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30.6.12

Chico Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.


Hoje fazem 10 anos que Chico passou para o outro lado do véu, num dia feliz, conforme o prometido, quando a seleção brasileira venceu a Copa do Mundo...

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + toalinde

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29.6.12

Todas as guerras do mundo, parte final

« continuando da parte 3

Até que a filosofia que sustenta uma raça superior e outra inferior seja finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada, haverá guerra, eu digo: guerra...
Guerra no leste, guerra no oeste, guerra no norte, guerra no sul, guerra, guerra, rumores de guerra...
(War, Bob Marley – composição de Allen Cole e Carlie Barrett)

A revolução da alma

Em 3 de junho de 1989, tanques e soldados do exército chinês invadiram a Praça da Paz Celestial, na capital, Pequim. Lá estavam cerca de 100 mil manifestantes que protestavam pacificamente há quase 2 meses, criticando a corrupção e a repressão da liberdade individual vindas de um governo que se dizia comunista [1]. Haviam entre eles muitos intelectuais, professores, estudantes e trabalhadores insatisfeitos com o rumo geral da política chinesa. Mas o Partido Comunista já havia perdido a paciência com eles; Como haviam ignorado as ordens para que as manifestações fossem encerradas, a ala do Partido mais propensa à violência aprovou a ordem para que fosse iniciado o massacre. Na Praça da Paz Celestial, na noite de 3 de junho de 1989, o exército chinês matou 2.600 manifestantes e feriu outros 10 mil [2].

No dia 4 os protestos se intensificaram muito, principalmente por parte dos jovens estudantes. Há essa altura os jornalistas de todo o mundo já estavam se hospedando nos hotéis próximos a Praça, visto que era uma área nobre da capital, e preparavam os flashes para o próximo massacre... Talvez por conta dessa exposição indesejada na mídia mundial, a ala violenta do Partido Comunista recuou, e o que se viu naquele dia foram tanques passeando em torno da Praça, enquanto os jovens prosseguiam com seu protesto ainda pacífico.

No dia 5, ante as manobras de dezenas de tanques pela avenida em torno da Praça, um homem solitário surgiu no meio da rua, impávido ante o avanço de uma coluna de vários tanques enfileirados, enquanto outros civis mais precavidos fugiam desesperadamente do avanço militar... Quando o primeiro tanque da fileira chegou próximo dele, foi obrigado a desviar para não o atropelar. Mas o homem se moveu de lado, brecando o tanque. Ele parecia querer conversar...

Subiu na máquina e trocou algumas palavras com seu piloto, até que duas pessoas (que todos esperam que fossem seus amigos) surgiram na cena e convenceram o homem a desistir de papear com aqueles soldados, que os haviam massacrado dois dias antes. Esta cena foi filmada e fotografada por jornalistas de todo o mundo, e o homem, até hoje um desconhecido, se tornou um mito: o Rebelde Desconhecido... Até hoje tampouco se sabe se ele teria ou não sobrevivido. Especula-se que, mesmo um ano após o incidente, quando às manifestações já havia terminado há meses, o próprio governo chinês ainda procurava pelo homem desconhecido. Aquela altura, seria um grande benefício para o Partido Comunista mostrar aquele mito vivo e intacto, provando para o mundo que ele não havia sido preso, torturado, ou morto (como tantos milhares de civis).

Hoje, entretanto, a China é um outro país, e embora esteja evoluindo lentamente para uma sociedade mais aberta e um governo menos repressor, o mito do Rebelde Desconhecido perdura. Assim se dá com os mitos: eles existem sempre, e sobrevivem ao nascer e ao findar dos impérios. Quem seria aquele chinês corajoso? Um jovem estudante, ou um professor? O que ele teria tentado dizer ao piloto do tanque? “Parem, vocês estão dizimando nosso futuro, nossa liberdade, nossa dignidade” – teria sido algo assim?

Talvez a única coisa que possamos afirmar em relação ao Rebelde Desconhecido é que ele era alguém que havia descoberto como pensar por si mesmo. Um real revolucionário: aquele que travou todas as guerras do mundo no interior, e realizou a revolução na própria alma.

Falávamos a pouco do Deus Bom e do Deus Mal do zoroastrismo. Estes são também mitos, propostos pelo profeta Zoroastro. Dissemos também que se tratava de um conceito infantil e superficial... Mas, será que isso foi mesmo culpa de Zoroastro, ou daqueles que vieram muito depois e, não sabendo interpretar sua mitologia, tomaram-na de forma literal, e a adaptaram para seus próprios interesses?

Ora, será mesmo que uma religião sobreviveu por tantos séculos baseada num conceito superficial, ou são os seus detratores que jamais se interessaram em compreender o que diabos é exatamente um mito, uma interpretação simbólica, uma metáfora? Não quero transformar esta série num tratado sobre mitologia [3], mas vamos considerar aqui, de forma bastante breve, uma outra visão para os deuses do zoroastrismo:

Aúra-Masda, o Deus Bom, não era invenção de Zoroastro, mas uma divindade já existente na cultura indo-iraniana, com muitas semelhanças a deuses ainda bem mais antigos da Índia Védica. Aúra-Masda, ou o Senhor Sábio, era um mito associado ao sol e ao fogo. Através de sua luminosidade, as trevas da ignorância poderiam ser vencidas. Era precisamente através do fogo e suas chamas mensageiras que os homens poderiam se comunicar com o Senhor Sábio.

Já seu irmão, Arimã, o Deus Mal, era o senhor da devassidão e da corrupção, o lado negro da alma de todos os homens, que os atraia para o mau pensamento e o mau governo de sua própria existência. Ora, é precisamente este que foi associado a Lúcifer. Porém, há uma característica essencial do mito que não foi transferida para o cristianismo: Arimã não está no mundo lá fora, mas dentro da alma de cada um de nós. Arimã não nos “seduz” para o mal, mas é antes a própria presença das trevas da ignorância que ainda pairam dentro de nosso coração, impedindo que vejamos a luminosidade do bem.

Percebem a enormidade da diferença? Não se trata mais de deuses criadores do mundo ou do Cosmos, mas de aspectos da própria alma, da mente humana, e de sua longa caminhada em direção à luminosidade, a extinção das trevas da ignorância; Enfim: a evolução da consciência. Zoroastro não estava preocupado com a origem das coisas, do porque existe algo e não nada, mas sim com a origem da ignorância humana, e de como proceder para que os homens reformem a si mesmos, e se tornem melhores e mais sábios. Mas a luz de Zoroastro, quando chegou aos homens da Igreja, foi corrompida em algo menor. Tal qual Lúcifer caiu dos céus, os eclesiásticos também caíram nas trevas da ignorância, e houve mesmo aqueles demônios que um dia acreditaram que Deus pediu guerras santas e conversões sob as torturas mais bárbaras – e os demônios da Igreja diziam falar em nome de Deus.

Mas como falar em nome de um aspecto apenas nosso, uma luz que habita dentro de cada alma, e que em cada uma delas é uma luz distinta, como a íris dos olhos? Somente Deus pode falar por si, mas quando o faz, fala direto a alma daqueles que souberam lhe escutar... Os outros todos que acreditam falar em nome dele devem tomar muito cuidado, pois estes sim terão muito a explicar no Juízo Final. Este sim, terão dificuldades em espantar Lúcifer.

O rabi da Galileia disse que veio trazer a espada, e não a paz. E ele tinha razão: necessitamos de uma espada para batalhar na guerra da alma, para nos livrar dos preconceitos, dos apegos, das zonas de conforto, da estagnação. Como é possível estar em paz com tanta violência, tantas guerras e sofrimento pelo mundo afora? Com a luz do amor voltada para o sistema inteiro, e não para um pequeno grupo, uma pequena região, uma pequena parte do tempo. Quem com ferro fere, com ferro será ferido – disse ele também: a solução não é o olho por olho nem o dente por dente, a solução não é guerrear no mundo lá fora, nem propriamente enfrentar exército com exército, e bomba com bomba. Bastam algumas bombas atômicas explodirem a mais, e todos estarão cegos e desdentados: hoje ao menos sabemos disso.

A solução é a revolução da alma, para que possamos oferecer a outra face ante toda a violência: a face da tolerância, da sobriedade, da espiritualidade. Nenhum soldado jamais será, afinal, tão corajoso, tão heroico, tão mítico, quanto o Rebelde Desconhecido, que não estava mais preocupado consigo mesmo, mas com o rumo que sua pátria iria tomar, continuassem os tanques e os outros soldados dizimando aqueles que lutavam, sem armas que não o próprio pensamento, na guerra pela paz.

E a paz só virá, efetivamente, após a espada, após a guerra que se dá internamente, após a revolução da alma. Só mudando a si mesmo que o homem pode mudar o que está a sua volta. Se o pensamento não muda, o que vemos é o que temos visto pelo mundo afora: um Império substituindo ao outro, e um opressor sentando no trono sangrento de outro opressor. Enquanto o homem não muda a si mesmo, o que vemos é apenas escuridão e ranger de dentes.

Até este precoce despertar da consciência humana, a Natureza nos guiou, através da “guerra da fome e da morte”, por seus caminhos multimilenares: ora presa, ora predador. Lutamos em muitas guerras, e muitas foram com unhas e dentes, e paus e pedras. Fomos alvejados e esquartejados, transpassados e devorados, e decerto por muito tempo pagamos ao olho por um outro olho, e ao dente por um outro dente. Um dia, porém, alguns de nos se cansam deste jogo, e decidem se voltar para a luz, e não mais para a escuridão... Agradecem ao sistema por tê-los feito chegar aonde chegaram, mas agora tratam de viver, não mais sobreviver. E amar, não mais assassinar.

Eis que todo incêndio um dia começou pequeno. Eis que os ventos das asas do Grande Dragão, Arimã, se antes conseguiam extinguir a chama de uma vela, hoje mal conseguem abalar a fogueira que arde no coração daquele que deu os primeiros passos no caminho em direção à luz. Agora, as pedras não mais se chocam para se destruírem e arrancarem lascas umas das outras, mas para produzir ainda mais faíscas de luz, para que o fogo aumente, e aumente, sempre adiante... A ignorância alheia não mais ameaça a nossa convicção. Não há ninguém para ser convertido, há apenas seres para serem amados – e por todos os cantos.

Há seres no leste e no oeste, ao norte e ao sul, acima e abaixo, há vida e beleza, há pensamentos de luz por toda a parte. Há amor por toda a parte. Não há mais nada a temer, nem a duvidar. Então, quando todas as guerras do mundo ficam para trás, nos recônditos da alma que deixou de ser pequena, apenas se é. A paz foi finalmente alcançada, a fera foi domesticada: Arimã, quem diria, também é nosso amigo.


Neste céu de liberdade, Pai, deixe meu país acordar (Tagore)

***

[1] O comunismo de Marx, descrito em sua filosofia, foi algo um tanto distante do comunismo do mundo real. Como alguém já disse: “amo Marx, mas odeio os marxistas”.

[2] Segundo a Cruz Vermelha chinesa.

[3] Para tal, recomendo consultaram a série Os corvos de Wotan.

Crédito das imagens: [topo] Alguns fotógrafos corajosos; [ao longo] Anônimo (encontradas no Facebook, sem crédito dos autores)

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26.6.12

Todas as guerras do mundo, parte 3

« continuando da parte 2

Deixe-me dar-lhe adeus, todo homem tem de morrer.
Porém está escrito na luz das estrelas, e em cada linha de sua mão:
Nós somos tolos por guerrear com nossos irmãos de armas...
(Brothers in Arms, Dire Straits)

O Senhor dos Exércitos

O ano de 1209 deixou marcado na história o sangue de milhares de homens e mulheres massacrados pela Cruzada Albigesa, comandada pelo Rei da França e “abençoada” pelo então Papa da Igreja de Roma. Um dos principais objetivos desta Cruzada em especial não era “converter” os muçulmanos nas terras distantes, mas sim arrasar aos cátaros, um movimento religioso surgido dentro do próprio catolicismo, e que pregava uma visão um tanto quanto mística das Escrituras.

Bastante influenciado pelo gnosticismo, o catarismo pregava o cristianismo puro (do grego katharós, “puro”). Falavam em amor, fé, tolerância, perdão e misericórdia por onde passavam. Os cátaros eram queridos pelo povo, pois pregavam que não era necessária uma intermediação dos eclesiásticos em seu contato com Deus – eles poderiam orar em qualquer local, e realizar suas próprias missas e rituais de adoração, sem a necessidade de um padre. Também defendiam que a salvação da alma se daria pelo conhecimento (gnose) e pelo amor, sendo desnecessário, aqui também, o envolvimento da Igreja.

Mas os cátaros também tinham ideias radicais. Eles não acreditavam que o mundo tivesse sido criado diretamente por Deus, mas que era uma materialização do Mal e que, portanto, os que aqui viviam estavam destinados à expiação até que, após uma vida destinada ao bem, voltassem ao Éden perdido. Enquanto não conseguissem isso teriam que reencarnar em sucessivas vidas na Terra... Ou seja: os cátaros eram excelentes candidatos a serem arrasados por uma Cruzada; Isto é, caso se recusassem a “conversão”, aceitando a Verdade das Escrituras (segundo a Igreja de Roma, é claro).

Bem, eles se recusaram... Em 1209 a cidade Béziers era habitada por cerca de 60 mil pessoas, dentre elas muitos cátaros. O problema é que nem todos eram cátaros, o que gerou um questionamento muito pertinente de um dos comandantes do exército francês ao representante do Papa, quando eles se preparavam para invadir a cidade com uma força militar vastamente superior. O comandante perguntou: “Mas senhor, nesta cidade encontram-se vivendo em paz cristãos, judeus, árabes e cátaros. Como vamos saber quais são os inimigos?”. E a Igreja assim o respondeu: “Matem todos; Deus escolherá os seus!”. Béziers foi dizimada, mas não se sabe se Deus conseguiu encontrar os seus...

A ideia da guerra do Bem contra o Mal é poderosa e sedutora, e por isso mesmo sempre agradou aos Imperadores, Reis e Papas. De todas as ilusões que se interpõe a verdade inconveniente de que, como já vimos, todas as guerras do mundo se dão pelo desejo da conquista de territórios e riquezas, a lenda do Bem contra o Mal é a mais simples de se compreender, e a mais capaz de arrebatar uma grande massa de ignorantes. Nesse tipo de guerra, não há dor na consciência em dizimar inocentes, nem mesmo em estuprar mulheres e crianças, pois fica pré-estabelecido que elas são como demônios sem alma, fruto de um suposto exército comandando pelo Mal.

Engana-se quem pensa que tal artimanha se perdeu na Era Medieval, pois ela é até hoje utilizada em muitas guerras preventivas e atos de terror... Para os terroristas islâmicos, os civis de Nova York eram tão demônios quanto os civis do Iraque o eram para o exército americano. Nas manchetes, porém, havia o anúncio: “O Iraque será libertado das garras do Mal”. E acreditou quem quis, ou fingiu acreditar.

Nas Escrituras há inúmeras menções ao Senhor dos Exércitos, que presume-se ser o Deus Bom. Ocorre que, se ele é o senhor de um exército, falta definir quem seria o senhor dos outros exércitos, os inimigos do Bem. Esta ideia está muito bem definida na mitologia do zoroastrismo. Nesta antiquíssima religião persa, anterior ao próprio judaísmo e ao início da produção das Escrituras, há uma série de crenças que até hoje se veem presentes em inúmeras religiões modernas [1]: a imortalidade da alma, o advento de um messias, a ressurreição dos mortos, o juízo final, etc. Mas o que nos interessa aqui é a própria essência do zoroastrismo, que prega que o mundo inteiro é tão somente o grande palco da luta de duas divindades. Aúra-Masda seria o Deus Bom, e Arimã o Deus Mal. Espera-se, é claro, que o Bem vença esta batalha eterna... Pois bem, e todo esse tempo acreditávamos que o Imperador Constantino havia encontrado no cristianismo o sistema religioso ideal para a manutenção de seu império, quando na verdade ele deveria agradecer mesmo era a Zoroastro [2], e não a Jesus.

Interessante, porém, como mesmo a Bíblia parece ser bem pouco clara em identificar quem seria exatamente esse tal Deus Mal. Dizem que é Lúcifer, um suposto anjo caído, mas não se sabe onde exatamente ele está descrito. “Lúcifer”, termo que significa “o portador de luz”, e na antiguidade era quase que sempre associado ao planeta Vênus [3], parece se referir a uma pessoa diferente cada vez que é citado nas Escrituras: em Isaias (14:12) refere-se a um ambicioso rei babilônico que caiu no mundo dos mortos; no Apocalipse (12:4 e 7-9), um verdadeiro hino pagão, ele é identificado (por seus outros nomes) como um imenso dragão, que lembrava uma serpente gigantesca; já no mesmo Apocalipse (22:16) e em II Pedro (1:19), o termo está se referindo ao próprio Jesus Cristo. Mesmo quando é supostamente citado indiretamente, como em Ezequiel (28), fala sobre um querubim, um anjo que esteve no Éden, mas foi condenado por desafiar a autoridade de Deus (assim como Adão e Eva o desafiaram, aliás).

Vamos simplificar um pouco, senão daremos ainda muitas voltas sem sair do lugar, e essa questão me parece tão simples que uma criança poderia resolvê-la para nós, desde que fosse deixada livre para pensar por si mesma:

O que é o Mal? Agir, por vontade própria, para infligir nos outros algo que não gostaríamos que os outros infligissem em nós.

O que é Deus? O ser ou força primordial que gerou tudo o que existe a partir de si próprio, de modo que, se não existisse Deus, nada mais haveria.

Pode haver outro ser incriado, como Deus? Não, pela lógica só poderá haver um único ser incriado. Se houvesse outro, ou se houvessem mais de um, haveriam de ter sido criados por ainda outro Deus anterior a estes.

Lúcifer é mal, e foi necessariamente criado por Deus. Isso faz de Deus um ser mal? Faria, se Lúcifer fosse mal desde o princípio. Mas ainda podemos resolver a questão considerando que Lúcifer, tal qual o querubim que desafiou Deus, nasceu bom, ou neutro, mas depois tornou-se mal.

Mas então, Lúcifer é eternamente mal? Não, se qualquer ser criado por Deus fosse eternamente condenado a ser mal ou, de fato, eternamente condenado a proceder sempre por um mesmo princípio moral, ainda que bom, isso faria de Deus não um criador de seres, mas de robôs ou fantoches. Como Lúcifer nasceu bom e tornou-se mal, nada impede que ele se arrependa e se torne novamente bom. Conhecemos, pela nossa história, inúmeros exemplos de homens maus que tornaram-se bons (dentre eles o próprio São Paulo, que antes fora Saulo). Se estes podem se arrepender, Lúcifer também pode.

Mas, digamos que Lúcifer até hoje é mal por vontade própria, o que ele pretende conseguir em sua luta contra o Deus Bom? Difícil dizer, mas o que fica óbvio é que Lúcifer não teria nenhum poder sobre Deus, e nenhuma esperança de um dia vencer tal batalha.

Se Lúcifer sabe que jamais poderá vencer, porque ele precisa das almas dos homens? Difícil dizer, mas talvez seja uma forma de aliviar sua insatisfação: já que não pode “evoluir” no mal, trata de trazer para junto de si outros seres, de modo que fiquem estagnados como ele.

E Deus seria um Deus Bom se permitisse tal estagnação, sem proteger os seus da “sedução” de Lúcifer? Obviamente que não. De fato, independente de existir ou não um ser como Lúcifer, por toda a Natureza podemos ver claramente que a estagnação é severamente punida; Não para o mal, mas para o bem dos seres, conforme um remédio amargo... A isto Charles Darwin intitulou “a guerra da fome e da morte”.

***

Eis que todas as guerras do mundo são mesmo uma mesma guerra. Mas não uma guerra religiosa, não uma guerra ideológica, não uma guerra lendária, e nem mesmo uma guerra por riquezas e territórios... Pois que todos os imperadores que marcharam pelo mundo brandindo a bandeira com o símbolo do Senhor dos Exércitos eram apenas cegos um pouco mais elevados que outros cegos, ignorantes pastoreando ignorantes, buscando no horizonte algo que sempre esteve dentro deles mesmos, mas não perceberam, não acordaram e nem tampouco iluminaram suas consciências... Marcharam e dizimaram, e talvez tenham até “convertido” alguém, mas tudo o que conquistaram foi apenas sangue e fumaça.

Mal sabiam eles o quão próximos estiveram, e ainda estão, do Reino que, uma vez conquistado, jamais poderá ser perdido...

» Na parte final, a guerra da alma...

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[1] Na verdade o zoroastrismo ainda é praticado por cerca de 200 mil pessoas, em sua maioria na Índia e no Irã.

[2] Profeta mítico que criou o zoroastrismo.

[3] Ovídio menciona que cada novo dia começa quando "Lúcifer brilha radiante no céu, chamando a humanidade para seus afazeres diários. Lúcifer excede em brilho as estrelas mais radiantes".

Crédito das imagens: [topo] Iluminura dos irmãos Limbourg, do inicio do século XV (uma das raríssimas representações medievais de Lúcifer ainda enquanto anjo, e que mostra exatamente a sua queda); [ao longo] Lawrence Manning/Corbis

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24.6.12

Todas as guerras do mundo, parte 2

« continuando da parte 1

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... Que vos desprezam... Que vos escravizam... Que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! (Chaplin, em O Grande Ditador)

A doce e bela morte

A Coreia do Norte está situada na parte norte de uma península no extremo leste do continente asiático, entre a China e o mar que a separa da ilha do Japão. Como alguns devem saber, a península foi governada pelo Império Coreano até ser anexada pelo Japão, após a Guerra Russo-Japonesa de 1905. Ela foi dividida entre zonas de ocupação norte-americana (sul) e soviéticas (norte) em 1945, após o final da Segunda Guerra Mundial. A Coreia do Norte recusou-se a participar da eleição supervisionada pelas Nações Unidas, feita em 1948, que levava à criação de dois governos coreanos separados para as duas zonas de ocupação. Ambos, Coreia do Norte e Sul, reivindicavam soberania sobre a península inteira, o que levou-os à Guerra da Coreia, em 1950. Um armistício de 1953 terminou o conflito; no entanto, os dois países continuam oficialmente em guerra entre si, visto que um tratado de paz nunca foi assinado.

A Coreia do Norte se autodenomina uma república socialista, mas na prática sabemos que se trata de uma ditadura comunista que ficou presa ao passado, e tem enormes dificuldades de dialogar com um mundo cada vez mais globalizado. Em 2009, os quatro loucos aventureiros que apresentam o programa Não Conta Lá em Casa, do canal de TV a cabo Multishow, e costumam visitar áreas de conflito para nos trazer uma visão genuinamente brasileira da situação, conseguiram adentrar a Coreia do Norte valendo-se de sua “diplomacia sem noção”, como eles mesmos alegam. A despeito das cenas surreais que foram mostradas no programa, como as guardas de trânsito da capital Pyongyang fazendo sinais para um trânsito inexistente (quase não há carros lá), ou quando dedilham rock & roll no violão numa escola de música, e percebem que os adolescentes de lá nunca haviam ouvido coisa igual, a cena que nos interessa aqui é a conversa que eles têm com algum oficial de alta patente do governo ditatorial.

Devemos dizer que eles não são tão “sem noção” assim – surpreendentemente, quem inicia a conversa é o próprio militar, que parece ter uma curiosidade genuína em aproveitar aquele raro momento de contato com jovens vindos de um país tão distante, teoricamente neutro na questão das Coreias (no que também poderia ser interpretado como um perigoso interrogatório). Em todo caso, papo vai e papo vem, um de nossos heróis “sem noção” levanta a questão mais espinhosa sem papas na língua: “É sabido que a China protege os direitos da Coreia de fazer testes nucleares. É mesmo tão necessário fazer esses testes tão perto do Japão?”. O oficial então responde com sua versão dos fatos: “Você sabe que tivemos uma péssima experiência como colônia do Japão por mais de 40 anos. A Alemanha compensou todos os países que atacou, mas o Japão não compensou nada. Todas as 200 mil mulheres que eles usaram como escravas sexuais e os 8 milhões usados como força de trabalho... Eles torturaram nosso povo. Ao menos que eles compensem nosso país, nossa relação não irá melhorar. Nossos testes nucleares não visam atacar nenhum outro país, mas defender o nosso”.

Finalmente, o militar pergunta: “Qual a melhor maneira de resolver a tensão em nossa península?”. Ao que nosso sábio “sem noção” responde: “Acho difícil para um brasileiro responder essa pergunta, pois não temos tantos episódios de guerra recentes, como vocês têm. Eu poderia dizer – esqueçam o passado –, mas imagino que seja muito difícil”...

Não sei se concordam comigo sobre a importância desse tipo de diálogo, mas em todo caso ele toca na essência do que manteve tantas e tantas guerras ocorrendo pelo mundo, com breves intervalos de paz entre elas. De certa forma, todas as guerras do mundo são uma mesma guerra, e o que devemos é tratar de tornar os intervalos de paz cada vez mais duradouros.

A Guerra da Coreia não é propriamente um embate ideológico, mas uma luta por território e riquezas, como é afinal a razão de todas as guerras, mesmo as religiosas. O comunismo soviético e o capitalismo americano são apenas sistemas políticos, mas as nações não vão à guerra por achar que sua visão de mundo pode trazer benefício às nações vizinhas, seu real objetivo não é evangelizar ideologia alguma, mas pura e simplesmente conquistar mais território, e mais riquezas. Ao menos, é uma razão bastante simples de se compreender...

Mas, e qual é a melhor maneira de evitar que uma nação, necessitada ou não, invada outra em busca de riquezas? Ora, uma delas é estabelecer um claro equilíbrio de poder, onde o poderio militar de uma ou algumas nações forme uma ou mais potências muito superiores às demais, de modo que as outras nações se abstenham de arriscar invasões. O problema dessa “solução”, no entanto, é que ela não impede que as potências invadam outras nações, ou extraiam suas riquezas de forma autoritária (ou oculta, “maquiada” pela mídia). Uma solução que parece mais duradoura e, em todo caso, que é até hoje a melhor solução que os países encontraram, é estabelecer a diplomacia e um vigoroso mercado econômico entre as nações, de modo que a escassez de recursos de um país possa ser equilibrado pela venda de outros recursos que possua em excesso, e assim por diante... É claro que essa economia globalizada não é imune à manipulações, protecionismo, desequilíbrios e injustiças sociais, mas ao menos é muito melhor do que sangue, tiros de canhão e bombas nucleares.

O que um longo período de paz entre as nações pode nos permitir, entretanto, é que percebamos que, afinal, não existem nações, e que no fundo, todos nós somos bastante parecidos, quando estamos abertos para uma conversa amigável, amistosa, e quem sabe, “sem noção”. Fosse um dos quatro apresentadores do Não Conta Lá em Casa um descendente de japoneses que migraram ao Brasil após a Segunda Guerra, ele provavelmente teria enormes dificuldades em ter uma conversa tão amistosa com o oficial coreano. Mas, que impediria tal amistosidade, senão sua aparência nipônica, senão a pressuposição do coreano de que aquele brasileiro faria parte da “nação japonesa”, a mesma que estuprou suas mulheres e torturou seu povo há sabe-se lá quanto tempo? Tampouco o oficial nalgum dia refletiu sobre o fato de que, após a rendição do Japão aos EUA, eles ficaram proibidos de sequer ter um exército, e que por isso mesmo faz muitos anos que não nasce no Japão alguém que tenha qualquer coisa a ver com os estupros e torturas de quase um século atrás. O que mantém essas chagas abertas, afinal? O mito das nações!

Este é exatamente o título do livro de Patrick J. Geary [1], historiador americano, que basicamente defende a tese de que uma nação é um construto intelectual, ideológico, e não tem bases naturais nem tampouco científicas. Não é tão difícil de entender: assim como hoje vemos negros jogando em times de futebol de países europeus, pois são filhos de africanos que migraram para a Europa há décadas, e, portanto, já nasceram nos países que defendem, da mesma forma que ocorre no futebol, ocorre em tudo o mais. Se a nação fosse algo natural, deveriam haver raças no mundo, e os habitantes de um dado país europeu deveriam ser descendentes diretos dos ancestrais que colonizaram aquela dada região há milhares de anos atrás. Porém, a ciência e arqueologia modernas, juntamente com os testes de DNA, já provaram que só existe uma única raça humana, o homo sapiens, e nos deram fortes indícios de que ela provavelmente originou-se em alguma parte do continente africano, e depois migrou para toda a Terra. Se vamos falar em nação da maneira que Hitler e outros ditadores falavam, só podemos falar numa nação global, composto por todos os países e todas as regiões onde ainda caminham os homo sapiens.

Segundo Geary, “o processo específico pelo qual o nacionalismo emergiu [nos últimos séculos] como uma forte ideologia política variou de acordo com a região, tanto na Europa como em outras partes. Em regiões carentes de organização política, como na Alemanha, o nacionalismo estabeleceu uma ideologia com o fim de criar e intensificar o poder do Estado. Em Estados fortes, como França e Grã-Bretanha, governos e ideólogos suprimiram impiedosamente línguas minoritárias, tradições culturais e memórias variantes do passado em prol de uma história nacional unificada e língua e cultura homogêneas, que supostamente se estendiam a um passado longínquo”. E, não se enganem, “o ensino público de qualidade” também sempre foi à ferramenta ideal pela qual o mito das nações foi construído na era moderna... Hoje, porém, ele talvez não faça mais sentido, mas não significa que os currículos escolares estejam sendo atualizados.

***

Antes de encerrar, porém, devemos tomar cuidado com os termos aqui utilizados. Reflitamos... Nação, do latim natio, de natus (nascido), é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, falando o mesmo idioma e tendo os mesmos costumes, formando assim, um povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características étnicas e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião, língua e consciência nacional.

Pois bem, esta é uma definição que pode se adequar as enciclopédias, mas não ao mundo real. Da mesma forma que um jogador negro da seleção de futebol alemã pode não ter a mesma cultura, a mesma religião, e muito menos a mesma cor de pele da maioria dos outros jogadores, ele é, não obstante, um alemão. Quando ele marca um gol, são todos os alemães do estádio que comemoram, todos os homo sapiens que decidiram torcer por aquele time de futebol. E assim é com tudo o mais: no fundo, tanto a seleção alemã quanto o Bayern de Munique são apenas times de futebol. É tão somente uma ilusão ideológica que determina que os times da Copa do Mundo precisam ter apenas jogadores nascidos ou naturalizados nesta ou naquela região do globo. Ninguém nunca viu uma fronteira na face da terra – mesmo assim, em nossas mentes, elas ainda existem.

Talvez fosse mais proveitoso usarmos outro termo... Pátria, do latim patria (terra paterna), indica a terra natal ou adotiva de um ser humano, onde se sente ligado por vínculos afetivos, culturais e históricos. O termo também pode significar somente o ambiente ou espaço geográfico em que discorre nossa vida. Em raízes ainda mais antigas, o termo liga-se ao latim pagus, que significa “aldeia”, e que também deu origem ao termo “pagão”. Ora, como muitos devem saber, toda nossa cultura e religião ancestrais nasceram de aldeias, e xamãs, e as práticas espirituais do paganismo. Além de anteceder a “nação” em milhares de anos, o termo ainda nos oferece a liberdade de considerar que nossa pátria não é somente o lugar onde nascemos, mas também todos os locais onde escolhemos um dia morar, e todos os amigos, e todos os amores que construímos pelo caminho.

Dulce et decorum est pro patria mori... Horácio [2] talvez estivesse certo: pode ser belo e doce morrer pela pátria, defendendo aqueles que realmente amamos daqueles que os querem dizimar; E não propriamente lutando em guerras supostamente ideológicas, baseadas em mitos acerca de povos que nunca foram exatamente o nosso, nos incitando a matar inimigos que, tampouco, jamais foram os nossos. Apenas para que um opressor obtenha o território e as riquezas de outro opressor.

A mais nobre função de um soldado é lutar pela paz, e pela liberdade daqueles que se encontram atrás dos muros dos castelos e das trincheiras nas fronteiras imaginárias. Até que um dia, muros e fronteiras, e balas e canhões, não tenham mais razões de ser. Esta sim, é a única beleza possível da guerra, seja na vitória, seja na morte.

» Na próxima parte, a estrela inimiga...

***

[1] O mito das nações, lançado no Brasil pela Conrad Editora.

[2] Poeta e filósofo romano (65 a.C. – 8 a.C.).

Crédito das imagens: [topo] Divulgação (apresentadores do NCLC na Coréia do Norte); [ao longo] Divulgação (Cacau, jogador brasileiro naturalizado alemão, comemora seu gol na Copa do Mundo de 2010, quando defendeu a seleção da Alemanha); Google Image Search/Anônimo

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22.6.12

Todas as guerras do mundo, parte 1

Guerra é um confronto sujeito a interesses da disputa entre dois ou mais grupos distintos de seres, que se valem da violência para tentar derrotar o adversário.

Quem chora pelos demônios?

Columbine sempre fora um local pacato. Situada em Colorado, nos EUA, a escola sempre teve um dos índices mais elevados do país na aceitação de seus alunos em universidades, com cerca de 82%. Columbine também se orgulhava de não registrar casos de violência. O policial de plantão se limitava a multar alunos que estacionavam os carros nas vagas destinadas a professores. A escola também era famosa por ser conservadora e privilegiar aos atletas, que defendiam os times da própria instituição. Foi esse o provável estopim da tragédia...

Em Abril de 1999, dois alunos que se sentiam excluídos dos outros grupos, particularmente por não serem atletas e nem muito dados ao convívio social, entraram armados até os dentes em Columbine, e atiraram em quem viram pela frente, matando 13 e ferindo 21, dentre professores, alunos e funcionários. Quando a polícia chegou, os jovens assassinos atiraram contra as próprias cabeças, morrendo imediatamente. Deixaram uma nota, encontrada perto dos corpos, que dizia: “Não culpem mais ninguém por nossos atos. É assim que queremos partir”.

Mas não era apenas um suicídio, e sim um verdadeiro ato de terror. A mídia na época procurou analisar minuciosamente a vida dos dois jovens, na tentativa de encontrar uma possível motivação para ato tão brutal... Como não era conveniente culpar as grandes indústrias do entretenimento, na época a maior parte da “culpa” caiu no colo da indústria dos videogames que, há mais de uma década atrás, não tinha a força política e econômica de que dispõe hoje. Os assassinos de Columbine eram assíduos jogadores de Doom, um dos primeiros games de tiro com visão em primeira pessoa e cenários 3D.

Em Doom, o personagem controlado pelo jogador é um fuzileiro espacial de um mundo futurista fictício. Ele é deportado da Terra para Marte quando se recusa a atirar em civis desarmados (ordem de um oficial superior). Para seu infortúnio, em Marte uma experiência militar secreta dá errado, e abre uma espécie de “portal para o Inferno”, de onde saem demônios e zumbis, que precisam ser dizimados pelo jogador. O jogo foi muito criticado pelos conservadores por exibir muito sangue (apesar de ser o sangue dos demônios) e muitas “imagens satânicas” (afinal, eram demônios ora essa). O fato de o personagem estar agindo heroicamente para proteger a Terra e, principalmente, o fato de ele estar nessa situação exatamente por ter se recusado a atirar em civis desarmados, é sumariamente ignorado pelos críticos conservadores. Doom foi o primeiro bode expiatório que a sociedade americana encontrou para “explicar” o massacre em Columbine.

Mesmo após Doom, muitos outros games similares sofreram a acusação de incitar a violência nos jovens, incluindo outros baseados nas guerras modernas, onde os inimigos não eram demônios, mas membros de um exército inimigo... Com o tempo, as acusações foram “esfriando”, até que se soube que o próprio exército dos EUA via com muito interesse o impacto que tais games provocavam nos jovens.

Com o alistamento caindo ano após ano, o exército americano precisava de um chamariz que pudesse realmente “seduzir” os jovens. Assim foi criado o America’s Army, um jogo inteiramente gratuito onde todo o treinamento militar americano é simulado, até que os jogadores são aprovados no “exército virtual”, e podem então realizar missões militares pelo mundo afora, numa simulação de guerra que privilegia a estratégia, o trabalho em equipe, e que é elogiada por seu realismo. Interessante como, após o lançamento do America’s Army, os produtores de games de guerra passaram de personas não gratas para grandes colaboradores da tecnologia de treinamento e alistamento militar.

Ao contrário de Doom, no entanto, games como o America’s Army, Full Spectrum Warrior e outros, apesar de agora serem reconhecidos como “algo sério” pela sociedade americana, tem um grande problema, ironicamente ignorado pelos conservadores: neles os inimigos são soldados, pessoas como nós, seres humanos, e não demônios ou zumbis. Para um jovem americano, pode ser entusiasmante jogar uma simulação da guerra no Iraque. Para um jovem israelense, pode ser incrível simular um conflito com palestinos terroristas... Mas, para os jovens palestinos, iraquianos, ou árabes, nem tanto.

Dizem os generais que a guerra não tem nada de bonito há não ser a vitória. Eles talvez estejam errados: na guerra, nem a vitória é bonita. Ainda assim, segundo o psicólogo Steven Pinker, “provavelmente vivemos na época mais pacífica da existência de nossa espécie” — mesmo que, “confrontados com intermináveis notícias sobre guerra, crimes e terrorismo, pudéssemos facilmente pensar que vivemos na era mais violenta jamais vista”. Em seu livro Os melhores anjos de nossa natureza, Pinker defende a tese de que, grosso modo, a violência tem diminuído muito no mundo civilizado, ao menos se formos considerar números relativos, e não absolutos. E ele provavelmente tem toda razão, se hoje vivemos alarmados com a violência, é muito mais pela atenção que a mídia dá a ela, do que por ela estar realmente crescendo. Entretanto, mesmo Pinker concorda: é exatamente na guerra que a moral humana é subitamente reprimida, e os ecos da nossa animalidade, nossa propensão à barbárie, retornam com toda a força. Mas, como acabar com a guerra? Seria com a educação?

Pode até ser, mas vai depender de que tipo de educação que estamos falando, e da real atenção que queremos dar a ela. Os gastos militares do exército dos EUA, por exemplo, são exorbitantes (de longe o maior do mundo), e superam em muito não só o investimento em educação, como em saúde, em ciência, e em quase tudo o mais somado. Ainda assim, lado a lado com alguns países do Oriente Médio, como Omã, Iraque e Israel, os gastos militares americanos, numa comparação percentual com o PIB (Produto Interno Bruto), não mais figuram entre os primeiros da lista. Em todo caso, o gasto com a indústria bélica é muito elevado no mundo todo, principalmente se considerarmos que ainda temos milhões de miseráveis, e um clima global cada vez mais instável para tomarmos conta...

Se parte do gasto do exército dos EUA vai para produzir games de simulação como o America’s Army, porque não investir também em games ainda mais educativos, que simulem estratégias de paz, e não de guerra? No game Peacemaker (Pacificador), cabe ao jogador escolher jogar como o Primeiro Ministro de Israel, ou a Autoridade Palestina. Neste jogo muito elogiado pela crítica especializada, o objetivo da simulação é chegar a um tratado de paz duradouro entre Isreal e a Palestina, e, ao contrário de tantos outros jogos, chegar a uma situação de guerra significa perder o jogo, e não ganhar – independente do resultado final da guerra. Para os jovens que desenvolveram esse game como um projeto numa universidade americana, tendo sido lançado comercialmente em 2007, apenas a paz é bela, apenas a paz indica que o jogo foi vencido.

Em tantos e tantos games de simulação de guerra, os “demônios” a serem mortos estão sempre do outro lado, na nação inimiga. Mas, e quem chora pelos demônios? Os palestinos choram pelos seus mortos da mesma maneira que os israelenses. Quando são atingidos por balas, sangram da mesma maneira, e até mesmo o sangue é da mesma cor... Talvez os assassinos de Columbine tenham se espelhado mais nos senhores da guerra, nos ditadores de ideologias falsas que pretendem nos fazer crer que existem seres “do outro lado”, inimigos, que não são como nós, que não pensam como nós, que não sangram ou sofrem como nós, e que merecem morrer como demônios, pois é mais fácil pegar um fuzil e matar do que negociar acordos e tratados de paz.

Infelizmente (ou felizmente) os demônios de Doom nunca existiram. Em todas as guerras do mundo, nunca existiu um único inimigo que não fosse humano, que não tivesse alma, como nós temos. Talvez o exército dos EUA esteja investindo nas ideias erradas: precisamos de gente criativa e pacífica, como os criadores de Peacemaker, e não de jovens sedentos por atirar em demônios... Afinal, é capaz de eles um dia acreditarem, como os generais acreditam, que a vitória é bela, e que os demônios da nação vizinha são realmente demônios.

» Na próxima parte, o mito das nações...

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Crédito das imagens: [topo] Divulgação (Doom); [ao longo] Divulgação (America’s Army); Divulgação (criadores do game Peacemaker)

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20.6.12

O pensamento analógico

Eu (raph), Igor Teo, Peterson Danda, Raphael PH e Jeff Alves, antigos membros do Links Mayhem, estamos participando de um novo projeto: Sobre um tema específico cada um dos participantes irá publicar um texto, em uma ordem estabelecida aleatoriamente, formando uma discussão, um agradável bate papo, onde o leitor será levado a refletir e meditar sobre diversos pontos de vista e abordagens do mesmo tema. Eis então o projeto Entrementes. Boa leitura!

O tema da primeira rodada é “Pensamento”, e já havia se iniciado no blog Artigo19 (Igor). Este é o segundo artigo, pela ordem [1]...


Outro dia estava vendo na TV a cabo um programa sobre novas empresas no ramo da tecnologia e inovação, e conheci a Quirky, que é basicamente uma comunidade online de gente criativa, com ideias para novos produtos. Você envia uma ideia por 10 dólares e, duas vezes por mês, as ideias mais votadas pela comunidade passam a ser desenvolvidas pela Quirky, até que virem produtos reais, físicos, e 30% das vendas vão para o criador.

Mas o que me chamou a atenção foi o depoimento do sujeito que criou o Click and Cook [2]. Há certa altura ele disse mais ou menos assim: “Sim o dinheiro é legal, mas o que mais me emociona é o fato desse produto, que agora está aqui na minha frente, e que posso pegar com a mão, ter saído da minha cabeça”... Nós realmente temos essa estranha dificuldade em notar que tudo o que há por aí, construído pelos homo sapiens – arranha-céus, trens bala, semáforos, espátulas, etc. –, saiu nalgum dia da cabeça de um, ou vários, de nós. Ainda assim, é sempre emocionante ver quando alguém percebe isso: “pensei alguma coisa, e agora é real!” Há que se perguntar: e quando, afinal, um pensamento não foi real?

Por exemplo, na era da informática, muitas e muitas coisas foram criadas, mas não passam de bits trafegando por hard disks. Na verdade, toda a internet é algo que não se pega com a mão: mas existe, e foi criado por nós. Alguns homens criam coisas “físicas”, hardwares; Outros criam coisas “virtuais”, softwares. Um programa de computador, por exemplo, é uma série de comandos e algoritmos que lidam com a interação do usuário para lhe trazer novos comandos e algoritmos de acordo com o que ele deseja: apenas um clique no botão de “buscar” do Google, e quantos e quantos anos de inovação e criatividade não se escondem por detrás do processo que retorna milhões de resultados [3], quantos e quantos pensamentos que saíram nalgum dia da cabeça dos homo sapiens.

Mas qual seria exatamente a natureza do pensamento? Sabemos que o pensamento sem dúvida passa pela mente, independentemente de ter se originado apenas no cérebro, ou de ter vindo de algum outro centro oculto, de alguma usina espiritual. Isto pois, com os eletroencéfalogramas (EEGs) e outras tecnologias de observação objetiva das fagulhas elétricas a navegar pelo espaço neuronal do cérebro, tudo o que vemos é o resultado da vontade de agir, dos comandos cerebrais; Ou pelo menos nada que temos visto na neurociência de ponta indica que tal fagulha se originou apenas no cérebro, e não está somente trafegando por ele, ativando as teclas do piano que controla nosso corpo. Observamos, portanto, luzes a passar por extensos e intrincados postes de luz, que iluminam toda a metrópole cerebral, e fazem a cidade funcionar – porém, jamais encontramos algo no cérebro que possamos indicar, com boa convicção, como sendo a usina elétrica dessas luzes, o centro da vontade.

Portanto, ainda que hoje saibamos que a consciência é um processo que simula e elabora realidades para que nosso eu possa decidir o que fazer a seguir; E ainda que a atividade consciente na verdade seja apenas reflexo de inputs de informação sensorial e decisões muitas vezes inconscientes que ocorreram a até meio segundo atrás, antes de terem sido percebidas conscientemente [4]; Ainda assim, a despeito de todo o ceticismo envolvido com as questões espirituais, podemos dizer pelo menos isto aqui: enquanto vivos, encarnados, todos nós concordamos que somos um ser que tem uma mente e é capaz de elaborar e interagir com pensamentos, ainda que tão somente dentro de nossa própria mente [5].

Podemos, sem dúvida, extrair algumas conclusões da metáfora do cérebro enquanto máquina, lidando com as informações da mente como um computador lida com bits digitais. Ora, uma das definições de informação é exatamente “dar forma a mente”. Mas, se aqui falamos apenas de informações que trafegam pela mente, será que elas também são substâncias reais por si mesmas?

John Wheeler, um físico americano, cunhou a expressão “o it que vem do bit”. Em suas palavras: “Cada it – cada partícula, cada campo de força e até mesmo o próprio continuum espaço-tempo – deriva inteiramente sua função, seu significado, sua própria existência – mesmo que em alguns contextos indiretamente – de respostas induzidas por equipamento a perguntas sim ou não, escolhas binárias, bits. O it que vem do bit simboliza a ideia de que cada item do mundo físico tem no fundo – bem no fundo, na maioria dos casos – uma fonte e uma explicação imateriais; que aquilo que chamamos de realidade vem em última análise da colocação de perguntas sim-não, e do registro de respostas evocadas por equipamento; em resumo, que todas as coisas físicas são informacional-teóricas na origem.” [6]

Bem, foi um físico quem disse... Na verdade, talvez a realidade virtual gerada por computador, ou através do baile neuronal mental, não seja assim tão virtual. É mesmo estranho de se pensar, mas cada pensamento, cada imagem mental, também precisa estar lidando com informações; Ou com bits de informação, se formos manter esta nossa metáfora mecanicista.

Dessa forma, da mesma maneira que as espátulas do Click and Cook surgiram primeiramente na mente de seu criador, para depois serem projetadas nos softwares de renderização de imagens em 3D, para somente então serem produzidas, se tornarem “algo que se pega com a mão”, assim também ocorre com tudo o mais. O computador mais avançado que a humanidade criou é tão ferramenta quanto à primeira roda. Mas, tanto a roda quanto o computador, surgiram antes nalguma mente.

Você pode imaginar uma cadeira de madeira; Se tiver uma em casa, fica ainda mais simples. Porém, ainda mesmo que memorize a forma da cadeira que vê a sua frente, ou que se lembre de uma cadeira que já viu, quando imagina de novo a cadeira, sem usar os olhos, é o seu cérebro que a constrói, que a renderiza tal qual um software 3D. E não apenas isso, se avançar a fundo na imaginação, verá que pode rotacionar a imagem, dar zoom, separar as partes da cadeira e depois juntar de novo e, às vezes quem sabe, até mesmo criar um formato inteiramente novo para a tal cadeira. Sim, tal cadeira não é mais feita de madeira, é feita de informação – não obstante, ela existe, ela precisa ter substância, ainda que seja apenas a substância mental.

Mas é quando percebemos que é a mente quem tecla o computador cerebral, que é o eu quem tem a vontade de imaginar a cadeira, que percebemos que, no fundo, mesmo o cérebro é ferramenta. Se a metáfora mecanicista pode abranger o cérebro, ela é ainda totalmente falha em abranger a vontade, a mente, o eu.

Num sinal digital, como o que você usa para acessar a internet, a informação viaja por "pacotes" de bits binários. O sinal digital é preferível ao analógico, que viaja por ondas eletromagnéticas, e é afetado pela estática, ou seja, os campos elétricos que estão por toda parte, e causam ruído no sinal. No sinal digital, onde a informação que interessa ser transmitida é decodificada em “pacotes”, fica bem mais simples distinguir o ruído do sinal.

O nosso cérebro, no entanto, não é digital, mas analógico. Ele está, há todo momento, recebendo uma quantidade imensa de informações de nossos sentidos, e é somente nossa consciência que nos protege de uma overdose sensorial, ao armar o palco da existência, para que o eu trabalhe apenas com as informações mais relevantes, e possa construir o sentido de sua própria história, elaborando as decisões a seguir. Nada disso parece ter a ver com uma metáfora mecanicista: onde entra o eu, a ideia de ferramenta se esvai.

Nosso pensamento é analógico. Por mais que alguns de nós tentem viver de forma totalmente racional, filtrando o ruído da existência e procurando acessar somente a razão, isoladamente, mais dia menos dia percebemos que não somos máquinas, e não podemos viver separando a existência em “pacotes”. O ruído sempre esteve presente, e sempre estará. Devemos aprender a conviver com ele, ainda que não o compreendamos totalmente, pois o ruído é a maneira da alma nos lembrar: eu estou aqui.


raph

***

» Acompanhe os próximos artigos do Projeto Entrementes

[1] Na sequencia, os próximos artigos serão publicados em: blog O Alvorecer (Jeff); blog Diário do Adeptu (PH); encerrando no blog Autoconhecimento e Liberdade (Peterson).

[2] Um engenhoso sistema de espátulas onde você pode trocar de espátula rapidamente, mantendo o mesmo cabo. Bem talvez fique mais simples de entender vendo no site.

[3] A busca por “pensamento”, por exemplo, traz mais de 33 milhões de resultados em menos de meio segundo (na banda larga).

[4] Exceto em ações puramente reflexivas, como proteger os olhos com as mãos de algum objeto arremessado em sua direção, que não passam por esse intervalo de meio segundo, e são efetivamente “automáticas”, ou pelo menos na grande maioria dos casos não teremos escolha entre proteger os olhos ou não: nós os protegeremos.

[5] Bem, os materialistas eliminativos não creem que exista uma mente, pois eles tampouco creem que exista uma subjetividade, ou a liberdade, mesmo uma liberdade parcial e limitada, da vontade. A subjetividade seria uma ilusão persistente do cérebro, e todas as nossas escolhas (veja bem: todas) na verdade se reduziriam ao tilintar neuronal de partículas já descobertas pela ciência (veja bem: apenas 4% da matéria e energia do universo, segundo a teoria da Matéria Escura).

[6] Citado em O universo inteligente, de James Gardner, publicado pela Cultrix/Pensamento. O livro de Wheeler, de onde foi extraída a citação, é intitulado At home in the universe.
Um bit de informação equivale a menor unidade computacional que pode ser medida, ela pode assumir somente dois valores, tais como “0” ou “1”, “verdadeiro” ou “falso”, etc. Não confundir com bytes, que são conjuntos de bits (normalmente, 8 bits).

Crédito das imagens: [topo] Mike Agliolo/Corbis/Rafael Arrais; [ao longo] Sung-Il Kim/Corbis

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19.6.12

Aquele que tudo vê

Trecho do Projeto Ouroboros (a partir deste ponto irei revelar o nome do quarto personagem, até então apenas "I.", agora Ismael). Com isso, agora foram divulgados os nomes de todos os personagens (Sofia, Otávio, Petrius e Ismael).

(Sofia) [...] Agora, com a palavra nosso amigo Ismael: escolha um atributo divino e disserte sobre ele para nós!

(Ismael) Que Deus me auxilie, pois não será tarefa fácil...
Estive até agora observando o distinto debate de vocês acerca do mistério da existência e de como uma substância eterna pode ter criado o Cosmos. A partir de agora discursarei sobre a consciência divina que criou o tudo. O próprio ser a quem chamávamos de substância, mas que eu sempre compreendi como um deus pensante, um deus pessoal.
Há aqueles que o chamam de Grande Desconhecido, o incognoscível, do qual não poderemos nunca compreender a menor nuance de personalidade, nem sequer ouvir um breve assobio de sua voz. Eu não os censuro, pois decerto eu também mau o conheço e mau o compreendo, mesmo após tantos anos em sua exclusiva dedicação. Arrisco-me, entretanto, a discursar sobre seus atributos, talvez mais pela intuição do que pela razão, mais pelo assombro diante da imensidão de sua obra do que pela análise meticulosa de seu Mecanismo. Perdoem-me os que discordam, mas eu vejo Sentido em tudo o que existe: não fomos criados apenas para flutuar a esmo pelo turbilhão cósmico.
Somos poeira de Deus, pequenas e preciosas lágrimas, ávidas por voltar ao seu oceano de amor. Ávidas por retornar ao seu Reino, e admirá-lo sem que os olhos pisquem, pois que se piscarem será como ter perdido toda uma vida de êxtase incomensurável.
Eu sou um apaixonado por Deus. Não é paixão passageira, não é barganha: amo-o incondicionalmente, como ele me ama. Amo-o, sobretudo, acima de todas as coisas, pois que sua luz se vê refletida nos olhos de uma formiga, na amplitude do vôo das aves, no reflexo do Sol nos mares, nas estrelas da noite, em todo lugar, enfim – inclusive dentro de nós mesmos.
Se não posso explicá-lo somente pela razão, é que seu amor é uma irradiação de beleza peculiar, que não se vê com os olhos, mas se sente com a alma. Que não chega para todos, mas somente para aqueles que estão abertos para a experiência de viver em sua comunhão. Não busco, sobretudo, verdades absolutas, mas sim dúvidas iluminadas, indagações que irão me levar, cada vez mais, passo a passo em sua direção.
Perdoem a delonga, mas esta foi minha evocação e minha oração em seu nome, para que de minha boca saiam palavras mais próximas da luz de sua música sublime do que do ruído confuso de minha mente.

(Sofia) Eu diria que o senhor está cheio de Deus. Certamente não poderíamos encontrar pessoa em melhor sintonia para falar de seus atributos. Siga em frente, que nós aqui estamos apenas a admirar este momento.

(Ismael) Pois bem, o primeiro atributo do qual desejo falar é a onisciência.
Onisciência é o conhecimento de tudo o que há, de tudo o que foi, e de tudo o que será. O saber divino é, portanto, perfeito, pois é o saber de si mesmo, é o saber de seu próprio infinito, do qual o homem, em toda sua caminhada milenar, não sabe sequer uma ínfima parcela. Até mesmo porque qualquer parcela do infinito será sempre extraordinariamente pequena em relação ao infinito em si.
Perto de tal conhecimento, mesmo o vastíssimo intelecto do demônio de Laplace [1] não seria mais do que o intelecto da formiga ante o intelecto do homem: tal demônio saberia da posição e direção de todos os corpos da natureza, mas ainda não faria a mais vaga idéia dos pensamentos que transitam pelo Cosmos em todo momento; conheceria o material, mas nada saberia do espiritual.
Deus, entretanto, é maior! Sua onisciência abrange não só o desenrolar do tempo e do espaço através do movimento que ele mesmo iniciou, mas também a potência e a intenção de cada pensamento já pensado, as nuances sutis de cada emoção já sentida, os mistérios desvelados de cada intuição recebida, a influência de cada instinto em cada um dos seres da criação: desde o peixe que nada no mar, passando pela ave que plana no ar, até o homem que ora no altar...
Não há nada que pensemos, nenhuma angústia ou contentamento, nenhum ódio e nenhuma paixão, nenhuma dúvida ou certeza, nenhuma idéia plena de luz ou eclipsada pela escuridão, que ele que é onisciente já não saiba de antemão.
Nada há, enfim, dentre todas as partículas ínfimas até as estrelas mais densas, dentre animais, homens ou anjos, dentre símbolos, conceitos e idéias, que ele não saiba perfeitamente. De fato, seria mais fácil crer que dois e dois não somam quatro, do que conceber que Deus não saiba de cada milímetro de cabelo que cresceu em sua cabeça em todos os dias de sua vida. E, por mais que eu me alongue nesta explanação, ela nunca será capaz de entrever a mais ínfima parcela do que significa ser, realmente, onisciente.
Isto é, portanto, meus caros amigos, o que eu posso dizer por ora sobre a onisciência. Algum de vocês tem considerações a fazer?

(Otávio) É uma bela explanação, senhor Ismael...

(Ismael) Interrompe Otávio.
Obrigado meu filho, mas o “senhor” está no céu.

(Otávio) Sorri.
Sim, claro, e é para lá que estamos tentando ir não é mesmo? No entanto, fica uma dúvida pertinente: se Deus é onisciente e sabe de cada necessidade nossa, de que vale orar e pedir a Deus por alguma sorte ou benefício?

***

[1] Conforme a nota existente no livro:
Pierre Simon Laplace, o Marquês de Laplace, foi um matemático, astrônomo e físico francês que acreditava fortemente no determinismo, o que é expresso na seguinte citação da introdução do “Essai”:

Nós podemos tomar o estado presente do universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Um intelecto que, em dado momento, conhecesse todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos.

Este intelecto freqüentemente é chamado de demônio de Laplace. Note-se que a descrição do intelecto hipotético descrito acima por Laplace como um demônio não veio de Laplace, mas de biógrafos posteriores.

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Crédito da imagem: Geo Rittenmyer/Corbis

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17.6.12

Raízes aéreas

"Sete horas da noite, sentada na sala de reuniões após um dia alaranjado de sol latente e poeira vermelha constante, tenho a sensação de terem se passado 24 horas desde o momento em que levantei. Como todos os dias, acordei hoje às 06:00h da manhã, tomei um vigoroso banho de pingos e canecos ao mesmo tempo em que observei o movimento da porta, que não tem fechadura. Estou sempre atenta a qualquer sinal de alguém ter necessidades maiores que as minhas, já que compartilhamos dois banheiros numa casa de 15 pessoas. Passados meus cinco minutos de privacidade diária, dirijo-me ao café servido em mesas improvisadas com protetores de insetos para evitar maiores acidentes alimentares (sempre temos algum companheiro de trabalho afastado por um ou dois dias por motivos de vida privada), o que nos faz perceber que não somos realmente tão resistentes quando acreditamos."

Mas se existe alguém resistente neste mundo, é Debora Noal, brasileira, psicóloga, "agente" dos Médicos Sem Fronteiras, e autora do texto acima, parte de um longo relato onde narra seus primeiros dias numa missão humanitária no Haiti. Não muito tempo antes desta que foi sua primeira missão para o MSF, Debora tinha uma cobertura em Aracaju, e um emprego público na área médica...

Na célebre entrevista para a Época, quando a repórter lhe pergunta como foi abandonar o conforto e as raízes em seu país natal (ela na verdade é gaúcha), ela nos dá uma resposta surpreendente:

"Pedi demissão, acabei o mestrado [...] Porque era uma missão de urgência. Entreguei o apartamento, deixei os móveis no meio do corredor porque não tinha condições de distribuir tudo rápido. O que não é possível carregar comigo é porque não é meu. E acho que, se você se apega a alguma coisa que é material, isso quer dizer que você está plantando sua raiz por uma estrutura material. Eu quero ter raiz, mas raízes aéreas, que eu possa levar para onde eu quiser."

E foi assim que Debora plantou raízes no Haiti, no Quirguistão, no Congo... Aliás, foi exatamente no Coração da África, onde trabalhava para aliviar a dor de mulheres que sofreram estupros coletivos, que perderam maridos e filhos, e a própria vontade de viver, que Debora provou sua resistência... Não somente ante a dor alheia, mas ante o próprio medo, em cada hora que esteve no Congo, de ser ela mesma a próxima vítima dos estupros. Como pode esta aparentemente frágil mulher ter encontrado tanta força, tanta resistência para seguir nessas missões do MSF? Talvez ela mesma possa lhe dizer, com o brilho que ainda resta em seu olhar. Um brilho peculiar, que parece nos dizer que, apesar de conhecer a dor, conhece também algo muito, muito maior... O amor:

Programa Provocações, da TV Cultura, com Debora Noal (bloco 1)

Ver o bloco 2  |  Ver o bloco final


"Lembrei de um grande amigo que [...] escreveu que Deus um dia existiu mas que ele já foi embora. Fiquei realmente muito tempo refletindo sobre esta frase, desejando... Até que cheguei no Papai Noel, pensei no quanto tempo eu acreditei nele (e ainda acredito), com o diferencial que hoje espero o Papai Noel aparecer dentro de mim e dentro dos outros, acho que sempre podemos encontrar Papai Noel. Por vezes ele chega suado, com cheiro de gente, sem barba, cabelo despentado e roupa suja, mas ele chega com presente, presente de gente, presente de vida, de vida presente."

Debora Noal (relato de seu primeiro Natal no Haiti)

***

Médicos sem Fronteiras, ou Médecins sans Frontières (MSF), é uma organização internacional não-governamental sem fins lucrativos que oferece ajuda médica e humanitária durante situações de emergência, em casos como conflitos armados, catástrofes naturais, epidemias, fome e exclusão social. É a maior organização não governamental de ajuda humanitária do mundo, na área da saúde.

» Contribua com o MSF, seja um doador sem fronteiras!


Crédito da imagem: reportagem da Época (Debora e as congolesas)

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15.6.12

Apresentação: O passado e o futuro

Há algum tempo escrevi este texto em homenagem ao grande poeta Gibran Kahlil Gibran, e agora criei para ele uma apresentação especial...

Veja abaixo a apresentação. Basta ir clicando nas setinhas para avançar ou retornar, você também pode usar a roldana do seu mouse para um efeito surpreendente... Recomendo ver em tela cheia (more > full screen):

» Abrir apresentação no site da Prezi


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13.6.12

Arquivo Especial: Rio+20

Faz algum tempo que planejava lançar uma série especial com links para posts do arquivo do blog, afinal já estamos por aqui desde Novembro de 2006. Agora, com este evento tão importante ocorrendo no Brasil, a Rio+20, pensei que seria bom inciar a série Arquivo Especial com os melhores posts da história do Textos para Reflexão acerca deste tema tão essencial para o nosso futuro: Ecologia e Sustentabilidade.

Artigos:

Ferida aberta 16.06.10
Neste artigo falamos sobre como grandes países europeus disputam judicialmente a posse de um pequeno rochedo perdido entre a Islândia e a Irlanda, o que demonstra claramente como os governantes são capazes de agir rapidamente quando a posse do petróleo, o ouro negro, está em jogo. Citamos a sabedoria do Chefe Seattle que, ainda em meados do século XIX, indagou ao então presidente americano: "Mas como se pode comprar o céu ou a terra? Esta ideia é estranha para nós". Ao final, demonstramos como a exploração desse mesmo petróleo, em águas profundas, ainda é realizada com pouquíssima preocupação aos danos ambientais potenciais desse tipo de atividade, conforme o trágico exemplo da Britsh Petroleum (BP) no Golfo do México.

A outra margem 30.11.10
Neste artigo falamos da história da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte, que deu origem a atual Polícia Militar. No meio do caminho, procuramos demonstrar como a separação entre ricos e pobres favoreceu o surgimento das favelas em grandes cidades, particularmente no Rio de Janeiro. Neste processo histórico, no qual a polícia muitas vezes participou de forma truculenta e inteiramente parcial (a favor dos ricos), podemos tirar as lições necessárias para construir uma sociedade mais igualitária e organizada no futuro.

Sejamos como os girassóis 25.03.11
Este artigo é parte da série "O fogo de Prometeu", sobre a energia nuclear, mas fala de fontes de energia limpas e sustentáveis, porém mais seguras do que a energia nuclear. Damos um enfoque principal as possibilidades de enorme potencial do uso da energia solar para as matrizes energéticas do futuro.

Interregno de eras 05.06.12
Neste artigo falamos da crise financeira e moral da modernidade, e comparamos dois eventos recentes na Inglaterra: o jubileu de diamante da Rainha Elizabeth II, que comemora 60 anos no poder, e as manifestações do final de 2011 nos bairros de baixa renda de Londres e outras cidades inglesas onde, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, "consumidores desqualificados que foram criados numa sociedade de consumo" se reovoltaram e saquearam lojas e mercados. Como uma mesma sociedade pode reclamar da época de austeridade fiscal e, ao mesmo tempo, apoiar a manutenção de uma monarquia vivendo em luxo permanente? É o que tentamos responder...

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Contos:

O sexto deus 30.04.09
Um conto sobre um pequeno planeta imaginário, com seus habitantes divinos, e sobre o que ocorre quando o ouro acaba e seu sistema econômico, e de vida, precisa ser repensado.

O sétimo deus 03.03.12
Partindo do conto anterior, este conto (que foi baseado em comentários de leitores) procura demonstrar como uma crise abre oportunidades para que um novo mundo, um mundo melhor, possa surgir.

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Vídeos e documentários:

As mãos sujas de plástico 08.06.09
Esta breve reportagem do Fantástico, da TV Globo, demonstra claramente como a alta produção de plástico, particularmente sacolas descartáveis, é extremamente prejudicial para o meio ambiente. Entre a Califórnia e o Havaí, uma monstruosa ilha de plástico se avoluma no oceano: o Lixão do Pacífico.

Nosso planeta, nossa casa 08.07.09
De todos os recentes documentários acerca da situação precária do meio ambiente global, Home é talvez o mais extraordinário. Nele há um breve histórico que remonta as origens da vida no planeta, e demonstra de forma contundente, com belíssimas (e as vezes assustadoras) imagens aéreas, como a natureza é o nosso maior bem. Ao final, mesmo após tantas exposições angustiantes, há a mensagem acalentadora: "é muito tarde para ser pessimista". O mundo ainda gira!

Ainda é tempo 26.04.2010
Neste belo depoimento ao programa Café Filosófico, da TV Cultura, o cientista Carlos Nobre nos faz um alerta contundente: "A destruição do que não existia – de valores apenas virtuais, sem base real – pode ser a oportunidade de mudarmos de rumo econômico e impedirmos a destruição do que realmente existe: a natureza, o mundo, o planeta. O Brasil se tornou uma potência agrícola, isso não é original. Mas ele tem a chance de ser a primeira potência ambiental do planeta – e de comandar uma mudança de civilização".

Enquanto isso, na ECO 92... 18.08.11
Neste post trazemos a oratória já histórica da jovem canadense Severn Cullis-Suzuki durante a ECO92, no vídeo que ficou conhecido como "a garota que calou o mundo por 6 minutos". Se você ainda não viu, veja... Ao final falamos sobre como anda a vida dela décadas depois (ela é ativista ambiental e estará presente na Rio+20).

Ainda há esperança... 07.03.12
Um vídeo amador filmado nas praias de Arraial do Cabo, cidade turística próxima ao Rio de Janeiro, demonstra como ainda há motivos para termos orgulho da humanidade.

A lâmpada centenária 31.05.12
Neste post trazemos dois vídeos distintos. No primeiro, temos um exemplo perfeito de todos os clichês da publicidade moderna, numa sociedade educada para o consumo. No segundo, um documentário espanhol acerca de como muitos bens "duráveis" foram cuidadosamente elaborados para "quebrar" após algum tempo de uso, nos surpreendemos com o fato de que há uma lâmpada num corpo de bombeiros da Califórnia que está ligada há mais de um século! Acredite se quiser... Não é possível falar em sustentabilidade sem abordar o problema da obsolência programada, sobretudo em nossa sociedade cada vez mais consumista.

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Crédito da imagem: Divulgação (Rio+20)

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