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28.6.16

Para ser feliz, parte 3

« continuando da parte 2

Quando um rio é muito jovem, de modo que ainda corre por rochas sólidas, pouco desgastadas por sua passagem, em seu rumo ao mar há muitos trechos que, antes córregos pacatos, logo viram excitantes corredeiras, de água turbulenta, ideais para serem descidas por aventureiros em seus botes!

Imagine que você é um deles, em seu bote magnífico, quicando pela superfície enquanto mal há tempo de desviar dos pedregulhos maiores com seu remo. Enquanto tudo vai bem, o caminho é deveras divertido e cheio de adrenalina, e decerto não há muito tempo para se pensar e refletir sobre outra coisa que não aquela corredeira serpenteando morro abaixo. Mas, e se o seu bote é finalmente vencido pelas pedras pontiagudas no leito do rio? E se ele simplesmente fura, e você é obrigado a encostar na margem?

Há muitos que, nos dias atuais, correm para fazer pequenos remendos nos furos que, exatamente por terem sido feitos as pressas, logo logo estouram de novo, de modo que a tão sonhada descida até o mar, que era para ser uma grande brincadeira, logo se torna algo cruel e dolorido, e as pedras pontiagudas do rio passam a furar não somente o bote, como o próprio navegante desavisado.

Para prosseguir nessa corredeira que serpenteia pela vida, é preciso conhecer a arte de se remendar botes. Ou, como bem explicou meu amigo Caciano Camilo Compostela, um monge rosacruz:

Cuidado, a tristeza é uma esfinge estranha... Se você lhe decifra os enigmas ela te abençoa, caso não, lhe arranca a cabeça! Não tema, seu objetivo é lhe apontar o vazio, conduzir a reflexão e ao aprofundamento. Se no lugar do questionamento, meditação e reencontro, optar por tapar o buraco em romances imaginários, compras desnecessárias, diversões frívolas ou vícios alucinantes em vã tentativa de fugir de si mesmo, cuidado, pois ela lhe penetra mais fundo, se alastra, domina e consome.

Desnecessário dizer que a arte de se remendar botes também tem muito do estoicismo do qual vínhamos falando: ora, aqueles que não consertam seus botes são ainda mais afetados pelas corredeiras, de modo que, além de não conseguirem se guiar da melhor forma pelas águas turbulentas, geralmente são dilacerados por muitas das pedras pontiagudas no caminho.

Já aqueles que passam, quem sabe, a noitinha remendando seus botes, têm a divina oportunidade de contemplar as estrelas, e ver a neblina passar, e ouvir os primeiros pássaros a cantarolar para a manhã, e assim, observando ao mundo a sua volta, e percebendo a si mesmos como parte dele, acabam por reconhecer esta verdade: que o mundo inteiro, assim como os botes e seus navegantes, corre morro abaixo, rumo ao mar.

E assim, aquele que compreende e aceita tamanho fluxo incomensurável de vidas e seres, aceita também que há diversas formas de descer o rio, e diversos formatos de botes e remos, e inúmeras técnicas de remendo, e é impossível saber ao certo qual caminho é o mais rápido, em qual nos machucaremos menos, em qual seremos mais felizes...

Dizem os ocultistas que é nosso dever encontrar nossa verdadeira vontade, e alcançar a grande realização da vida. Mas para ser feliz não faz sentido pensar nesta vontade como algo extremamente oculto, precioso e único, que uma vez desvelado, nos conduzirá a alguma espécie de “iluminação instantânea”.

Não, meus irmãos, para ser feliz é preciso reconhecer que a verdadeira vontade é mais como esta corredeira que temos descido há tanto custo. Pode ser que as águas tenham sido turbulentas no início da queda, mas é certo que em algum momento mesmo este rio raivoso irá encontrar as grandes vias que rumam para o oceano há milênios, onde os pedregulhos já se verteram em areia, e onde o curso segue mais como uma procissão sagrada do que uma aventura esportiva.

Assim, é bem provável que nós todos já estejamos a navegar por tal vontade, embora muitos a contra gosto, seja porque não se dedicaram a arte de se remendar botes, seja porque um dia acreditaram piamente que o rio poderia ser parado, represado com dogmas e ideias fossilizadas, para que então pudessem subir no alto de alguma pedra e bradar:

É aqui, chegamos ao Paraíso, podem abandonar seus botes!

Mas a ânsia da vida por si mesma é como a corredeira que vence qualquer represa. Quando pensamos que enfim havíamos descoberto um paraíso, quando optamos por encostar nas margens e simplesmente descansar, logo ficou claro que aquele charco não era o mar, não era o oceano, mas tão somente um pântano de vontades que se dissociaram da verdade.

É por isso que os grandes profetas não são como viajantes cansados que já desistiram de brincar em seus botes, mas antes como aqueles que caminham sobre as águas, rompem todas as represas, fendem os maiores pedregulhos, e sorridentes, ainda nos dizem:

Dia virá em que farão tudo o que tenho feito, e ainda muito mais, pois sois navegantes divinos!

No fim, só há uma vontade, e todas as demais se tornam verdadeiras na medida em que a espelham, a refratam e refletem adiante: há esta corredeira morro abaixo, e há o mar para onde tudo corre – um está a buscar o outro, e não há nada que possa realmente ficar por muito tempo em seu caminho.

» Em seguida encerramos com quatro poetas convidados...

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Crédito da imagem: ki-rafting.com

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24.6.16

Lançamento: Desperte para uma vida melhor

As Edições Textos para Reflexão publicam novamente um livro de Igor Teo, colunista do portal Teoria da Conspiração:

"A dificuldade em lidar com certos aspectos de si mesmo é uma questão frequente na atualidade. Muitas vezes precisamos procurar ajuda porque nos sentimos sucumbidos à tristeza, não controlamos a nossa raiva, não conseguimos sentir alegria ou entusiasmo pela vida, estamos excessivamente ansiosos com certos eventos, entre outros problemas de foro emocional. Por outro lado, muitas pessoas têm encontrado também na meditação um alívio para seus conflitos.

Apesar da meditação ser comumente associada a um contexto espiritual, Igor Teo explora neste livro o aspecto científico da prática, apoiado nos estudos das neurociências. Através de um método sistemático, este livro oferece aos seus leitores, além da compreensão teórica, um conjunto de exercícios para aqueles que desejam trilhar um caminho em busca de uma melhor qualidade de vida para si."

Um livro digital disponível para download gratuito, ou em versão impressa, no formato "pocket book":

Baixar grátis (pdf) Comprar versão impressa

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Abaixo, segue um trecho do capítulo "Ser Humano"...


Do que somos feitos?

Talvez você já tenha se feito essa pergunta. Segundo os cientistas, somos feitos da poeira das estrelas. A combinação aleatória de uma matéria originada bilhões de anos no passado no big bang, e que ao longo do tempo, devido a sucessivas transformações e ao processo evolução da espécie, fez de nós o que somos hoje. Isto é, somos matéria. Somos corpos que andam, cheiram, tocam, são tocados e interagem entre si. Mas não somos apenas isso. Também falamos, pensamos, refletimos... sentimos! Em algum momento da história da espécie, essa matéria começou a agir e reagir mais do que por simples respostas a estímulos externos do ambiente. Esse momento se deu quando adquirimos a linguagem.

Linguagem é diferente de comunicação. Muitos mamíferos superiores, como os golfinhos e abelhas, possuem um sistema de comunicação muito bem elaborado e eficiente. Mas a linguagem propriamente dita é a capacidade de utilizar meios simbólicos para se expressar, podendo um mesmo símbolo/significante ser usado em contextos diferentes. Por exemplo, dizemos que está calor quando está quente e a temperatura está alta. Mas também falamos em calor quando queremos comunicar que uma pessoa é calorosa, demonstrando um calor humano. A linguagem, deste modo, é a capacidade da utilização de símbolos como mediação entre pensamentos, emoções e seres humanos. Como ela não é fechada e unívoca constantemente está passível a “mal entendidos”. O que faz das relações humanas serem tão complexas.


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22.6.16

Lançamento: Laroyê

As Edições Textos para Reflexão, em parceria com a Like a Sir Press, publicam a sua primeira história em quadrinhos digital. E o tema é nada mais do que Umbanda para crianças!

Escrito e ilustrado pelo casal de artistas Lucy Fidelis e Roe Mesquita (que também ilustra o nosso Tarot da Reflexão), Laroyê traz um conto singelo sobre o orixá mensageiro, Exu (*). O e-book traz, como de costume, ilustrações em cores bem vibrantes, que serão melhor apreciadas no aplicativo gratuito do Kindle para tablets e smartphones. A versão impressa pode ser adquirida diretamente na editora dos autores:

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(*) Aliás, é sempre bom lembrar o que disse Marcelo Del Debbio, grande estudioso de mitologia e religiões, sobre o orixá Exu:

Assim como Hermes, Exu é o mensageiro dos deuses, seu poder é o de receber e transportar os pedidos e oferendas dos seres humanos ao Orum, o Mundo dos Deuses. É o Senhor dos Caminhos, das encruzilhadas, das trocas comerciais e de todo tipo de comunicação. Ele representa também a fertilidade da vida, os poderes sexual, reprodutivo e gerativo. Não podemos nos esquecer de que o sexo, diferentemente do que os católicos e evangélicos dizem (uma coisa de luxúria, de pecado), é na verdade um ato sagrado. Talvez por isso, por ele ser o poder sexual, os cristãos o comparem com o Demônio.
A origem do mito de associação de Exu com o Diabo vem dos Jesuítas. Quando os escravos estavam fazendo o sincretismo de suas religiões africanas com os Santos Católicos, os Jesuítas desconfiaram que havia alguma coisa errada… nas religiões africanas, não existe a figura do diabo, apenas de deuses com características humanas. Então eles encontraram um símbolo fálico representando o Exu e tiveram a “brilhante ideia” de associar o pênis ereto com o sexo (pecado) com o diabo para completar o panteão católico.
Adicione dois séculos de deturpação católica e (posteriormente) evangélica e temos a imagem do Exu como ela é nos dias de hoje.
Sem falar que normalmente a figura do Senhor Exu é colocada com chifres, rabo, pintado de vermelho, imagem bem parecida com a que os cristãos “desenham” o Diabo… Então, o Exu verdadeiro das religiões africanas nada tem em comum com o diabo lúdico, e as esquisitas estátuas comercializadas e utilizadas arbitrariamente em terreiros são frutos da imaginação de visionários que não enxergam nada além das manifestações dos baixos sentimentos em formas deprimentes, nos seres que lhes são afins.


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17.6.16

Para ser feliz, parte 2

« continuando da parte 1

Muitos certamente já tiveram a oportunidade de assistir uma partida de futebol num grande estádio, junto a milhares de pessoas. No entanto, mesmo os que não tiveram, devem ter visto pela TV como esses eventos são animados, nem que tenha sido durante uma transmissão de Copa do Mundo. Afinal, nós somos o país do futebol!

Agora imaginem uma final entre dois times de grande torcida, onde quem vencer o jogo leva o caneco. Milhares de pessoas cantando, pulando, rezando juntas para que aquela cobrança de falta entre no ângulo do goleiro, indefensável... ou, que seja isolada na arquibancada.

De fato, sob esse ponto de vista, cada lance de uma partida de futebol, cada cartão amarelo, cobrança de falta, bola na trave ou gol, irá provocar um efeito de alegria ou melancolia na medida de sua importância para o resultado final da partida, isto é, na medida em que contribuí ou não para a vitória do time para o qual estamos torcendo, seja só naquele dia, seja desde criancinha.

E, desnecessário dizer, aqueles que torcem para este ou aquele time desde a infância, que acompanham os campeonatos futebolísticos como se fossem um verdadeiro embate mitológico de semideuses, são exatamente os que irão experimentar a maior intensidade de alegria ou de melancolia em cada gol, em cada partida, em cada final de temporada...

Eu tive um professor de arte que pensava um pouco diferente o futebol em si. Ele torcia para um time, de fato, mas não se importava muito com os resultados dos jogos. O que lhe causava maravilha era a própria festa que a sua torcida fazia no estádio (e não era qualquer estádio, mas o próprio Maracanã!). Ele gostava tanto daquela sensação intensa de pura vida que sentia ali que admirava mesmo as torcidas adversárias, e encontrava beleza mesmo quando via a sua própria torcida apreensiva, por estar perdendo o jogo, ou ainda calada e chorosa, por haver acabado a partida atrás no placar.

Esse professor me ensinou muito sobre arte somente por relatar tais experiências. Em seus olhos, em sua alma, era nítido que ele havia desvelado o que estava por detrás dessas ondas de felicidade e tristeza que agitavam o mar, pois que eram sempre passageiras, e encontrado a pérola sem nome, o tesouro reservado aqueles que conseguem perceber a beleza que há em tudo.

Penso que Cecília Meireles soube resumir melhor isso que não pode ser dito:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Talvez a grande qualidade das poetisas, dos professores de arte e das criancinhas seja exatamente esta: perceber a Arte de cada momento, e não se aventurar nessas apostas arriscadas, nesses jogos de azar que trazem uma hora alegria, outra hora tristeza. Afinal, nenhum time fica invicto para sempre...

Há muito tempo, ainda antes de Cristo, floresceu na antiga Grécia uma filosofia um tanto peculiar, o estoicismo. O que os estoicos defendiam, essencialmente, é que não valia a pena colocar nossa felicidade lá fora, pois tudo o que não depende de nossa vontade é mais ou menos como um jogo de futebol: há dias em que somos vitoriosos e felizes, é certo, mas isso só ocorre ao custo de muitos outros dias em que perdemos, e ficamos arrasados. Os sábios do pórtico sabiam que a grande riqueza da vida era a própria vida:

A filosofia não visa assegurar qualquer coisa externa ao homem. Isso seria admitir algo que está além de seu próprio objeto. Pois assim como o material do carpinteiro é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a matéria-prima da arte de viver é a própria vida de cada um. [1]

O grande ensinamento dos estoicos, que os discípulos de um de seus maiores sábios, Epicteto, incluíram logo no início do seu Manual (um verdadeiro manual para a vida), é este que trata de delimitar o que depende e o que não depende de nossa vontade, de modo a que não nos aflijamos com o último, e busquemos sempre o primeiro:

As coisas se dividem em duas: as que dependem de nós e as que não dependem de nós. Dependem de nós o que se pensa de alguma coisa, a inclinação, o desejo, a aversão e, em uma palavra, tudo o que é obra nossa. Não dependem de nós o corpo, a posse, a opinião dos outros, as funções públicas, e, numa palavra, tudo o que não é obra nossa. O que depende de nós é, por natureza, livre, sem impedimento, sem contrariedade, enquanto o que não depende de nós é fraco, escravo, sujeito a impedimento, estranho.

É por isso que as crianças estão felizes todo o tempo quando vão assistir a uma partida de futebol num grande estádio pela primeira vez. Para elas, o resultado do jogo é o que menos importa; ante tamanha algazarra, tamanha festa de adultos que, de vez em quando, parecem mesmo se permitirem voltar a suas épocas de criança, tudo o que elas podem perceber é a essência da vida, escancarada a céu aberto.

Mas tudo isso vai até o primeiro gol, a primeira vitória ou derrota, ou mesmo aquele empate que não agradou ninguém: nesse momento elas percebem que os adultos a sua volta escolheram, apostaram num dos lados, e entraram neste jogo infindável de vitórias e derrotas, de felicidade que surge da tristeza e tristeza que surge da felicidade, pois que de fato são irmãs.

E assim, o que resta aos sábios, aos artistas, aos poetas, aos adultos que não esqueceram sua criança interior, que não nos alertar para essa imensa armadilha?

Há muita coisa que ganhamos e perdemos nesta vida: dinheiro, status social, fama, amizades, amores, doenças, tristezas, alegrias, e até mesmo partidas de futebol, mas nada disso precisa necessariamente determinar o que realmente sentimos, o que realmente somos, neste e em todos os outros momentos da vida.

Para os estoicos, a virtude era o suficiente para a felicidade, isto é, para ser feliz bastava ser virtuoso. Mas, o que eles entendiam por “virtude” era precisamente esta capacidade de saber discernir a essência do passageiro, o ser do ter, em suma, o que somos daquilo que nunca fomos.

Por força do hábito, muitos chamaram isso de “felicidade”. Mas, aquilo que vi nos olhos do meu professor de arte, ou que os pais veem no sorriso dos filhos em sua primeira vez num estádio, isso nunca teve nem nunca terá um nome.

» Na próxima parte, a verdadeira vontade...

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[1] Epicteto, Discursos.

Crédito das imagens: [topo] Pexels.com; [ao longo] Google Image Search

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15.6.16

Para ser feliz, parte 1

No Taiti, uma das belíssimas ilhas da Polinésia Francesa, Everaldo Pato está içando as velas do seu barco com a ajuda do amigo, da esposa e da filha. O cenário é deslumbrante e, logo após, o barco começa a velejar por um mar cristalino, num clima paradisíaco. Isso tudo filmado e registrado para o novo programa do Canal OFF, da TV a cabo, chamado Nalu a Bordo.

Everaldo é surfista profissional e já rodou as mais belas praias do mundo atrás da dança que o oceano faz quando encontra a praia. Como tantos outros surfistas do circuito profissional que envelhecem e têm filhos, ele poderia simplesmente voltar ao Brasil e criar Nalu, sua filhinha, de maneira convencional, numa escola erguida no seu país natal, e não numa ilha estrangeira, mas para ser feliz, para realmente ser feliz, Everaldo sabia que precisava continuar bailando com o mar pelo maior tempo possível.

Não foi da noite para o dia que o seu sonho se tornou possível. Foram anos de preparação. Nalu, a filha pequena, precisou estudar anos no Havaí para poder se adequar totalmente ao inglês, uma vez que teria de continuar seus estudos online, direto do barco. Fabiana, a esposa e cinegrafista do programa, precisou acompanhar a ambos na aventura, e abandonar as comodidades de poder viver e criar uma filha pequena numa cidade relativamente grande, abastecida de escolas, parques e shoppings...

Mas em busca dessa tal felicidade que escorre pelos dedos como a areia das praias do Taiti, eles se sacrificaram, e ninguém poderá dizer que não merecem a felicidade que conquistaram. No entanto, é até estranho de se pensar, mas mesmo velejando na Polinésia, distantes das notícias de guerras, de terrorismo, de corrupção e crises econômicas, mesmo nesse paraíso, nenhum deles parece conseguir ser inteiramente feliz todo o tempo. Claro, Everaldo mostra estar em êxtase quando desce as ondas em sua prancha, e sua mulher é a cara da felicidade quando contempla sua filha crescer, literalmente, conhecendo o mundo. Mas eles são adultos, e adultos dificilmente estão felizes todo o tempo.

Com a filha, Nalu, já não é o caso. Como tantas outras crianças que cresceram com pais amorosos e carinhosos (e não apenas as que velejam o mundo), ela parece ter chegado a este mundo com um manual de como ser feliz todo o tempo. Mas, como infelizmente sabemos, tal manual, um dia conhecido por tantos de nós, também será esquecido...

Não é que Nalu não passe por momentos de dor e tristeza, mas é que eles parecem ser raros, e bem compreendidos pelo que de fato são – algo passageiro, pois há sempre outra brincadeira mais adiante. Em As Leis, sua obra mais extensa, e que deixou inacabada, Platão nos esclarece muito bem tal questão:

Quando crianças as primeiras sensações pueris a serem experimentadas são o prazer e a dor, e é sob essa forma que a virtude e o vício surgem primeiramente na alma; mas no que concerne à sabedoria e às opiniões verdadeiras [aletheia], um ser humano será feliz se estas o alcançam mesmo na velhice, e aquele que é detentor dessas bênçãos, e de tudo que abarcam, é de fato um homem perfeito. [1]

O filósofo grego acreditava nisso que nossa intuição tenta nos mostrar todos os dias desde que aqui desembarcamos, isto é, que na experiência imaculada das crianças tanto o prazer quanto a dor são melhor discernidos do que na vida adulta, pois que, de alguma forma, a sua percepção da verdade [aletheia] ainda não foi esquecida, ocultada, perdida, como ocorre com a maior parte dos que vivem por muitos anos nesse mundo brutal que entorpece os sentidos, engana a alma, e por vezes nos faz confundir o que é dor e o que é prazer. Assim, nos perdemos do que poderia nos conduzir a virtude, ou seja, saber discernir o prazer da dor, e poder, como as crianças,  optar por ser feliz todo o tempo.

Everaldo Pato não é filósofo e muito menos um homem perfeito, mas quando desce as ondas com sua tábua de resina, e baila com o próprio oceano, ele não está mais preocupado com a audiência do programa, com as notas da filha, ou com a sua conta bancária. Por breves momentos, sob o sol do Taiti, Everaldo se lembra do que é verdade: para ser feliz, basta estar no mundo, basta abrir os olhos, a alma, e dançar com o próprio momento, basta ser.

Logo depois, a onda passa, o sol se põe, e Everaldo esquece tudo de novo. E assim é com todos nós...

Segundo o filósofo Mario Sérgio Cortella, “a felicidade é uma vibração intensa, um momento em que sentimos a plenitude da vida dentro de nós, e desejamos que isto se eternize. É a capacidade de ser inundado por uma alegria imensa por um instante”, e prossegue: “Aliás, felicidade não é um estado contínuo, mas uma ocorrência eventual, sempre episódica. Você sentir a vida vibrando, seja num abraço, seja na realização de uma obra, seja numa situação em que seu time vence, ou algo que você fez deu certo, ou ouviu algo que queria ouvir, é claro que isso não tem perenidade. Ora, a felicidade marcada pela perenidade seria impossível, afinal de contas nós só temos a noção de felicidade pela sua carência. Se fosse contínua, não seria percebida. Nós só sentimos felicidade porque ela não acontece o tempo todo.”

Essa aparente contradição com o que estávamos dizendo ocorre precisamente porque estamos imersos num mundo de linguagem, que nos possibilita viver mais integrados a uma sociedade global, mas que também nos confunde, pois os termos, as palavras, os conceitos, são inteiramente incapazes de abarcar as sensações, a experiência, a verdade de se estar aqui, existindo.

Assim, se a felicidade não dura por ser o oposto da tristeza, e se o prazer não dura por ser o oposto da dor, é preciso tentarmos ir além do próprio termo, “felicidade”, descascá-lo para tentar encontrar o sentimento que reside ali, e que vive além do tempo. Por isso mesmo, quando falamos que as crianças são felizes todo o tempo, é porque elas não estão preocupadas em “serem felizes”, de fato elas não estão nem aí para a própria definição do que seja “a felicidade”. A sua alegria eternizada, o seu contentamento perene ante a vida, nasce justamente daquela antiga intuição, daquela verdade que nasceu com elas, e foi lentamente, dia a dia, sendo esquecida. Até que algum adulto veio e lhes perguntou, “Você está feliz? Você é feliz?”, e elas caíram na armadilha de tentar responder.

***

Nessa pequena introdução a um tema tão simples, porém coberto por complexidade, e tão essencial, porém envolto em superficialidade, tentei transparecer de alguma forma de qual “felicidade” estamos falando aqui: uma felicidade que não é o oposto da tristeza, que não é ganha para ser perdida e nem perdida para ser ganha, mas que, de alguma forma, sempre esteve conosco, sempre esteve aqui, mais próxima de nós do que nossos olhos, pulsando tanto em nosso coração quanto junto às brisas do mar, e arrebentando nas praias de todo o mundo, neste exato momento, em todos os momentos.

E, se são somente as crianças que brincam de pega-pega por essas areias úmidas, para tentarmos descobrir o que é isso que nós adultos chamamos “felicidade”, mas que de fato não tem nome, nós teremos de tentar relembrar daquilo que sabíamos, mas que a linguagem soterrou em conceitos, e a vida adulta desmembrou em momentos distintos, nos confundindo... Para ser feliz, é necessário tentar resolver tal confusão.

» Na próxima parte, o manual para a vida...

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[1] Trecho de As Leis, Edipro, pág. 103 (tradução de Edson Bini).

Crédito das imagens: [topo] Nalu a Bordo/Canal OFF/Divulgação; [ao longo] GoPro/Divulgação

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5.6.16

Lançamento: O Príncipe

Finalmente chegou na Amazon a nossa edição de um dos maiores tratados políticos da humanidade, O Príncipe.

Se você quer entender melhor Game of Thrones, ou a Guerra das Rosas, ou ainda a Política de ontem e de hoje, não existe tratado mais essencial do que essa pequena e polêmica pérola literária de Nicolau Maquiavel. Você já pode começar a ler em poucos minutos, pelo preço de um café:

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À seguir, trazemos o prefácio da edição, por Frater Sinésio:

Há duas boas razões para se ler este livro:

Primeira. Assim você vai saber do que todos estão falando ao usarem o termo “maquiavélico”, particularmente nas análises políticas. Tal adjetivo se tornou tão comum que é muitas vezes usado fora de contexto. Isso se torna compreensível quando percebemos que muitos dos que o utilizam nunca leram esta carta escrita por um cortesão da renascença ao seu príncipe (o “magnífico Lorenzo de Medici”). Assim sendo, uma maior familiaridade com esta obra é sem dúvida necessária para a compreensão mais aprofundada do termo, que como devem saber, se refere ao sobrenome do autor – Maquiavel.
Segunda. Este livro descreve muito bem a maior parte das situações de poder. Da política as corporações, e onde quer que existam relações de controle e influência, as observações e regras maquiavélicas serão geralmente válidas.

Assim, se tudo correr bem, você também irá descobrir que Maquiavel não é tão mau quanto acabou sendo afamado na cultura popular. O que ele estava fazendo aqui foi simplesmente descrever “as regras do jogo do poder”, que já existiam muito antes dele ter nascido e ainda existirão por muito tempo, quem sabe durante toda a história humana – ao menos enquanto perdurar a competição e o egoísmo.

As regras maquiavélicas não são nem boas nem más em si mesmas, tudo o que elas fazem é descrever um processo. O que é bom ou mau é o uso que as pessoas que compreenderam tais regras fazem delas quando alcançam posições de poder, considerando que vivemos numa sociedade que julgará suas ações de acordo com a lei e os princípios ético-religiosos mais essenciais.

Quando esses princípios são suprimidos (como na Alemanha nazista, na “Idade das Trevas” medieval ou sob os regimes comunistas totalitários), as regras maquiavélicas vestem o seu manto demoníaco, mas isso ocorre simplesmente porque elas passam a servir os interesses demoníacos de seus “príncipes”.

Já em sociedades democráticas que são perfeitamente capazes de regular e restringir o poder de seus governantes, o pensamento contido nesta obra pode produzir excelentes resultados. Um belo exemplo foi o uso que Abraham Lincoln fez de tais regras, vencendo seus adversários políticos de forma legítima, e encerrando a escravidão em seu país.

Para apreciar devidamente as lições que podem ser tomadas desta obra, se faz necessário transportar a vivência e a linguagem medieval para nossa era moderna. Por exemplo, a forma casual com a qual Maquiavel discorre sobre a necessidade de assassinar oponentes políticos era algo que fazia todo o sentido para aqueles que desejavam alcançar o poder há 500 anos atrás. Nos dias atuais, esperamos, o termo “assassinato” poderia ser traduzido em “reduzir o poder de alguém nas decisões da empresa” e/ou “retirar aquele outro do seu cargo de ministro”.

E o que alguém ganha ao ler este livro? Ora, se trata de um mapa do caminho com reflexões e lições sobre: (1) se sobressair sobre os demais numa disputa por poder; e (2) manter e expandir seu poder sobre os demais, principalmente aqueles que desejam ocupar sua posição atual.

Esta obra fala sobre colocar a conquista de seus objetivos acima de quaisquer outras considerações, sem espaço para piedade com aqueles que se encontram na mesma competição. Muitas das máximas que encontramos na mídia e na análise política, até hoje, nasceram do livro de Maquiavel: “os fins justificam os meios”; “é melhor ser temido do que amado”; “se você vai lutar contra o príncipe, mate o príncipe” etc.

Dessa forma, se trata de uma leitura essencial para qualquer um que se encontra atualmente num meio ambiente extremamente competitivo (quiçá boa parte da humanidade), e espera prosperar de alguma forma. As regras maquiavélicas simplesmente consideram que, em todo caso, o instinto humano de todos os demais já será algo egoísta.

Certamente há muitas outras formas de prosperar e sobreviver numa competição sem recorrer a tais lições. Sobretudo na modernidade, nos países de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais elevado, temos inúmeros exemplos de empreitadas altruístas e colaborativas que têm dado muito certo, mas seria ingenuidade considerar que tais exemplos já são a regra e não a exceção. Assim sendo, esta obra continua sendo muito atual, para o bem ou para o mal.

Muitos dos políticos e diretores executivos de nosso tempo são ao menos em parte maquiavélicos. O truque é usar o poder para objetivos nobres. Assim, todos os políticos e executivos que se sobressaíram sobre os demais, vencendo eleições ou competições internas em suas empresas, se acaso contaram com a ajuda de Maquiavel, não necessariamente serão maus: tudo dependerá, no final das contas, de como eles utilizarão o poder adquirido.

Assim sendo, numa sociedade onde o poder absoluto é constantemente combatido e há certas regras e limites para o que um “príncipe” pode fazer com o seu poder, toda essa competição não será de todo mal – como numa disputa darwiniana, é esperado que aqueles que alcancem o topo sejam os que detém as melhores condições para liderar.

Se é verdade que essa obra é, portanto, uma poderosa ferramenta para galgar o poder, considere fazer uso dela com toda responsabilidade, sobretudo considerando que a maldade está muito mais no uso que os príncipes fazem do poder do que no poder em si.

O editor.


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1.6.16

A cultura do acolhimento

Introdução
Quando fiquei sabendo da grande repercussão do estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, seja nas redes sociais ou mesmo na grande mídia, logo me veio uma necessidade de falar alguma coisa sobre o assunto – isto é, sobre a repercussão em si, o que foi de fato a novidade (para o alívio de muita gente, principalmente das mulheres em geral), visto que o estupro em si, tanto aqui como no resto do mundo, infelizmente está longe de ser novidade.

De fato, seja no Brasil, na Índia ou nos EUA, em bailes funk e favelas ou em universidades luxuosas, entre gente pobre ou bem criada, na rua ou no seio das famílias mais bem reputadas, o estupro está mais para epidemia do que para novidade. Uma epidemia de violência que surge da ignorância sobre o que nós homens somos realmente.

Porém, uma vez que eu já disse quase tudo o que tinha para dizer sobre o assunto num conto que escrevei há alguns anos, A educação de Casanova, e conforme hoje em dia muita gente ainda confunde feminismo com femismo, e machismo com “defesa da masculinidade”, confesso que optei por abdicar de voltar uma vez mais a um tema tão espinhoso (não por culpa do tema em si, mas sobretudo por culpa da ignorância geral acerca dele).

Foi por isso que resolvi trazer a vocês não um artigo meu, mas sim o resumo de um excelente artigo de Nora Samaran, uma blogueira canadense que analisa grandes questões da cultura moderna. Ela, como excelente escritora, e sobretudo como mulher, pode nos esclarecer melhor o assunto do que eu creio que seria capaz de fazer. O artigo se encontra resumido por ser excessivamente extenso, mas podem encontrá-lo na íntegra em seu blog. A tradução do inglês original é de Marcelo Dakí:


O oposto da cultura de estupro é a cultura de acolhimento
O oposto da cultura masculina de estupro é a cultura masculina de acolhimento: homens aumentando sua capacidade de acolher, tornando-se plenos.

O julgamento Ghomeshi [1] volta aos noticiários, trazendo o tópico da agressão sexual violenta de volta às mentes das pessoas e às conversas cotidianas. Certamente a violência é errada, mesmo quando o sistema jurídico que lida com a mesma é um desastre. Essa parte parece evidente. Alarmante, mas evidente.

Mas aqui há algo maior em cena. Estou lutando para vislumbrar a forma completa que emerge do desenhar do lápis, quando apenas partes são visíveis no momento.

Um meme que circula por aí diz “Estupro é violência, não sexo. Se alguém te batesse com uma pá, você não chamaria isso de jardinagem”. E isso é verdade. Mas apenas a superfície da verdade. As profundezas dizem algo além, algo sobre a violência.

A violência é o acolhimento virado do avesso.

Essas coisas estão conectadas, elas têm de estar conectadas. Violência e acolhimento são dois lados da mesma moeda. Eu luto para entender isso mesmo enquanto escrevo.

Autocompaixão e compaixão pelos outros crescem juntas e estão conectadas; isso significa que homens buscando e recuperando partes perdidas de si mesmo vão curar a todos. Se muitos homens crescerem aprendendo a não amar seus eus verdadeiros, aprendendo que suas demandas de apego emocional (segurança emocional, acolhimento, conexão, amor, confiança) são fracas e erradas – que o a demanda por apego de qualquer pessoa, ou sua segurança emocional, são fracas e erradas – isso pode levar a duas coisas:

(1) Eles podem se tornar menos aptos a experienciar mulheres enquanto pessoas plenas, com demandas e sentimentos inteligíveis (por autonomia, por segurança emocional, por sintonia, por confiança).
(2) Eles podem se tornar menos aptos a compreender suas próprias demandas por conexão, transmutando-as em vez disso em formas distorcidas, mais espelhadas no social.

Então, para curar a cultura de estupro, homens constroem habilidades masculinas de acolhimento: acolhimento e recuperação de seus eus verdadeiros, e acolhimento de pessoas de todos os gêneros ao seu redor.

Eu estou lentamente descobrindo um segredo: os homens que conheço que são excepcionalmente acolhedores, amantes, pais, colegas de trabalho, amigos íntimos de seus amigos, que sabem como fazer as pessoas se sentirem seguras, esses homens não tem quase nenhum canal através do qual possam aprender ou compartilhar com outros homens essa habilidade arduamente conquistada. Se tiverem sorte, podem ter um modelo de comportamento em casa, na forma de um pai excepcionalmente acolhedor, mas sem ter esse modelo eles têm de descobrir tudo através de tentativa e erro, ou aprender com mulheres ao invés de homens. Esse conhecimento molda tudo: premissas sobre a significação de demandas, sobre como alguém pode responder a elas, como é sentida a proximidade, como amar sua própria alma, e qual tipo de acolhimento deve de fato acontecer num espaço íntimo.

Enquanto isso, os homens que conheço que são pessoas boas, de bom coração, mas que estão só começando a alimentar seus próprios modelos de amor-próprio e aprendendo a confortar e acolher os outros, esses homens não têm outros homens como referências. Crescimento acarreta dores de crescimento, certamente, mas o caminho pode ser suavizado quando alguém não precisa aprender tudo sozinho.

Homens não conversam uns com os outros sobre habilidades de acolhimento: fazer isso soa muito íntimo, ou os códigos da masculinidade tornam muito apavorante fazê-lo. Se eles não podem perguntar e ensinar uns aos outros – se eles não podem nem mesmo descobrir quais outros homens em suas vidas seriam receptivos a tais conversas – como eles aprendem?

Homens têm capacidade de cura que são particularmente masculinas e particularmente curadoras. Eles frequentemente não estão totalmente cientes desse profundo dom e do quanto ele pode ser de ajuda àqueles próximos a eles, sejam familiares ou amigos íntimos.

Para uma transformação completa dessa cultura de misoginia, homens devem fazer mais do que “não agredir”. Nós devemos fazer um apelo à masculinidade para que se torne plena e acolhedora de si mesma e dos outros, para que reconheça que demandas por apego são saudáveis e normais e não “femininas”, e então esperar que os homens curem a si mesmos e aos outros da mesma forma que esperamos que as mulheres sejam “acolhedoras”. É a hora dos homens reconhecerem e nutrirem seus próprios dons de cura.

[...] Homens precisam fazer esse trabalho com outros homens – não sozinhos, não em vez de fazê-lo com mulheres, mas para além disso, em relações responsáveis com e para com mulheres. Em outras palavras, continuar aprendendo das maneiras que o aprendizado está ocorrendo agora – e então dividir esse aprendizado uns com os outros. [...] [Os] homens precisam fazer esse trabalho de cura todos os dias, por detrás das cortinas, colhendo as recompensas de terem mulheres e pessoas de todos os gêneros se sentindo seguras com eles, e cultivando seu amor-próprio e o amor de uns pelos outros.

A maravilhosa recompensa de se criar laços seguros é que, nesses lugares de confiança, um brilho quente de significado e propósito emerge. Um círculo interior de confiança e vulnerabilidade permite movimento e descanso: ele permite que as abelhas se aproximem e se afastem da colmeia. Cria abrigos feitos de familiares escolhidos e uma comunidade amada da qual a ação, confrontos ao racismo, sexismo, à violência institucional podem surgir, uma rede de segurança para que sejam amparados os corpos e as almas de cada um, a fundação que permite o risco.

O oposto da cultura masculina de estupro é a cultura masculina de acolhimento. Isso é um trabalho para ser feito por homens, e ainda assim é uma necessidade de pessoas de todos os gêneros ter homens em suas vidas. As recompensas estão esperando.

Você é um homem acolhedor? As mulheres na sua vida – parceira, filha, irmã, amiga, colega de trabalho, mãe – te dizem ou demonstram que você as faz se sentirem excepcionalmente próximas, seguras e que importam? Em caso positivo, como você aprendeu isso? Como você abre espaços para que homens que querem ter tais conversas comecem a tê-las?

Cada homem que eu perguntei a respeito disso respondeu, “ambos os homens teriam de querer isso.” Medo de proximidade, códigos masculinos de interação, os sinais de nível baixo de um cérebro-reptiliano que os homens enviam uns aos outros, são reais e parte do quadro maior. Mas muitos homens estão se debatendo com tais questões, trancados sozinhos em suas pequenas caixinhas.

Homens têm de fazer isso acompanhados de outros homens, apesar das dificuldades de fazê-lo, por três razões. Primeiro, homens entendem o que é ser um homem muito mais do que as mulheres o entendem, e podem ensinar um ao outro enquanto compreendem como é sentir isso e ter compaixão uns pelos outros. Homens devem fazer isso com outros homens porque, francamente, mulheres não podem se responsabilizar por curar homens enquanto se protegem de violência e negligência masculinas, que ainda são endêmicas e partes da vida cotidiana das mulheres. Finalmente, uma das grandes distorções do espírito humano em nossa cultura é que cada homem vive em confinamento solitário, pensando que pode e deve resolver problemas sozinho, que não pode precisar de mais alguém. Saltar as barreiras que impedem homens de falar sobre emoções com outros homens é em si uma mudança fundamental, que reduz a vergonha e a confusão.

Como você sabe quando homens ao seu redor – o amigo que você acabou de encontrar para um drink, o colega com quem você colaborou em projetos por anos, o parceiro de futebol – podem na verdade estar quietamente confusos e sedentos por esse tipo de aprendizado?

Como você pode sinalizar sua disponibilidade, para deixar os homens na sua vida saberem que você mesmo está fazendo isso, para que então aqueles homens que queiram saber sobre acolhimento possam encontrar-se uns aos outros? É tão simples quanto começar um grupo masculino de discussão baseado neste artigo.

Pode ser tão simples quanto compartilhar esse artigo, e perguntar “Isso alguma vez já te ocorreu?”

Pode ser tão simples quanto enviar esse artigo para alguém que você conhece e dizer “Estou disponível”.

Pode ser tão simples quanto postar esse artigo e dizer “Estou aqui”.

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[1] Jian Ghomeshi é um músico canadense que foi acusado de assédio sexual por várias mulheres, mas aparentemente acabou sendo inocentado de todas as acusações em seu julgamento, o que não foi muito bem aceito pela opinião pública das bandas de lá.

Crédito da imagem: Oleg Oprisco

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