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31.1.14

O ornitólogo confuso

O ponto de partida para a compreensão da filosofia de Arthur Schopenhauer é o conceito de representação.

Representação, em sua obra, é a atividade fisiológica que ocorre no cérebro de um ser humano (ou outro animal) ao fim da qual temos a formulação de uma imagem percebida pelo sujeito. A representação é uma tradução que nossos sentidos fazem a partir de informações advindas do “mundo exterior” – portanto, o mundo que percebemos se trata de uma construção mental.

Até aqui nem mesmo os materialistas eliminativos discordariam dele, pois, mesmo crendo que “a subjetividade é uma mera ilusão cerebral”, ainda assim devem crer que esta “ilusão” também faz parte de uma construção mental (embora no caso deles o termo “construção mental” queira dizer, sempre, “construção cerebral”).

Em sua obra prima, O mundo como vontade e representação, o filósofo alemão inicia seu argumento contra o materialismo eliminativo com um elogio aparente a filosofia objetiva, que “parte do objeto (no mundo exterior)” para “compreender o todo”:

A filosofia objetiva, quando se apresenta sob a forma do materialismo puro, é aquela cujo desenvolvimento pode ser mais completo. Este sistema coloca antes de tudo a existência absoluta da matéria, e por consequência a do espaço de do tempo, suprimindo assim a relação da matéria com o sujeito, relação essa da qual, não obstante, a matéria tira sua única realidade.

Depois, apoiado na lei da causalidade, que toma por uma ordem de coisas em si, prossegue a sua marcha, saltando sobre o entendimento, no qual e pelo qual apenas a causalidade existe. Feito isso, procura descobrir um estado primitivo e elementar da matéria de onde possa tirar, através de um desenvolvimento progressivo, todos os outros estados, desde as propriedades mecânicas e químicas até a polaridade, a vida vegetativa e por fim a animalidade. [...] O último elo da cadeia será a sensibilidade animal, ou o conhecimento, que aparecerá assim como uma simples modificação da matéria, produzida em consequência da causalidade.
[1]

Mas a esta aparente exaltação da capacidade da filosofia objetiva “explicar a tudo”, se segue um choque de realidade profundamente filosófico:

Admitamos que pudéssemos seguir até o fim e com o testemunho das representações intuitivas da explicação materialista; uma vez chegados ao topo, seríamos subitamente tomados desse riso inextinguível dos deuses do Olimpo, quando, despertando de um sonho, fizéssemos, de repente, essa descoberta inesperada: que o último resultado tão penosamente adquirido, o conhecimento, estava já implicitamente contido no dado primeiro do sistema, a simples matéria; assim, quando, como no materialismo, nos imaginávamos a pensar a matéria, o que pensávamos na realidade era o sujeito que a representa para si, o olho que a percebe, a mão que a toca, o espírito que a conhece. [1]

Parece um problema e tanto a ser resolvido pela filosofia objetiva!

Não é a toa que os materialistas eliminativos pretendem, como o nome já indica, “eliminar o sujeito”. Não é a toa que eles tendem a ver a vida humana e um “futuro computador com capacidade de processamento suficiente” como uma mesma coisa, uma “coisa que somente computa informações”, pois que toda a interpretação é e sempre foi mera ilusão. Parece uma via radical demais a ser seguida, mas há declarações como esta, do arqueólogo Peter Watson, que indicam que realmente existem aqueles que a seguem a risca:

As ciências sociais, psicológicas e cognitivas permanecem enlatadas em palavras e conceitos pré-científicos. Para muitos de nós, a palavra “alma” é tão obsoleta quanto “flogístico”, mas os cientistas ainda usam palavras imprecisas como “consciência”, “personalidade” e “ego”, para não falar em “mente”. Talvez seja hora de, pelo menos na ciência, remodelar “imaginação” e “introspecção”, ou, de preferência, retirá-las. Os artistas ainda podem divertir-se com esses conceitos, mas os assuntos mundiais sérios já seguiram em frente. [2]

Faz sentido eliminarmos o termo “imaginação” de um dicionário materialista, mas o mero fato do termo haver sido eliminado significa, por si só, que a capacidade humana de imaginar também deixou de existir? Pois bem, é mais ou menos por esta via que Schopenhauer prossegue em seu argumento:

Ora, esta suposta realidade objetiva é um dado puramente indireto e condicionado; ela tem apenas uma existência completamente relativa: a coisa [o objeto], com efeito, deve passar primeiro pelo mecanismo do cérebro e ser transmitida por ele, entrar em seguida nas formas do entendimento – tempo, espaço, causalidade – antes de aparecer, graças a esta última elaboração, como extensa no espaço e ativa no tempo.

[...] A esta afirmação, de que o pensamento é uma modificação da matéria, será sempre permitido opor a afirmação contrária: de que a matéria é um simples modo do sujeito pensante. Em outras palavras, uma pura representação. [1]

Assim podemos representar esta busca pela explicação definitiva do mundo que parte da matéria, do objeto externo, com uma alegoria:

Havia um ornitólogo, isto é, um biólogo que estuda espécies de pássaros, que ouviu falar de uma ave muito rara, de uma beleza tão impactante que muitos que a comtemplaram mal a souberam descrever em palavras. Como cético em relação a meros boatos, porém extremamente curioso em relação à Natureza, o ornitólogo decidiu sair numa busca para descobrir se, afinal, tal ave existia realmente.

Colocou seu longo chapéu de caçador, buscou sua maleta cheia de apetrechos científicos, vestiu suas galochas e seguiu em sua jornada investigativa. Por dias, meses, anos, encontrou apenas restos de ninhos abandonados, pegadas suspeitas e boatos, muitos boatos!

Porém, quando estava quase desistindo e dada por encerrada a busca, achou no quintal de sua casa uma pena de ave longa, quase perfeitamente simétrica, de cores indescritíveis, algo que nunca havia visto antes... Pensou, “Só pode ser ela, a ave rara! Será que era ela quem estava me observando todo este tempo?”.

E foi então que, assim tão confuso, o ornitólogo entrou em casa e viu, pelo reflexo fugidio do espelho em seu escritório, uma ave que reduzia a beleza de todos os demais animais a uma nota de rodapé. E, assim que eles se encararam, face a face, por um momento tão breve quanto eterno, ela voou pela janela e desapareceu.

Neste momento o ornitólogo compreendeu que o que ele buscava estava, todo o tempo, bem ao seu lado. E dali em diante ele passou a pesquisar aves ainda mais raras, desta vez no único campo onde todas elas existem sempre lá dentro...

***

[1] Trechos das págs. 34 a 36 de O mundo como vontade e representação (Ed. Contraponto), na tradução de M. F. Sá Correia.

[2] Peter Watson: Not Written in Stone, New Scientist, 29/08/2005.

» Leia também: A singularidade filosófica

Foto encontrada em : Google Image Search (Arthur Schopenhauer)

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29.1.14

A iniciação de Avicena

Texto de Rosalie Helena de Souza Pereira em "Avicena – A Viagem da Alma” (Ed. Perspectiva) – trechos das págs. 321 a 330. As notas ao final são minhas.


Hayy ibn Yaqzân, ou Epístola do Vivente filho do Vigiante, faz parte do ciclo “visionário” de Avicena [1], o que significa tratar-se de um texto sobre a sua própria iniciação [espiritual].

A iniciação remete ao tempo presente do iniciado. Como vimos [2], o processo envolve a conquista de um mundo vivenciado no interior da própria alma. Não se trata de um mundo no qual a alma é jogada porque adquiriu consciência. Segundo Henry Corbin [3], há uma inversão do sentido de interioridade: o cosmos passa a viver no interior da consciência, ou melhor, ao integrar um mundo e fazê-lo seu, a consciência sai de si mesma para fazer o mundo entrar em si [4].

[...] Assim, o “Oriente” [5] vive no relato aviceniano, pois é uma experiência da alma do próprio Avicena que conhece a si própria e com isso pode conhecer o anjo [6]. O relato expõe a vivência do processo de tomada de consciência mediante a aquisição de conhecimento, que, na língua árabe, se diz ta’wil e significa, nas palavras de Corbin, “fazer retornar a, reconduzir, reenviar à origem e ao lugar onde se entra e, por conseguinte, retornar ao sentido verdadeiro e primitivo de um texto”. O ta’wil opõe-se ao tanzil, que “designa a religião positiva, a letra da Revelação ditada por um anjo ao profeta. Ta’wil é fazer descer essa revelação do mundo superior”. [...] A iniciação é o ensinamento da orientação necessária e fundamental para o conhecimento do anjo e para a reconquista do mundo superior [7].

[...] O edifício cósmico é descrito para denunciar ao ser humano seu cativeiro e nele fazer despertar a consciência de sua origem. A esplêndida cúpula, o limite cósmico, nada mais é do que uma prisão da qual é preciso escapar, pois seu peso gera um sentimento que domina todo gnóstico: a angústia de ser um estrangeiro.

O limite das esferas não é experimentado como algo longínquo a ser apreendido, do interior para o exterior. Ao contrário, o obstáculo a ser superado é do exterior para o interior. Despertada na sua consciência a angústia de ser um estrangeiro, um exilado, o gnóstico descobre onde está e simultaneamente intui de onde veio e para onde retornará. A ideia de retorno pressupõe a preexistência na pátria de origem e apresenta duas implicações: um sentimento de parentesco com a divindade, com os seres celestiais, com as formas de luz e de beleza que, para o gnóstico, formam sua família; nostálgica, a alma sente-se perdida, deslocada, desorientada, entre regras de um mundo que lhe é hostil e estranho [8].

Afirma-se o sentimento de sua condição de estrangeira, e a consciência de seu parentesco celeste torna insuportável sua existência no mundo terrestre, conduzido por normas comuns [9]. A alma sabe-se pertencente à ordem cósmica e única, e almeja encontrar a via de retorno ao núcleo primordial.

[...] O que Hayy ibn Yaqzân relata é a iniciação ao conhecimento, à gnose, em sentido amplo. Avicena, possuidor de um vasto conhecimento filosófico herdado dos gregos [10], ao qual se somaram as crenças e as tradições iranianas, procurou, nesses textos “visionários”, realizar a síntese que caracterizou a Idade Média: da fé com a razão. O universo medieval não era regido por noções “racionalistas” que iriam mais tarde caracterizar o mundo moderno; o numinoso ocupava nele um lugar de destaque, permeava as vidas dos seres humanos, fazia parte de seu cotidiano, de sua visão de mundo. Como vimos, o próprio Avicena era profundamente religioso: algumas passagens de seus escritos afirmam que recorria a Deus sempre que não encontrava respostas às suas indagações, e alguns de seus opúsculos ocupam-se plenamente da religião corânica.

[...] No mundo antigo e medieval, as tradições [espirituais] estão presentes no cotidiano. Cada indivíduo almeja sua própria salvação, devendo o aspirante preparar-se para a sua busca visionária pessoal. Esta tem início com a purificação dos resquícios da matéria no corpo, em outras palavras, dos vícios e das paixões. Já purificado, o discípulo passa a trabalhar para ascender aos domínios celestes e ver a Deus [11]. A visão do divino é a experiência transformadora que servirá para imortalizá-lo, sem a qual a sua vida não tem sentido [12].

A experiência está associada ao autoconhecimento, este desafiando os séculos desde o oráculo de Delfos com a máxima GNÔTHI SAUTÓN – Conhece-te a ti mesmo. Conhecida a sua parte divina, reconhecida a nulidade do corpo e do mundo material, o iniciado transpõe sua própria mortalidade e passa a participar da eternidade divina. A posse desse conhecimento assegura ao gnóstico a passagem de sua condição humana ao domínio divino.

A participação na natureza divina é uma experiência no presente e não uma escatologia futura. O homem pode, assim, tornar-se divino ainda em vida: sua experiência, transformadora e deificadora, é presentificada. Quando vê a Luz, sua própria imagem refletida no divino, o Oriente torna-se visível; no conhecimento de seu verdadeiro si como divino, abrem-se as portas do Reino e ele garante a sua participação na divindade eterna.

***

[1] Avicena ou Ibn Sina (c.980 – 1037) foi um grande pensador da Pérsia que escreveu tratados sobre diversos assuntos, dos quais aproximadamente 240 chegaram aos nossos dias. Em particular, 150 destes tratados se concentram em filosofia e 40 em medicina. Suas obras mais famosas são o Livro da Cura, uma vasta enciclopédia filosófica e científica, e o Cânone da Medicina, que era o texto padrão para o ensino da medicina em muitas universidades medievais. Suas demais obras incluem ainda escritos sobre filosofia, astronomia, alquimia, geografia, psicologia, teologia islâmica, lógica, matemática, física, além de poesia.

[2] No livro onde Rosalie nos traz a sua tradução de Hayy ibn Yaqzân, há ainda uma extensa introdução que abrange um resumo da vida e da obra de Avicena, com foco no gnosticismo e no hermetismo presentes em alguns dos seus tratados filosóficos e iniciáticos. O trecho que trouxe aqui faz parte do final do livro.

[3] Henry Corbin (1903 – 1978) foi um filósofo, teólogo e professor de Estudos Islâmicos da Universidade de Sorbonne em Paris, França.

[4] Há muita coisa profunda sendo dita aqui, mas penso que podemos resumir a iniciação em dois tópicos: (a) O ego “se deixa morrer” (a consciência sai de si mesma) para permitir que o Eu, o próprio cosmos, habite em seu lugar; (b) Não há um Paraíso erguido nalgum canto do universo para onde a alma é levada, mas, pelo contrário, é a própria alma quem alcança ou, talvez fosse melhor dizer, constrói este Paraíso dentro de si mesma (o cosmos passa a viver no interior da consciência).

[5] No contexto da gnose aviceniana, o termo “Oriente” se refere ao destino da alma que busca a iniciação (enquanto o termo “Ocidente” se refere ao mundo “dos que ainda não despertaram”).

[6] Ou “o Eu”. Embora muitos ocultistas o chamem de S.A.G. (o Sagrado Anjo Guardião).

[7] Tal processo se reproduz em todas as práticas religiosas da história humana. Ora, enquanto há muitos que esperam passivamente pela Revelação ditada, há outros que, quem sabe, por já conseguirem interpretar esta Revelação dentro de suas próprias almas, se arremessam ativamente ao Caminho, isto é: mergulham em si mesmos, e já não precisam mais de sacerdotes lhes ditando profecias. No entanto, há que se considerar que os dois estágios são necessários: não haveria o mergulho sem que antes houvesse um manual de natação. E quem mergulha sem haver conhecido o manual, corre o risco de se afogar ainda na beira da praia.

[8] Os deuses e outros seres celestiais certamente existem no interior da mente, da alma humana. Mais cedo ou mais tarde todo místico genuíno cessa com as interpretações literais, com as tentativas vãs de transformar chumbo de fora em ouro de fora, e passa a compreender; e em compreendendo, buscará dali em diante transformar o chumbo de dentro em ouro de dentro. Esta é a divina alquimia dos místicos: é em seu interior que mergulham e encontram o Paraíso. E este Paraíso nada mais é do que o mesmo mundo em que sempre viveram como estrangeiros, só que agora interpretado da maneira certa, com a alma. Agora, vivenciado de olhos bem abertos, e não mais na sonolência de outrora.

[9] Novamente, não custa lembrar: não se trata de dois mundos fisicamente diversos, mas de um mesmo mundo físico, interpretado de maneiras diversas. Num se vive, sobretudo, sem sentido e sem Amor; noutro, pelo contrário, tudo é preenchido por sentido, e o Amor arde sem queimar, gerando cada vez mais de si mesmo, ad infinitum.

[10] Sem os árabes, a cultura grega provavelmente jamais teria sobrevivido a “Era das Trevas” na Europa, quando a maior parte dos textos “não cristãos” foi perdida. O que nos restou foi o que alguns filósofos e colecionadores conseguiram salvar e levar para a Arábia e o Egito.

[11] E, pela última vez: os “domínios celestes” estão dentro, e não fora, de nós mesmos.

[12] Talvez um dia descubram que ser imortal não é “viver para sempre”, mas antes alcançar a Eternidade deste momento. Na Eternidade, tudo é preenchido de sentido. Fora dela, nada faz realmente muito sentido.

Crédito das imagens: Steven DaLuz

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19.1.14

Esperando Jesus, parte 2

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

« continuando da parte 1

É claro que eu me recusei a participar dos “turnos” da vigília pela madrugada. Se eu bem compreendi na época, muitos dos jovens que participavam das vigílias nos retiros consideravam, não se sabe se simbolicamente ou literalmente, que Jesus poderia aparecer a eles, seja às 3h ou 4h da matina, e dizer algo como:

“Oi, fico feliz que tenham me aguardado, eu finalmente retornei ao mundo!”

O que me pareceu puro absurdo naquela época, entretanto, foi melhor compreendido quando cheguei a conhecer, muitos anos depois, a entrevista de Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos de mitologia do século passado, para Bill Moyers. Esta célebre entrevista rendeu um livro e também uma série de vídeos, dentre os quais retirei a passagem abaixo, que trago aqui como forma de ilustrar melhor o que eu quero dizer:

Queremos pensar em Deus. Deus é um pensamento. Deus é uma ideia. Mas a sua referência é algo que transcende o pensamento. Ele existe além da existência... Além da categoria de ser ou não ser. Ele existe ou não? Nem existe, nem não existe. Qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros nesse sentido... Assim como uma metáfora do mistério humano e cósmico.

Quem pensa que sabe, não sabe. Quem sabe que não sabe, este sim, sabe. Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você. Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?

Na sua mais profunda identidade, você é Deus. Você é um com o ser transcendental.

Portanto, embora muitos dos jovens naquele retiro talvez acreditassem realmente que Jesus poderia chegar na capela durante a madrugada, literalmente em carne e osso, ainda assim esta crença não merece ser alvo do deboche costumeiro dos descrentes (incluindo a mim mesmo, na época).

Pois que, se pensarmos no Cristo como uma metáfora para o nosso eu angélico, que anseia por domesticar seu lado animal (não acho que a crucificação seja necessária, mas enfim) e renascer como um ser mais humano, que deixou de olhar para o pântano dos desejos desenfreados, e agora mira na senda do Paraíso (com ou sem piscinas), então temos que esperar pelo Cristo nas madrugadas é não somente um ritual belíssimo, como potencialmente transformador. Muito mais profundo do que apenas confessar pecados e repetir orações decoradas...

E, se anteriormente tais jovens viviam de crenças literais, não importa tanto assim, pois o importante é a experiência. Da teoria eles podem ler e compreender melhor depois, mas a experiência religiosa é o que conta, e isto eles já estavam tendo desde cedo – neste sentido posso compreender perfeitamente como a prática dos rituais católicos também ajuda a moldar uma alma mais aberta para a luz do Alto, e mais predisposta a ser incendiada pelo Amor. Não vejo porque se ter vergonha de haver participado deste tipo de ritual (embora certamente na época eu pensasse de outra forma).

Na manhã do outro dia fui “carinhosamente” levantado da cama pelas canções religiosas. Eram três jovens percorrendo todos os quartos e acordando todo mundo. Dois deles dedilhavam seus violões, enquanto outra cantava, felizmente, até com bastante afinação. Nem me lembro da hora que acordei – uma das características interessantes desses retiros espirituais é que facilmente perdemos a noção da hora (e, naquela época, vale lembrar, ninguém tinha celular).

Eram canções que se estendiam pelo café da manhã, almoço, e até o início da última tarde de orações na igrejinha. Ainda me lembro de alguns refrãos até hoje...

Eis que faço novas todas as coisas,
Que faço novas todas as coisas,
Que faço novas todas as coisas! [1]

Voa Jesus pequeno pássaro,
Vamos cantar seu louvor,
Aleluia, aleluia, aleluia! [2]

Embora eu tivesse estranhado a proibição de usar a piscina, a estranha obsessão com pecados, e até mesmo o conselho de se tomar banho de água fria para “evitar a vontade da masturbação” [3], foi durante toda aquela cantoria, divina cantoria, que pude compreender um pouco melhor toda a alegria que brota da experiência religiosa genuína.

Eu certamente não entraria para algum grupo católico e dificilmente tão cedo iria participar de outro retiro daquele tipo (e até hoje não participei), mas isto não significa que eu não houvesse compreendido, de alguma forma, o porquê daqueles jovens haverem escolhido aquela doutrina e aquelas práticas religiosas – havia, certamente, uma grande alma em toda aquela música cantada em voz de dentro; e como disse um poeta, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Mas isto não foi tudo. Talvez todo este relato nem merecesse estar aqui se não fosse pelo que presenciei nas orações da última tarde. Ao contrário da tarde anterior, quando houve muitas palestras, esta foi inteiramente dedicada ao ritual e as orações. Eu certamente mal me lembro dos rituais hoje em dia, mas há algo que dificilmente esquecerei: as católicas (sim, porque acredito que eram todas mulheres) que oravam e oravam e oravam, intensamente, até entrarem nalguma espécie de transe e simplesmente desabarem no chão!

Eu vi meninas chaparem, literalmente, a cabeça no chão, após um momento de transe intenso, e serem deixadas ali, deitadas, até que acordassem por conta própria logo depois...

Como observei bem que nenhuma delas se machucou com gravidade, embora certamente fosse o caso de haver pelo menos um certo derramamento de sangue, depois fui perguntar a uma amiga da minha prima sobre como nenhuma delas se machucou. Ela respondeu apenas que:

A gente não se machuca não. O Espírito Santo segura a gente e nos protege”.

Bem, eu certamente não vi o Espírito Santo amortecer a queda de nenhuma delas, mas certamente foi impressionante ouvir todos aqueles estrondos no piso de madeira da igrejinha e depois não ver nem uma gota de sangue no chão.

De resto, findara a tarde e todos retornamos para o Rio no mesmo ônibus com o qual chegamos em Secretário. Felizmente não fez tanto calor naquele final de tarde, e eu até consegui voltar sentado ao lado de uma das amigas da minha prima em quem eu estava de olho...

Mas não rolou nada, eu era muito tímido, e em todo caso nunca gostei muito de banho de água fria.

***

[1] Refrão da letra de Paulo Roberto. Talvez lhe interesse ouvir para ter uma ideia do tipo de experiência que vivenciamos por lá:

[2] Trecho da música do grupo Canção Nova (com pequenas alterações).

[3] Conselho este que eu nunca segui (independente da masturbação), a não ser quando o chuveiro elétrico pifou, ou durante os apagões.

***

Crédito da foto: Rádio Catedral

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17.1.14

Esperando Jesus, parte 1

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

Após algumas horas num ônibus sem ar condicionado, enfrentando o trânsito usual da saída do Rio de Janeiro para a região serrana, a visão daquela enorme piscina com água azul a refletir o sol de quase meio-dia era a imagem do Paraíso naquele exato momento.

Isto foi há cerca de 20 anos, em 1994, quando eu ainda era um adolescente viajando a convite de minha prima católica com o seu grupo da Igreja. Era um retiro católico formado na maior parte por jovens da Zona Sul carioca. Teoricamente não havia perigo algum, e seria uma excelente oportunidade para conhecer mais do catolicismo. Mesmo assim, houve quem dissesse, na minha família, para “ter cuidado com a lavagem cerebral”...

Eu nunca tive educação religiosa, e mesmo assim sempre me interessei muito por religião. Mas é preciso deixar claro que religião não é o mesmo que igreja: religação a Deus é uma coisa bem distinta de “uma comunidade dos eleitos de Deus”. Eu não buscava nenhuma “salvação”, desta forma, tampouco algum “céu prometido”; queria apenas conhecer a Deus, e a melhor forma sempre me pareceu ser a via da contemplação e da observação de todos aqueles que já estavam aqui antes de mim a buscá-lo – afinal, alguém deve ter achado algum atalho que eu ainda não conhecia.

Mas o atalho para o mergulho naquela piscina me foi barrado. Quando perguntei a uma amiga da minha prima se a gente podia colocar roupa de banho para mergulhar ainda antes do almoço, ela respondeu assim:

“Está doido? Isto aqui é um retiro espiritual; aqui ninguém pode ficar com pouca roupa, e daí ninguém pode mergulhar!”

Eu então pensei comigo mesmo, “Tudo bem, tudo bem, só vamos ficar aqui de hoje para amanhã, não pode ser tão ruim assim”...

Após o almoço simples, mas bastante saboroso, houve uma reunião na pequena igrejinha. Ao todo, o sítio em Secretário, cidadezinha próxima de Itaipava, no meio do caminho entre o Rio e Juiz de Fora, devia contar com cerca de 50 a 60 jovens católicos em retiro (além de mim), e uns 5 a 10 padres e/ou coordenadores. Alguns destes últimos também eram palestrantes, e usaram algumas horas daquele início de tarde para falar sobre passagens da Bíblia, a vida de Jesus, o amor, a fé, etc. – enfim, nenhuma novidade até ali.

Quando as palestras encerraram, entretanto, ocorreu algo curioso: os jovens se reuniram em pequenos grupos de 5 ou 6 pessoas e começaram a conversar entre si sobre a vida de cada um. Isto eu achei bem interessante, pois como era muito tímido, me dava uma oportunidade de “quebrar o gelo” com aquele pessoal na maioria desconhecido até então.

O problema foi quando apareceu um dos padres no nosso grupo, e começou a perguntar sobre “o problema de cada um”. O que se seguiu foi uma espécie de terapia em grupo, onde cada um falava sobre suas inseguranças e angústias, etc. Foi quando finalmente chegou a minha vez:

“Mas, seu padre, eu não tenho problema nenhum, ou pelo menos não me lembro de nenhum em especial para falar agora”.

“Tem certeza, meu filho?” – respondeu o padre com um olhar inquisitivo – “Você não sabe que todos somos pecadores? Confesse-nos um dos seus pecados; confie em mim, vai ser melhor resolver isso logo, e com as bênçãos de Deus!”

Mas a minha prima não me disse de nada daquilo, eu não estava preparado para aquela espécie de terapia – na verdade praticamente um confessionário. Eu nunca havia ido à igreja alguma me confessar e sinceramente não prestava atenção especial a nenhum dos meus pecados...

Assim, como insisti em não me “confessar”, passei a ser malvisto pelo padre e pelos outros jovens do grupo. Achei aquilo tudo péssimo, pois como era bem tímido na época, já começava a imaginar os comentários que se seguiriam, “Sabe o Rafael, primo da Alessandra [1]? Pois é, veio até aqui e não teve coragem de se confessar!”

Muito tempo depois, relembrando o ocorrido, refleti sobre como o ato de confessar, e a certa obsessão com os pecados, é parte tão importante do dia a dia espiritual da maioria dos católicos (eu quero dizer, católicos praticantes). Nunca me pareceu lógica, filosófica ou espiritualmente, a ideia de que Jesus veio a Terra para pagar por nossos pecados na cruz. Ainda que fizesse sentido que alguém pudesse redimir os pecados de outro alguém (e eu não acho que faz sentido algum), o que seria dos novos pecados? Ou será que Jesus teria de retornar a Terra, de tempos em tempos, para ser novamente crucificado e nos redimir? A ideia sempre me pareceu estranha, realmente estranha!

Mas me agradava a ideia de que poderíamos nos redimir de nosso pecados nos confessando. Na verdade a origem etimológica da palavra “pecado” vem de um conceito de “errar o alvo”. E, quem erra o alvo, pode sempre tentar de novo, contanto que não desista deste alvo. O problema não é bem errar, mas insistir no erro, e fingir que está tentando acertar apenas se confessando como quem conversa com um poste (ou um bode [2]), e recitando orações decoradas para “se redimir”.

Ora, sem a alma não dá, não há espiritualidade genuína sem que a alma esteja presente em cada desejo, em cada vontade, até que elas se tornem a boa ação. E a maior das boas ações é a reforma de si mesmo, a alquimia interna, a construção do Céu em nossa própria consciência: um pensamento de cada vez. Acertar um alvo, para então mirar o próximo, ad infinitum!

Em todo caso, na época eu não tinha esta maturidade toda, e optei por me afastar um pouco do grupo e ir caminhar pelos montes em volta da área do sítio, contando vacas e bois nos outros montes próximos, ouvindo o piar dos passarinhos e o som do vento a escorar pelos ombros e pelo gramado que insistia bravamente em crescer em cada palmo de terra... Até que veio o pôr do sol, e eu achei por bem retornar para o quarto onde iria dormir naquela noite.

Foi quando botei os pés no quarto de duas beliches, onde dormiria com três outros jovens (todos homens, é claro), que me deparei com a pergunta mais insólita de todo o retiro:

“Oi, aí está você fujão! Não pense que vai se safar da vigília hoje hein? Me diga aí, você prefere esperar Jesus das 3h até às 3:30h, ou das 4:30h às 5h?”


» Na continuação, Jesus pela madrugada, belas músicas, e orações intensas!

***

[1] Todos os nomes, afora o meu, são fictícios.

[2] Nas cerimônias hebraicas do Yom Kipur, dois bodes eram levados, juntamente a um touro, ao lugar de sacrifício. No templo os sacerdotes sorteavam um dos bodes. Um era queimado em holocausto no altar de sacrifício com o touro. O segundo tornava-se o bode expiatório, pois o sacerdote punha suas mãos sobre a cabeça do animal e confessava os pecados do povo de Israel. Posteriormente, o bode era deixado ao relento na natureza selvagem, levando consigo os pecados de toda a gente.
Na teologia cristã, a história do bode expiatório é interpretada como uma prefiguração simbólica do autossacrifício de Jesus, que chama a si os pecados da humanidade, tendo sido expulso da cidade por ordem dos sacerdotes.

***

Crédito da imagem: William Holman Hunt ("O Bode Expiatório")

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16.1.14

x dólares, 1 voto

O âmago do sistema político americano é marcado pela corrupção resultante da dependência que os candidatos ao Congresso têm do dinheiro do financiamento de campanha que vem de grandes doadores, que são uma ínfima porcentagem dos cidadãos. Essa é a questão central dessa palestra mordaz proferida pelo jurista Lawrence Lessig:

Muitas coisas poderiam ser ditas sobre as falhas do atual sistema democrático em boa parte do mundo, mas nada as resume melhor do que o fato de que, em 2010, somente 132 americanos foram responsáveis por 60% do total de dinheiro investido nas campanhas eleitorais de ambos os partidos que têm reais chances de vencer as eleições. Apenas dois, como sabemos: Republicanos e Democratas.

Existe uma crença semi lendária de que na democracia cada pessoa tem direito a um voto - o famoso "1 pessoa, 1 voto". Porém, se formos deixar a ingenuidade de lado e analisar como a democracia realmente se comporta nos dias atuais na maior parte do mundo, teremos uma equação um tanto mais nefasta - "x dólares, 1 voto". A principal diferença entre uma república e outra não é exatamente a quantidade de partidos ou a ideologia deles, mas simplesmente o quanto se deve "investir" (x dólares) em cada eleição para termos a certeza de que o vencedor será um "governante amigo".

Como obviamente estes "x dólares" não são um valor muito pequeno ou corriqueiro, principalmente nos EUA, daí tiramos que a democracia atual praticada no mundo é quase um jogo de cena, um teatro que encobre o grande negócio eleitoral que se dá por debaixo dos panos. Um negócio que visa beneficiar, principalmente, as grandes empresas e as grandes fortunas. Por isso não é nenhuma novidade que os banqueiros ganham rios de dinheiro quando a economia vai bem, mas quase nunca perdem dinheiro algum quando tudo vai mal: eles pagaram muitos, muitos dólares, para que o sistema se mantivesse exatamente desta forma... Há uma excelente razão para o "conservadorismo" deles.

Mas, se nos EUA, onde a Justiça ainda é capaz de mandar políticos corruptos para a cadeia, o negócio eleitoral já é tão nefasto, imagine noutros países onde a Justiça funciona raramente, e onde deputados condenados só perdem o mandato por pressão do povo, e não exatamente pela vontade dos políticos?

Esquerda, Direita? Republicanos, Democratas? PT, PSDB? Esqueçam tudo isso... Não há ideologia que sobreviva neste grande negócio eleitoral que muitos ainda insistem em chamar "política".

E o Brasil? Ora, o que importa para o negócio eleitoral brasileiro é manter o povo cada vez mais afastado das decisões de Brasília. Enquanto a política se reduzir ao "x dólares, 1 voto" ou "x reais, 1 voto", os grandes corruptores continuarão rindo à toa, e o PMDB continuará onde sempre esteve, barganhando favores, ministérios, e defendendo os "direitos" daqueles que podem colocar suas malas de dinheiro à mesa.

E isto tudo só mudará por duas vias: a via da Reforma Política, ou a via da Revolução. Um dia, aqueles que pagaram (e ainda pagam) pelo "travamento" da Reforma no Congresso ainda podem se arrepender amargamente, pois é na Revolução que as cabeças são cortadas...


"Para cada mil cortando os galhos do mal, há um a atacar sua raiz"

Henry David Thoreau


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15.1.14

Lançamento: Tudo será Céu

As Edições Textos para Reflexão retornam com uma antologia dos melhores poemas de Rafael Arrais, vulgo poeta e autor deste blog.

"Neste livro, lhes apresento alguns dos poemas que me chagaram de algum lugar sem lugar, num tempo sem tempo, mas que mesmo assim guardaram um tanto da fragrância e do sabor dos frutos que por lá crescem. Muito embora sejam agora tão somente a casca que nos restou..."

Um livro digital já disponível para o Amazon Kindle:

Comprar eBook (Kindle)

***

Abaixo, segue um dos poemas do livro, chamado "Passagem":

I

Hoje estar melhor do que ontem
Que dias vêm e dias vão
Iguais jamais serão
E a força que a tudo mantém
Nesse tempo a passar em vai e vem
Desponta no horizonte desta imensidão

Já o futuro é brisa que não soprou
Eu posso esperar o amanhã chegar
Como quem caminha dentre flores
Saboreando a fragrância de seus amores
Percebendo a eternidade passar
Sem se importar com o que não chegou

Aqui há tanto para conhecer
Do que há dentro de mim
Do que há lá fora na varanda:
O sol que nasce para o ser
E no ocaso do entardecer
Rega com luz nosso jardim

E se acaso alguém lhe disser
Para apertar a caminhada
Para chegar ao Céu mais cedo
Responda que seus passos são curtos
Que ainda há muito pelo que passar
Nesta viagem eterna de seres e luz
De gente a aprender a amar
Não há do que se ter medo
Não há lugar a se guardar

II

Nada há
Que não a harmonia da passagem...

III

À noite a lua nos conduz
Por tais campos elísios
Na antessala do infinito
Nosso anfitrião em silêncio
Nos diz o que devia ser dito
E então percebemos em paz
Que só nos resta aguardar
Pois que em sua casa
Há só este modo de entrar:

As mãos dadas
Os corações entrelaçados
As almas irmanadas
As ilusões em desencanto
As mentes a recordar
Da época em que nos encontramos
Sim! Sim meus irmãos
Nós mal começamos...

raph, 2010


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8.1.14

Frases (16)

Mais frases que surgiram dentre as brisas. Geralmente aparecem antes no meu twitter, e eventualmente aqui:


"Devemos viver aqui de modo a que, quando formos embora, deixemos muitas lágrimas de saudades em muitas almas. Assim seremos imortais nos olhos de quem fica."

"Estamos nós aqui para seguir pelas trilhas da dor ou do amor. E a dor do amor, a que mais dói, é até estranho pensar: é a que mais dá sentido."

"No fundo, nenhum relacionamento é superficial, as pessoas é que são cegas da profundidade do abismo delas próprias."

"Quanto menos exigimos da vida, mais há tempo de vivê-la."


"Dizem alguns que 'liberdade e destino talvez sejam apenas criações do cérebro humano'. Bem, talvez o mundo inteiro também seja!"

"Nenhuma impressão digital é a mesma, nenhuma pegada na praia têm o mesmo formato, e nenhum rio é igual ao rio de um segundo atrás."

"Se tudo em que acredito se mostrar cientificamente falso, menos o amor, estarei satisfeito, cientificamente satisfeito!"


"O silêncio é a melhor resposta, o exemplo é o melhor argumento."

"A consciência não aceita embargos infringentes."


"Nada é mais infinito do que o olhar."

"Somos a história imaginada pela pessoa desconhecida em nós."


"O coração é mar, a linguagem é praia. O que quer que exista no mar, um dia chegará a praia. (Rumi)"

"Você está em meus olhos. Não fosse assim, como eu poderia ver a luz? (Rumi)"


***

Crédito da foto: Bahareh Bisheh (garota iraniana órfã)

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5.1.14

O prefácio para a deusa

Quem seria tal bela deusa?
O ensinamento de todos os instrutores desconhecidos
contido numa gota de orvalho a escorrer
por uma folha verde da relva?

O fingimento do fingimento
do que deveras se sente
neste momento?

A imagem daquilo que é lembrado para sempre,
embora jamais haja existido aqui deste lado?

Aquilo que estivemos sempre a buscar,
mas que também nos busca?

A ânsia da Vida por si mesma?
O estar no coração do próprio Ser?
Diga, quem seria ela?
A deusa poesia?

Seria o espanto sem ofensas?
O querer crer que ao menos
alguma alma existe?
O estar por certo
que o amor persiste?

Seria o encontrar-se com toda a tristeza do mundo
na soleira de nossa porta,
para que conversemos juntos por toda a noitinha
e contemplemos a felicidade vir com a aurora?

Seria o morrer para si,
e o nascer para a vastidão da linguagem?

Talvez ela seja tudo isto...
Porém, estranho de se pensar:
Ainda creio que sobre ela era melhor nada haver dito,
já que o silêncio do olhar sempre falou por nós...

Este prefácio é somente a apresentação
de tudo aquilo que não deveria ter sido dito,
mas que não pude evitar
que irrompesse de meu ser
ante a infinita beleza de sua face,
face a face
com o que nunca teve face alguma.


raph'14

***

Este poema constará no prefácio do próximo livro digital das Edições Textos para Reflexão. Desta vez, poemas de mim mesmo...

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4.1.14

A subjetividade do olhar

Este pequeno trecho é uma conclusão a que cheguei após muitos anos de debates envolvendo espiritualistas e céticos em geral... Espero que não me esqueça mais dela (tão cedo):


De um jeito ou de outro, cada um sempre crê naquilo que deseja crer, ainda que não admita isto sequer para si mesmo. A ciência humana é uma tentativa de descrever a Natureza, mas quem a observa no fim das contas somos nós. Quem a interpreta somos nós.

Nem toda a objetividade do mundo é capaz de romper a subjetividade do olhar.

 

Imagem por Google Image Search


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2.1.14

O ano em que virei editora

É claro que todo escritor sonha em publicar um livro, mas até cerca de um ano atrás tudo o que havia conseguido publicar era um livro com tiragem quase “caseira”, vendido sobretudo entre familiares e amigos, e alguns outros livros de RPG, contos, poemas e artigos antigos deste blog, todos disponibilizados diretamente como PDF para download.

Há cerca de um ano atrás, porém, eu estava angustiado e esperançoso ao mesmo tempo. Angustiado por ter de finalizar meu livro, Ad infinitum, que vinha sendo escrito há cerca de 3 anos, e esperançoso por crer que, após seu lançamento, eu finalmente me veria livre daquele fardo, e poderia me dedicar somente ao blog e aos videogames novamente.

É claro que todo escritor fica feliz e aliviado ao ter seu livro publicado, mas até cerca de um ano atrás eu mal poderia imaginar que, após Ad infinitum, ainda viriam 11 outros livros, a grande maioria de outros autores.

Foi “quase sem querer” que tudo ocorreu... Após haver autopublicado meu livro em formato impresso, através do Clube de Autores, estava eu folheando uma revista na banca de jornais próxima da minha casa quando soube, através de uma matéria de meia página, que a Amazon não somente havia recém chegado no Brasil com o seu leitor de livros digitais, o Kindle, como já era possível a autopublicação de ebooks através do serviço Kindle Direct Publishing.

Como já era cliente da Amazon há muitos anos (inclusive tendo ganhado boas comissões através da venda de livros de RPG através de um site antigo que mantive no final da década de 90), fui testar o serviço... A princípio, bastava enviar um arquivo Word relativamente bem diagramado, uma capa e uma descrição, escolher o preço final de venda, que a Amazon publicava e vendia a obra. O autor ainda ficaria com entre 35% a 70% do valor das vendas – algo imensamente superior aos 5% a 10% do mercado impresso.

Na prática, não era assim tão simples. O arquivo Word do Ad infinitum que enviei não resultou em um ebook que me agradasse, e como sou “relativamente perfeccionista”, precisei estudar um pouco melhor acerca da arte da diagramação de livros digitais... Para minha surpresa, descobri que em seu estado mais essencial, um ebook nada mais é do que html, a mesma linguagem de código que monta as páginas da web, e a mesma linguagem com a qual trabalho profissionalmente há quase uma década!

Apesar de não ter sido algo tão trivial, consegui aprender a montar um epub, que é o formato de livro digital mais utilizado no mundo todo. Com isso, o caminho estava aberto para autopublicação não somente na Amazon, mas também na Kobo, que também havia recém-chegado ao país, em parceria com a Livraria Cultura [1].

Até aqui, tudo certo: ter um livro disponível em impresso e em versão digital, sendo vendido na grande Amazon, já era uma conquista e tanto para quem, até poucos meses antes, não sabia nem se ou quando exatamente conseguiria finalizar o tal livro... Mas isto ainda era somente o início – foi navegando pelas listas de mais vendidos da Amazon brasileira que me deparei com algo bastante intrigante...

Eu não pude deixar de notar que havia diversos livros digitais de Fernando Pessoa com preços muito diferentes uns dos outros. Enquanto muitos eram vendidos a cerca de 15 ou 20 reais, o que seria um preço comum para ebooks, outros custavam 5 reais ou até menos do que isso, e não pareciam dever em nada, na qualidade da capa e da diagramação, aos demais.

Quando fui me informar melhor sobre essa disparidade de preços, acabei compreendendo o que se passava. Ocorre que Fernando Pessoa morreu em 1935, de modo que em 01/01/2006, 70 anos após sua partida, toda a sua obra entrou definitivamente em domínio público no mundo todo. Isto significa, dentre outras coisas, que qualquer um pode editar seus livros como bem entender, sem dever nenhum centavo de direitos autorais aos antigos detentores de seus direitos de publicação.

Ora, isto também significava que eu mesmo poderia publicar minha própria antologia da poesia e da prosa do grande poeta português. E foi exatamente o que fiz a seguir, daí nascendo o ebook Navegar é preciso, que até hoje é muito bem sucedido em vendas, principalmente na Amazon.

Mal podia suspeitar, há um ano atrás, que me tornaria não somente um escritor publicado na Amazon, mas um editor, um tradutor e, porque não, uma editora!

Após Pessoa, que não necessitava de tradução alguma, fui atrás dos melhores autores e livros que li na vida, buscando a viabilidade da autopublicação dos mesmos. Com isso, logo na sequência encontrei uma rara tradução de Friedrich Nietzsche que já se encontrava em domínio público e, com a ajuda de meu amigo Frater Sinésio, que ajudou na revisão do texto, publiquei o célebre Assim falou Zaratustra pelo preço de um café expresso (ou menos) na Amazon Brasil. Até hoje, é de longe o ebook mais vendido das Edições Textos para Reflexão, sendo que raramente sai da lista dos 100 mais vendidos.

Depois, entre traduções e edições, algumas com a estimada ajuda de Sinésio, ainda consegui publicar mais 9 livros digitais durante o ano, atingindo uma média totalmente inesperada de 1 livro por mês. Embora nenhum deles tenha atingido o sucesso de vendas dos dois anteriores, há muitos que também se destacaram.

Porém, independente das vendas, que são realmente muito bem vindas, o que mais importa é que isto se tornou também um hobby extremamente prazeroso. Claro que também dá um bom trabalho (neste ano joguei muito pouco videogame), mas é um trabalho bastante recompensador – não exatamente pelos reais que caem na minha conta de banco, mas pela possibilidade de iniciar, quem sabe, algumas centenas de pessoas, em sua maioria jovens, em alguns dos maiores textos da humanidade...

Eu não estou brincando, eu realmente fui muito cuidadoso na seleção dos livros. “Cuidadoso” talvez não fosse a melhor palavra... Intuitivo, quem sabe? É que não fiz grandes planos de publicação, e fui publicando meio que conforme o coração mandava. Por exemplo, eu certamente não publicaria Nietzsche antes de Lao Tse ou Gibran, se fosse seguir minha lista de preferências, mas o fato de haver publicado Nietzsche antes dos demais foi de vital importância para o estabelecimento das vendas dos livros que vieram após, já que o livro de Nietzsche passou a anunciar a editora e, consequentemente, os demais lançamentos.

Outra questão interessante e não planejada (pelo menos, conscientemente) é a relação que existe entre os livros e seus autores. Já havia um conto em Navegar é preciso em que Pessoa mencionava Epicuro, que por sua vez também já fora alvo das críticas apaixonadas do grande filósofo alemão. Também há autores que destacam a proximidade de algumas ideias de Pessoa com as de Nietzsche que, por sua vez, foi um dos influenciadores de Khalil Gibran. A Arte da Guerra é um clássico que, sem dúvida, deve muito de suas ideias a outro ainda mais antigo, o Tao Te Ching, que por sua vez ainda influenciou parte dos conceitos de A Voz do Silêncio, de H. P. Blavatsky – que também foi traduzido para o português por ninguém menos que... Fernando Pessoa!

Mesmo Jalal ud-Din Rumi bebe da mesma fonte do gnosticismo presente nos Evangelhos de Tomé e Maria, que por sua vez também ecoa no Profeta de Gibran... Enfim, são mesmo muitas relações inesperadas entre estes poucos livros.

Portanto, eu me despeço do ano que passou com o mesmo espírito e o mesmo entusiasmo com que abraço o ano que chega... Sem tanto planejar mas, antes de mais nada, agradecer. Agradecer imensamente pela oportunidade de melhorar um pouco toda esta vizinhança, não exatamente através das minhas palavras, mas através dos dizeres de tantos gigantes de outrora. Pensamentos que já me ajudaram muito nesta vida, mas que nunca poderia imaginar que seriam publicados por mim.

É, sem dúvida, uma honra (não mais um fardo)... Espero que gostem do percurso, e que seus dias, e nossos dias, permaneçam sendo sempre este Ano Novo perene, elaborado e sustentado por tantas reflexões vindas do Alto.

02/01/2014

Rafael Arrais (autor/tradutor/editor)

***

[1] O serviço de autopublicação da Kobo se chama Kobo Writing Life (KWL). Além dele e do Kindle Direct Publishing (KDP), ainda publico hoje através do Publique-se da Livraria Saraiva. Infelizmente os serviços de autopublicação da Google e da Apple ainda não estão disponíveis para alguém residente no Brasil. Para maiores detalhes acerca do mundo da autopublicação, recomendo o site Revolução eBook.

» Veja também O ano em que virei tradutor profissional

Crédito da imagem: Joel "Boy Wonder" Robinson

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