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29.10.19

Rumi, Shams e o Segredo de Allah

Neste vídeo falaremos sobre o grande encontro místico entre o poeta sufi Jalal ud-Din Rumi e o andarilho misterioso Shams de Tabriz, que ficou conhecido na tradição do sufismo, o misticismo islâmico, como o encontro de dois oceanos. Ao final, recito um poema de Rumi.

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22.10.19

O encontro de dois oceanos

Conta a lenda que no dia 28 de novembro de 1244 em Konya, na atual Turquia, numa região que era então conhecida como Rum (ou Sultanato de Rum), o grande teólogo islâmico Jalal ud-Din Rumi, herdeiro espiritual da tradição do próprio pai, Baha’ud Din Walad, ensinava a cerca de uma ou duas dúzias de discípulos às margens de um pequeno lago da região, sob o sol da tardinha persa.

Do próprio pai, Rumi aprendeu teologia e os cânones da literatura clássica árabe. De um dos discípulos do pai, por cerca de uma década aprendeu todos os segredos do chamado “conhecimento inspirado”, a fonte para se trilhar a via mística. No entanto, aquela altura, já perto dos 40 anos, ele era mais conhecido como um mestre da filosofia, da poesia clássica, da teologia, da jurisprudência e da moral – muito mais um propagador de conhecimentos, sejam intelectuais ou espirituais, do que propriamente um místico. Isso estava para mudar naquele dia...

Vindo pela estrada que beirava a margem do lago onde estavam, surgiu um andarilho de idade relativamente avançada, envolto num manto negro de feltro ordinário, com sapatos um tanto desgastados, que aparentava carregar consigo o pouco que necessitava para cruzar grandes distâncias a pé. Seu olhar era ao mesmo tempo atraente, magnético, inquisitivo e assustador, de modo que antes que ele abrisse a boca, a aula já havia sido interrompida. Quando ele falou, apontando para a pilha de livros ao lado de Rumi, tinha a atenção de todos os presentes:

“O que há nesses papeis?”

“Aqui só há palavras,” – respondeu Rumi – “em que podem lhe interessar?”

O andarilho, que agora mais de perto se via claramente tratar-se de um sufi (isto é, uma espécie de místico asceta nômade), simplesmente caminhou até ao lado de Rumi, apanhou a pilha de livros e, num rompante repentino de aparente insanidade, atirou tudo nas águas do lago!

Rumi levantou-se, furioso, e o repreendeu:

“Você faz ideia do que fez? Alguns desses livros continham manuscritos importantes de meu pai, que não se encontram copiados em nenhum outro lugar!”

Então, para espanto de todos os presentes, que o testemunharam à posteridade, o sufi se encaminhou até a beirada do lago e, entoando uma espécie de cântico meditativo, de alguma forma fez com que os ventos soprassem em sua direção, trazendo todos os livros de volta para a margem. Ele os recolheu e levou de volta a Rumi. Para a surpresa geral, estavam perfeitamente secos.

“Qual é o segredo envolvido nisso?” – indagou o teólogo.

“Aqui só há êxtase espiritual,” – respondeu o sufi – “em que pode lhe interessar?”

Antes que pudesse refletir sobre a enigmática resposta, Rumi constatou que os manuscritos do pai estavam em branco:

“Ei! Mas as palavras de meu pai sumiram; faça com que elas retornem, feiticeiro!”

“Jalal ud-Din, deixa para trás as palavras de seu pai, elas já tiveram a sua utilidade. Agora é hora de escrever as suas próprias palavras.”

“Como sabe meu nome?”

“Meu antigo mestre, em Tabriz, me disse que em Konya vivia um grande conhecedor da nossa religião islâmica, que já havia cruzado seu caminho com Farid ud-Din Attar e Ibn Arabi, e que hoje vivia enjaulado numa gaiola de palavras. Então eu, que também sou conhecido como parinda [o pássaro, ou o voador] resolvi vir até aqui para libertar outro pássaro.”

Desde esse dia, enquanto ambos estiveram livres para tal, Jalal ud-Din Rumi e aquele sufi andarilho, chamado Shams de Tabriz, jamais deixaram de dialogar sobre Allah, sobre o amor, sobre a via mística, enfim: sobre tudo o que não se encontra nas palavras e nos livros. Tal conjunção de almas ficou conhecida na tradição do sufismo como “o encontro de dois oceanos”.

Shams se recusava a dar maiores detalhes da sua história de vida. Uns dizem que a sua família era ismaelita, uma vertente dissidente e minoritária do Islã, e costumavam se passar por loucos ou tolos, talvez de modo a não levantar maiores suspeitas sobre suas práticas religiosas heterodoxas. Outros afirmam que ele era originalmente um membro da tribo dos Hashishins da Síria, liderada pelo lendário Alaodin, “O Velho da Montanha”, cujas práticas religiosas admitiam variadas formas de estados alterados de consciência, principalmente através da dança. Ora, mais tarde, privado da companhia de Shams, Rumi iria desenvolver um método de dança mística rodopiante conhecida como sama, que mais tarde seria aperfeiçoada pelo seu filho mais velho – talvez ele a tenha aprendido de Shams, ou talvez tenha sido indiretamente influenciado por ele.

Fato é que, uma vez privados das aulas de seu mestre, que agora passava seus dias e suas noites na companhia inseparável daquele estranho andarilho místico, dialogando sobre assuntos que não se liam em nenhum livro, os discípulos de Rumi tramaram para afastá-los. Na primeira vez em que Shams deixou Konya na surdina, temendo causar maiores problemas naquela comunidade, Rumi iniciou a sua jornada pela poesia mística, motivo principal por ser celebrado até hoje, no mundo árabe e fora dele. Desesperado ante a ausência do amigo, Rumi começou a lhe endereçar belíssimas cartas em formato poético, até o dia em que conseguiu convencê-lo a retornar de Damasco, onde havia residido durante a sua ausência.

Ante tal insistência, no entanto, os discípulos resolveram assassinar Shams, e enterrá-lo num poço da região. Com a ausência derradeira do amigo, Rumi começa a dançar em transe, recitando os poemas que o imortalizaram, todos eles cuidadosamente anotados pelos seus discípulos (quiçá alguns deles os próprios assassinos de Shams)...

Não importa, os dias e as noites em que eles passaram juntos estão hoje marcados na Eternidade, pois poucas vezes se viu na história humana dois místicos que se complementassem tão bem um ao outro: Rumi, o teólogo ortodoxo que, não obstante, dissolveu-se inteiramente nas profundidades do Amor; e Shams, o santo andarilho de origens incertas e nebulosas, cuja estatura espiritual ofuscava a todos, como o Sol.

Quando [finalmente] encontrei Rumi, a primeira condição foi de que não me apresentasse como um mestre. Allah ainda não criou o homem que possa ser como um mestre para ele. Eu tampouco estou em condições de ser o discípulo de alguém, já estou muito além dessa etapa. (Shams de Tabriz, Maqalat, 33)

Eu tinha em Tabriz um mestre espiritual, Abu-Bakr, e foi dele que obtive todas as santidades. No entanto, havia em mim algo que meu mestre não pôde ver; de fato, ninguém era capaz de vê-lo. Mas Rumi o viu.
Eu era água estagnada, fervendo e entornando-me sobre mim mesmo e já começando a cheirar mal, até que a existência de Rumi me encontrou; então aquela água começou a correr e continua correndo doce, fresca, saborosa. (Shams de Tabriz, Maqalat, 245-246)

***

O amor não é condescendência,
nem livros ou qualquer marca em papel,
nem o que uma pessoa diz para a outra.

O amor é uma árvore
com seus galhos se elevando ao Alto,
suas raízes se aprofundando na Eternidade
e nenhum tronco!

Você o viu?
A mente é cega para ele.
Seu desejo é incapaz de observá-lo.
A saudade que sente desse amor
vem do seu interior.

Quando se tornar o Amigo,
sua saudade será como o náufrago no oceano
agarrado a um pedaço de madeira...

Eventualmente, madeira, homem e oceano
se tornam um ser ondulante:
Shams de Tabriz, o segredo de Allah.

(Jalal ud-Din Rumi)

***

Crédito das imagens: Google Image Search

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19.10.19

Lançamento: O Chamado de Cthulhu

As Edições Textos para Reflexão publicam o conto mais conhecido de H. P. Lovecraft, o escritor que revolucionou o Horror Fantástico. Traduzido do inglês original por Rafael Arrais.

Na cosmologia de Lovecraft, os chamados Mitos de Cthulhu, o ser humano é uma coisa insignificante, que mal compreende as Coisas imensas e antiquíssimas que habitam o seu mundo, como deuses anciãos e raças multimilenares. Em O Chamado de Cthulhu, temos uma apavorante introdução a este universo.

Um ebook já disponível para Amazon Kindle, Kobo e Saraiva Lev:

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***

Abaixo, segue uma amostra com o trecho inicial do conto:


“De tais poderes grandiosos ou entidades é concebível que possa haver restado um vestígio [...] um vestígio de uma era regressa onde [...] a consciência era manifestada, quem sabe, em contornos e formas há muito submersos diante da maré do avanço da humanidade [...] formas das quais tão somente a poesia e as lendas puderam guardar alguma memória fugidia, e então os chamaram de deuses, monstros, criaturas míticas de todos os tipos e espécies [...].”

(por Algernon Blackwood – isto foi encontrado entre os papéis do já falecido Francis Wayland Thurston, em Boston)


A coisa mais misericordiosa neste mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar tudo o que nele existe. Nós vivemos numa pacata ilha de ignorância em meio a mares escuros vastos de infinito, e não era a intenção que velejássemos muito longe. As ciências, cada uma vagando em sua própria direção, até hoje pouco mal nos causaram; no entanto, algum dia a junção de conhecimentos desconexos nos abrirá os olhos para visões tão terríveis da realidade, e da nossa posição assustadora em seu meio, que nós deveremos ou enlouquecer diante da revelação ou fugir da sua luminosidade fatal, rumo à paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
Os teosofistas têm especulado acerca da grandeza abissal do ciclo cósmico no qual o nosso mundo e a raça humana não passam de incidentes passageiros. Eles vêm aludindo a estranhos vestígios usando termos que gelariam o sangue dos incautos, não fossem mascarados por um tolo otimismo. Mas não foi deles que surgiu o breve vislumbre de éons proibidos que me arrepia quando penso no assunto, e me enlouquece quando aparece em meus sonhos.
Tal vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, surgiu de uma conexão acidental de duas coisas separadas – neste caso, um recorte de jornal antigo e as anotações de um professor falecido. Eu espero que ninguém mais consiga chegar a esta conexão; se eu sobreviver, é certo que jamais irei revelar propositadamente elo algum desta corrente hedionda. Eu penso que o professor também tinha a intenção de manter silêncio acerca da parte que sabia, e que teria destruído as suas anotações caso não fosse surpreendido por uma morte tão súbita.
O meu conhecimento do caso começou no inverno de 1926-27, com a morte do meu tio-avô George Gammell Angell, professor emérito de línguas semíticas na Universidade Brown, em Providence, Rhode Island. O professor Angell era amplamente reconhecido como uma autoridade em inscrições arcaicas, e era frequentemente consultado por diretores de museus importantes acerca do tema; assim sendo, o seu falecimento aos noventa e dois anos deve ser lembrado por muitos.
Localmente, no entanto, tal interesse foi intensificado pela causa da morte ser um tanto obscura. O professor sucumbiu enquanto retornava da barca de Newport; segundo testemunhas, foi uma queda súbita, após um encontrão com um negro com aparência de marujo que havia surgido de um dos pátios escuros e sinistros que podiam ser encontrados na encosta íngreme que servia de atalho da praia até a sua casa, na Williams Street.
Os médicos foram incapazes de encontrar qualquer doença visível, porém chegaram à conclusão, após debates cheios de perplexidade, que alguma lesão obscura no coração, induzida pela subida de um morro tão íngreme para um homem de idade avançada, foi a responsável pela morte. Na época eu não vi razão para divergir desta conclusão, mas ultimamente eu tenho me inclinado a questioná-la – e até mais do que isso.


(continua no ebook...)


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15.10.19

A cultura de jamais sentir dor

Uma das coisas que mais me impressiona no cristianismo é o valor dado à prática das penitências: jejuns, vigílias, orações, esmolas, peregrinações, autoflagelação, etc. Algumas ainda são feitas por cristãos hoje em dia, enquanto outras já não são tão aceitas ou estão simplesmente fora de moda. Nesse post eu falo mais sobre a prática das penitências, incluindo as realizadas nas religiões indianas.

Atualmente há uma maior valorização das penitências, como jejuns, por razões de benefício à saúde ou questões estéticas (obter massa muscular ou emagrecer). Isso se deve a um maior culto ao corpo do que ao espírito.

É verdade que a saúde e a beleza também são importantes e elas foram valorizadas nas mais diferentes sociedades e épocas, como na Antiguidade Clássica. Cristo nos mostrou a importância do corpo ao vir a esse mundo como ser humano. Ele também curou muitas pessoas, indicando que devemos ajudar os outros tanto no corpo quanto no espírito.

Sendo assim, o fato de nos sentirmos belos e felizes com nosso corpo, e também saudáveis, sentindo menos dor e com a possibilidade de desfrutar os prazeres da vida, que Deus nos deu, é realmente uma bênção. Todas essas coisas devem ser buscadas e não devem ser condenadas.

O cristianismo não é uma religião contra o prazer, mas mostra que devemos adorar, acima de tudo, o Criador e não a criatura. O que isso significa?

Se Deus existe e criou o mundo, significa que deve haver um sentido para o sofrimento. Mesmo que não seja ele o criador do sofrimento, o fato de ele permiti-lo deve ter um significado.

É fato que a dor existe. Ela jamais poderá ser completamente eliminada desse mundo. Desde desconfortos físicos até sofrimentos mentais, ela acontece em diferentes intensidades ao longo da vida, por mais que nos esforcemos para evitá-la.

Então o primeiro passo é aceitar a existência da dor. Não nos fará nenhum bem fugir dela o tempo todo e jogá-la para baixo do tapete, fingindo que ela não existe. O mesmo deve ser dito sobre a morte: ela ocorrerá em algum momento conosco e com as pessoas ao nosso redor. Por isso, dor e morte devem ser abordadas e aceitas de modo sincero, desde o começo.

Os cristãos dizem que se houvesse outra forma melhor de viver, evitando a dor e a morte, Jesus teria nos mostrado. Pelo contrário, Jesus nunca optou pelo caminho mais fácil. Ele fez um jejum de 40 dias no deserto logo antes de começar sua vida pública, para enfrentar de frente o diabo. E ao longo dos anos seguintes descansava pouco e seguia ajudando as pessoas, ensinando, curando, dando esperanças. Ele não fugiu da morte e muito menos de uma morte cheia de dor e humilhação.

O que isso nos mostra? Como será que devemos viver? Será que devemos passar nossa vida buscando confortos o tempo todo e sempre fingindo que a dor e a morte estão distantes de nós? Se não treinarmos formas de lidar com elas, quando elas acontecerem não estaremos preparados.

Por isso é importante para muita gente ter uma religião: religiões são muito boas não somente em lidar com os problemas do dia a dia, mas ir mais fundo. Uma religião vai para a raiz do problema do sofrimento, como o budismo, que diz de forma clara: “A vida é sofrimento”. Buda não tenta embelezar a verdade, mas mostra as coisas como elas são.

É verdade que na vida podemos ter muitas alegrias, mas também teremos muitas dores e o final da nossa história e da história de todo mundo não é exatamente um final feliz. Nosso final é a morte. O único motivo para não ficarmos tristes com isso é se descobrirmos que esse não é realmente o fim da história.

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8.10.19

Malévola e Aurora

Neste vídeo voltamos a analisar um filme, desta vez o primeiro "Malévola", que faz uma releitura do conto da Bela Adormecida. Ao contrário da grande maioria das análises do YouTube, no entanto, esta se focará inteiramente na parte iniciática, espiritual, tão própria dos contos de fadas, e que de alguma forma se refletiu também nesta releitura. Afinal, qual é a relação mais profunda entre Malévola e Aurora? (edição por Colossi Estúdio Gráfico)

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