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24.6.14

A educação de Casanova, parte 6

A educação de Casanova

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 5


6.

Após alguns minutos dois dos “ursos dançantes” adentraram o palco, com suas máscaras enormes e redondas, que mais lembravam a cara sorridente de um ursinho de desenho animado. Além delas, não usavam muito mais roupa, e mesmo estes trajes colantes pareciam destinados a ser despidos na sequência – o que de fato não demorou muito...

Com seus falos semi-enrijecidos e já totalmente nus (exceto pelas cabeças de urso), eles abandonaram o palco e passaram a desfilar por entre as mesas e cadeiras cheias de fêmeas absolutamente descontroladas. Era ensurdecedor, de muitas maneiras diferentes!

Eu não sei dizer ao certo o que exatamente aquela visão, aquela experiência de estar ali observando tudo aquilo, causou em mim... Certamente não eram os falos, que iam se enrijecendo com muitas apalpadas e chupões regados a muito chantilly, o que me excitava – eu sempre preferi as cavernas e pequenas fendas úmidas do que os grandes picos, então realmente não era isto –, mas então, o que era?

Contemplar todos aqueles olhares femininos, focados diretamente nos paus duros dos “ursos dançantes”, alguns totalmente confiantes, outros totalmente tímidos, de canto de olho, e tantos outros no meio termo entre os dois, chamou minha atenção para uma faceta feminina que eu certamente nunca havia observado. Seria para isso que Asik havia se dado ao trabalho de me trazer até aquela “festa”?

“Então, isto sim é algo de novo. Novo e excitante, não?” – cochichou meu amigo.

Mas eu ainda não conseguia responder. De fato, era óbvio que algo me incomodava naquela dança de ursos, mas eu não conseguia pôr em palavras; no que Asik me auxiliou:

“Sim, são seres sexuais frequentando Casas de Putaria, de forma muito parecida com a que temos visto nos últimos séculos, só que com uma diferença, ou melhor, uma inversão: as “putas” são os rapazes mascarados de pênis grandes; e os “endinheirados”, os “nobres abastados”, os “governantes”, são elas, são elas, Giacomo! Quanto tempo nós não esperamos por isto, meu caro?”

“Esperar por isto? Isto? Pois não lhe parece que elas estão a agir exatamente como nós temos agido? Não estão acometidas dos nossos desvios, nossos enganos, nossa ignorância e bestialidade? Foi para isso que serviu a dita revolução sexual, para que elas acabassem como nós, como homens?”

Foi neste momento que ele gargalhou. E quando Asik gargalhava assim, dava para saber que alguma lição estava para ser aprendida, pois ele nunca gargalhava propriamente da ignorância alheia, mas de uma sabedoria que estava prestes a se ver livre dos preconceitos que a desbotavam...

“Giacomo, meu caro, e você preferia o que, santinhas? Você acha mesmo que, após conquistarem os direitos que conquistaram no último século, elas não poderiam se divertir como nós? Não poderiam se desvirtuar como nós? Não poderiam chupar o seu tanto de picas como nós temos chupado o nosso tanto de bucetas?

(e quanto mais o fogo se aproximava dele, mais sua voz se elevava, e mais palavrões grosseiros saiam de sua boca divina)

Pois me diga, amigo, se o que pensa sobre o que vemos aqui não é ainda um resquício da sombra que se acometeu sobre você nos últimos anos? Não era isso que sempre desejou ver desde os seus tempos em Veneza? Mulheres livres, livres sim! Livres de verdade, para fazerem o que bem entenderem de seus corpos e suas almas e sua vida, inclusive lamber cacetes cheios de chantilly até não poderem mais! E não há aqui mais nenhum deus raivoso para as julgar, Giacomo, o velho barbudo não foi convidado!

Pois o que diabos elas podem fazer aqui neste salão que os bonobos já não tenham feito nas matas, e nós homens em cada canto habitado do planeta? Há alguma maldade intrínseca aqui, meu amigo, ou não seria o seu próprio olho que está gasto com as pregações de outrora?

Esfregue-os, Giacomo. Limpe-os. Abra sua alma. Rompa tais pensamentos. Deixe que o seu chumbo os leve para o fundo do mar, e nade para além da superfície, até esta praia dourada... E, então, olha para esta festa, olha para esta Grande Putaria, e me diga o que vê.

Me diga se algum urso dançarino compareceu aqui por falta de opções em sua vida, ou porque foi oprimido por um grupo dominante, ou porque foi traficado como escravo, ou porque foi coibido pela violência. Não! Não, Giacomo, elas estão aqui se divertindo com eles, elas estão aqui os chupando e apalpando, mas elas não lhes forçaram, e não foram violentas...

Aqui o Amor floresce, ainda bestial, mas liberto. Só há Amor quando a violência foi posta de lado, foi esquecida!”

E então, observando todas aquelas fêmeas maravilhosas e libertas, que não eram santas e certamente não precisavam ser, eu concebi brevemente em minha alma a dimensão do que ocorria – o início de um incêndio, um incêndio de pura liberdade.

Fazia séculos que eu não me sentia tão excitado com a vida, e com as mulheres. Era tempo de Casanova voltar as suas aventuras de conquista!


***

Esta foi a sexta parte de A educação de Casanova, por raph em 2014.
Comece a ler do início | Veja a sétima parte


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22.6.14

O poema do oceano

Poema de Walt Whitman em "Folhas de Relva" (Ed. Martin Claret). Tradução de Luciano Alves Meira. O comentário ao final é meu.


Na cabine dos navios em pleno mar,
o azul sem limites em toda a direção se expande
com o assobio dos ventos e a música das ondas, as ondas grandes e imperiais,
ou alguma nau solitária que baliza a densa marina,
onde jovial, cheia de fé, abrindo suas velas brancas,
ela atravessa ao meio o espaço celeste, no brilho e na espuma do dia, ou sob o céu estrelado da noite,
entre marinheiros jovens e velhos serei eu, uma reminiscência da terra, lido,
em plena harmonia, afinal.

"Aqui estão nossos pensamentos, pensamentos de viajantes,
aqui não é a terra, a terra firme que aparece sozinha", possam eles dizer então.
"O arco do céu alcança aqui, sentimos o convés ondular debaixo dos pés,
sentimos a longa pulsação, o refluir e o afluir de um movimento sem fim,
os tons de um mistério nunca visto, as sugestões vagas e vastas do mundo salgado, as sílabas do líquido gracioso,
o perfume, o débil ranger da cordoalha, o ritmo de melancolia,
o panorama infinito e o horizonte longínquo e opaco estão todos aqui,
e este é o poema do oceano."

Então, ó livro, não hesites! Antes, realiza teu destino.
Não és a reminiscência da terra solitária,
tu também, como uma nau atravessando o éter – propósito mais claro do que o teu desconheço – repleto sempre de fé,
casa-te a todo navio que navega, navega tu!
Dá a eles o meu amor que vai depositado (queridos marinheiros, por vós eu deposito aqui o meu amor em cada folha);
Corre, meu livro! Espalha tuas velas brancas, minha ínfima nau, através das ondas imperiais.
Prossegue cantando, navega adiante, desentranha o azul infinito de mim e lança, em cada mar,
esta canção por todos os marinheiros e suas naus.

***

Por sugestão de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), acabei chegando a este outro grande poeta da alma, que me era desconhecido até pouco tempos atrás. Digo, apenas o nome dele me era desconhecido, pois os seus versos se parecem mais com a lembrança de alguma coisa muito antiga, ou quem sabe, eterna...

***

Crédito da imagem: wallope.com

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17.6.14

A aurora de Malévola, parte final

« continuando da parte 1

Face a face
O período em que Aurora cresce em meio a floresta encantada, sendo cuidada, de forma oculta, por Malévola e seu corvo fiel, é na minha opinião o ponto alto do filme. Elas chegam a se encontrar quando Aurora ainda é criança, mas é na cena em que Malévola se revela, ainda que de forma relutante, para Aurora, que chegamos a um dos grandes momentos da história.

Malévola está escondida nas sombras dentre as árvores, enquanto Aurora está sob a luz que penetra mesmo naquele canto sombrio da floresta. Lembremos aqui que a própria floresta vai se tornando sombria na medida em que Malévola, sem suas asas e nutrindo o seu ódio pelo rei larápio, vai se tornando mais e mais reclusa. Ora, a única coisa que impede que Malévola se torne definitivamente a bruxa má, e deixe de ser uma fada, é a presença de Aurora, a quem ela chama de “peste” mas, ainda assim, nutre uma afeição crescente e verdadeira.

Neste encontro entre as duas, Malévola supõe que seria Aurora quem teria medo dela, mas é Aurora quem indaga se Malévola tinha receio em se revelar, e em seguida diz, “Eu sei quem é você, você é a sombra que sempre esteve por perto, cuidando de mim, você é a minha fada madrinha”. Para compreender a profundidade deste encontro, devemos lembrar do que dizia Joseph Campbell, grande estudioso de mitologia do século XX [1]:

Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você enfrentou o seu monstro interior? Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?

Ora, sob este ponto de vista podemos notar que Aurora assume um papel duplo na história. Enquanto numa camada mais superficial ela continua sendo a Bela Adormecida, numa camada mais profunda desta releitura do mito, ela é a própria Malévola; ou melhor, ela é a essência mais pura, a alma de fada de Malévola, enquanto que a bruxa má é a sombra ressentida, a carcaça do ego que se afundou no ódio ao mundo que a violentou.

E por que Malévola tinha ao mesmo tempo, tanto amor e tanta raiva de Aurora, tanto ódio e tanto medo? Para compreender, nada melhor do que ouvir as palavras do grande Alan Moore, ocultista e roteirista de quadrinhos britânico [2]:

Muitos dos magos como eu entendem que a tradição mágica ocidental é uma busca do Eu com "E" maiúsculo. Esse conhecimento vem da Grande Obra, do ouro que os alquimistas buscavam, a busca da Vontade, da Alma, a coisa que temos dentro que está por trás do intelecto, do corpo e dos sonhos. Nosso dínamo interior, se preferir assim. Agora, esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.

Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura?

Creio que isto explica muito bem todo o medo que Malévola tinha de encarar sua alma, sua aurora, face a face. Mas este é o tortuoso caminho que todos nós temos de percorrer, sejamos fadas, duendes ou seres humanos, pois que é somente ao nos reconciliarmos com nossa essência mais íntima que poderemos enfim transformar o mundo – primeiro dentro de nós, e em seguida, também lá fora.

Voltando a história...
A história do filme prossegue, e Aurora está prestes a completar 16 anos e sucumbir a terrível maldição, quando encontra um cavaleiro que passava pela floresta encantada, perdido e procurando o caminho para o castelo do rei larápio.

Aurora, que nunca havia saído da floresta, mesmo assim aponta o caminho correto, e os dois combinam de um dia se reencontrar... É preciso lembrar que este jovem cavaleiro é o único ser humano (não faérico) além de Aurora a perambular pela terra das fadas. Como ele poderia estar lá, se não fosse por se tratar de uma alma pura, como a própria Aurora?

Neste momento fica subentendido que seria este jovem aquele quem daria o “beijo de amor verdadeiro” para livrar Aurora da maldição, mas esta releitura do mito transcorrerá de forma bem mais interessante...

A fuga de Aurora
Por um descuido das “tias fadas”, Aurora acaba sabendo que, na realidade, era filha do rei larápio. Nesta altura, o desejo dela era morar “para sempre” na floresta encantada, então ela vai encontrar mais uma vez com Malévola, quando acaba descobrindo que ela era quem havia proferido a terrível maldição que selaria o seu destino. Aurora e Malévola brigam e a jovem foge para as terras do rei larápio, buscando se apresentar como sua filha.

É preciso lembrar que antes desta briga Malévola chega a tentar desfazer a sua maldição. Porém, como ela “não poderia ser desfeita por nenhum poder na terra, além do beijo de amor verdadeiro”, ela acaba falhando.

Ao encontrar sua filha, o rei larápio, já paranoico e extremamente insensível, apenas manda que a deixem trancada nalguma torre do castelo. Ele planeja atacar a floresta encantada com todo o seu exército.

Enquanto isso, o jovem cavaleiro acaba retornando a terra de Malévola, em busca de Aurora. Ao se aperceber disso, o corvo de Malévola a convence a tentar levar o rapaz até o castelo, para desfazer a maldição com o seu aguardado beijo. Prontamente, Malévola faz o rapaz dormir com um feitiço e começa a jornada até o castelo do rei.

O misterioso amor verdadeiro
Pouco antes de adentrarem o castelo, Malévola sente que a maldição profetizada havia se consumado: Aurora havia encontrado “todos os teares do reino” escondidos nos calabouços do castelo e, quase que hipnotizada pela maldição, espeta seu dedo num fuso e cai em seu sono infindável. Esta cena demonstra a inevitabilidade do seu destino, o que é muito comum em se tratando de contos de fadas.

Então chegamos a outra cena grandiosa do filme. Malévola consegue adentrar sorrateira, com o corvo e o jovem cavaleiro em seu sono enfeitiçado, aos aposentos onde se encontra a Bela Adormecida em seu sono sepulcral. A seguir, Malévola e o corvo se escondem num canto e ela desfaz o feitiço, permitindo que o jovem acordasse bem em frente ao leito de Aurora.

No entanto o jovem, muito sabiamente, pergunta se “não seria errado beijar uma jovem em seu sono”... Mas uma das "tias fadas", que "velavam" a Bela Adormecida, diz algo como, “Vai, pode beijar!”, e o cavaleiro arrisca o seu beijo de amor verdadeiro. E não ocorre absolutamente nada!

Malévola aparece e faz o rapaz dormir novamente, então lamenta profundamente que a sua própria maldição não possa ser desfeita, visto que, como ela imaginava, “não existe o amor verdadeiro”. Ela dá então um beijo na testa da Bela Adormecida e, quando já se preparava para ir embora, Aurora desperta e diz, “Oi, fada madrinha”.

Quão misterioso é, afinal, o amor verdadeiro! Não algo que pode surgir do nada, de um encontro casual entre dois jovens, por mais puros que sejam; não algo que surja a primeira vista, mas algo que pulsa e pulsa, em nosso interior mais íntimo, nos recônditos da eternidade!

Reencontrar o amor verdadeiro faz com que Malévola se reconcilie com sua alma e com seu passado, e deixe definitivamente de ser a bruxa má, para voltar a ser a fada. Agora, não mais uma fada inocente e inexperiente, mas uma fada que viu o quão grosseiro pode ser o mundo fora de sua floresta encantada, e que ainda assim consegue manter a conexão com a sua essência eterna.

O retorno das asas
Na sequencia da história, enquanto tentavam fugir do castelo sem serem vistas, Malévola é pega numa armadilha com uma rede de ferro (o contato com o ferro fere gravemente as fadas – a alquimia explica), e então precisa combater o rei larápio e os seus guardas.

A batalha ia muito mal para Malévola (mesmo com seu corvo transformado num assombroso dragão), mas é então que Aurora, em sua fuga da batalha, acaba encontrando as asas trancafiadas de Malévola. Ela derruba a caixa de vidro onde elas estavam, e elas saem voando em direção a Malévola, unindo-se novamente ao seu corpo.

A essa altura já deve ter ficado clara a simbologia de toda a cena: as asas retornam quando Malévola consegue se reconciliar com sua essência, e transformar o seu ódio novamente em amor pelo mundo. Mas ainda faltava o rei larápio...

Ao tentar fugir voando, o antigo amigo de Malévola consegue se engalfinhar em suas pernas com o auxílio de uma arma de corrente, e os dois acabam lutando no topo de uma das torres do castelo. Em dado momento, Malévola poderia o ter enforcado até a morte; mas ela desiste, e diz, “Acabou!”.

De fato, para ela havia acabado o ódio, ela finalmente o havia perdoado. Perdoar não significa relevar o ocorrido, nem exatamente esquecer, mas reconhecer que o ódio e o ressentimento são apenas represas para o amor, e o amor, o amor verdadeiro, uma vez encontrado, deseja romper todas as represas, deseja inundar o mundo todo... Não há ressentimento que resista a tamanho milagre!

Infelizmente não foi a conclusão a qual o rei larápio chegou... Tentando atingi-la por trás, ele acaba caindo da torre e morrendo.

Depois, no final do filme, ficamos sabendo que Aurora e o jovem cavaleiro iriam se casar, e que a floresta encantada voltara a ser como era antes, na infância de Malévola. E assim, todos viveram felizes para sempre.

Joseph Campbell também dizia que “o mito é algo que não existe, mas que existe sempre”. Os mitos são, afinal, os fatos da alma e da mente humana encenados no mundo externo. Por isso são atemporais, pois os assuntos da alma residem na eternidade, e embora não existam na realidade mundana, existem na realidade da imaginação. A única forma de viver feliz para sempre é viver neste caminho que leva a nossa essência mais íntima, a nossa aurora.

***

[1] Trecho de O Poder do Mito.

[2] Trecho de The Mindscape of Alan Moore.

Crédito da imagem: Malévola – O filme (Divulgação)

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16.6.14

A aurora de Malévola, parte 1

Recentemente assisti ao filme Malévola (Maleficent), da Disney, com Angelina Jolie no papel principal, que se trata de uma releitura de um antigo conto de fadas que também já havia sido transposto ao cinema pela própria Disney há décadas atrás.

A versão mais conhecida do conto é a dos Irmãos Grimm, publicada em 1812, na obra Contos de Grimm, sob o título A Bela Adormecida (Dornröschen). No entanto, como de costume, os Grimm se basearam em mitos ainda mais antigos para compor sua obra, de modo que podemos rastrear sua inspiração até o original La bella addormentata nel bosco (A Bela Adormecida no Bosque), do italiano Giambattista Basile (1566-1632), assim como o La Belle au bois dormant, do francês Charles Perrault (1628-1703), que já na época fazia sua própria releitura do anterior.

Há muitas análises simbólicas sobre os contos originais [1], mas meu objetivo aqui não é me ater ao passado, mas sim celebrar esta releitura atual, fruto da parceria da roteirista Linda Woolverton com o diretor Robert Stromberg. A seguir analisarei o filme com a minha interpretação da sua mitologia ainda presente, e embora os meus comentários tratem de assuntos que vão além da visão superficial da história, é inevitável que eu traga aqui alguns spoilers, de modo que recomendo que vejam ao filme antes de lerem o restante deste artigo...

A fada criança
No início do filme vemos uma fada Malévola muito diferente da bruxa má que aparece de repente nos contos antigos. De cara, já fica óbvio que a história tratará de explicar os acontecimentos ocorridos muito antes do início dos contos.

Aqui vemos uma menina inocente e brincalhona, que gosta de voar pela terra das fadas, brincar de guerra de lama com os duendes e, de vez em quando, subir até o alto do céu para tomar um banho de sol. Alguns desavisados podem achar que os seus enormes chifres, por si só, fazem dela um “ser maléfico”, mas é preciso estar atento para o fato de que, em muitas mitologias pagãs, os chifres estarem associados a sabedoria, e não a maldade.

Em todo caso, não poderíamos dizer que esta fada era muito sábia. Ela acaba encontrando um garoto larápio que havia adentrado a floresta encantada em busca de pedras preciosas, mas consegue convencê-lo a devolver o que havia roubado e, eventualmente, se afeiçoa a ele. A princípio a amizade dos dois é pura e verdadeira, mas eventualmente o mundo externo acaba seduzindo mais ao larápio do que sua amiga fada, e ele abandona a amizade.

Com o tempo ficamos sabendo que no mundo externo também existe um rei bem velho que não se conforma com o fato de não poder conquistar as terras das fadas. Durante o filme, este rei eventualmente perde uma batalha para uma Malévola crescida e jura se vingar...

Até mesmo crescida, entretanto, Malévola ainda não parece se dar conta da maldade que existe no mundo externo. Esta parte do filme tem algum paralelo com o mito do Éden, assim como com a época infantil.

Assim como Adão e Eva, as crianças são naturalmente boas, simplesmente pelo fato de ainda não haverem conhecido o mal. Uma vez comida a maçã, uma vez atingida a adolescência e, principalmente, o despertar da sexualidade, todos passamos a conhecer tanto o bem quanto o mal, e todos passamos a, efetivamente, fazer nossas próprias escolhas internas sobre qual o caminho a seguir. Acredito que o restante do filme fale essencialmente sobre isto.

A inocência perdida
No decorrer do filme, o velho rei decreta: “Aquele que matar Malévola será o herdeiro do meu trono”. Aqui, vemos o garoto larápio já crescido, um reles serviçal do rei, porém muito ambicioso. Ele elabora um plano ardiloso.

O larápio retorna a floresta das fadas e, mesmo após muitos anos sem ver Malévola, ela acaba voando ao seu encontro ao ouvir seus chamados. Ele a seduz e diz querer reatar a amizade de outrora. Malévola, a criança crescida, aceita prontamente.

Então transcorre a cena mais impactante do filme, que é uma óbvia analogia a uma violência sexual, mas por contra de ser um filme para crianças, transcorre de maneira inteiramente simbólica. O larápio dá um sonífero para Malévola beber e, enquanto ela esta dormindo de bruços na relva, vemos sua tentativa de esfaqueá-la... No último momento, ele reluta, pois ainda há uma chama, quem sabe, de amor verdadeiro, que embora quase apagada, ainda o faz pensar noutra solução: cortar suas asas para levar ao velho rei como “prova” do assassinato.

Ao acordar sem suas asas, e sem seu suposto amigo, Malévola prontamente compreende o ocorrido, e grita de tristeza. Sim, fica muito claro que é tristeza, uma profunda tristeza, o que ela sente ao perceber que foi não somente ludibriada por seu “amigo”, mas que também foi profundamente violentada por ele. Sem suas asas, ela não poderia mais escapar de vez em quando da terra para ver o sol nas alturas – ela caiu, definitivamente, do Éden; será que um dia conseguirá retornar?

A terrível maldição
Passam-se os anos e o garoto acaba mesmo se tornando um rei, que eu devo chamar de rei larápio. Ele se casa com alguma princesa (que não tem muita importância no contexto da história) e eles acabam tendo uma filha. É precisamente na festa do batizado desta filha, Aurora, que Malévola reaparece e chegamos, finalmente, ao início dos contos originais.

Malévola, que não havia sido convidada para a celebração, vai até lá por conta do ódio que nutriu, por anos, em seu coração (a tristeza não devidamente tratada). Chagando lá ela profere uma “terrível maldição que não poderia ser quebrada por nenhum poder do mundo”. A princípio, seu intuito era o de fazer Aurora dormir para sempre após completar 16 anos, ao espetar seu dedo na ponta de um fuso de tear; porém, como o rei larápio suplica de joelhos, ela “suaviza” a maldição e diz, “Mas se alguém lhe der um beijo de amor verdadeiro, ela acordará”.

Ocorre que, naquela altura, nem Malévola nem o rei acreditavam que o amor verdadeiro existia, de modo que o rei passa a crer que a maldição seria inevitável se ele não desse cabo de todos os teares do reino, e mandasse seu bebê para ser cuidado por três fadas “bondosas” em algum local secreto. Aurora é então levada para a própria terra das fadas, onde é criada pelas “tias fadas” num casebre em meio a floresta, enquanto o rei larápio fica cada vez mais paranoico com o passar dos anos, passando até a “conversar” com as asas arrancadas de malévola, que decoram o seu salão, como se ela estivesse ali (e, como veremos, de certa forma, uma parte dela estava mesmo).

No início da criação de Aurora, nos surpreendemos ao perceber que Malévola, apesar de a odiar profundamente, acaba por cuidar para que não lhe falte alimentação, e envia o seu corvo serviçal para auxiliar no possível, onde as “tias fadas”, que não tinham lá muita experiência em cuidar de bebês humanos, falhavam [2]... Na próxima parte do filme ficamos na dúvida se o que Malévola sente por Aurora é mesmo ódio, ou amor; raiva, ou medo!

» Em seguida, o misterioso amor verdadeiro...

***

[1] Ver, por exemplo, Análise mitológica de A Bela Adormecida e Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento, de Wilton Fred C. de Oliveira; ou A Bela Adormecida do Bosque e o despertar da sexualidade, de Ana Cláudia Matos Gonçalves.

[2] Uma curiosidade: É a própria filha de Angelina Jolie, Vivienne, quem interpreta Aurora quando criancinha. De fato, foi a sua estreia nos cinemas!

Crédito da imagem: Malévola – O filme (Divulgação)

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14.6.14

Lançamento: 49 noites antes da Colheita

As Edições Textos para Reflexão retornam com os 50 poemas que foram o fruto da minha Contagem do Ômer neste ano de 2014 (*).

A Contagem do Ômer, ou Sefirat ha Ômer, é o nome dado a contagem dos 49 dias ou sete semanas entre Pessach e Shavuot, feriados judaicos correspondentes, respectivamente, a Páscoa e ao dia de Pentecostes. Através da Cabala, a Contagem deixou de ser somente uma tradição agrícola, ou histórica, para se tornar um dos maiores rituais de meditação e autoconhecimento do mundo, praticado simultaneamente por milhares de pessoas em todo o globo, todos os anos.

Durante 49 noites, enquanto este lado do globo virava suas costas ao sol, eu meditei sobre o microcosmo e o macrocosmo, sobre a lua e as estrelas, sobre a noite escura e a manhã vindoura, sobre a solidão e a tristeza, e sobre o amor que é eterno... Tais meditações se transformaram em poemas, e são estes poemas que compõem esta edição.

Um livro digital já disponível para o Amazon Kindle, e também na versão impressa:

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***

Quem frequenta o blog deve se lembrar que alguns desses poemas já foram publicados por aqui. Para facilitar, estou trazendo os links para todos eles novamente abaixo:

» [Chesed shebe Chesed]

» [Hod shebe Chesed]

» [Chesed shebe Geburah]

» [Netzach shebe Geburah]

» [Geburah shebe Tiferet]

» [Hod shebe Tiferet]

» [Netzach shebe Netzach] (vídeo do Fabio Almeida sobre este poema)

» [Malkuth shebe Netzach]

» [Hod shebe Hod, ou Lag Baômer]

» [Tiferet shebe Yesod]

» [Yesod shebe Yesod]

***

(*) Gostaria de agradecer enormemente ao Marcelo Del Debbio por haver me encaminhado, indiretamente, para esta trilha. Ao Rodrigo Amorim Grola por ter me dado permissão de utilizar sua magistral ilustração da Ávore da Vida no livro. Ao pessoal do Conversa entre Adeptus pelo capricho nos vídeos com as instruções para as meditações de cada dia. E, especialmente, ao Fabio Almeida, por ter preenchido com música alguns dos poemas que consegui "roubar" de Kether. Claro que devo estender o agradecimento a todos os leitores, atuais e futuros, pois este livro agora é de todos vocês - eu já fiz a minha parte!


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11.6.14

49 noites depois...

Não percam a conta! O próximo lançamento das Edições Textos para Reflexão será nada menos do que o resultado da minha Contagem do Ômer neste ano de 2014: 49 noites antes da Colheita - um Sefirat ha Ômer poético. Certamente uma das fases mais inspiradas da minha vida como poeta e escritor...

Vocês já devem ter visto alguns poemas com títulos esquisitos por aqui, não? Pois é, eu já expliquei melhor do que eles se tratam noutro post. Agora quero lhes trazer uma passagem da Introdução do livro, onde falo sobre a música Lamidbar, do grupo Mawaca, que me auxiliou enormemente na jornada ascendente pela Árvore da Vida. E, ao final, uma amostra da capa do livro!

***

LAMIDBAR

Há mais de uma década tenho a felicidade de conhecer um dos maiores grupos musicais em atividade no mundo; e que é, quem diria, brasileiro.

O Mawaca é um grupo que pesquisa e recria a música das mais diversificadas etnias do globo buscando conexões com a música brasileira. Formado por sete cantoras que interpretam canções em mais de dez línguas, o Mawaca revela no seu nome a essência do seu trabalho. Segundo a etnia hausa do norte da Nigéria os mawaka (cantores-xamãs) recorrem ao poder mágico da palavra cantada para atrair o poder dos espíritos.

Como me vali de uma de suas interpretações mais belas, Lamidbar, para me auxiliar em minhas meditações na Contagem do Ômer, penso que deveria trazer aqui ao menos a letra deste canto hebraico tradicional, que segue abaixo:

Lamidbar saenú
Al gavshot gmalim
Al tsabeihem ietsaltselú
Paamonim gdolim
Saenú, saenú
Lamidbar saenú
Li li li li li li

Allá en el midbar,
vide relumbrar,
con voz de adobe
y un buen cantar
las tablas de la ley
(que) vide abajar

Mira el Rey
Es Mose rabenu
Que subió y abajó
a los altos cielos
Li li li li li li

[tradução]

Vamos para o deserto
Montados em nossos camelos
Seus guizos, pelo caminho, vão tilintar
Vamos, vamos!
Li li li li li li

Lá no deserto
vê-se alumiar
ao som do adobe [pandeiro sem platinelas]
e de um lindo cantar
as tábuas da lei
que dos céus vão baixar

Vivas ao rei!
É Moisés, o rabino
Que subiu e desceu
das alturas celestiais
Li li li li li li

***

Segundo Magda Pucci, do grupo Mawaca, “neste arranjo, nós tomamos a melodia cantada por Ora Sittner, cujo texto está em hebraico (versão de Alexander Penn), e utilizamos o texto em ladino da versão grega e turca coletada por Susana Weich, especialista em música sefaradita (dos judeus de Portugal e Espanha)”.

Lamidbar é parte do CD/DVD Pra todo canto, e pode ser facilmente encontrada online (*).

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(*) Por exemplo, no Soundcloud:

Capa do livro

Sim, terá versão impressa, além de eBook na Amazon!


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6.6.14

Lançamento: O Grande Computador Celeste

Os artigos essenciais do Teoria da Conspiração, da autoria de Marcelo Del Debbio, estão a partir de hoje disponíveis em download gratuito num livro digital cuidadosamente editado pelas Edições Textos para Reflexão.

São cerca de 620 páginas de um livro tamanho A5. Então não perca tempo e comece a ler (ou reler) logo:

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Mas ESPERA AÍ, o que diabos é um ePub?
O ePub é o formato de arquivo de livro digital mais usado atualmente no mundo. Acreditamos que a leitura no formato digital traga inúmeras vantagens: em quase todos os dispositivos é possível ajustar tamanho e tipo de fonte, além da cor de fundo da página; os textos e imagens se adequam automaticamente as dimensões da tela; em alguns apps também é possível destacar trechos do livro e incluir suas próprias notas, e depois buscar por elas, etc.

A seguir, explicaremos melhor como ler livros digitais em ePub, ou Amazon Mobi (formato para Kindle)...


Para quem já tem um Kindle ou um Kobo, ou usa um dos Apps gratuitos deles no seu Tablet ou Smartphone:

Você pode enviar os arquivos para o seu Kindle ou Kobo por e-mail (contatar o suporte deles se tiver dúvidas de como fazer isso). Já com o App gratuito do Kindle, basta somente clicar no arquivo Amazon Mobi para abrir. O App gratuito do Kobo tem uma opção de fazer uma varredura para encontrar todos os arquivos ePub em seu dispositivo móvel, se o arquivo não for encontrado tente transportá-lo do seu cartão removível para o próprio HD do seu dispositivo móvel.

» Apps de leitura gratuitos do Kindle
» Apps de leitura gratuitos do Kobo

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Para quem quer ler diretamente do browser:

Se você está num Desktop ou Laptop, pode ler diretamente a versão ePub do seu Google Chrome, bastando para tal instalar o add-on Readium. Veja na imagem abaixo um exemplo do ePub aberto no Readium...

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Para quem quer ler no Google Play Books:

O Google Play Books, programa que vem junto com qualquer dispositivo no sistema Android (por exemplo, em Tablets e Smartphones Samsung, e muitos outros), funciona muito bem para a leitura de ePub. Inclusive, nele há uma opção de "Ler em voz alta" onde será possível **OUVIR** o livro (talvez seja necessário instalar alguma atualização para o Português, caso a leitura seja feita em "sotaque inglês"). Veja na imagem abaixo um exemplo do ePub aberto no Google Play Livros...

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