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21.5.21

Minha tradução de A Arte da Guerra publicada pela Faro Editorial

Ao longo do ano passado (2020) eu vendi três das minhas traduções à Faro Editorial. Duas delas já foram publicadas: O Pequeno Príncipe (de Antoine de Saint-Exupéry), ainda em 2020, e A Revolução dos Bichos (de George Orwell), no início deste ano. Como já tinha dito, havia uma terceira tradução sendo negociada, e hoje posso revelar qual era: A Arte da Guerra, de Sun Tzu.

Logo abaixo trarei imagens da edição, que já foi lançada. Eu não recebo direitos autorais pela venda do livro, pois a negociação de uma tradução se dá por um pagamento único, como a venda de um produto mesmo. No entanto, caso vocês o comprem na loja da Amazon utilizando o link abaixo, eu ganharei uma comissão praticamente equivalente à parte que um autor leva de direitos autorais :)

Eis as imagens do livro:

Comprar A Arte da Guerra na Amazon

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Obs.: A Arte da Guerra foi publicado pelo selo Avis Rara, da Faro Editorial.

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13.5.21

Orwell Político

George Orwell é um fenômeno. Juntas, as suas principais obras, A Revolução dos Bichos e 1984 (publicadas, respectivamente, em 1945 e 1949 [1]), venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX. Uma grande parte da fama de tais livros se deve a maneira como o escritor britânico soube mesclar a literatura com a crítica política. Ou, como ele mesmo descreveu:

Quando eu me sento para escrever um livro, eu não digo a mim mesmo que vou produzir uma obra de arte. Eu escrevo porque há alguma mentira que eu quero expor, algum fato para o qual quero chamar atenção, e minha preocupação inicial é conseguir ser lido por uma boa audiência.

Lançadas nos últimos anos de sua vida, tais obras se destacaram pela coragem com que Orwell atacou o totalitarismo, particularmente o stalinismo e o fascismo, em uma época onde boa parte dos regimes criticados ainda estava em plena operação. Apesar de ter atacado o comunismo russo (ou o que ele se transformou), Orwell também nutria clara simpatia pelo socialismo. Isso, por si só, explica como até os dias de hoje qualquer menção a sua obra suscita as mais acaloradas discussões nas redes sociais: os simpatizantes da direita dizendo que ele na verdade nunca foi socialista, e que dedicou-se somente a criticar a esquerda autoritária; os simpatizantes da esquerda afirmando que, pelo contrário, ele sempre foi socialista, e suas críticas na verdade se direcionavam mais ao fascismo, ao totalitarismo de direita, do que ao stalinismo e outros regimes de esquerda que assassinaram a democracia [2].

Qual deles tem razão? Para tentar responder essa pergunta, é preciso voltar no tempo, conferir as obras e ensaios anteriores, onde ele esteve morando, quais guerras lutou, enfim: tentar entender melhor o que fez de Orwell o que ele é até hoje, um mito da literatura.

Para compreender sua importância, temos de tentar entender o que ele amava, e o que odiava. Contra o que ele se rebelou, e o que ele exaltou. É isso que nos dará a chave para a compreensão da sua obra. Orwell sempre odiou o grupo social do qual ele mesmo era, apesar dos pesares, um membro exemplar: os intelectuais. Desde cedo, ele quis ser um escritor, mas sempre se destacou em nunca realmente se encaixar em emprego algum. Ele nasceu em 1903, na Índia, que era na época uma parte do Império Britânico, mas foi enviado ainda criança para a Inglaterra, onde cresceu sem muita presença do pai, um funcionário público que atuava na colônia indiana. Era filho de pais em frágil situação econômica, que lutaram duro para que ele tivesse uma clássica educação inglesa de classe média, e esperavam que ele pudesse se tornar um médico ou um advogado. Orwell acabou conseguindo uma bolsa para estudar em Eton, um colégio tradicional de Berkshire (onde teve aulas de francês com Aldous Huxley), mas nunca teve notas boas o suficiente para tentar bolsas em grandes universidades. Mais tarde, decidiu servir como policial imperial na Birmânia (atual Mianmar), onde pôde conhecer mais da cultura do Oriente, e de como se estruturavam e funcionavam um império colonial e suas colônias. Ao retornar à Inglaterra, passou a se dedicar com mais afinco à escrita, e construiu uma carreira como jornalista e ensaísta político.

A geração de intelectuais da qual Orwell fazia parte, que havia testemunhado a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão, estava obcecada por novas doutrinas grandes e abstratas para redimir a humanidade. Alguns eram comunistas fanáticos, outros firmes defensores do capitalismo radical, e alguns estavam admirados com os novos regimes autoritários da Itália, Espanha e Alemanha, e queriam algo semelhante para a Inglaterra. Orwell ouviu, e foi por um breve período seduzido por algumas dessas doutrinas. Mas ele gradualmente veio a defender algo muito mais radical: os gostos, as opiniões, as necessidades e as perspectivas de alguém que ele chamou de “a pessoa comum”.

A jornada de Orwell na vida comum começou na primavera de 1928, quando ele deixou os privilégios de sua classe para trás, e passou a trabalhar em uma série de serviços braçais, nas capitais francesa e inglesa. Experiências que ele estava para contar em seu livro, Na pior em Paris e Londres (1933). Em outro livro narrando suas viagens ao redor da indústria de mineração de carvão, no norte da Inglaterra, O caminho para Wigan Pier (1937), Orwell lança um olhar generoso e complexo sobre as pessoas que conheceu. Sua experiência com a vida das pessoas comuns e ordinárias, em geral as grandes vítimas das guerras e dos regimes ditatoriais, explica em boa parte a profundidade de suas obras mais conhecidas.

E, se Orwell podia falar com propriedade da vida comum, também sabia o que era uma guerra em primeira mão! Juntou-se ao POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), uma milícia de marxistas revolucionários não-stalinistas, na luta contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler, na Guerra Civil Espanhola. Foi ferido no pescoço. Uma bala danificou suas cordas vocais, saindo pelas costas, e desde então sua voz ficou ligeiramente inaudível. Mais tarde escreveria o livro Lutando na Espanha (1938), em que relata sua experiência no conflito.

Mas foi num ensaio intitulado O Leão e o Unicórnio: O Socialismo e o Gênio Inglês, escrito em 1941, em plena Segunda Guerra, literalmente com bombas caindo nas proximidades [3], que Orwell me parece ter deixado mais clara a sua real posição política. Apesar da sua importância, é um ensaio relativamente desconhecido e/ou esquecido pelas editoras, quem sabe justamente por desmistificar muito do que já foi dito, tanto à direita quanto à esquerda, sobra suas crenças políticas.

A tese do seu ensaio afirma, basicamente, que aquele era o momento ideal para uma revolução socialista na Inglaterra [4]:

Não podemos esperar que este, ou qualquer governo similar, leve a cabo as mudanças necessárias por conta própria. A iniciativa terá de vir de baixo. Isso significa que será preciso surgir algo que nunca existiu na Inglaterra, um movimento socialista que de fato conte com o apoio da massa da população. Mas é preciso começar reconhecendo os motivos pelos quais o socialismo inglês fracassou.

Segundo Orwell, a grande mácula do socialismo na Inglaterra foi fazer chacota do patriotismo da população, ao invés de abraçá-lo, como ocorreu no fascismo e no nazismo:

Não é possível entender o mundo moderno tal como ele é sem que se reconheça a força esmagadora do patriotismo, da lealdade nacional. O cristianismo e o socialismo internacional são fracos como palha em comparação com ele. Hitler e Mussolini ascenderam ao poder em seus países em grande medida porque compreenderam esse fato, e seus opositores, não.

O escritor também busca explicar porque regimes totalitários nos moldes fascistas e nazistas conseguiram chegar ao poder sem grande oposição dos mais ricos:

Hitler defende uma economia centralizada, que despoja o capitalista de grande parte de seu poder, mas preserva quase intacta a estrutura anterior da sociedade. O Estado controla a indústria, mas ainda há ricos e pobres, patrões e empregados. Portanto, enquanto opositoras do socialismo genuíno, as classes abastadas sempre estiveram ao lado dele. Isso ficou cristalino na época da Guerra Civil Espanhola, e de novo claro na época em que a França se rendeu. O governo títere de Hitler não é de trabalhadores, mas uma gangue de banqueiros, generais caducos e políticos de direita corruptos.

E, mais para o final do longo ensaio, Orwell deixa muito claro que ainda acreditava num movimento socialista genuinamente democrático e igualitário como solução dupla para a Inglaterra: tanto no sentido de se igualar ao Estado nazista no fomento da máquina de guerra, e assim poder lutar de igual para igual, quanto nos sentido de criar uma nova sociedade onde a distribuição de renda seja uma realidade, e onde a pessoa comum possa enfim ter uma vida mais digna e justa. Eis o que ele diz:

Em tempos [de guerra] há a possibilidade, inexistente em épocas de paz, de sermos ao mesmo tempo revolucionários e realistas. Um movimento socialista que consiga atrair o apoio da massa da população, que desaloje os pró-fascistas das posições de comando, que elimine as injustiças mais flagrantes e permita à classe trabalhadora entrever uma razão pela qual lutar, que conquiste as classes médias em vez de antagonizá-las, que resulte numa política imperial viável em vez de uma mescla de enganação e utopianismo, que estabeleça uma parceria entre o patriotismo e a inteligência — pela primeira vez, um movimento desse tipo torna-se possível. [...] Esse governo socialista fará o essencial: nacionalizar a indústria, reduzir a disparidade de renda e implantar um sistema educacional não classista. Sua verdadeira natureza se tornará patente a partir do ódio que os homens ricos remanescentes no mundo sentirão por ele.

O Leão e o Unicórnio foi escrito anos antes das duas grandes obras literárias de Orwell, e no ensaio vemos claramente que, a despeito de já ser um crítico ferrenho do comunismo nos moldes stalinistas, Orwell continuava acreditando que uma revolução socialista seria o caminho mais eficaz para garantir que a pessoa comum inglesa, a única coisa que contava com sua genuína adoração, pudesse ter uma vida melhor. Depois disso vieram as bombas atômicas no Japão, a derrota de Hitler e a manutenção do totalitarismo do regime soviético (que contava com a conivência de boa parte do Ocidente). É difícil dizer se, ao escrever 1984, já perto da morte (por conta da tuberculose, que ele provavelmente contraiu ao ser tratado do tiro no pescoço em um hospital espanhol), Orwell ainda mantinha viva a crença no socialismo democrático, mas fato é que em nenhum momento da vida ele se aproximou do espectro oposto, seja no conservadorismo, seja no liberalismo econômico.

Assim, o veredito mais provável e honesto é este: Orwell foi um socialista que defendia a liberdade com unhas e dentes, e que não se furtou a criticar ferozmente o próprio socialismo, quando este enveredou pelo totalitarismo. Se ainda fosse vivo hoje, o mais provável é que Orwell fosse de centro-esquerda, devido à falência da ideia de uma revolução socialista viável.

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[1] Eu também traduzi as duas principais obras de Orwell pelas Edições Textos para Reflexão. Leia A Revolução dos Bichos e 1984 no seu Kindle, pelo preço de um café (os links levam para a loja da Amazon).

[2] Eu falo mais sobre totalitarismo de esquerda e de direita na série Reflexões Políticas. O tema é abordado mais especificamente na Parte 3, mas recomendo ler desde o início para ter uma visão abrangente do que busquei dizer.

[3] O ensaio se inicia de maneira épica: “No momento em que escrevo, seres humanos extremamente civilizados estão voando sobre mim, tentando me matar”. Era um momento em que Londres vinha sendo bombardeada pelos forças de Hitler.

[4] A partir desse ponto, todos os parágrafos em itálico trazem trechos retirados do ensaio. Ele pode ser encontrado em português na coletânea da Penguin & Companhia das Letras, Por que escrevo (Ensaios de Orwell na tradução de Cláudio Marcondes).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Orwell); [ao longo] luciusbooks.com (capa original do ensaio; ainda pode ser adquirido aqui).

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11.5.21

Orwell e Huxley

Querido Sr. Orwell,

Foi muito gentil da sua parte pedir aos editores que me enviassem uma cópia do seu livro. Ela chegou enquanto eu estava em meio a um trabalho que me demandava muita leitura e consultas de referências; e como a falta de visão faz com que seja necessário racionar a minha leitura, eu tive que esperar por muito tempo antes de ser capaz se embarcar em 1984.

Concordando com tudo o que a crítica escreveu sobre isso, eu não preciso te dizer, mais uma vez, o quão bom e profundamente importante o livro é. [...]

Assim se inicia a carta que Aldous Huxley enviou a George Orwell, escrita em 21 de outubro de 1949, alguns meses após a publicação de 1984, uma das obras mais lidas e discutidas do Ocidente [1]; e alguns meses antes da morte de Orwell, por tuberculose, aos 46 anos.

Quando tinha vinte e poucos anos, Huxley foi professor de francês de um Orwell ainda adolescente, no Eton College, uma famosa escola inglesa. Não há evidências de que tenham tido algum tipo de convívio fora da sala de aula, mas é certo que Orwell foi um ávido leitor da célebre ficção distópica de seu antigo professor, Admirável Mundo Novo, publicado em 1932. Assim, a despeito de terem tido uma amizade mais profunda ou não, fato é que dois dos grandes escritores do século XX leram as principais obras um do outro, e nutriam uma admiração mútua.

Enquanto uma utopia é uma espécie de “Céu erguido na Terra”, um ideal futuro de uma sociedade onde predominam a justiça e o bem estar social, a distopia é justamente o oposto: um futuro sombrio onde geralmente há opressão governamental e quase nenhuma liberdade individual.

Muito já se debateu acerca das duas visões distópicas descritas nessas obras. A princípio, eles se parecem mesmo antagônicas, tanto que em sua carta a Orwell, o próprio Huxley faz uma defesa da sua própria visão de um futuro sombrio da democracia. Essa comparação foi aprofundada em 1985, num livreto do teórico da comunicação americano Neil Postman, intitulado Amusing ourselves to death (Nos divertindo até morrer). Trago um trecho da obra abaixo:

“Na visão de Huxley, não é necessário nenhum Grande Irmão [grande líder totalitário] para despojar a população de autonomia, maturidade ou história. Ela acabaria amando sua opressão, adorando as tecnologias que destroem sua capacidade de pensar. Orwell temia aqueles que proibiriam os livros. Huxley temia que não haveria motivo para proibir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse lê-los. Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley, aqueles que nos dariam tanta que seríamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade fosse escondida de nós. Huxley, que fosse afogada num mar de irrelevância.”

No futuro pintado por Huxley, a sociedade está dividida em castas. Crianças projetadas geneticamente saem de fábricas de bebês e são condicionadas a exercer das funções mais nobres às mais abjetas. Não há mães, pais ou casamentos. O sexo é livre. A diversão está disponível na forma de jogos esportivos, cinema multissensorial e de uma droga que garante o bem-estar sem efeito colateral: o soma. Restaram na Terra dez áreas civilizadas e uns poucos territórios selvagens, onde grupos nativos ainda preservam costumes e tradições primitivos, como família ou religião. “O mundo agora é estável”, diz um líder civilizado. “As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma.”

Aqui é preciso destacar que nem utopias nem distopias existem no mundo real. O exercício de tentar adivinhar para onde nosso mundo está caminhando, se para a distopia de Huxley ou de Orwell, é algo curioso, muitas vezes interessante, mas nem sempre tão produtivo quanto se pode imaginar. Muitas vezes caímos na armadilha de imaginar que o mundo deve ser preto ou branco: ou se encaminha totalmente para um lado, ou para outro. Quando na verdade a realidade é composta por infindáveis miríades de cinza.

Fato é que Orwell e Huxely falavam sobre mundos diferentes em suas obras. Enquanto Orwell claramente fazia uma caricatura sombria de uma ditadura nos moldes fascistas e stalinistas, Huxley estava bem mais preocupado em criticar a cultura de massa alienante e o consumismo demasiadamente hedonista das democracias ocidentais. Além disso, é preciso lembrar do contexto específico em que 1984 é narrado, do ponto de vista de um membro do Partido [algo mais ou menos equivalente ao Partido Comunista da Coreia do Norte de hoje], que compunha uma modesta minoria dentro da sociedade como um todo. Trago um trecho do início do Cap. 7 da Parte 1 da obra que ilustra isso muito bem:

“Se havia esperança, ela DEVIA estar nos proletas [proletários; ou o povão em geral], porque só neles, naquelas massas desdenhadas, naquele enxame de gente, nos 85% da população da Oceania [uma das três superpotências do mundo], havia alguma possibilidade de que se gerasse a força capaz de destruir o Partido.”

E, se formos analisar a obra mais a fundo, veremos que, tal qual em Admirável Mundo Novo, o povão em geral também é mantido anestesiado de qualquer tipo de pensamento revolucionário através de distrações como a loteria, o noticiário de crimes e guerras e a boa e velha cerveja. O Partido de Orwell policia de maneira ferrenha os seus próprios membros, mas deixa que o restante de população desfrute de certa liberdade. Assim, embora o conhecimento em geral seja filtrado e devidamente censurado pelo Estado totalitário, nada impede que um proletário de Oceania beba a sua cerveja no final do dia e se divirta, por exemplo, com um jogo de dardos. Tons de cinza, tons de cinza...

Outra característica que separa o foco narrativo de ambas as obras é a questão religiosa. Enquanto em 1984 as religiões foram abolidas, o personagem principal é ateu (no máximo um humanista agnóstico), e todas as questões religiosas não passam de um pano de fundo para a narrativa política, na obra de Huxley há uma crítica clara e contundente à ausência de espiritualidade da sociedade dita civilizada em relação àqueles que são chamados de selvagens, vivem fora das metrópoles e ainda praticam costumes primitivos. Ora, como um perenialista, Huxley está claramente defendendo que a religião antiga não é somente importante, como essencial para que o indivíduo alcance uma vida digna e plena.

A filosofia perene, ou perenialismo, é um ponto de vista da espiritualidade moderna que enxerga todas as tradições religiosas do mundo como compartilhadoras de uma verdade única, sendo ela metafísica ou a origem da qual todo o conhecimento esotérico e exotérico se irradiou. O perenialismo tem suas raízes no interesse renascentista pelo neoplatonismo e sua ideia do Uno, da qual toda a existência emana.

Anos após Admirável Mundo Novo ter sido publicado, Huxley continuava a propagar uma interpretação universalista das religiões do mundo, inspirada por vertentes do hinduísmo. Sua obra A Filosofia Perene, de 1945, traz mais luz sobre o tema:

“A filosofia perene é expressa de maneira mais sucinta na fórmula sânscrita, tat tvam asi (‘Isto és tu’); o Atman, ou Eu eterno imanente, é um com Brahman, o Princípio Absoluto de toda a existência; e a finalidade última de todo ser humano é descobrir o fato por si mesmo, descobrir quem ele realmente é.”

Dessa forma, enquanto Orwell procurava alertar seus leitores para os graves perigos das doutrinas políticas que podiam descambar para um Estado totalitário, uma ditadura, Huxley trazia outra espécie de alerta, que dizia mais sobre o perigo de uma sociedade moderna inteiramente afastada da espiritualidade, e seduzida pelas drogas e o hedonismo exacerbado [2]. Enquanto 1984 focava quase que unicamente na política, Admirável Mundo Novo dava também um grande espaço para a religiosidade humana. Assim, o tipo de comparação que Postman nos trouxe em 1985 deve ser considerado em seu contexto limitado. Do contrário, corremos o risco de vermos demônios imaginários onde eles não existem, e nos esquecermos de que o mundo real é muito mais complexo, muito mais acinzentado, do que uma obra de ficção.

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[1] Eu também traduzi as duas principais obras de Orwell pelas Edições Textos para Reflexão. Leia A Revolução dos Bichos e 1984 no seu Kindle, pelo preço de um café (os links levam para a loja da Amazon).

[2] Sei que pode parecer que Huxley era um conservador do tipo avesso a toda experimentação com drogas e afins. Mas, tanto pelo contrário, Huxley chegou a descrever sua experiência com uma droga alucinógena, a mescalina, que é até hoje o seu segundo livro mais famoso, intitulado As Portas da Percepção.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Orwell à esquerda, Huxley à direita); [ao longo] Autor anônimo (a cidade de Londres na obra 1984); Bill Butcher (ilustração para o Financial Times; Brave New World é o título original da obra de Huxley).

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6.5.21

Não, esse blog não morreu

Há pouco mais de 5 anos eu fui demitido de uma empresa da área de TI na qual já estava há quase 12 anos. Na maior parte desse tempo, por conta de ter ido morar noutro estado, eu trabalhei em home-office. Muito antes da pandemia e das reuniões por videochamada, eu já tinha meu “escritório em casa”, e isso certamente explica como arranjei tempo para tocar esse blog. Tanto que, logo após a demissão, minha preocupação não era tanto ficar desempregado (um webdeveloper front end não costuma ter muita dificuldade de se realocar, mesmo na crise), mas sim de como diabos manter o blog vivo após assumir um novo emprego “tradicional”, do tipo que lhe obriga a se deslocar até outro local da cidade, perdendo justamente as horas preciosas que eu até então usava para a escrita.

Foi nesse ano de 2016, não mais que semanas após a minha demissão, que eu tive a sorte de encontrar o Léo Lousada para tomar um chope. Ele, que é de São Paulo/SP, estava visitando Campo Grande/MS por conta de uma questão de trabalho, e ficou hospedado num hotel a alguns quilômetros de onde moro. Marcamos de nos ver num bar aqui pertinho, de modo que eu fui a pé, e ele veio de uber. Para quem não sabe, o Léo é um dos criadores e apresentadores do canal Conhecimentos da Humanidade, que hoje conta com quase 400 mil inscritos no YouTube, mas que naquela época ainda tinha somente poucas dezenas de milhares. Bem, eu já conhecia o Léo dos Simpósios de Hermetismo que havia assistido em São Paulo, mas foi após a nossa interação por conta do Conhecimentos da Humanidade que nos tornamos mais próximos.

Em todo caso, o que importa é que naquela noite dois hermetistas tomavam chope amigavelmente, mas um estava empregado, e o outro (talvez por ser de Capricórnio) estava consideravelmente aflito. Uma aflição do tipo que às vezes nem o estoicismo consegue amainar. Honestamente, eu não me lembro do que o Léo me falou, mas conhecendo ele, provavelmente teve algo a ver com estar tranquilo e compreender que por vezes essa é a forma do Universo lhe encaminhar para uma outra via, mais essencial. E hoje é muito claro para mim que ele tinha razão, mas eu não conseguia entender como ser demitido estaria me ajudando a ter mais tempo para a escrita. Eu não ganho mesada de pais ricos, e ainda pago aluguel.

Ora, mas se não me lembro do que ele disse exatamente, me lembro de outra coisa: ao nos despedirmos, ele optou por voltar caminhando em plena noite para o hotel. De fato, o clima estava agradável e ele seguiria por uma avenida relativamente movimentada (e, portanto, relativamente segura), mas como andava aflito eu não pude evitar perguntar:

“Vai andar tudo isso a pé, tem certeza?”

“Tenho, quero conhecer a cidade.”

Era o único tempo que o Léo teria para conhecer a cidade. De fato, ele sempre trabalhou muito. Não faço ideia de como consegue tocar tantos projetos em paralelo com o emprego formal. Eu não conseguiria, mas cada um é cada um. O fato é que a expressão tranquila dele, naquela noitinha, ao se despedir, é a imagem que me marcou a memória: ele tinha com ele o tipo de estoicismo, o tipo de paz mental, que eu precisava naquele momento. Muitas vezes um amigo ajuda o outro pelas vias mais esquisitas, principalmente um amigo hermetista. O Léo me ajudou ao me lembrar de um estado de consciência que eu havia perdido naquele momento. E ele nem mesmo precisou se esforçar ou pensar em algo importante para dizer: bastou apenas ser ele mesmo, e dividir alguns chopes comigo naquela noite.

É fácil entender hoje o que se seguiu de lá para cá. Mas você nunca percebe como tudo se encaminha para esta ou aquela direção quando se sente perdido no meio do turbilhão da própria mente, e suas elucubrações.

Literalmente dias após ser demitido eu consegui manter um trabalho do tipo freelancer (temporário) com uma grande empresa do ramo de alimentos. A questão é que o contrato durava 3 meses. Ou seja, em 3 meses eu precisaria estar novamente empregado, e dificilmente voltaria a trabalhar em home-office. Nesses meses eu participei de um longo processo de seleção para a maior empresa de TI do estado onde moro (MS). Me lembro vividamente do último dia do processo, onde a vaga ficaria entre eu e um outro sujeito, um descendente de japoneses gente boa que havia acabado de ter um filho com a esposa, e também ficado desempregado por conta da crise econômica no país. Me lembro de como olhei para os olhos dele quanto o cumprimentei a primeira vez e tive uma intuição muito forte que dizia mais ou menos assim: “A vaga é dele, eu preciso perder essa vaga”. Então, eu simplesmente me autossabotei no restante da avaliação. Talvez ele tivesse ganhado a vaga ainda assim, mas de alguma forma eu já sabia que aquele não seria o meu futuro.

Minha intuição costuma ter razão. O contrato de 3 meses foi renovado por mais 3, depois por mais 4, eventualmente a cada 6 meses. Com isso alguns anos se passaram, e eu decidi me dedicar com mais afinco as traduções de grandes autores em domínio público, algo que eu havia iniciado em 2013. Ora, se até então as Edições Textos para Reflexão tinham servido para que eu pudesse autopublicar e-books que eram traduções de alguns dos melhores livros que li na vida, dali em diante eu decidi que teria de me dedicar também a alguns best-sellers que talvez não estivessem na minha lista de “melhores livros da história”.

Eu não imaginava que um dia poderia viver somente da venda de e-books, é claro. Primeiro porque não abriria mão de vendê-los “pelo preço de um café” (até hoje eles custam entre R$0,98 e R$5,99 na Amazon, afora os gratuitos); segundo porque ainda era um mercado um tanto pequeno e relativamente estagnado. Mesmo assim, foi mais ou menos a partir dessa época que O Príncipe de Maquiavel, A Metamorfose de Kafka e o Fausto de Goethe surgiram no catálogo. O primeiro sendo um estrondoso sucesso de vendas desde 2017; o segundo com suas idas e vindas às listas de mais vendidos; e o último, por conta da concorrência de outras editoras digitais, um retumbante fracasso. Claro que nem sempre são traduções minhas: no caso do Fausto, por exemplo, o tradutor também já havia entrado em domínio público.

Mas fato é que minhas vendas de e-books tinham se estabelecido como um consistente complemento salarial, de modo que além de eu continuar como freelancer, ainda poderia trabalhar menos horas do que anteriormente. O tempo para a escrita estava mais do que assegurado!

Então chegou 2019. Meu primeiro filho nasceu no início do ano, e em Maio eu perdia definitivamente o contrato que havia mantido como freelancer. Ocorre que Maio de 2019 não estava tão longe do dia 01/01/2021, data em que a obra de George Orwell, peso pesado da literatura do século XX, entraria em domínio público. Eu ficaria seriamente no vermelho nesses cerca de 18 meses, mas eu tinha dinheiro guardado para isso; e, além do mais, se a partir de meados de 2021 eu conseguisse viver só da venda de e-books, estaria garantindo não somente o tempo para a escrita [1], como algo até mais valioso do que isso: o tempo para estar bem perto do meu filho, para vê-lo dar os primeiros passos e falar as primeiras palavras. Era um sonho que em realidade não tinha preço.

Em meados do início de 2020, entretanto, o inimaginável aconteceu: após cerca de um século, o mundo vivia uma nova pandemia. Enquanto o país se trancava em casa, enquanto o mundo realizava conjuntamente a maior quarentena de sua história, as vendas de e-books simplesmente decolaram! Fazia todo sentido, afinal: é MUITO mais seguro comprar online, mas ao contrário de um livro impresso, um e-book chega ao seu dispositivo de leitura em questão de segundos. Assim, em Março de 2020 eu já havia alcançado a meta de renda que planejava para 2021. Mas não fazia tanto sentido comemorar uma vitória dessas enquanto as estatísticas de mortes pela Covid-19 só aumentavam.

Foi quando a curva de mortes caiu com certa consistência, mais para o fim de 2020, que eu me permiti comemorar o sonho. Vale lembrar que eu não sabia exatamente o que era um e-book até o fim de 2012 (se me perguntasse, diria que é um PDF, mas um e-book é muito mais que isso), e cerca de 8 anos depois eu estava vivendo inteiramente da venda deles. Por isso o caminho para a chamada Verdadeira Vontade é algo tão imprevisível: por mais que você possa ser um artista, alguém criativo, quiçá intuitivo, o Universo sempre será infinitamente mais criativo do que você. Por isso também que nesse caminho o amor pelo que realizamos sempre contará MUITO mais do que quaisquer expectativas de resultado.

Tudo isso para finalmente explicar porque esse blog não morreu:

Sim, eu estou há meses sem escrever por aqui, e isso teve uma boa razão: George Orwell. Desde a metade de 2020 eu tenho me dedicado à tradução de suas principais obras: A Revolução dos Bichos e 1984. Hoje, ambas já foram lançadas. A primeira, lançada pontualmente em 01/01/2021, é o maior sucesso das Edições Textos para Reflexão, tendo alcançado o #1 geral na Loja Kindle da Amazon, e estacionado entre os 50 mais vendidos desde então. A segunda, que levou quase 8 meses e, por isso, só pôde ser lançada no final de Abril, está brigando com a concorrência para também alcançar os 50 mais vendidos, quiçá estacionando um bom tempo por lá. Esse trabalho de tradução (particularmente no caso de 1984) me tomou absolutamente todo o tempo livre, foi algo dificílimo, mas acabou. Um dia, quando voltar a abordar Orwell aqui no blog, falarei mais sobre isso.

Não, esse blog não morreu. Para falar a verdade, está mais vivo do que nunca. E tudo indica que continuará assim. Mesmo sem projeto de financiamento coletivo, tenho a sorte de ter alcançado a condição financeira necessária para “viver da escrita”. Para alguém como eu, é como a sensação de ser milionário, só que melhor.

E, se ainda não comemoro mais, é pelos mais de 400 mil cadáveres do lado de fora...

***

[1] Nesse meio tempo eu também cheguei a criar um canal no YouTube, homônimo ao blog. Ao contrário da escrita, no entanto, a criação de vídeos não é exatamente o meu “habitat natural”, e eu não tenho certeza se algum dia voltarei a produzir vídeos com regularidade. Nada me impedirá, por outro lado, de criar vídeos pontuais (quando der na telha).

Crédito das imagens: [topo] Mike Tinnion/unsplash; [ao longo] Garçom anônimo (meu encontro com o Léo Lousada; estou na esquerda da imagem).

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