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28.9.10

Pra não dizer que não falei da política

Eu não gosto de política. Eu não entendo quase nada de política. Por isso eu quase nada escrevo sobre política. Já me disseram algumas vezes que eu deveria me interessar mais por política, que “a política é essencial na formação do cidadão”. Porém, normalmente entende-se por cidadão aquele membro pertencente a uma determinada nação ou estado, com seus direitos e deveres... O meu problema, portanto, é que antes de ser cidadão eu sou poeta – e poetas são cidadãos do mundo todo, não compreendem como tantos enxergam essas fronteiras invisíveis onde tudo o que há são florestas e aves a voar e, quando muito, um rio a fluir. Eu sou cético quanto a essas alucinações, até hoje ninguém fotografou uma fronteira (fotografaram grades e muros, mas esses a gente passa por cima).

Há pouco tempo, finalmente encontrei um motivo para falar de política, e aqui segue o meu depoimento... Ocorre que descobri que um dos heróis da resistência contra a ditadura militar que perdurou no país por pouco mais de 20 anos (vocês se lembram não?) foi exatamente um poeta, e sua arma foi a poesia:

Esta música de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não falei das flores”, foi entoada como um hino pela liberdade por legiões de jovens e admiradores do ser humano. Como dizia que os soldados eram ensinados “a morrer pela pátria e viver sem razão”, foi censurada, e Vandré foi um dos inúmeros “formadores de opinião” forçado a se exilar fora do Brasil em 1969.

Mesmo após seu retorno ao país, em 1973, Vandré nunca mais foi filmado em um palco nem participou de algum show ou comemoração musical que a relevância de sua obra requeria. Isolou-se como se nunca tivesse existido... Isso foi o suficiente para que surgissem boatos de que ele havia sido torturado física e mentalmente pelos militares, que estava louco ou que sofrera lavagem cerebral... Para muitos radicais da época (e até hoje), Vandré era uma espécie de “Che Guevara brasileiro” – ocorre que ele nunca pegou numa arma, nem tampouco morreu em alguma revolução.

Na verdade, Vandré não foi torturado. Na verdade, Vandré não queria fazer revolução alguma... Um dos motivos de nunca ter retornado a carreira artística de forma pública (pois compõe músicas até hoje) foi exatamente porque se sentiu incomodado com essa fama de “mártir revolucionário”... Vandré não era apenas um “Che Guevara”, era muito mais do que isso – era antes um poeta revolucionário.

Sua música que se tornou hino era muito mais uma poesia sobre a condição humana, e não sobre uma ditadura militar dentre tantas outras na história da América do Sul. Para Vandré, tanto os cidadãos quanto os militares eram todos soldados, alguns armados com fuzis, outros apenas com a razão e a intuição – sempre muito mais poderosos. Porém, todos irmãos, todos fadados à caminhar juntos, de mãos dadas, rumo ao futuro em comum.

O poeta nada tinha contra os militares, muito pelo contrário – era apaixonado por aviação desde criança, e ainda nos dias de hoje é quase sempre visto nas ruas próximas a seu apartamento em São Paulo vestindo uma camisa branca com um símbolo da aeronáutica no peito. Vocês podem não acreditar, e por isso mesmo eu acho interessante verem este outro vídeo, onde ele acompanha um sargento cantar seu hino atemporal, e depois vai até ele para abraçá-lo... Se você chegou até aqui sem compreender que não existe nem nunca existiu uma nação dividida entre militares e cidadãos, é provável que tão cedo não compreenda:

Da mesma forma, a política trata da organização e administração dos interesses comuns de um dado grupo de pessoas. Moisés fez política ao trazer suas tábuas para o povo no deserto. Os gregos fizeram política ao decidir condenar Sócrates a beber cicuta. Gandhi fez política ao livrar todo um país da opressão estrangeira com um aceno de paz e uma grandiosa alma a irradiar-se por milhões e milhões de irmãos... O fim da política é resolver os interesses comuns da melhor forma possível – a questão é que muitas vezes os homens, esses animais políticos, não dispõe da ética e da poesia necessárias para alçarem vôos às regiões mais ensolaradas do reino da liberdade e da fraternidade universal.

Ainda crêem que partidos políticos significam divisões eternas, e que o inimigo está sempre do outro lado... Ora, o inimigo é a própria noção profundamente ignorante de que existe um inimigo. O inimigo é achar que o mundo divide-se entre esquerda e direita, branco e preto, e não nas mais variadas gradações de cores e culturas.

Assim como nas religiões os seres ignorantes digladiam-se em nome de um Deus que só poderia pertencer a todas elas, na política muitas vezes os homens elegem deuses os seus próprios sistemas políticos, e há alguns que se autodenominam avatares desses deuses fajutos. Ora, o único sistema político que predomina e sempre predominou é aquele que atende aos desejos da maioria pensante, ou seja, aquela que foi ensinada a pensar...

Em “1984”, George Orwell retratou um futuro sombrio onde as ditaduras políticas tomaram o controle da maioria dos países, e onde toda liberdade à informação é cerceada. Já Aldous Huxley foi um pouco mais perspicaz, e previu um futuro superficialmente mais ameno, mas no fundo muito pior – um futuro onde seríamos de tal forma atordoados por uma overdose de informações irrelevantes, que não seria sequer necessária à censura, pois os possíveis revolucionários seriam reduzidos à passividade e ao egoísmo. O primeiro temia que o medo nos arruinasse, o segundo previu que o desejo seria nossa maior ruína.

Quando Vandré retornou ao país, percebeu que o povo que cantarolava suas poesias não existia mais... Não porque havia sido exterminado pela ditadura militar, mas simplesmente porque havia sido domado pela cultura massificada e irrelevante que ele já previra desde décadas atrás...

Bem, talvez Vandré seja muito mais revolucionário do que sequer poderíamos imaginar que a idéia de ser revolucionário algum dia poderia significar. Ele não estava interessado em salvar um sistema político, mas um sistema poético. Poetas são conhecidos por tirar as pessoas de suas vidas anestesiadas por breves momentos – mas será que a poesia pode fazer-nos despertar do “Admirável Mundo Novo” de Huxley? Isso somente nós mesmos é quem poderemos responder, no único espaço que jamais pôde ser controlado ou censurado, nem tampouco cercado por muros e grades – na consciência de quem pensa por si mesmo.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

***

Obs: Eu propositalmente iniciei este artigo falando de meu desgosto pela política, mas eu me referia a política dos corruptores e corruptíveis, e não a Política dos poetas, filósofos e grandes líderes como Gandhi. O texto é uma tentativa de analisar essas diferenças entre a política e a Política - embora continue sem pretensão nenhuma de ser um grande conhecedor do assunto.

Crédito da foto: Divulgação (Geraldo Vandré na década de 60)

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23.9.10

Ciência e religião

Texto de James Gardner em "O universo inteligente" (Ed. Cultrix) – Trechos das pgs.164 a 167. Tradução de Aleph Eichemberg e Newton Eichemberg. As notas ao final são minhas.

As ferramentas da ciência devem ser usadas para estudar o fenômeno da religião? Ou será que domínio do sagrado deve continuar sendo um enclave escondido, protegido dos olhos curiosos e das cutucadas profanas de antropólogos, sociólogos, economistas e biólogos evolutivos?

[...] A religião, é claro, já foi estudada antes, tanto de dentro (por estudiosos teológicos com pontos de vista diversos, como Santo Agostinho, Émile Durkheim e Mircea Eliade) como de fora, por investigadores pioneiros (como William James [1]). Mas só recentemente as técnicas sofisticadas da ciência moderna – análise estatística, metodologias de investigação desenvolvidas nos campos da sociobiologia e da psicologia evolutiva, e métodos para associar padrões genéticos a categorias de comportamento – passaram a ser usadas para pôr a religião sob o microscópio da análise científica objetiva e imparcial. Só agora, na verdade, temos o kit de ferramentas – especialmente as técnicas computacionais – que permitirão aos cientistas desenvolver modelos sofisticados da evolução da cultura religiosa, análogos aos modelos de software dinâmicos usados no estudo da evolução linguística e da mutação viral.

A abordagem defendida por Daniel Dennett em Breaking the Spell [Quebrando o Feitiço] tem provocado oposições previsíveis, algumas em fontes inusitadas. Numa resenha de Breaking the Spell publicada no New York Review of Books, o físico de Priceton Freeman Dyson repreende Dennett por esconder seus preconceitos ateus embaixo da manga:

“Meu próprio preconceito, ao olhar a religião de dentro, me leva a concluir que o bem supera de longe o mal... Sem a religião, a vida no país seria enormemente empobrecida... Dennett, olhando para a religião de fora, chega à conclusão oposta. Ele vê as seitas religiosas extremistas, que estão criando terreno para gangues de jovens terroristas e assassinos, com a massa de fiéis comuns que lhes dão apoio moral ao deixar de entregá-los à polícia [2]. Ele vê a religião como um estorvo atraente no sentido legal, ou seja, uma estrutura que atrai crianças e jovens e os expõe a ideias perigosas e tentações criminosas, como uma piscina sem cerca ou uma sala de armas destrancada.”

Mas o ponto crucial do cuidadoso livro de Dennett é precisamente que as origens, os caminhos de desenvolvimento e dinâmica interna das comunidades religiosas e dos sistemas de crença deveriam ser submetidos a uma intensa investigação científica e não descartados irrefletidamente como patologias associadas ao consumo de narcóticos culturais perigosos e obsoletos. [...] Como apontei em meu livro Biocosm [Biocosmos]:

“Os domínios sobrepostos da ciência, da religião e da filosofia devem ser considerados como florestas tropicais virtuais de ideias que se polinizam – reservas preciosas de memes continuamente fecundos [3] que são os ingredientes brutos da consciência em todas as suas diversas manifestações. A confusa interface ciência/religião/filosofia deve ser valorizada como uma cornucópia incrivelmente frutífera de ideias criativas: uma hélice cultural tripla – em constante coevolução – de ideias e crenças interagindo, que é o mais precioso de todos os tesouros produzidos pela história da evolução na Terra.”

Nas clássicas palestras de Lowell, feitas em Harvard em 1925, o filósofo britânico Alfred North Whitehead apresentou uma intrigante explicação para o curioso fato de que a civilização europeia produzira sozinha o fenômeno cultural que conhecemos como investigação científica [4]. A teoria de Whitehead é que “ a fé na possibilidade da ciência, gerada antes do desenvolvimento da moderna teoria científica, é um derivado inconsciente da teologia medieval [5]”. Mais especificamente, ele afirma:

“A maior contribuição do medievalismo para a formação do movimento científico [foi] a crença inexpugnável no fato de que cada ocorrência detalhada pode estar correlacionada com seus antecedentes de maneira perfeitamente definida, exemplificando princípios gerais [6]. Sem essa crença, não haveria esperança para o incrível trabalho dos cientistas. É essa convicção instintiva, suspensa vividamente diante da imaginação, que á força motriz da pesquisa – a de que existe um segredo, um segredo que pode ser revelado.”

[...] Se Whitehead estiver correto, a religião não é estranha ao pensamento científico, mas mantém uma relação ancestral [7] com o conjunto de disciplinas intelectuais que definem nosso conceito de modernidade. A religião ocidental é em suma o pai da ciência ocidental. Então, o que pode ser mais apropriado para a ciência do que focalizar a lente da investigação cética em questões relativas à própria paternidade vagamente entendida – ou seja, na crença religiosa, na fonte histórica da ilimitada fé dos cientistas na racionalidade descobrível do cosmos [8]?

***

[1] Não concordo que James tenha analisado a religião “de fora”. Um dos fundadores da psicologia e grande filósofo conhecedor das peculiaridades da experiência religiosa (ler, por exemplo, Variedades da Experiência Religiosa), acredito que era até muito mais religioso do que muitos expoentes religiosos de sua época – apenas não era um eclesiástico.

[2] A mesma confusão comum entre religião e igreja que fez com que o autor julgasse James como um estudioso “de fora” reflete-se aqui na análise de que o fundamentalismo terrorista é fruto da religião. Ora, religião significa “religação a Deus ou ao Cosmos”, e o terrorismo é exatamente o oposto disso! Seria muito mais correto classificar os fundamentalistas terroristas como féis de doutrinas fundamentalistas, ou seja, seguidores de igrejas que bem ou mal acabam permitindo esse tipo de visão distorcida de suas doutrinas. Mas igreja não é o mesmo que religião, e essa compreensão é fundamental para que consigamos enxergar a religião sob a ótica correta.

[3] Como os cientistas não gostam de usar conceitos como formas-pensamento, egrégoras ou até inconsciente coletivo (ou simplesmente sequer ouviram falar deles), eles referenciam os memes para explicar essa transmissão não física de informações na evolução. Os memes, jamais detectados, são tão ou mais místicos quanto esses outros termos, mas soam como uma doce melodia no jargão científico.

[4] Na verdade há registros de experimentações científicas mesmo antes de Cristo, mais especificamente na ilha de Samos no Mar Mediterrâneo e em partes do Egito antigo. Ocorre que esse conhecimento acabou se perdendo (a destruição da Biblioteca de Alexandria é um bom exemplo).

[5] Lembrem-se que nem todos os religiosos medievais europeus foram inquisidores irracionais... Na verdade, os grandes expoentes da aurora da ciência medieval eram profundamente religiosos.

[6] Somente o pensamento mágico admite efeitos sem causa. Toda a história da ciência remete ao estudo das causas por trás dos efeitos físicos e não físicos (embora esses últimos não sejam considerados ciência “oficial”). Um dos motivos da teoria do Big Bang ter alarmado cientistas da época em que foi elaborada (e até hoje, apesar das evidências acachapantes) é que ele seria uma espécie de “grande passe de mágica cósmico”, ao sugerir que o universo surgiu “do nada” sem ter uma boa teoria para a causa (ou sem admitir uma, pelo menos).

[7] Sábios do Egito antigo já diziam que “tudo vibra, nada está parado” muito antes do advento da física de partículas. Niels Bohr encontrou inspiração nos preceitos do I Ching para elaborar as teorias que edificaram a Mecânica Quântica. A química é filha da alquimia e a astronomia, da astrologia... E por aí vai...

[8] Sim, é praticamente irresistível cutucar: “e depois dizem que cientistas não tem fé”. Por outro lado, essa fé dos cientistas na Teoria do Tudo ou Teoria Final também é alvo de duras críticas de seus colegas como, por exemplo, as de Marcelo Gleiser em Criação imperfeita (embora não direcionadas a crença religiosa em si). No entanto, alguém poderia supor que a ciência moderna chegaria onde chegou sem a fé arraigada no âmago dos grandes gênios como Galieleu, Newton e até mesmo Einstein?

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Crédito da imagem: Pascal Deloche/Godong/Corbis (detalhe de um mosaico presente na cripta de Pasteur, autoria de Auguste Guilbert-Martin)

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21.9.10

Animais, espíritos e deuses

Nosso Lar é o segundo filme que trata da obra de Chico Xavier a alcançar grande sucesso comercial em 2010. É sempre interessante ver mais uma leva de reações variadas em menos de um ano: há aqueles que tratam Chico como um santo e fazem das salas de cinema um destino de romarias; há aqueles – que se julgam céticos – que ficam de cabelo em pé com o seu sucesso e elaboram as mais criativas teorias de charlatanismo, ainda que adorem ignorar que ele doou todo o direito autoral pela vendagem de suas obras para a caridade [1]; há aqueles – os mais divertidos, admito – que afirmam que espiritismo é proibido pela bíblia (embora seja um termo criado a menos de 2 séculos) e que Chico e Kardec fazem parte de uma conspiração “maçônica” liderada pelo próprio Capeta (ou algo assim)... E claro, há também os parcimoniosos: espíritas e espiritualistas que o admiram, mas não o tomam como santo ou infalível; céticos reais que consideram as hipóteses de autoengano, criptomnésia [2] ou até mesmo algum tipo estranho de esquizofrenia...

Pois é, eu não vou aqui entrar nessa discussão, até mesmo porque o que não falta na web hoje em dia são sites e blogs a estender as premissas do último parágrafo em debates intermináveis – onde 99% das pessoas já entram com a opinião solidificada, em todo caso... Não, eu vou retornar a um assunto que já havia abordado num outro artigo sobre Nosso Lar: a possibilidade dos textos de Chico conterem algumas intrigantes antecipações do futuro (digo, no plano físico). Não estou falando de algo dúbio como a possibilidade da arquitetura de Nosso Lar ter inspirado a Brasília, mas de algo um tanto mais profundo.

Uma das continuações de Nosso Lar, o livro Missionários da Luz, foi publicado em 1945. É um relato de experiências pessoais vividas por André Luiz (espírito que Chico afirma ter ditado ambos os livros) no plano espiritual, em sua grande maioria acompanhado por Alexandre, seu "instrutor". Para ir diretamente ao ponto, vou trazer a vocês dois trechos deste livro:

“A fim de esclarecer André Luiz quanto às causas profundas da existência da vampirização [3], Alexandre esclarece:
– Porque tamanha estranheza? – perguntou o cuidadoso orientador – e nós outros, quando nas esferas da carne? Nossas mesas não se mantinham à custa das vísceras dos touros e das aves? A pretexto de buscar recursos proteicos, exterminávamos frangos e carneiros, leitões e cabritos incontáveis. Sugávamos os tecidos musculares, roíamos aos ossos. Não contentes em matar os pobres seres que nos pediam roteiros de progresso e valores educativos, para melhor atenderem a Obra do Pai [4], dilatávamos os requintes de exploração milenária e infligíamos a muitos deles determinadas moléstias para que nos servissem ao paladar, com a máxima eficiência. O suíno comum era localizado por nós, em regime de ceva, e o pobre animal, muita vez à custa de resíduos, devia criar para nosso uso certas reservas de gordura, até que se prostrasse, de todo, ao peso de banhas doentias e abundantes. Colocávamos gansos nas engordadeiras para que hipertrofiassem o fígado, de modo a obtermos pastas substanciosas destinadas a quitutes que ficaram famosos [5], despreocupados das faltas cometidas com a suposta vantagem de enriquecer os valores culinários. Em nada nos doía o quadro comovente das vacas-mães, em direção ao matadouro para que nossas panelas transpirassem agradavelmente. Encarecíamos, com toda a responsabilidade da ciência, a necessidade de proteínas e gorduras diversas, mas esquecíamos de que nossa inteligência, tão fértil na descoberta de comodidade e conforto, teria recursos de encontrar novos elementos e meios de incentivar os suprimentos proteicos ao organismo, sem recorrer às indústrias da morte. Esquecíamo-nos de que o aumento dos laticínios para enriquecimento da alimentação, constitui elevada tarefa, porque tempos virão, para a humanidade terrestre, em que o estábulo, como o lar, será também sagrado. ” (Missionários da Luz, 23. ed., p. 41)

Apesar da linguagem excessivamente formal e de termos que afugentam certos céticos antes que possam completar a leitura, há que se analisar este trecho (apenas um de tantos outros) de forma mais profunda... Quão simples é bater no peito e afirmar que somos espíritas, que estamos evoluindo “a passos largos”, etc.; Quão difícil é encarar a nós mesmos no espelho e perceber como ainda estamos tão adormecidos, tão anestesiados para uma vida verdadeiramente espiritual.

O movimento moderno de direitos animais pode ser traçado no início da década de 70. Um grupo de filósofos da Universidade de Oxford começou questionar porque o status moral dos animais não-humanos era necessariamente inferior à dos seres humanos... O resto da história muitos devem conhecer, mas será que alguém realmente se preocupava com direitos animais em 1945? Decerto eram muito poucos, decerto não era algo que aparecia na mídia e tampouco era assunto de debate político.

Não tenho a pretensão de levantar mais questões além das que já foram levantadas neste trecho de Missionários da Luz. Leiam e releiam com calma, e encontrarão ali muitas sementes que só vieram a florescer em nosso mundo, na chamada “humanidade terrestre”, muitos anos depois. E também, é claro, muitas sementes que até hoje anseiam por florescer... Ao invés disso, e também para demonstrar que grandes almas sempre estiveram conectadas a tais assuntos essenciais da sacralidade da existência e de toda a vida no planeta, trago a vocês um outro trecho, deste vez de Leon Tolstói em The First Step (O Primeiro Passo):

“O carneiro vivo estava ali deitado, tão silencioso quanto o morto e inflado, a não ser por sacudir nervosamente o rabo curto e os lados a se alçarem com mais rapidez que de costume. O soldado baixou gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada; o açougueiro, sem parar de conversar, agarrou com a mão esquerda a cabeça do carneiro e cortou-lhe a garganta. O animal tremeu, e o rabinho endureceu e parou de abanar. O camarada, enquanto esperava o sangue correr, começou a reacender o seu cigarro, que se apagara. O sangue corria, e o carneiro começou a agonizar. A conversa continuou sem a mínima interrupção. Era horrivelmente revoltante.”

Sim, há muitos que vivem sem enxergar quase nada a sua frente... Tratam seres como se fossem coisas, e muitas vezes tratam as coisas como se fossem deuses. E vivem como numa batalha feroz pela sobrevivência, e morrem sem quase ter realmente vivido.

O problema não é consumir a carne. O problema é achar que os animais são meros produtos de uma enorme fábrica, e que o fato de termos condições de submetê-los ao nosso domínio nos exime da responsabilidade de nós mesmos sermos para eles como deuses incentivadores, e não demônios exterminadores.

***

[1] Segundo reportagem da Superinteressante de Abril de 2010 sobre o filme Chico Xavier, o médium doou cerca de 670.000 reais por ano a caridade (de forma direta ou indireta), e contentou-se em viver com sua escassa aposentadoria de funcionário público (de baixo escalão) até o fim da vida. Não foi o que seu filho adotivo fez: ele hoje detém os direitos autorais do pai.

[2] Distúrbio de memória que faz com que as pessoas se esqueçam que conhecem uma determinada informação. Entretanto, não explicaria a exatidão de descrições históricas, por exemplo, desconhecidas da própria história de sua época, e descobertas em pesquisas posteriores.

[3] Como é comum em vários livros que Chico afirma terem sido ditados pelo espírito André Luiz, há uma extensa análise do suposto fenômeno de obsessão, em que um espírito literalmente influencia o pensamento de outro, e “vampiriza” as sensações físicas provenientes de suas ações (por exemplo, sentir o gosto de bebida alcoólica). Não sei se a analogia que o espírito faz entre a “vampirização” e o consumo de carne faz algum sentido, acredito que ele estava se referindo a nossa “vampirização” da natureza como um todo, através do consumo predatório e na maior parte das vezes excessivo e desnecessário – prejudicial para nós mesmos, portanto.

[4] Acho que vale mencionar um trecho da Carta do Chefe Seattle aqui: “O destino de vocês é um mistério para nós. O que vai acontecer quando todos os búfalos forem sacrificados? O que vai acontecer quando os recantos secretos da floresta estiverem passados com o odor de inúmeros homens e a vista das colinas verdejantes se macular com os fios que falam? Será o fim da vida e o começo da sobrevivência.”

[5] Se você pretende começar a reduzir seu consumo de “produtos animais”, comece pelo patê de fígado de ganso. Se não sabe como ele é feito, pesquise na web. Se sabe como ele é feito, e continua a comer, lamento por você...

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Crédito da foto: jimluci (Temple Grandin, autista savant e especialista em comportamento animal, talvez uma das pessoas vivas com maior compreensão de como e de que forma os animais sentem; Trabalha para que o abate de gado seja feito da forma menos traumática possível)

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16.9.10

O problema da criança e do câncer

Trecho do Projeto Ouroboros

(P.) Bem, antes que nossa amiga procure me refutar, devo deixar claro que o conceito de “deus ausente” será sempre uma meia-verdade, pois da mesma forma que ele não intercede diretamente nos eventos de sua criação, pode-se dizer que também intercede a cada momento, na manutenção das leis naturais que, bem ou mal, permaneceram estáveis desde o início deste universo. É principalmente por conta disso que a ciência existe, afinal se as leis da natureza mudassem com o tempo, ou tivessem comportamentos diferentes de acordo com uma dada região do espaço-tempo, seria provavelmente impossível elaborar um estudo consistente das mesmas. Ou, em outras palavras, E=mc² será sempre E=mc², não importa o tempo ou a região do universo.

(S.) Correto, é bom deixar isto sempre claro a todos.

(P.) Entretanto, o mero fato de Deus manter, por exemplo, a lei da gravidade funcionando, não necessariamente explica toda a sua justiça divina. Ou pelo menos, não evidencia uma justiça que seja inteiramente compatível com o nosso senso de justiça, humano.
Eu explico: conforme combinamos há algum tempo, eu concordei em considerar a possibilidade da existência de Deus, para que pudéssemos prosseguir no debate de seus atributos... Muito bem, eu não estou arrependido de acompanhá-los nessa empreitada, pois muito embora continue não encontrando evidências para a crença em um deus pessoal, concordo que há algo de sagrado e profundamente misterioso na vida, na forma com a qual resíduos de estrelas se reuniram para formar tantas e tão complexas máquinas moleculares que insistem em desafiar a entropia do Cosmos. Até que surgiu o ser humano e sua consciência, com características tão maravilhosas e insondáveis que é praticamente uma pequena “heresia” chamá-lo de máquina de células. Sim, concordo que sejamos muito mais do que isso, e concordo igualmente que ainda teremos uma longa via pela frente, até que possamos desvendar sequer uma pequena parte de nosso mecanismo mental e do processo de consciência.
Portanto, a vida sendo tão sagrada, a vida sendo a principal função do sistema-natureza, pela lógica era de se esperar que um Deus justo fizesse tudo ao seu alcance para preservá-la, da mesma forma que é a reação natural de toda mãe a preservação e proteção de seus filhos...

(I.) Interrompe.
Perdoe-me, meu amigo, mas não foi exatamente esta a nossa conclusão há pouco? Ora, se todos somos emanações de Deus, ou como O. gosta de chamá-lo – da substância-primeira –, então me parece que aquele que cria e possibilita a vida é automaticamente seu maior protetor e preservador.

(P.) De certa forma, concordo plenamente contigo. É impossível discordar que, num universo onde nada se cria e tudo se transforma, estamos então todos conectados, e todos somos originários de um mesmo “ponto” no espaço-tempo. Todos somos constituídos de “partículas-irmãs”, por assim dizer, todas filhas da singularidade que iniciou o espaço-tempo. Nesse sentido, é óbvio que Deus é justo, e que suas leis são justas.
Mas, por outro lado, este deus poderia ser chamado de natureza, e apenas natureza... Porém, segundo a idéia de Deus pessoal que muitos dos humanos acreditam, ele nos criou a sua imagem e semelhança, e nos inseriu na Terra como seres humanos. Isso nos traz diversos problemas lógicos que não podem ser desconsiderados.
O primeiro deles é até mesmo óbvio: como conciliar a teoria da evolução das espécies com esta criação incessante de Deus?

(I.) Como já lhes disse, não desconsidero a teoria de Darwin-Wallace. Entretanto, ela jamais teve quaisquer intenções de explicar a origem da vida ou da consciência humana... Ora, e o que é a alma além da consciência humana? O que ocorre, há meu ver, é que esta teoria explica a evolução física das espécies, mas nada nos diz acerca das almas criadas pelo ser divino.

(P.) Bem, mas receio que a discussão sobre a existência da alma nos tomaria um outro tanto de tempo...

(O.) Concordo, sugiro que pulemos esta discussão por agora. Considere então, P., a alma como uma possibilidade lógica. Ao menos por enquanto, pois suspeito que seu argumento independa da existência ou inexistência da alma humana.

(P.) Está certo, você tem razão. Independe mesmo em realidade...
Digamos então, caro I., que a evolução física se dê ao largo da criação incessante dessas almas. Você sustenta então que cada alma humana é criada por Deus e então enviada para habitar um corpo recém-nascido?

(I.) Certamente. Chegará o dia em que a ciência se renderá a tal explicação, pois que existem características da alma humana que estarão sempre fora do alcance da explicação mecanicista com a qual muitos estudiosos do cérebro procuram explicar nossa consciência e nosso livre-arbítrio.

(P.) Muito bem, quero lembrar novamente que estou deixando a discussão sobre a natureza da alma humana para outro momento... Ainda assim, sua resposta já é o suficiente para que eu coloque uma pergunta central nessa discussão, uma pergunta que é capaz de abalar os alicerces da crença em um Deus justo!

(I.) Ora, pois faça a pergunta então...

(S.) Muitos foram os sábios que afirmaram que as perguntas são mais importantes do que as respostas... São as perguntas que nos movem sempre à frente!

(O.) Sorri.
Bem, eu já imagino o que vai perguntar... Tem a ver com crianças, não?

(P.) Acena com a cabeça em concordância.
Mais precisamente com recém-nascidos, com aquelas almas que têm poucos segundos de vida, seja no útero materno ou já fora dele, mas que já são herdeiras de uma carga maldita, um destino infeliz...
Respondam-me então, como um Deus justo pode criar uma alma destinada a habitar o corpo de uma criança que nasce com câncer [1]?

***

[1] Conforme a nota existente no livro: Gostaria de deixar claro que não é minha intenção “justificar” ou ditar uma razão infalível pela qual uma criança nasce com doenças como o câncer (e outras tantas doenças até piores, que é desnecessário citar aqui). O cerne da discussão irá girar em torno da justiça divina, que é um conceito importantíssimo do livro, mas que é no fundo apenas um conceito. Qualquer que seja a resposta para esse problema, jamais será minha intenção afirmar que um evento desses deva ser “aceito” sem sofrimentos, como se fosse uma coisa normal e/ou corriqueira. Não é, é algo extremamente trágico, e esta discussão procura trazer um consolo filosófico para a questão, sem pretender encerrar o assunto e muito menos fazer julgamentos do tipo: “a criança nasceu assim porque merecia” ou “foi a vontade de Deus”... Achamos que tais respostas serão sempre equivocadas, pois se trata de um assunto que deve ser abordado mais pela emoção do que pela razão. Afinal, apenas o amor pode realmente consolar – ainda que o amor sob a razão.

Obs: Aqui no blog eu estive "preparando terreno" para este post do Projeto Ouroboros. Para qualquer um que tenha se sensibilizado com a questão, recomendo levar em consideração estes outros posts: "Definição da saudade" e "O homem que pede pelo pior".

***

Crédito da foto: Jackson Rubem

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15.9.10

O homem que pede pelo pior

Muitos devem conhecer Patch Adams como "o médico palhaço", ou através do filme homônimo onde ele foi interpretado por Robin Williams. Nesse caso, talvez se surpreendam ao ver esta entrevista que ele concedeu a TV Cultura anos atrás...

Não se trata apenas de um médico ou um palhaço, mas de um divino palhaço, um médico da alma, um filósofo do amor - e talvez a coisa mais próxima de um "santo" na era moderna, embora ele certamente não concordaria com tal definição. O homem que não promete cura, e sim tratamento. O homem que jamais afirmou que rir é o melhor remédio, mas sim que a amizade o é. O homem que alegra até mesmo crianças com câncer no estágio de metástase nas regiões mais remotas do planeta, sem remédios para atenuar a dor - o homem que pede pelo pior, e oferece o seu melhor:

Patch fala sobre cura, qualidade de vida e pensamento "positivo".

Patch fala o seu jeito de se vestir e do porque sempre pede pelo pior nos hospitais que visita nas regiões remotas do mundo.

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14.9.10

Cantando pelo mundo

Nos vídeos abaixo, as músicas "Stand by me" e "One Love" são tocadas e cantadas por vários artistas - verdadeiros artistas - ao redor do mundo:

A tradução é desnecessária pois o que importa aqui é o conjunto do projeto e as belíssimas imagens e sons... Prova de que a real globalização não será um mal, muito pelo contrário, a questão é que ela na verdade mal começou... Para conhecer mais acesse o Playing for Change

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13.9.10

Definição da saudade

Depoimento de Dr. Rogério Brandão, médico oncologista clínico, de Recife/PB. Fonte original: Pensador.info (mas existem inúmeras variantes circulando por e-mail ou em outros sites)

Médico cancerologista, já calejado com longos 29 anos de atuação profissional, com toda vivência e experiência que o exercício da medicina nos traz, posso afirmar que cresci e me modifiquei com os dramas vivenciados pelos meus pacientes. Dizem que a dor é quem ensina a gemer. Não conhecemos nossa verdadeira dimensão, até que, pegos pela adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito mais além. Descobrimos uma força mágica que nos ergue, nos anima, e não raro, nos descobrimos confortando aqueles que vieram para nos confortar.

Um dia, um anjo passou por mim...

Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada, porém por 2 longos anos de tratamentos os mais diversos, hospitais, exames, manipulações, injeções, e todos os desconfortos trazidos pelos programas de quimioterapias e radioterapia.

Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei meu anjo sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.

Meu anjo respondeu:
- Tio, disse-me ela, às vezes minha mãe sai do quarto para chorar escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer, tio. Eu não nasci para esta vida!
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem seus heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei:
- E o que morte representa para você, minha querida?
- Olha tio, quando agente é pequena, às vezes, vamos dormir na cama do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em nossa própria cama não é?
(Lembrei minhas filhas, na época crianças de 6 e 2 anos, costumavam dormir no meu quarto e após dormirem eu procedia exatamente assim.)
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece, continuou ela: Quando nós dormimos, nosso pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa cama, não é?
- É isso mesmo querida, você é muito esperta!
- Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou dormir e o meu Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!

Fiquei boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado com o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento acelerou, com a visão e grand e espiritualidade desta criança, fiquei parado, sem ação.
- E minha mãe vai ficar com muitas saudades minha, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço, perguntei ao meu anjo:
- E o que saudade significa para você, minha querida?
- Não sabe não tio? Saudade é o amor que fica!

Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um dar uma definição melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o amor que fica!

***

Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o progresso no desenvolvimento do tratamento do câncer na infância foi espetacular nas últimas quatro décadas (no Brasil). Estima-se que em torno de 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas, se diagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados. A maioria dessas crianças terá boa qualidade de vida após o tratamento adequado... Infelizmente não foi o caso da criança citada no depoimento.

Crédito da imagem: Chris Jones/Corbis

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10.9.10

Biocosmos

Texto de James Gardner em "O universo inteligente" (Ed. Cultrix) – Trechos das pgs.138, 139, 142, 143, 146 e 147. Tradução de Aleph Eichemberg e Newton Eichemberg. As notas ao final são minhas.

Originalmente apresentada em artigos científicos [...], minha hipótese do Biocosmo Egoísta [1] sugere que, ao tentar explicar a ligação entre a vida, a inteligência e as qualidades antrópicas do cosmos, a maioria dos cientistas convencionais tem olhado, em essência, pela ponta errada do telescópio. A hipótese afirma que a vida e a inteligência são, de fato, os fenômenos cosmológicos fundamentais, e que todas as outras coisas – as constantes da natureza, a dimensionalidade do universo, a origem do carbono e de outros elementos no coração das supernovas gigantes, o caminho traçado pela evolução biológica – são secundárias e derivadas. Nas palavras de Martin Rees, minha abordagem se baseia na proposição de que “o que chamamos de constantes fundamentais – os números que importam para os físicos – podem ser consequências secundárias da teoria final, em vez de manifestações diretas do seu nível mais profundo e fundamental.”

Comecei a desenvolver a hipótese do Biocosmos Egoísta como uma tentativa de prover dois elementos essenciais que faltavam no novo modelo de evolução cosmológica introduzido pelo astrofísico Lee Smolin. Smolin tinha apresentado a intrigante sugestão de que os buracos negros seriam portais para novos “universos bebês”, e que uma espécie de dinâmica populacional darwinista recompensa os universos mais aptos a produzir buracos negros com a descendência mais numerosa. A proliferação de populações de universos bebês emergindo do ventre (metaforicamente falando) de “universos mães” chega assim a dominar a população total do multiverso – um conjunto teórico de todos os universos, mães e bebês. Além disso, os universos propensos a produzir buracos negros exibem, coincidentemente, qualidades antrópicas, segundo Smolin, respondendo assim pela natureza bioamigável do cosmos “médio”, mais ou menos como um efeito colateral incidental [2].

[...] À primeira vista, a hipótese do Biocosmo Egoísta pode parecer incorrigivelmente antropocêntrica. Certa vez, Freeman Dyson, comentando as coincidências aparentemente milagrosas exibidas pelas leis e constantes físicas da natureza inanimada – fatores que tornam o universo tão estranhamente favorável a vida –, disse: “Quanto mais examino o universo e estudo os detalhes de sua arquitetura, mais evidências encontro de que o universo devia saber, em certo sentido, que estávamos chegando”.

[...] Ver o cenário da origem e da evolução da vida na Terra como uma sub-rotina menor num processo ontogenético inconcebivelmente amplo [3], por meio do qual o universo se prepara para a replicação, é diferente de pôr a humanidade no epicentro da criação. Longe de oferecer uma visão antropocêntrica do cosmos, a nova perspectiva relega a humanidade e sua provável descendência (biológica ou mecânica) a equivalentes funcionais das mitocôndrias – que antes eram bactérias de vida livre, cujos talentos especiais foram explorados no passado distante, quando foram ingeridas e depois forçadas a atuar como organelas no interior de células eucarióticas.

A essência da hipótese do Biocosmos Egoísta é que o universo que habitamos está no processo de ficar impregnado de vida cada vez mais inteligente – mas não necessariamente vida humana ou sua sucessora. Nessa teoria, a emergência da vida e da inteligência cada vez mais competente não é um acidente sem significado num cosmos hostil, em grande parte isento de vida, mas está no próprio âmago da vasta maquinaria da criação, da evolução cosmológica e da replicação cósmica.

[...] Ao avaliar o aparente milagre de um universo favorável a vida, devemos obviamente ficar céticos diante do pensamento ingenuamente otimista e das histórias “fantásticas”. Mas não devemos ser tão arredios às novas abordagens a ponto de deixar de saborear o espanto diante da capacidade quase miraculosa da ciência de penetrar mistérios que antes pareciam impenetráveis – o que foi perfeitamente captado pelo grande inovador britânico Michael Faraday ao repudiar o ceticismo a respeito de sua capacidade quase mágica de evocar o gênio da eletricidade introduzindo um imã numa bobina. Como disse Faraday: “Nada é maravilhoso demais para ser verdadeiro se for consistente com as leis da natureza [4]”.

Se a hipótese do Biocosmos Egoísta estiver correta, isso significa que não somos apenas a prole de poeira das estrelas, mas também os arquitetos de universos apinhados de estrelas que ainda virão. Isso significa que a física e a química prenunciam misteriosamente os detalhes da biologia de maneira muito específica e que a emergência a vida e da inteligência é um clímax previsível da impressionante, mas sem vida, sinfonia da natureza. Isso significa que, contra todas as expectativas, as leis impessoais da natureza forjaram de alguma forma – de maneira surpreendente e miraculosa – sua própria compreensão [5]. E, o que é ainda mais estranho, fizeram isso catalisando a evolução de um primata consciente num planeta obscuro que ousa sonhar que desvelará os segredos supremos de todo o universo.

***

[1] Eu particularmente não acho que o termo “egoísta” se enquadre bem dentro do conceito da teoria – até mesmo porque, como muitos biólogos hoje concordam, o altruísmo pode ser uma evolução das espécies –, mas como quem deu o título foi o autor, preferi mantê-lo assim mesmo.

[2] Ou seja, você não está enganado, essa teoria postula que todos nós somos literalmente “criadores de universos”, “universos em formação”, ou parte de uma inteligência que, quando plenamente evoluída, será capaz de gerar novos universos “bebês”. O curioso é que essa possibilidade teórica, que certamente soa como uma heresia para muitos espiritualistas – principalmente os mais ortodoxos –, para a cosmologia é tão somente uma possibilidade a ser considerada frente às evidências da natureza, como qualquer outra.
Certamente Gardner tem consciência de que tão cedo não poderemos saber se universos “bebês” podem mesmo ser criados ou não, mas é revigorante observar como o pensamento científico livre de dogmas pode operar quando aliado a nossa peculiar capacidade de imaginação.
Vale notar também que o autor da hipótese – cientista materialista – aposta numa evolução futura através da vida mecânica e da inteligência artificial... Mas, para quem compreende as possibilidades evolutivas da reencarnação através de todo o cosmos, é desnecessário recorrer às máquinas – nós mesmos já somos uma fornalha cósmica de potencialidades ainda insondáveis.

[3] A teoria de Gardner retira não somente o ser humano e o planeta Terra do centro do cosmos, mas postula que o próprio universo é apenas mais um universo dentre infinitos universos a “flutuar” num multiverso hipotético. Geralmente nossa cabeça entra em pane quando consideramos a imensidão de um universo, imagine se considerarmos infinitos universos em um cosmos infinito... Em todo caso, é tudo uma questão de escala, pois no fim o infinito é infinito – não faz sentido nos preocuparmos com suas dimensões.

[4] Ou, em outras palavras, o sobrenatural muitas vezes é apenas o natural ainda incompreendido pela ciência – embora em tantas outras seja apenas algo inexistente mesmo. Por isso é sempre válido utilizarmos o pensamento lógico e nos basearmos nas lições da natureza quando vamos avaliar áreas de conhecimento em que a ciência ainda não pode adentrar totalmente, ou não pode sequer começar a explicar seu mecanismo.

[5] Esse trecho me remeteu a célebre frase de Carl Sagan: “nós somos uma forma do cosmos conhecer a si mesmo”. De qualquer forma, é sempre curioso como os cientistas tem uma implicância com o termo “pessoal”. Muitas vezes, um ser pessoal pode ser classificado apenas como um ser consciente, ou um superintelecto consciente, que nada tem a ver com os deuses antropomórficos de inúmeras religiões... Talvez, todas elas tenham apreendido um pedacinho deste superintelecto, e onde não encontraram explicações para seus atributos, atribuíram-lhe características humanas.
Entretanto, afirmar que é a própria vida superevoluída do cosmos que tem o potencial de arquitetar e gerar novos universos “bebês” não resolve a questão primordial até mesmo óbvia: “e quem ou o que diabos arquitetou o multiverso?”

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Crédito da imagem: Roger Johnston

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9.9.10

Frases (3)

As vezes entro em breves frenesis de reflexão que geram muitos pensamentos e frases, principalmente ao retornar do cafézinho após o almoço. As vezes "capturo" algumas frases no meu twitter, achei que esse conjunto merecia um post específico:

"A filosofia é a verdadeira auto-ajuda. Só que o 'auto' não vem de 'automático' e sim de 'auto-conhecimento'. Ajudar a si mesmo, sem esperar uma 'ajuda automática', dá mais trabalho e vende menos livros... Mas no fim, é a única ajuda real."

"Somos seres que interpretam informações de acordo com nossa vontade, e não máquinas que computam informações de acordo com alguma programação."

"O casamento é uma espécie de contrato pra garantir o amor. Mas o amor não dá garantias. Eu não acredito em casamento, acredito antes em amor."

"A idade é uma espécie de código para se medir a vida. Mas a vida não tem medidas. Eu não acredito em idade, acredito antes na vida desmedida."

"A nação é uma espécie de linha para se demarcar regiões. Mas a terra não tem fronteiras. Eu não acredito em nação, acredito antes na terra."

"A alma é uma espécie de cordeiro vestido de lobo. Mas a alma não pode ser vestida. Eu não acredito em lobos, acredito antes na alma desnuda."

"Os deuses são uma espécie de massa de pão repartida em uma festa. Alguns comem apenas migalhas. Bem-aventurados os que veem Deus em migalhas..."

"Deus não é uma solução, é um problema. Quem acha que encontrou solução, criou problema. Quem tenta resolver, vive como se não existissem problemas." [1]

"There are a few words and relations I like on english language - that now and here joins for nowhere; that night rhymes with light; that sunday is the day of Lord Sun; that tough is so close to thought and trough; and finally that heart is so close to hearth!" [2]

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[1] Esta é inspirada em frase do amigo Abenides na comunidade Fé e Razão do Orkut.

[2] Não faria sentudo traduzir, pois a frase fala de relações entre palavras na língua inglesa.

Crédito da imagem: Helen King/Corbis

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E essa saudade

Que tua ida, querida
Não gere dor nem dissabor
Pois no mundo a maldade
Está apenas em quem ignora o amor

E essa saudade
Essa sacralidade da dor
Jamais será, minha querida
Fruto de tua ida

Pois o amor que nos abandonou
Por ora não nos deixou
Desamparados da vida

E essa saudade
Essa divina dor da lida
É tão somente o amor que ficou

raph’10

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Quem aqui leu a série "A ciência da inspiração" deve ter visto a explicação do olhar mecanicista da ciência sobre a criatividade literária (na parte 2). Pois é, quem ficar atento aos próximos posts talvez perceba que essa visão é bastante pertinente, muito embora não consiga abarcar todo o espectro da criação em si...

Crédito da imagem: Mr. Mogu

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6.9.10

Vinte contra um, parte 2

Continuando da parte 1

Quando falamos em crianças que se lembram de vidas passadas, reencarnação, assuntos “espirituais”, há muitos cientistas de baixa curiosidade e céticos de negação a priori que preferem ignorar o assunto totalmente. Para estes, praticamente não existe diálogo possível... A aposta no monismo já foi efetuada há tempos, e eles estão apenas esperando o resultado da roleta.

Mas felizmente tivemos cientistas e céticos que, mesmo considerando o monismo com carinho, não se absteram de analisar a lógica por detrás de estudos científicos como os de Ian Stevensson, talvez por serem seres de alta curiosidade. Em “O mundo assombrado pelos demônios” – para muitos a “bíblia” do ceticismo – Carl Sagan menciona os estudos de Ian como o tipo de pesquisa heterodoxa que mereceria uma atenção mais cuidadosa da comunidade científica: “crianças pequenas as vezes reportam detalhes de uma vida anterior, detalhes que quando analisados revelam-se precisos, e um conjunto de informações que não poderiam saber de nenhuma outra forma que não a reencarnação.”

Sagan, no entanto, explica que ele mesmo não crê na reencarnação. Apenas crê que a pesquisa de Ian era válida, era científica, e que por isso mesmo merecia uma análise mais cuidadosa... Talvez a reencarnação fosse apenas uma resposta simplista para um fenômeno que escapava ainda ao entendimento da ciência; Talvez a reencarnação existisse de fato, mas operasse através de um mecanismo totalmente desconhecido, inclusive dos espiritualistas que creem que ele opera de forma X ou Y; Talvez a explicação remetesse ao inconsciente coletivo de Jung ou aos memes de Dawkins, embora em todo caso essas teorias sejam tão ou mais místicas quanto à da reencarnação.

Retornemos então ao embate entre monismo e dualismo: será que as vinte evidências de Ian Stevensson colocam o caso de Phineas Cage em xeque? Ora, é claro que em todos esses casos, o que temos são um misto de evidências subjetivas e objetivas, mas em número de casos teríamos uma proporção de vinte para um... Ainda que tenhamos diversos outros casos clínicos de pessoas que sofreram uma alteração moral devido a danos ao cérebro – e decerto teremos muitos casos interessantes nos relatos dos livros do psicanalista Oliver Sacks –, sempre teremos também inúmeros outros casos de crianças que lembram vidas passadas a estudar, afinal elas nunca param de nascer! Some-se a isso os estudos de experiências de quase morte em que há relatos de experiência consciente enquanto o cérebro estava sem nenhuma atividade detectável por instrumentos, e temos aí uma longa discussão pela frente... Muito embora o dualismo pareça estar sempre em clara vantagem, essas estatísticas não serão de muita relevância para a maioria das pessoas que já possuem uma opinião ou uma aposta formalizada: dualismo ou monismo.

Por isso eu achei que seria interessante trazer alguns pontos em comum entre estas duas teorias:

Primeiro, tanto o monismo quanto o dualismo são teorias. Sim, teorias conceituais. Não há prova científica nem experimentação em laboratório que tenha comprovado que o cérebro seja a única origem do processo de consciência. Ainda que tudo o que exista seja matéria, e que não haja nada de imaterial na mente, ainda assim segundo a própria ciência, através da teoria da matéria escura, apenas cerca de 4% da matéria e energia do universo interagem com a luz e foram detectadas por nossos instrumentos “físicos” – ou seja, a mente pode ser material, mas formada por parte desses 96% de matéria e energia que nos são ainda profundamente desconhecidos.

O que nos leva ao segundo ponto. Ora, muito embora o monismo seja essencialmente a crença e que mente e cérebro são a mesma coisa, e que não possam existir em separado, no fundo todos sabem que o que os monistas não podem aceitar é que haja algo de puramente imaterial em nossa essência mais íntima. Ou, em outras palavras, praticamente todo monista é um materialista... Mesmo o polêmico físico Amit Goswami, com suas teorias que defendem um monismo reencarnaciosta (ver, por exemplo, “A física da alma”), não deixa de ser ele mesmo um materialista espiritualista.

Mas, e se os monistas ouvissem de alguns dos espiritualistas (existem vários tipos, acreditem) que o espírito também é formado de matéria? Será que a partir de então o dualismo não será para eles uma possibilidade, no mínimo, plausível?

Vejamos a pergunta #82 do Livro dos Espíritos de Allan Kardec: “É certo dizer que os espíritos são imateriais?” – Para surpresa de muitos, os próprios espíritos que ditavam as respostas para as jovens médiuns que auxiliavam o cientista francês trouxeram a seguinte resposta: “Imaterial não é o termo apropriado; incorpóreo, seria mais exato; pois deves compreender que, sendo uma criação, o espírito deve ser alguma coisa. É uma matéria quintessenciada, para a qual não dispondes de analogias, e tão eterizada que não pode ser percebida pelos vossos sentidos.”

Ou seja, embora seja uma resposta a favor do dualismo (o espírito é incorpóreo e portanto pode viver fora do corpo), é da mesma forma uma resposta a favor do materialismo. Se a tal matéria eterizada não soa bem aos ouvidos dos cientistas atuais, talvez soasse melhor se falassem em matéria escura, não detectada, fluida, etc. Ocorre que no século 19 o termo “matéria escura” ainda não havia sido cunhado...

O que isso tudo quer dizer? Acredito que, primordialmente, que devemos estudar todos os ramos de conhecimento humano, e todas as teorias – sejam científicas, espiritualistas ou filosóficas – antes de bradarmos convictos que “apenas a nossa aposta é a correta”... Até mesmo porque objetivamente, tanto o monismo quanto o dualismo, tanto o materialismo quanto o espiritualismo, não passam de apostas. Tudo o que temos de concreto é a companhia uns dos outros. Que não tornemos a vida de cada um mais sofrida com discussões inúteis onde cada um já traz suas opiniões e apostas formalizadas a priori, mas que aproveitemos essa divina diversidade de seres e ideias para que, ainda que em meio à dúvida, possamos construir uma sociedade onde os seres apenas dialogam sobre ideias, e não tem nenhuma boa razão para se exterminar por conta de opiniões contrárias e apostas no preto ou no vermelho. A roleta ainda está a girar!

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Crédito da foto: Renata Nunes

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2.9.10

O poeta alienígena

Era um poeta alienígena, pois que
Fora chamado ao planeta sem aviso
Para comprar uma dessas máscaras
Que escondem a alma
E então, assim, na base do improviso
Foi tentando manter a calma

Mas, a verdade é que foi massacrado
Por assim se atrever
A andar desnudo, com o coração a mostra
Gotejando sangue pelo chão
Com o portão d’alma escancarado
A revelar toda emoção do ser

Era um poeta alienígena, pois que
Havia muito tempo que não sabia mais diferenciar
A esquerda da direita
E o herói do enganador...
Para ele sábio era somente quem conseguia julgar
Estranho, apenas o que era estranho
Amor, apenas o que causava dor
Dor, apenas o que afastava-nos do amor

Um dia, a caminhar pela praia do mundo
Catou um pequenino grão de areia
E, segurando-o na ponta dos dedos
Apontou-o para a noite em sua escuridão
E um pensamento irradiou d’alma lá no fundo:
Quantas e quantas estrelas
Quantas e quantas galáxias
E mundos, e alienígenas, e poetas
Apenas neste grãozinho de céu!

Era um poeta alienígena
Alienígena de quase tudo...
Menos daquele pequeno grão
Menos da própria alma, desmascarada
Com seu espelho
A refletir a imensidão

raph’10

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Crédito da imagem: Ben Heine

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1.9.10

Vinte contra um, parte 1

O filósofo francês René Descartes é considerado o fundador do dualismo moderno. Para ele, o mundo material estaria separado do campo da mente, que abrange os pensamentos, as emoções, o prazer e a dor. Se as coisas da “mente” não têm tamanho, forma nem movimento, elas podem interagir com o mundo material, de forma que os pensamentos são capazes de causar ações, e os estímulos materiais, pensamentos. Segundo Descartes, essa interação ocorreria na glândula pineal, um pequeno núcleo cerebral que, à época, não se acreditava ter outra função.

Os monistas aparentemente representam o extremo oposto do dualismo cartesiano. Segundo o monismo, a consciência é parte do universo material, sendo idêntica à atividade cerebral relacionada a ela. Desenvolveu-se quando se aperfeiçoaram os mecanismos cognitivos, mas apenas como resultado destes, e não por qualquer outro propósito... Enquanto os dualistas creem que o cérebro nada mais é do que um rádio capaz de sintonizar a mente através da glândula pineal (ou através do cérebro como um todo), os monistas confiam em outra aposta: a de que é o rádio que gera as suas próprias ondas.

Segundo o filósofo americano John Searle, a consciência poderia ser imaginada como um “quarto chinês”: neste quarto estariam armazenados todos os dicionários e regras de gramática associados ao idioma chinês. Dentro dele haveria um homem capaz de traduzir e responder às questões escritas em chinês manipulando esses recursos, apesar de não saber falar uma única palavra nessa língua. Então, alguém que enviasse a frase “Como está o dia hoje para você?” poderia receber a resposta “Horrível!”, no mesmo idioma. Visto de fora, poderia parecer que o homem no interior “entendeu” a questão, mas Searle argumenta que esse comportamento não é suficiente para a compreensão. Da mesma forma, um computador nunca poderia ser descrito como “tendo uma mente” ou “compreendendo”. Outros filósofos argumentam que a compreensão consciente seja tão somente o processo de “se comportar como se entendesse”.

Se o homem do “quarto chinês” fosse tão somente um autômato cerebral capaz de levar e trazer mensagens, talvez o dualismo de Descartes faça todo o sentido afinal: o que quer que interprete as informações enviadas por nossos sentidos, e as envie de volta através de respostas complexas e emocionais, este sim seria o pianista da consciência. A consciência não geraria a si mesma, mas antes seria o som das teclas de quem dedilha o piano cerebral com maior ou menor desenvoltura... De fato, apesar da ciência moderna estar se intrometendo cada vez mais em nosso cérebro, o “gerador dos pensamentos” ainda não foi localizado em parte alguma. Vemos, sem dúvida, um baile frenético de eletricidade dentre bilhões de neurônios, e às vezes conseguimos associar um fluxo elétrico a uma resposta consciente, mas não quer dizer que saibamos de onde se originou efetivamente a resposta – principalmente quando ela tange questões morais e complexas.

Por isso esta questão é chamada de “o problema difícil da consciência”. Compreender as respostas reflexivas, ou comandos motores, etc., isso é até mesmo trivial quando comparado às respostas que envolvem uma interpretação da personalidade, uma resposta moral... Ainda assim, os críticos do dualismo cartesiano encontraram um caso estranho, ocorrido há muito tempo atrás, mas que possuí boa base de relatos de testemunhas, e com ele (e praticamente apenas ele) criaram uma teoria que postula que nossa moral, afinal, é apenas fruto do agitar de partículas em nosso lóbulo frontal.

Em “O erro de Descartes”, por exemplo, o cientistas português António Damásio vale-se especificamente deste caso para sustentar sua crítica ao dualismo... No ano de 1848, Phineas Cage, respeitado trabalhador de uma companhia ferroviária americana, teve a parte frontal do cérebro perfurada por uma barra de ferro, que usava para comprimir pó explosivo. Ele sobreviveu, com poucos danos à maioria de suas faculdades. Entretanto, houve drástica mudança de comportamento. De homem educado, responsável e respeitador, tornou-se perigoso, rude e socialmente irresponsável. Os mais próximos (testemunhas do caso) notaram que ele “não era mais o Cage”. A mudança devia-se, segundo os médicos, aos danos cerebrais. Reconstruções modernas (toda a gama de gráficos 3D que possam imaginar) demonstram que o ferimento afetou o lóbulo frontal – associado à sensibilidade moral.

Você deve estar imaginando que, ainda que o lóbulo frontal seja o responsável por nossas respostas morais, se a consciência for um “quarto chinês”, é bem possível que apenas o tradutor interno tenha sido prejudicado, e que isso nada teria a ver com a mente. Ou seja, o rádio estaria avariado, captando as ondas de forma errônea... Claro que essa discussão seria infindável. Não seria o “quarto chinês” argumento suficiente para encarar os defensores do monismo que se baseiam nesse acidente de 1848 como principal evidência. Seria preciso uma evidência tão forte quanto a favor do dualismo...

Em 1974, o bioquímico e psiquiatra canadense Ian Stevenson nos trouxe 20 evidências. Todas consideradas as evidências mais fortes dos milhares de casos estudados em diversos continentes nas décadas anteriores. Ian estudava crianças, mais precisamente as que afirmavam se lembrar de vidas passadas. Seu livro lançado naquele ano se chamava “20 casos sugestivos de reencarnação”.

Ora, não eram casos de evidência baixa: desde crianças que se lembravam de nomes de parentes e até do endereço de suas casas em vidas passadas, até crianças que relatavam terem tido mortes violentas na última encarnação, e traziam marcas de nascença exatamente onde os ferimentos letais os levaram a morte na última vida. Tudo registrado e, principalmente, estudado, de forma genuinamente científica... Se uma criança se lembra de uma vida passada, é necessário considerar que a informação registrada no cérebro de sua última vida foi transmitida, de alguma forma estranha, para um outro cérebro, um novo cérebro. Quando falamos nisso, estamos aparentemente dando um xeque-mate no monismo.

Na continuação, o que Carl Sagan tinha a dizer sobre o assunto, e os possíveis pontos de encontro entre o monismo e o dualismo.

***

Crédito da foto: Ryan Southen (um quarto chinês)

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