dados pela Igreja Ortodoxa Etíope.

O próprio Selassie, em realidade, jamais aceitou o título de messias. Tampouco era alguma espécie de "santo": durante o seu governo, a repressão a diversas rebeliões entre as etnias que compõem a Etiópia, além daquele que é considerado como o fracasso do país em se modernizar adequadamente, lhe rendeu críticas de muitos contemporâneos e historiadores. No entanto, Selassie era um orador talentoso, e alguns de seus discursos foram considerados entre os mais memoráveis do século XX. Suas visões internacionalistas levaram a Etiópia a se tornar membro oficial das Nações Unidas, e sua experiência e pensamento político ao promover o multilateralismo e a segurança coletiva provaram-se relevantes até os dias de hoje.

Seu célebre discurso na Liga das Nações em 1936 serviu de inspiração para a canção "War", um dos maiores clássicos do cantor de reggae jamaicano Bob Marley - também indiretamente um dos maiores divulgadores do movimento rastafari no mundo. Veja o trecho principal do discurso de Selassie:

Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa não for mais importante que a cor dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar a raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada. E igualmente, enquanto os regimes infelizes e ignóbeis que suprimem os nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os Africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o continente Africano não conhecerá a Paz. Nós, Africanos, iremos lutar, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal.

Interessante de se pensar: muitos dos que são atraídos ao reggae pela qualidade da música, e também por sua relação com a maconha, jamais sequer ouvirão falar ou praticar o rastafarianismo. A maconha em si é usada pelos rastas não para diversão ou prazer, mas sim para limpeza e purificação em rituais controlados. Trata-se, em suma, de uma religião moderna, mas com bases mitológicas muito bem sedimentadas por textos sagrados de pelo menos duas religiões milenares...

Que grande ironia - tantos judeus, cristãos e muçulmanos de certa ignorância a desdenhar dos "maconheiros negros com cabelo esquisito ouvindo músicas africanas", e no fim das contas, são dos devotos a um dos descendentes diretos do rei Salomão que eles desdenham. Bem, talvez Jah prefira mesmo dançar o reggae que pode ser cantado em qualquer parte da natureza, do que se sujeitar a hipocrisia eclesiástica.

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"War", de Bob Marley - Playingforchange

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Agradecimentos aos viajantes do "Não Conta Lá em Casa", programa do canal de TV a cabo Multishow, pela descrição de parte dessa incrível história enquanto visitavam a Etiópia.

Crédito da imagem: Wikipedia (Haile Selassie)

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Links Mayhem (4)

6.3.11

O ungido

De volta a região onde havia nascido da última vez, o Mensageiro dos Céus havia encontrado seus pescadores, e juntamente com um punhado deles, havia aprendido a pescar almas. Até então não havia sido notado pelas hostes sombrias, mas isso foi tão somente até ser batizado com água por Yohánan, o Batista. Desde então, foi como se um aviso houvesse sido espalhado pelas mentes de todos os seres etéreos a vagar pela escuridão, até então desinformados: o Ungido havia retornado!

Um deles era o mais influente sobre os pensamentos alheios, como uma enorme sombra a pairar sobre os desavisados ou de vontade fraca. Gabava-se, particularmente, de influenciar decisões de governantes, rabinos, e até mesmo reis e imperadores. Ele intitulara a si mesmo de Senhor da Sombra, e por onde andava uma legião de espíritos subjugados o seguia, serviçais que o adoravam como a um deus; Um deus que podiam ver e ouvir, mas um deus que dificilmente perdoava qualquer indisciplina, qualquer hesitação no caminho da sombra.

Foi enquanto o Mensageiro dormia junto a seus seguidores, debaixo de algumas árvores entre uma e outra cidade da Galileia, que eles finalmente se encontraram em um sonho obscuro:

Senhor da Sombra – Ora, ora, então você é aquele que tem expulsado meus seguidores dos homens e mulheres... É você o “grande exorcista”?

Mensageiro – Eu não expulso ninguém. O que expulsa é o pensamento. Tudo que tenho feito é trazer um pensamento novo aos miseráveis que se arrastam pelo pântano do desejo desenfreado.

Senhor da Sombra – E de que adianta toda essa encenação? Você acha que vai conseguir transformá-los? Pois saiba que, a exceção de alguns poucos que você e Yohánan tem tocado, a grande maioria volta a pecar tão logo você se despede e segue pelas estradas!

Mensageiro – E o que é pecar, senão errar o alvo?

Senhor da Sombra – Como assim?

Mensageiro – Todo ser procura trilhar um caminho ascendente. Em suas escolhas, intuitivamente são sempre levados a agaranhar mais e mais do que quer que estejam buscando... Ocorre que, de acordo com a Lei, todo ser colhe o que planta – quando o que busca não lhe faz sair do lugar, ele permanece preso ao mesmo local, ele erra o alvo, e sua colheita só lhe traz a angústia.

Senhor da Sombra – Muito bonito, muito bonito... Mas palavras não resolverão nossa angústia. Eu estive diversas vezes neste mundo e tudo o que vi foi a brutalidade e a ganância. Seu precioso mundo me ensinou que o poder reside na força do desejo, e o que desejo é ser o que sou: o Senhor de toda uma hoste de espíritos sombrios.

Mensageiro – E você é feliz?

Senhor da Sombra – A felicidade é uma ilusão passageira, uma luz que brilha tão ligeiramente na escuridão que logo a esquecemos... Não desejo mais a felicidade, mas apenas me vingar de todos estes que se dizem santos e divinos reis, e em realidade são tão sombrios, ou mais, quanto eu.
E eis que chego a você, o Ungido! Eu até hoje não sei por onde Deus tem andado, mas certamente está muito distante deste mundo... Você, que se diz o Rei dos Judeus, nada mais é que mais uma fraude!

Mensageiro – Se sou alguém ungido no óleo sagrado, então sou tão ungido quanto qualquer outro, pois não há lugar no Reino que não esteja ungido, e o Reino nos abarca a todos. Pense nisso, meu irmão, que nos reencontraremos em breve...

Assim terminou o sonho. O Senhor da Sombra foi pego de surpresa, alguma coisa em seu frio coração voltara a fervilhar... Havia muito tempo, muitas e muitas vidas, que alguém havia lhe chamado de irmão com tamanha sinceridade. Mas este breve encontro não foi o suficiente para lhe modificar, ele tinha uma reputação a zelar, e muitas mentes para obsediar.

Alguns dias depois, o Mensageiro se aproximara de uma vila onde algumas pessoas estavam sob o domínio das hostes do Senhor da Sombra, e ele tratou de recebê-lo pessoalmente:

Senhor da Sombra – O que veio fazer aqui Yeshu? Acredita que vai os livrar contra a minha vontade?

Mensageiro – Muito pelo contrário. É você mesmo quem os livrará, meu irmão, e por vontade própria...

Senhor da Sombra – Absurdo! E o que vai fazer, me “converter”? Me “batizar” em suas águas imundas?

Mensageiro – Vejamos o que posso fazer por ti, irmão... Observe, vê aqueles homens a me seguir? Pois eles abandonaram suas famílias, seu comércio, sua casa, para me seguir por este mundo tão angustiado, como você mesmo bem sabe... Pois você acredita ter hostes de seguidores, mas em realidade é apenas um cego guiando outros cegos pela força, pela subjugação. Ninguém o segue por vontade espontânea, mas simplesmente porque estava tão perdido quanto você, e acredita que você os tem guiado a algum lugar.
Mas eis, meu irmão, que você é o seu Senhor, você não tem ninguém mais para passar esta responsabilidade: você sabe que o seu caminho é como uma estrada que não leva a cidade alguma, um rio que jamais encontrará oceano algum. Você precisa tão somente admitir isso a si mesmo...
Veja, neste meu caminho, apesar de ser árduo, apesar de ser reconhecido por pouquíssimos, reside a única esperança de felicidade. Pois é uma passagem estreita de início, mas que depois se expande em uma via sagrada da qual sequer conhecemos o final.
Venha, venha conosco, trilhar o único caminho que vale a pena ser trilhado... Venha ser mais um ungido, não o Rei de algum povo, não o conquistador da vontade alheia, mas o rei e o conquistador de si próprio, sob a luz do óleo sagrado que sempre nos cobriu a todos, mas que estivemos cegos para ver, e insistimos em errar o alvo, em escolher o caminho inútil. Eu sou o Ungido, mas vocês também são, e farão tudo que tenho feito, e muito, muito mais!

E desde esse segundo encontro, o Mensageiro passou a contar seguidores e discípulos também no mundo invisível. Não foi da noite para o dia que o Senhor da Sombra se modificou, mas foi o início de um novo caminho...


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Este conto é uma continuação direta de "O pescador de almas", e continua em "O traçador de círculos".

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Crédito da foto: youngdoo

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5.3.11

Príncipe Cinco Armas

Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces" (Ed. Cultrix/Pensamento) – Trechos das pgs.88 a 91. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. As notas ao final são minhas.

[Vejamos um mito interessante.] Trata-se da história de um jovem príncipe, que acabara de completar os estudos milenares, sob a orientação de um professor mundialmente renomado. Tendo recebido, como símbolo de distinção, o título de Príncipe Cinco Armas, ele tomou as cinco armas que o seu professor lhe deu, fez uma reverência e, armado com elas, dirigiu-se para a estrada que levava para a cidade onde morava seu pai, o rei. No caminho, ele se deparou com uma floresta. Na entrada desta floresta, as pessoas o advertiram: “Senhor príncipe, não entreis nesta floresta”, disseram elas; “vive nela um ogro, chamado Cabelo Pegajoso; ele mata todo homem que vê [1]”.

Mas o príncipe estava confiante e sem temor como um leão adulto. Entrou na floresta assim mesmo [2]. Quando chegou ao coração dela, o ogro apareceu. O ogro havia crescido até ficar com a altura de uma palmeira; criara para si mesmo uma cabeça grande como um pavilhão, com um pináculo em forma de sino, olhos grandes como uma tigela de esmoer, duas presas grandes como bulbos ou botões gigantes; e as mãos e os pés eram verde-escuros [3]. “Para onde vais?”, perguntou ele. “Alto! És minha presa!”.

O Príncipe Cinco Armas respondeu sem medo, mas com grande confiança nas artes e ofícios que havia aprendido [4]. “Ogro”, disse ele, “eu sabia o que me esperava quando entrei na floresta. É melhor teres cuidado antes de me atacar; pois com uma flecha envenenada perfurarei tua pele e te farei cair num átimo!”.

Tendo ameaçado dessa forma o ogro, o jovem príncipe armou o arco com uma flecha embebida em veneno mortal e disparou. A flecha se prendeu aos cabelos do ogro. E o príncipe atirou, uma após outra, cinqüenta flechas. O ogro afastou todas as flechas [5], fazendo-as cair aos seus pés, e se aproximou do jovem príncipe.

O Príncipe Cinco Armas ameaçou o ogro mais uma vez e, tomando a espada, desferiu um golpe magistral. A espada, de quase um metro de comprimento, ficou presa nos cabelos do ogro. E então o príncipe o golpeou com uma lança, que também lhe grudou nos cabelos. Percebendo que a lança havia ficado presa, o príncipe o atingiu com uma maça, que ficou igualmente grudada.

Quando viu a maça presa ao ogro, ele disse: “Mestre ogro, jamais ouviste falar de mim antes. Sou o Príncipe Cinco Armas. Quando entrei nesta floresta que infestas, não dei importância a armas como arcos e outras do mesmo tipo; confiei apenas em mim mesmo [6]. Agora vou derrotar-te e reduzir-te a pó!”. Tendo explicitado sua determinação, com essas palavras, o príncipe atingiu o ogro com a sua mão direita, ao mesmo tempo em que dava um grito. Sua mão se prendeu aos cabelos do ogro e o príncipe o atingiu com a mão esquerda. Esta também ficou presa. Fez o mesmo com o pé direito, obtendo igual resultado. Por fim, isso aconteceu também com o pé esquerdo. Então pensou: “Vou derrotá-lo com a cabeça e o reduzirei a pó!”. E o golpeou com a cabeça, que também ficou presa nos cabelos deste.

O Príncipe Cinco Armas, que caíra cinco vezes em armadilhas, e estava bem preso por cinco lugares, encontrou-se suspenso do corpo do ogro. Mas, apesar de tudo, não tinha medo, nem estava assustado. O ogro pensou: “Eis uma leão humano, um homem de nobre berço – não é um simples homem! Pois, embora tenha sido aprisionado por um ogro como eu, ele não demonstra tremer nem estremecer! Por todo o tempo em que tenho assolado esta estrada, jamais vi um único homem que lhe chegasse aos pés! Por que ele, valha-me o senhor, não tem medo?”. Sem se atrever a comê-lo, o ogro perguntou: “Meu jovem, por que não tens medo? Por que não estás terrificado pelo temor da morte?”.

“Ogro, por que eu deveria ter medo? Pois, na vida, a morte é absolutamente certa. Além do mais, tenho em minha barriga uma arma: um relâmpago. Se me comeres, não será capaz de digerir essa arma. Ela fará teu interior em tiras e fragmentos e te matará. Nesse caso, morreremos os dois. Eis por que não tenho medo!” [7].

O Príncipe Cinco Armas, como o leitor já deve ter percebido, estava se referindo à Arma do Conhecimento, que se encontra dentro dele. Na verdade, esse jovem herói não era senão o Futuro Buda, numa encarnação anterior [8].

“O que esse jovem diz é verdade”, pensou o ogro, terrificado pelo temor da morte. “Meu estômago não seria capaz de digerir nem um pedaço da carne deste leão humano, ainda que fosse do tamanho de um grão de feijão. Vou deixá-lo ir!”. E libertou o Príncipe Cinco Armas. O Futuro Buda pregou a Doutrina ao ogro, dominou-o, fê-lo abnegado e então o transformou num espírito encarregado de receber oferendas na floresta [9]. Tendo admoestado o ogro a agir com cautela, o jovem deixou a floresta e, na saída, contou sua história aos homens e seguiu seu caminho [Jataka, 55:1. 272-275]

Como símbolo do mundo ao qual os cinco sentidos nos prendem, prisão de que não nos podemos furtar pelas ações de órgãos físicos, Cabelo Pegajoso só foi subjugado quando o Futuro Buda, não mais protegido pelas cinco armas de seu nome e aparência física momentâneos, recorreu a arma não nomeada, invisível: o divino relâmpago do conhecimento do princípio transcendente, que está além do reino fenomênico de nomes e formas. Nesse momento, a situação mudou. Ele já não estava preso, mas liberto, pois aquele que ele se lembrou ser está sempre livre. A força do monstro da fenomenalidade se dispersou e ele se tornou abnegado. Assim ele assumiu um caráter divino – um espírito encarregado de receber oferendas, tal qual ocorre com o próprio mundo quando encarado, não como o final, como um mero nome e forma daquilo que transcende, e, no entanto, é imanente a todos os nomes e formas.

[...] Tal como a fumaça em elevação de uma oferenda, que atravessa a porta do sol, assim vai o herói, libertado do ego, pelas paredes do mundo – ele deixa o ego preso a Cabelo Pegajoso e segue adiante.

***

[1] Embora Campbell não cite comentários específicos acerca da natureza deste monstro – o ogro Cabelo Pegajoso –, vale a pena prestar atenção em suas características. Se parece mais com um agente transmissor de uma espécie de “ociosidade contagiante” e/ou “anestesia da alma” do que com um monstro feroz, violento. Posteriormente a transcrição do mito, ele o denomina “monstro da fenomenalidade”, e o relaciona a uma visão do mundo do ponto de vista não-transcendente.

[2] “Entrar na floresta” é uma aventura que nos aguarda mais dia menos dia, porém cada um encontrará sua própria coragem no tempo devido.

[3] Os criadores de mitos, estes sábios de outrora, pareciam querer deixar bem claro, muito claro mesmo, que falavam sobre metáforas. Ainda assim, não conseguiram evitar que muitos mitos fossem (mal-) compreendidos ao pé da letra.

[4] Reparem que sua confiança não surgiu do dia para noite, tampouco foi alguma bênção divina ou direito de nascença: foi conquistada ao longo de “estudos milenares”.

[5] Há que se perguntar: será que estamos preparados para falhar 50 vezes, e prosseguir em frente, inabaláveis, quando “dentro da floresta”?

[6] Todo nosso arsenal externo será inútil “dentro da floresta”. Jamais estaremos “bem armados” se contarmos apenas com ele...

[7] Trata-se de uma curiosa “arma”: dentro da barriga do príncipe, trata-se de um trunfo escondido. Mas se o príncipe for devorado, já dentro da barriga do ogro, trata-se de uma arma letal. O ogro não tem como possuir tal arma.

[8] Trata-se de um Conhecimento abrangente: não apenas mundano, mas também espiritual. Se o conhecimento técnico lhe fosse de algum auxílio “dentro da floresta”, uma das 50 flechas envenenadas já haveria abatido o monstro. E observe que o príncipe nem havia chegado ao estágio de Buda ainda!

[9] Será que todo monstro precisa ser exterminado, ou não seria mais útil como nosso auxiliar no futuro, uma vez “dominado”? Pena que os mitos do Ocidente geralmente prefiram o extermínio de nossos preciosos monstros – sim, pois são literalmente nossos.

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Crédito da foto: Panit Maharjan (Ram Bomjam)

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4.3.11

Links Mayhem (3)

3.3.11

À espera da embarcação

Trecho do Projeto Ouroboros (a partir deste ponto irei revelar o nome de uma das personagens, até então apenas "S.", agora Sofia)

(Sofia) Pois então eu lhe pergunto, O., e alguém escolhe morrer estando saudável?

(O.) Estando saudável tanto do físico quanto da mente quanto do espírito, acredito que ninguém escolha morrer...

(Sofia) Então, nosso amigo I. falou que um recém-nascido não teve tempo de escolher nada, recebeu a dádiva da vida e juntamente com ela uma família, um corpo e um local de nascimento no planeta. Eu vou procurar estender a questão...
Ora, enquanto uns nascem com corpo perfeitamente saudável, em famílias ricas e em nações desenvolvidas, outros nascem com sérias deficiências como o câncer, em famílias pobres ou às vezes sem família alguma, e nas regiões mais miseráveis do planeta. Podemos crer que a partir de então, apesar da sorte ou azar no nascimento, tais crianças passarão a depender única e exclusivamente de suas próprias escolhas para seguir numa vida feliz e produtiva, ou numa vida infeliz e trágica... Mas na verdade não é bem assim, pois não temos nem nunca tivemos controle total sobre o nosso destino, sobre todos os eventos que ocorrem a nossa volta. E, mais fundamentalmente, tampouco temos controle sobre como e quando iremos morrer.
Toda essa falta de opções, todo esse lado aparentemente sombrio da existência obviamente já têm sido tema de discussões filosóficas há muito tempo. Eu gostaria de trazer a vocês o pensamento estóico e sua solução para esse tipo de aflição existencial.
Epicteto talvez tenha sido o maior exemplo de como um grego pôde ser bem sucedido na vida apesar das adversidades: nasceu escravo [1] e viveu a maior parte da vida em Roma tendo como seu “proprietário” um dos mais cruéis secretários do imperador Nero. Apesar disso, através da própria sabedoria, soube lidar com as adversidades e aprofundar o estoicismo entre seus inúmeros seguidores, já que terminou a vida como homem livre, devido ao reluzir de seus ensinamentos sobre a mente dos homens de sua época.
Diga-me, O., se ninguém saudável escolherá morrer, por outro lado, alguém pode saber quando e como irá partir desta vida?

(O.) Há alguns que pressentem a morte chegando, mas creio eu que ninguém tem a certeza absoluta do dia e hora da própria morte, tampouco como exatamente irá morrer...

(Sofia) Sendo a morte, portanto, uma viagem para alguma outra existência – ou para existência alguma –, poderíamos tomá-la metaforicamente como uma embarcação que devemos um dia tomar nalgum porto, mas que não temos como saber exatamente o dia nem a hora de sua chegada?

(O.) Acredito que seja uma boa metáfora.

(Sofia) Portanto, não sabendo a hora exata da viagem, mas sem termos tampouco como descobri-la, você diria que faz algum sentido nos preocuparmos com ela enquanto aqui estamos?

(O.) Acredito eu que não, mas as pessoas se angustiam com o desconhecido, com o fato de não saberem nem quando e nem para onde irão viajar...

(Sofia) Mas, supondo que não temos mesmo como saber disso com exatidão, não seria mais sábio nos abstermos dessa angústia e preocupação?

(O.) Certamente. Eis o motivo porque os sábios são tão poucos!

(Sofia) Mas não importa se são poucos, o que importa é que sua mensagem chegou até nós... Ao que me parece, este sábio escravo estóico sempre soube que sua liberdade estava assegurada em sua consciência, apesar de tudo.
Ou seja, as adversidades sempre existiram e sempre existirão, e a morte sempre será esta embarcação que um dia iremos tomar. Sabe-se lá para onde, sabe-se lá quando, mas iremos...
E em nossas vidas, à espera da embarcação, temos sempre tal liberdade de escolha em nossa consciência: ou nos angustiarmos com a morte, a maior das adversidades, ou simplesmente nos abstermos da preocupação com tudo aquilo que não nos é dado escolher.
Sob nosso controle, dentro do que nos é dado escolher, estão nossas opiniões, crenças, aspirações, desejos a as coisas que nos causam repulsa ou nos desagradam. Essas áreas são justificadamente da nossa conta porque estão sujeitas à nossa influência direta. Temos sempre a possibilidade de escolha quando se trata do conteúdo e da natureza de nossa vida interior.
Fora de nosso controle, entretanto, estão coisas como o tipo de corpo que temos, se nascemos ricos ou se tiramos a sorte grande e enriquecemos de repente, a maneira como somos vistos pelos outros ou qual é a nossa posição e status na sociedade, assim como tudo que se refere à morte. Devemos lembrar que estas coisas são externas e, portanto, não dependem de nós. Tentar controlar ou mudar o que não podemos só resulta em aflição e angústia.
As coisas sob o nosso poder estão naturalmente à nossa disposição, em nossa consciência, livres de qualquer restrição ou impedimento. As que não estão, porém, são frágeis, sujeitas à dependência, ou determinadas pelos caprichos ou ações dos outros. Ter a pretensão de controlar as opiniões e pensamentos alheios, as forças da natureza ou mesmo o tempo em que devemos tomar a embarcação só nos trará decepções e angústias desnecessárias. No fim, portanto, nossas escolhas são mesmo limitadas, mas não deveria haver nenhum bom motivo para nos afligirmos com isso... Muito pelo contrário, deveria ser motivo de alívio saber que existem muitas coisas que não estão nem nunca estarão sob nosso controle, que a natureza cuida de si mesma e que nessa existência muitas vezes somos mais espectadores do que diretores.
Dessa forma, com a sabedoria estóica, podemos viver focados nas preocupações certas – aquelas que podemos efetivamente controlar –, e sempre preparados para tomar a embarcação para a morte, seja quando e como ela eventualmente ancorar em nosso porto.
O que você acha dessa visão, O.?

(O.) Eu acho esplêndida, de fato algo que deveria ser ensinado a todas as pessoas, para que ao menos elas se dêem conta de que não devemos nos apegar tanto aos eventos fortuitos nem nos afligir tanto com as dificuldades no caminho, pois tanto um quanto outro muitas vezes estão além de nossa escolha e vão ocorrer independente do que façamos.

(P.) Também me agrada muito a visão estóica. No entanto, estamos falando essencialmente de filosofia [o debate anterior a exposição de Sofia se focava na justiça divina]...

(Sofia) Na verdade a filosofia estóica, e particularmente a de Epicteto, se confunde com a religião. Dentre as referências à deusa Fortuna e a um Zeus que era o Deus dos deuses, temos um misto de monoteísmo com uma profunda elaboração filosófica da aleatoriedade da existência. De fato, eu pessoalmente não vejo religião, filosofia e nem mesmo a ciência como campos hermeticamente separados um do outro, mas talvez isso ainda seja um outro debate...

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[1] Conforme a nota existente no livro: Apesar de sua condição, conseguiu assistir as preleções do famoso estóico Gaio Musônio Rufo. De sua obra se conservam o Enchyridion, o "manual de Epicteto", e alguns discursos editados por seu discípulo Flavio Arriano.
Como viver uma vida plena, uma vida feliz? Como ser uma pessoa com boas qualidades morais? Responder a estas duas perguntas fundamentais foi à única paixão de Epicteto. Embora suas obras sejam menos conhecidas hoje em função do declínio do ensino da cultura clássica, tiveram enorme influência sobre as idéias dos principais pensadores da arte de viver durante quase dois mil anos.

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Crédito da foto: Joaquín Vicente

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