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31.12.14

Qual é a reforma fiscal ideal?

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

[Raph] É muito comum ouvirmos reclamações dos contribuintes acerca do valor dos seus impostos, isto é algo praticamente tão antigo quanto a própria civilização, mas no Brasil ocorre algo um tanto curioso. Nosso sistema tributário é tão complexo que muitas empresas precisam ter grandes equipes de contadores para dar conta da burocracia. Uma simplificação do sistema, ainda que não diminuísse o valor final dos tributos, já seria um enorme ganho de produtividade para o país. Ao mesmo tempo, os impostos sobre as pessoas físicas são relativamente altos, porém um dos mais injustos do planeta: enquanto a alíquota mais alta sobre a renda não passa de 27,5% (em muitos países europeus ela passa dos 50%) e o imposto sobre a herança é de cerca de 4% (muito abaixo da média mundial), temos alguns dos impostos indiretos mais altos do globo. Eles são aplicados diretamente a tudo o que consumimos, de forma que tanto o milionário quanto o miserável pagam exatamente o mesmo imposto sobre um quilo de arroz ou uma geladeira. Diante dessas informações, vamos fazer um exercício de imaginação: digamos que você fosse convidado pelo governo para fazer parte de uma equipe com a função de dar sugestões para uma tão necessária reforma fiscal – qual seria a sua reforma ideal?

[Carvalho] Pensar uma reforma fiscal não é tarefa fácil e nem mesmo mediana. É, na verdade, uma empreitada bastante complexa, que envolve reflexões profundas sobre as funções teóricas do Estado assim como sobre as especificidades concretas da estrutura administrativa que se pretende reformar. Abrange desde juízos ideológicos gerais até diagnósticos minuciosos do sistema institucional vigente. Sendo assim, tendo em vista as limitações de espaço deste texto, decidi centrar minha análise em alguns poucos aspectos mais práticos, mas é interessante que ela seja lida considerando um pano de fundo liberal-conservador, que aponta na direção de uma diminuição do Estado, embora longe de flertar com a ideia radical de uma sociedade sem ele e sem instigar qualquer ruptura revolucionária da ordem vigente.

Nesse sentido, o primeiro elemento que considero essencial analisar é a nossa Constituição Federal, o texto fundamental que define a nossa estrutura político-administrativa e as bases do sistema de tributos que a sustenta. Ali podemos notar a convivência conflitante entre diversas ideologias, resultando no delineamento teórico de um eclético estado de bem-estar, organizado sob a forma de uma federação em três níveis – federal, estadual e municipal – com repartição de competências entre eles. É justamente aí, a meu ver, que uma boa reforma fiscal poderia começar.

Penso que a constituição de 1988 acertou ao elevar os municípios à condição de entes federados, atribuindo-lhes competências próprias, mas errou ao destinar-lhes uma parcela relativamente pequena da arrecadação de tributos – algo em torno de 5% de tudo o que é arrecadado no país [1]. Assim, acredito que um processo de descentralização de competências tributárias para correção dessa distorção seria um primeiro passo para dar mais eficiência aos sistemas de arrecadação e de aplicação dos recursos públicos. Isso aproximaria tais sistemas dos reais problemas das comunidades e dos cidadãos pagadores de impostos – os maiores interessados em todo o processo – possibilitando um controle social mais efetivo e alinhado com os interesses locais.

Duas outras formas de abordar a reforma fiscal sem causar no sistema um choque traumático de liberalismo econômico [2] seriam, por um lado, o aprimoramento do sistema tributário sem redução imediata da carga, e, por outro, a redução dos gastos públicos sem redução imediata das competências estatais, adotando uma perspectiva de ação centrada na melhoria da eficiência.

Com relação ao sistema tributário, conforme já foi dito, uma mera simplificação da intricada teia de impostos, taxas e contribuições já seria ótima para o país, diminuindo o tempo perdido por empresas e pessoas físicas em atividades contábeis, e permitindo um desenvolvimento mais natural e saudável da economia. Nesse âmbito, tenho duas sugestões principais: primeiro, elaborar uma norma geral exigindo que todas as informações sobre um determinado imposto sejam sempre compiladas e atualizadas em uma única lei, e não pulverizadas em uma infinidade delas; e, segundo, instituir um serviço nacional de acompanhamento e compilação das alterações tributárias estaduais e municipais para auxiliar empresas e profissionais que atuam simultaneamente em diversos entes da federação, e, repetidas vezes, recebem multas por ilegalidades fiscais que nem sabiam estar cometendo.

Já pelo lado dos gastos, há uma infinidade de pontos onde a eficiência estatal deveria ser aperfeiçoada, mas dois deles têm relevância fundamental no orçamento: a gestão do funcionalismo público e as políticas de endividamento do Estado. O primeiro ponto é relevante porque o ambiente de amadorismo crônico da maioria dos órgãos públicos, com raras e honrosas exceções, contribui para a ineficiência de toda a máquina administrativa. Assim, seria muito útil levar para a administração pública alguns princípios de administração de empresas, recompensando o profissionalismo, a eficiência e a proatividade – inclusive nos critérios de nomeação das chefias – e desencorajando a ineficiência e a falta de compromisso, dentre outros vícios típicos desse meio.

A questão da dívida, por sua vez, é relevante porque compromete quase metade do orçamento anual da União. Neste caso, em vez de ficarmos chorando por uma auditoria da dívida, torcendo para surgir algum motivo nebuloso que justifique um calote, penso que o mais correto mesmo seria ter a paciência de adotar uma política de crescimento economicamente sustentável, sem dar asas às tentações de enriquecimento rápido e artificial das políticas desenvolvimentistas, que elevam o PIB, mas sempre elevam também as dívidas junto com ele.

Em três palavras, eis o resumo das minhas sugestões: descentralização, eficiência e paciência. No médio prazo, creio que essas três coisinhas poderiam fazer muito bem a esse país, mas são apenas o básico de uma reforma técnica. O problema é que o Brasil precisa de muito mais que uma reforma fiscal. Precisa de uma reforma de valores, de um resgate da indigência cultural. O que o Brasil precisa, isso sim, é de uma faxina geral.

[Teo] Vivemos em uma sociedade completamente desigual. No Brasil, 80% da população vive com menos de mil reais por mês. Provavelmente, o leitor deste blog, mesmo não fazendo parte da classe alta, deve possuir uma vida confortável e segura em relação a essa população. Fato é que a maior parte de nossa população não possui acesso à educação de qualidade, serviços de saúde, saneamento básico, transporte, entre outros. Esta desigualdade não é um mal ocasional, mas estrutural ao próprio capitalismo, que se marca como uma ordem em que para existir acumulação de capital há necessariamente exploração.

Enquanto isso, os 0,9% mais ricos do país detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza. Ou seja, menos de 1% é possuidora de mais da metade da riqueza nacional. Existe uma farra das grandes fortunas, que ideologicamente aprendemos a admirar, sonhando nos tornar um desses bilionários do alto da pirâmide social, embora a probabilidade desta ascensão é ínfima. Como a divisão subsequente tampouco é equânime, a desigualdade vai crescendo nos outros estratos.  A chamada classe média, que consegue sobreviver com o mínimo de dignidade, muitas vezes é contra políticas de redistribuição de renda porque erroneamente crê que esta se daria através da perda de seus recursos, que já não são muitos. E ao combaterem essa ideia não estão ajudando a si, mas ao 1% que detém grandes fortunas.

Quando falo em desigualdade social não falo de um mundo em que alguns ganham pouco mais que outros, despertando inveja naqueles que ganham menos. Desigualdade social é a existência de um excedente incomensurável a uma classe, enquanto outra vive na miséria. É a marginalização de milhões de pessoas, expostas a um cotidiano de exploração, péssimas condições de sobrevivência, exclusão em relação a todos os avanços sociais e científicos. Falar sobre isso não nos faz comunistas, se comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990. Por sua vez, o sucesso do capitalismo chinês liderado pelo que chamaram de comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e democracia é facilmente rompível. Somos comunistas em apenas um sentido: importamos-nos com os bens comuns, da natureza e do conhecimento, que estão sendo ameaçados.

Neste sentido surge a importância do Estado. Não este como conhecemos, como uma instituição corrompida pelos interesses do capital e dos pequenos grupos que se apossam dele para governar em causa própria. O Estado é um possível defensor do bem-estar coletivo através de políticas sociais, e em sua ausência ficamos desprotegidos frente aos interesses de lucro e exploração das grandes corporações. Quando crimes estão sendo cometidos contra o meio ambiente e aos seres humanos, o Estado, como um poder instituído tem o potencial de defender o interesse comum, caso o povo se articule democraticamente para tanto.

Estado não é sinônimo de um centralismo a governar a vida de todos incessantemente. Talvez o motivo para esta desconfiança seja que o Estado brasileiro combine atuações extremamente invasivas à liberdade individual em determinadas situações com um mero descaso em assuntos que deviam ter mais cuidado e participação. Do mesmo modo, políticas sociais não significam o “paternalismo” com claros interesses eleitorais, mas sim a construção de uma estrutura social que garanta o mínimo de qualidade de vida à população. Como seu objetivo é o interesse coletivo, o Estado deve garantir serviços de qualidade em educação, segurança, saúde, transporte, e tantos outros direitos que julgamos essenciais a todos na modernidade.

Os recursos para o Estado e à promoção de suas políticas sociais advêm de nós mesmos. Como afirmado na muito precisa análise do Raph, no Brasil nos encontramos com uma pluralidade de impostos que nos impõe uma sobretarifação em nossas atividades, bem como uma desigualdade sobre quem recaem esses impostos. Quem muito possui não paga tanto quanto pagaria em outros países (como em alguns países nórdicos, que além de um alto imposto de renda há o melhor IDH do mundo) e quem ganha pouco se vê afogado em tarifas. Além disso, o imposto de renda, os impostos sobre herança e sobre ganhos do capital são mais brandos do que em “países desenvolvidos”, como Suécia, Alemanha e Estados Unidos. Desse modo, dentro de uma economia capitalista (sempre lembrando: também podemos pensar em outras alternativas) uma possibilidade é introduzir uma proporcionalidade que corresponda à realidade nesta equação.

Desafogando a classe média e baixa, é possível ainda obter recursos através da tributação sobre grandes fortunas. Aos que pertencem a classe alta: isto não afetaria a vida confortável e luxuosa com muitos excedentes em relação ao cidadão médio. O que acontece é que simplesmente não é justo que, por exemplo, com um excedente de recursos disponíveis, pessoas morram por falta de dinheiro para bancar um tratamento de saúde. Creio que podemos pensar em uma sociedade melhor do que naturalizar um discurso de “não tem dinheiro, problema teu, corre atrás porque só através do capital você vai ter algum direito nessa vida.

Dentro do capitalismo, na competitividade do mercado, a riqueza tende a se concentrar em pequenos grupos através da formação de trustes, cartéis, etc. Isto é, a reunião de grupos de poder para afirmarem a conservação de sua vantagem e aumentar sua capacidade de lucro e exploração. Neste sentido, ao contrário das ideias utópicas do liberalismo, o capital tende a se acumular. A desigualdade social, estrutural ao capitalismo, leva ao aumento da criminalidade, violência, marginalização, e por aí vai.

A configuração da tributação brasileira favorece a concentração existente. Se não abandonarmos o capitalismo (talvez a vida humana seja simplesmente destruída em uma catástrofe ecológica antes disso), ao menos devemos pensar em políticas sociais que garantam serviços de qualidade e proteção à população de modo geral, e não privilégios infinitos às elites do capital a despeito de quem sustenta esta riqueza. Deste modo, talvez devemos pensar numa reforma tributária que alivie o bolso de quem os custos de vida já estão altos demais, tributando mais de quem a vida é de excedentes incomensuráveis, e assim, revertermos esses valores em qualidade de vida para todos.

***

[1] O percentual cresce se considerarmos as transferências de recursos da União e dos estados, mas acredito que esse sistema mantém os municípios muito dependentes das políticas federais e estaduais.

[2] Haja vista a demonização histérica do liberalismo promovida durante décadas por setores radicais da esquerda, tanto que se tornou comum pessoas utilizarem a palavra “neoliberal” como um xingamento sem terem a mínima noção do significado preciso do termo.

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O debate continua nos comentários, não deixem de acompanhar.

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29.12.14

Um elogio a reflexão

É sempre muito proveitoso ler boa filosofia, a despeito das inúmeras lendas acerca de sua complexidade e aparente inutilidade prática. Ademais, nunca é tarde para começar a pensar sobre si, a se aventurar nos reinos da própria alma, a se conhecer. Ou, como bem resumiu Epicuro:

Na juventude, não devemos hesitar em filosofar; na velhice, não devemos deixar de filosofar. Nunca é cedo nem tarde demais para cuidar da própria alma. Quem diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de filosofar, parece-se ao que diz que não é ainda, ou já não é mais, tempo de ser feliz.

Obviamente há que se ter em mente para que serve propriamente a filosofia. Em minha adolescência ela não foi ensinada no colégio, e portanto não servia para passar nas provas e tampouco no vestibular. Da mesma forma, o fato de alguém haver estudado filosofia não parece ser uma das prioridades das empresas na hora de analisar um currículo. Nesse sentido, é melhor aprender a programar, gerenciar ou até mesmo cozinhar. De fato, a filosofia não serve para passar em provas nem para se ter um bom salário.

No entanto, ela serve para se ter uma boa vida, uma vida com muito mais felicidades do que angústias, o que é fruto direto do contato e conhecimento de nossa própria alma. Não se deveria estudar filosofia somente para ter assuntos para conversar com este ou aquele intelectual de linguagem rebuscada, melhor seria evitar amizades deste tipo. A verdadeira filosofia não cria barreiras de linguagem entre as pessoas, todo verdadeiro filósofo é um apreciador da alma humana, pois é somente de lá que advém a sabedoria.

O Chefe Seattle, por exemplo, não sabia nada de física ou química, nem nunca leu nenhum clássico da literatura alemã ou russa. Mas todo filósofo saberá apreciar o seu quinhão de sabedoria, pois reconhecerá nela um pouco da água que flui da mesma fonte, na essência das almas, de todas as almas:

O Presidente em Washington diz que deseja comprar a nossa terra. Mas como pode comprar ou vender o céu, a terra? Essa ideia é estranha para nós. Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada agulha de pinheiro brilhante. Cada grão de areia da praia, cada névoa na floresta escura. Cada característica é sagrada na memória e na experiência do meu povo.

Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores são nossas irmãs. O urso, o veado, a grande águia são nossos irmãos. Cada reflexo na água cristalina dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo.

E foi necessário bem mais de um século para que o restante da humanidade se desse conta destas verdades. Ora, Epicuro e o Chefe Seattle nunca ouviram falar um do outro, mas certamente dariam excelentes amigos, pois ambos conheciam suas próprias almas de uma forma bem mais profunda do que a maioria de nós. A sabedoria, nesse sentido, é um dos nossos maiores tesouros, bem mais valiosa do que terras, petróleo, ou um cargo na diretoria de uma multinacional.

Amar a sabedoria, ser um filósofo, nesse sentido, é antes se preocupar em ser do que em ter. Antes se preocupar com as coisas naturais do que com as coisas superficiais. Mas no que exatamente a mera leitura dos clássicos poderá nos auxiliar? Em quase nada, se nos mantivermos apenas na leitura dos manuais de natação, sempre nos resguardando do mergulho. Por que deixar para amanhã a aventura que pode se iniciar neste momento?

Uma das máximas do estoicismo, por exemplo, é uma frase supreendentemente simples: “Preocupe-se apenas com aquilo que pode mudar”. Mas qual a utilidade em se ler e decorar tal máxima, quem sabe para passar nalguma prova estranha, ou talvez para recitá-la em meio a uma reunião de negócios, querendo passar a ideia de que é um intelectual?

Pois é, de nada adianta haver lido Epicteto ou Sêneca se você nunca exercitou esse amor a sabedoria, esse olhar para si, enfim, a reflexão. Somente pela reflexão em cima de tais palavras é que poderemos nos desligar um pouco das crises nos noticiários, e tratar de resolver as crises de nossa própria existência. Somente pela reflexão em cima de tais palavras é que podemos, quem sabe, sair de casa para dirigir nosso carro numa metrópole engarrafada tendo em mente que o trânsito estará lá, como sempre esteve, e não é xingando o motorista ao lado ou algum deus da fortuna que iremos chegar mais rapidamente ao nosso destino.

O nosso destino, afinal, sempre foi nossa própria alma. Viaje até a Índia, visite um vulcão na Islândia ou um cassino em Las Vegas, e não terá dado sequer um passo para além de sua alma, de sua essência. Há todo um mundo por lá – de fato, o único mundo que há.

E somos bombardeados constantemente por informações, anúncios, equações de lucros e perdas, número de mortos e feridos, placares de partidas e resultados de provas, e nada disso existe por si só, ou tem significado por si só: somos nós, em nós mesmos, quem interpretamos o mundo. Por que, então, se abster de mergulhar, por que viver a margem de nossa própria alma?

Seja na filosofia, na ciência, na religião ou até mesmo na poesia, a primeira coisa que o mergulhador aprende é que os manuais só nos servem para dar a coragem do primeiro mergulho, dos primeiros cem metros na trilha da floresta íntima, pois que o restante da aventura caberá somente a nós.

Neste caminho, entretanto, não temos somente a ajuda do relato daqueles que caminharam há séculos ou milênios atrás por essas mesmas trilhas, temos também a possibilidade de sermos auxiliados pelos que caminham ao mesmo tempo que nós. E a única coisa que eles lhe pedirão é que ajudem também aos que vêm atrás.

E é assim, é somente assim, de mãos dadas nesta jornada, que poderemos um dia alcançar a eternidade. Esta região onde residem todas as utopias e todas as promessas de um novo amanhã, de onde cintila a luz que não gera nem é gerada, e que existe e sempre existiu para ser refletida – um pensamento de cada vez.

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Crédito da imagem: Google Image Search (Epicuro)

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28.12.14

Maré

Quando eu vislumbro o futuro, eu não posso pensar pequeno... Isto é como a minha missão, o meu hobby, é mais do que música, é a mensagem por trás da música. E enquanto eu tiver o poder, farei o possível para tornar esta missão, este hobby, este sonho, cada vez mais verdadeiros. Pois as escolhas que fiz, e o estilo de vida que pude criar para mim mesma, é como um sonho...

O parágrafo acima é de autoria de Michal Elia Kamal, cantora, instrumentista e compositora de uma banda que há essa altura já deve ser conhecida de muitos leitores do blog, mas não custa apresentá-los novamente:

Light in Babylon (Luz na Babilônia) é um grupo musical turco que traz uma fusão de diferentes etnias e culturas. Michal é nascida em Israel, mas sua família tem origem iraniana; Metehan Çifçi (santour, um instrumento exótico) é nascido na própria Turquia; e Julien Demarque (violão) veio da França. Suas influências musicais aliam a tradição cosmopolita de Istambul com as antigas tradições sefarditas (judeus da Península Ibérica), e o som de sua música parece se conectar imediatamente com a alma das pessoas.

Abaixo, eles cantam Geut (Maré) numa apresentação para a TV turca. E, logo após, segue a minha tradução da letra (autoria de Michal):

e se você vai ficar,
fique!

além da dor, da aflição... há a esperança
de que se quebrarem ondas esta noite,
que a maré me leve
até as profundezas do seu amor...

...que se foi com o mar...

quando meu coração está se abrindo
o seu vem se fechando.
meu lábios se aproximam dos seus,
mas você já se foi.

e se você vai ficar,
fique!

e meu desespero desaparecerá por completo;
e se quebrarem ondas esta noite,
que a maré me leve
até as profundezas do seu amor...

e se você ficar,
ficará junto a mim para sempre...

pois quando meu coração vem se fechando
o seu vai se abrindo.
meus lábios se aproximam dos seus,
mas você já se foi.

***

Crédito da imagem: Divulgação (Light in Babylon)

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24.12.14

Lançamento: O Livro da Reflexão, vol.1: Amar e perder

As Edições Textos para Reflexão trazem um presente de Natal a todos os fiéis leitores deste blog, assim como a todos que um dia também virão refletir conosco. Afinal, a luz foi criada para ser refletida!

"Textos para Reflexão é um blog que fala sobre filosofia, ciência e espiritualidade. O presente volume é o primeiro de uma série, O Livro da Reflexão, que pretende ser uma coletânea dos melhores textos do blog. Nesta edição pretendo abordar o amor, a morte e a existência, todos eles temas recorrentes em minhas reflexões."

Um livro digital disponível para download gratuito em diversos formatos [1]:

Baixar grátis (ePub) Baixar grátis (mobi) Baixar grátis (pdf) Ver no Scribd (pdf) Baixar grátis (Amazon Kindle) Baixar grátis (Kobo) Comprar versão impressa

Todos os três demais volumes da série já foram lançados:

» Baixar O Livro da Reflexão, vol.2: A roda dos deuses

» Baixar O Livro da Reflexão, vol.3: As lições da ciência

» Baixar O Livro da Reflexão, vol.4: A medida de todas as coisas

***

Fiquei muito feliz de ter conseguido finalizar esta edição pouco antes do Natal. Afinal, por mais que no fundo escreva para organizar minhas próprias ideias, é sempre muito interessante perceber o quanto elas parecem se refletir também na mente dos demais. Somos, enfim, apenas um fio na teia da Vida, e parece ser improvável, senão impossível, falar da própria alma sem tocar, de alguma forma, a alma de todos. Fica este presente em retribuição a tais depoimentos tão generosos, que formam o Epílogo da obra:


Se um dia algum historiador, pesquisador ou estudante for escrever sobre a difusão dos estudos acerca da espiritualidade humana na internet, o site Textos Para Reflexão não apenas não poderá faltar como deverá estar ao lado dos principais nomes deste campo, como o Saindo da Matrix e o Teoria da Conspiração. Conheci o blog do Raph anos atrás, e a variedade de projetos bem sucedidos que temos testemunhado ao longo deste tempo é prova da excelência deste. Deste modo, Textos Para Reflexão fala não apenas sobre filosofia, ciência e espiritualidade. Textos Para Reflexão é um site que reflete nossa própria condição humana em busca do conhecimento e, mais importante ainda, da reflexão, atividade filosófica tão saudável para a “alma”.

Igor Teo


Olá, me chamam Felipe,
Sou leitor do blog Textos Para Reflexão já fazem mais de 3 anos. Neste período me deparei com inúmeras questões que me afligiam e buscava uma resposta em algum texto do Rafael, sempre achava algo que me transportava pra dentro em um encontro comigo mesmo. Esse encontro se intensificou com o livro Ad infinitum, como uma chama queimando vivamente. Sou grato pelo conhecimento e alento compartilhado. Parabenizo por todas as conquistas, a editora, o sucesso dos textos, da parceria com o Tio Del Debbio e mais este novo farol em forma de livro.
Com gratidão e carinho,

Felipe Pereira de Lima Castro


Parabéns pelos 8 anos de Textos para Reflexão, até esqueci quando comecei a ler. Parte do meu lado buscador que anda por terras desconhecidas e por desertos nunca vistos me fez chegar aos seus textos, diversas vezes e a cada passo; deixei de buscar várias vezes e sempre me “reencontrei” aqui.
Obrigado!

Samuel Otemi


Na vastidão do mundo virtual encontramos um pouco de tudo, para nossa sorte. Assim, garimpando, podemos encontrar preciosíssimos diamantes no meio da imensidão de informações vazias e da futilidade que tanto assola nosso cotidiano. Para quem quer fugir de assuntos como o último escândalo de um “ex-BBB” ou do vestido usado por uma celebridade de Hollywood naquela festa badalada, Textos para Reflexão se apresenta como uma excelente companhia. Consegue retratar da filosofia dos Pré-Socráticos aos pensadores da internet, com textos leves, porém profundos e com nuances poéticos, quando não nos embebeda com pura poesia.
Parabéns pelos oito anos do blog! Sucesso, você merece!
Abraços,

Alex Sander


Um dia, quando eu era uma pessoa curiosa, buscando aqui e ali satisfazer a necessidade de solucionar uma dúvida atrás da outra, encontrei os textos de um poeta que fala sobre tudo e, sobretudo, com amor ao conhecimento... Era a inspiração que eu precisava para me desenvolver pessoalmente e continuar minha jornada.

Jakeline Santana


O Raph tem uma forma peculiar de levar os leitores a reflexão. Quando trata temas polêmicos, consegue fazer sem gerar conflitos. O que escreve traz os traços de grandes autores. Para ele não existe um tema que não deva ser tratado, desde que traga algo construtivo. Ele irá abordar de espiritualidade à política, de sociedade ao erotismo. Sempre alcançando uma abordagem leve e casual. Os artigos do Textos para Reflexão são, por isso mesmo, momentos de reflexão.

Gabriel Fernandes Bonfim


O Textos para Reflexão é uma joia da “filosofia espiritualista”. Em um meio de estudos dominado pela dicotomia entre textos sisudos – para escolhidos – e delírios utópicos e ufanistas, que abdicam da razão, o Textos emerge como um oásis: abre um espaço em nossa consciência onde a poesia dança de mãos dadas com o amor e a razão, nos levando a uma experiência transcendental, daquelas que só os poetas conseguem provocar com palavras.
É com carinho que expresso a gratidão a Rafael Arrais por nos propiciar uma experiência de reflexão, que nos aproxima da nossa essência mais bela. Obrigado por saciar a nossa sede da alma com palavras que descem como se bebêssemos um belo vinho na companhia de um bom amigo. Fraterno abraço!
Atenciosamente,

Élder Bernardi


Hoje (1:15), enquanto estava perto da janela da cozinha, percebi que o céu estava aberto e claro. Fui lá fora e fiquei boquiaberto: uma das melhores visões noturnas do céu que eu já tive! Ou talvez a melhor. A lua cheia (e sua aura púrpura) estava diluída entre nuvens perfeitamente distribuídas e ordenadas pelos ventos (que cobriam o céu, mas deixando espaço aberto, sem saturá-lo), seu brilho iluminava as reações e o movimento do vapor nos céus. A melhor parte foi quando as nuvens foram se abrindo em volta da lua, como se esta ordenasse que lhe dessem espaço. Eu vi um olho, enorme e brilhante, onipotente, onipresente, olhando tudo ao redor e me dando um recado: estou de olho em você.
Percebi que só vou conseguir responder algumas perguntas e vencer certos conflitos quando meus olhos estiverem realmente abertos. A aura roxa que eu vejo em volta da lua deu ao “olho” celeste um aspecto de chacra, de terceiro olho.
Eu já procurei tentar encontrar paz, calma e equilíbrio com a natureza durante o dia; mas isso vem naturalmente durante a noite. Muito naturalmente. É espontâneo. Infelizmente, meu estilo de vida não me faz aproveitar tudo isso, mas, a cada dia que passa, caminho mais afundo entre o corredor que me levará até a compreensão. E isso tudo vai ser, em grande parte, durante a noite.
E é assim que eu funciono: noturno, em silêncio.
Ainda tenho dúvidas se o borrão roxo em torno da lua é defeito na visão ou alguma coisa diferente, mas a mensagem que isso passa é certeira e cai como uma luva. Então pra que questionar se tudo se encaixa e funciona?
Essa visão me deu um engate emocional que falta durante meus dias, eu me sinto bloqueado, parado, procurando sempre soluções práticas e mecânicas para conflitos e desejos mundanos. Mas o sentimento de uno, de transcendência, é raro e especial, por enquanto. Espero atingir esse nível de consciência com mais facilidade através da meditação; por agora, a meditação serve para esvaziar minha mente, então o céu noturno é uma chave ótima para despertar.
Eu falei sobre mim nesse depoimento porque o Textos para Reflexão fala exatamente sobre isso: todas as coisas que estão dentro de nós. Parte da serenidade e compreensão que eu tenho hoje se deve aos textos lidos no blog. Meus anseios e desejos pelos mistérios da vida são nutridos por seus parágrafos. Não pare de escrever, por favor! (risos)

Eduardo Henrique


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[1] Se você está num Desktop ou Laptop, pode ler diretamente a versão ePub do seu Google Chrome, bastando para tal instalar o add-on Readium. Veja na imagem abaixo um exemplo do ePub aberto no Readium:

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18.12.14

A estrela ao centro

Um grupo de pássaros desejava encontrar o seu rei; então pediram a um pequeno pássaro sábio de longa crista que lhes ajudasse em sua busca. Ele lhes disse que o rei que estão procurando se chama Simurgh e que vive escondido na montanha de Qaf. A jornada até a sua casa, porém, é uma aventura muito difícil e perigosa.

Mesmo assim, muitas centenas de pássaros aceitaram a tarefa, e iniciaram um longo voo através dos sete grandes vales que os separavam de seu destino: o vale da busca, seguido do vale amor, do vale da compreensão, do vale do desapego, do vale da unicidade, do vale do espanto e da perplexidade e, finalmente, do último deles, o vale do aniquilamento e da morte... Muitos foram se perdendo pelo caminho, de modo que somente 30 bravos pássaros conseguiram chegar em Qaf.

Este é um brevíssimo resumo de um dos textos clássicos do sufismo, de Attar de Nishapur, intitulado A linguagem dos pássaros (ou A conferência dos pássaros). Attar (o “perfumador”) viveu aproximadamente entre o fim do século XI e o início do XII, e foi um dos diversos grandiosos poetas que ajudaram a estabelecer as bases do sufismo, que nada mais é do que a vertente mística do Islã.

Embora todas as grandes religiões tenham o seu ramo místico, até hoje o termo “misticismo” é muito pouco compreendido, e usualmente associado ao termo “mistificação”, que é praticamente o seu oposto. Os místicos, de fato, são exatamente aqueles religiosos verdadeiros, buscadores da essência das coisas, e não de sua casca. Os místicos trabalham exatamente para desmistificar, descascar tais frutos sagrados, que nunca foram nem jamais serão descritos por palavras. As palavras, ora essa, são exatamente as cascas que sobraram...

No entanto, não foi através do perfume de Attar que fui atraído aos sufis, e sim pela poesia de um de seus admiradores, Jalal ud-Din Rumi, teólogo e poeta sufi que viveu na região da Anatólia (atual Turquia) no século XIII. Por mais estranho que possa parecer, este místico persa é atualmente um dos poetas mais lidos nos EUA e em muitos países de língua inglesa, e isso se deve menos a qualidade de seus tradutores (principalmente Coleman Barks) do que a qualidade inefável e atemporal de seus poemas:

Vem, vem, seja você quem for, não importa se você é um infiel, um idólatra, ou um adorador do fogo; vem, nossa irmandade não é um lugar de desespero; vem, mesmo tendo violado seu juramento cem vezes, vem assim mesmo.

Vem, lhe direi em segredo aonde leva esta dança. Vê como as partículas do ar e os grãos de areia do deserto giram desnorteados. Cada átomo, feliz ou miserável, gira apaixonado em torno do sol.

Ninguém fala para si mesmo em voz alta. Já que todos somos um, falemos deste outro modo: os pés e as mãos conhecem o desejo da alma. Fechemos então a boca e conversemos através da alma. Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.

Vem, se lhe interessa, posso mostrar... [1]

Fui fisgado imediatamente pelo sentimento que tais cascas fizeram brotar em meu coração. Rumi sabia exatamente o que estava fazendo, ainda que inconscientemente, pois a maior parte de sua obra foi ditada enquanto ele mesmo dançava, rodopiando ao redor de algum ponto imaginário, enquanto seus seguidores se apressavam em anotar cada sílaba, cada palavra, e não perder nem uma gota daquele mel divino que escorria, sabe-se lá de onde.

Nem sempre havia sido assim. Antes de se tornar um poeta enlouquecido de amor, Rumi fora um grande teólogo ortodoxo do Islã, profundamente venerado por seu conhecimento das escrituras sagradas. Mas sua ortodoxia foi dissolvida no dia em que encontrou o sol de sua vida: Shams de Tabriz, um místico andarilho que instigou Jalal ud-Din a deixar as cascas de lado, e se concentrar na essência das coisas.

Tão intensa foi a amizade entre Rumi e Shams que o seu próprio filho, um de seus seguidores mais devotos, um dia escreveu desesperado:

Noite e dia, em êxtase ele dançava, na terra girava como giram os céus. Rumo às estrelas lançava seus gritos e não havia quem não os escutasse. Aos músicos provia ouro e prata, e tudo o mais de seu entregava. Nem por um instante ficava sem música e sem transe, nem por um momento descansava.

Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto. A todos surpreendia que o grande sacerdote do Islã, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa. Por sua causa, da religião e da fé o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor. Os que antes recitavam a palavra de Deus agora cantavam versos e partiam com os músicos.

Na verdade o ápice do “delírio” de Rumi veio mesmo quando foi obrigado a se afastar de seu amigo. A história não foi tão bonita: Shams muito provavelmente foi assassinado pelos próprios seguidores de Rumi [2], enciumados de sua atenção quase que exclusiva ao seu amigo e amado, e aturdidos com o seu crescente afastamento da ortodoxia de outrora.

Não deu certo: após ser privado de sua grande amizade, Rumi se dissolveu completamente no amor, e passou o resto de seus dias dançando, rodopiando e recitando palavras divinas. Em tudo o que “escreveu”, assinou não com seu próprio nome, mas com o nome daqueles que amava, fosse Shams, fosse alguns dos seus discípulos, fosse o açougueiro da cidade...

Além das ideias de certo e errado, há um campo. Eu lhe encontrarei lá.

Quando a alma se deita naquela grama, o mundo está preenchido demais para que falemos dele. Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um” não fazem mais nenhum sentido.

Você já sofreu em excesso por sua ignorância, já carregou seus trapos para um lado e para outro, agora fica aqui...

Na verdade, somos uma só alma, você e eu. Nos mostramos e nos escondemos você em mim, eu em você...

Eis aqui o sentido profundo da minha relação contigo: é que não existe, entre você e eu, nem eu, nem você.

Rumi assinava seus poemas com nomes alheios pois havia finalmente chegado, como os 30 pássaros de Attar, ao final da jornada do ser, a casa do rei, na montanha de Qaf:

Ao entrar, os pássaros olharam tudo assustados. Não conseguiam entender o que se passava, pois no lugar de ver a Simurgh, o rei, tudo o que eles conseguiram ver foi... 30 pássaros refletidos num grande salão cheio de espelhos, e vazio!
    
Finalmente compreendem que, contemplando a si mesmos, têm encontrado ao rei, e que em sua busca do rei, têm encontrado a si mesmos. Os que atravessam os sete vales se purificam, e os que conseguem chegar ao palácio real, encontram ao rei que se revela em seus corações.

Esta é a essência do sufismo, a essência do misticismo, e que não pode ser totalmente apreendida por palavras, por fábulas, nem sequer por poemas. Talvez tenha sido a dança, o sama, o grande tesouro que Rumi tenha deixado para nós, através da ordem Mevlevi, mesmo que hoje ela seja cada vez mais uma dança artística do que propriamente religiosa...

Fato é que isso tudo não importa, o que importa é a estrela ao centro, o ponto imaginário em torno do qual dançam os sufis, num ritmo eterno. E seja “Allah”, “Deus” ou “Alma do Mundo” o seu nome, tampouco importa, é somente um nome. O que importa é a experiência, o que importa é o próximo passo desta dança.

E ela não termina nunca!

***

[1] Os poemas e citações do texto podem ser encontrados em minhas traduções do poeta na obra Rumi – A dança da alma.

[2] O que não é algo assim tão raro na história do sufismo. Outro grande poeta sufi, Mansour al-Hallaj, também foi perseguido, preso por mais de uma década, torturado e morto, por se atrever a se “afastar da ortodoxia” de sua época (final do séc. IX, início do X).

Crédito da imagem: Babel Santorini/Divulgação

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16.12.14

Deus, segundo as crianças

Nesta reportagem especial para a revista Serafina, da Folha de São Paulo, Ana Virginia Balloussier e Gabriel Cabral foram atrás de 9 crianças brasileiras, de 9 diferentes religiões, para através delas aprenderem um pouco mais sobre Deus. Nada mais sensato, afinal foram elas que acabaram de chegar da mansão do amanhã, e talvez a sua memória esteja mais aguçada que a nossa...

Clique na imagem para assistir o vídeo da reportagem em uma nova janela (caso não abra a janela, clique aqui):

Onde está seu Deus agora? Bom, depende.

Enquanto o Pai Nosso da católica Beatriz vive dentro de um coração, o da rastafári Núbia habita um deserto com montanha e cachoeira.

Deus é a atração principal do teatro, na visão do judeu Luke. Às vezes Deus é ela – a orixá que protege a aspirante a mãe de santo Manuella.

No censo do IBGE de 2010, a maioria dos brasileiros (64%, ou 123 milhões), diz ser "católica apostólica romana".

Mas quem tem fé nem sempre vai a Roma. Em segundo e terceiro lugar, estão os evangélicos (42 milhões, ou 22%) e os espíritas (3,8 milhões, 2%). E existe uma leva considerável de 643 mil brasileiros que declararam múltipla religiosidade.

Convidamos nove crianças de religiões distintas para desenhar o divino. Cada um por si e Deus para todos.


"Não tem um Deus físico. Deus é tudo e tudo é Deus. Ele é feito de luz. O arco-íris, no budismo, representa uma pessoa com coração iluminado"

Ariom Scheffler, 11, budista

***

"Oxum é a santa que me protege. Ela tá no mato, para curtir a vida. Uma professora uma vez contou que um lobo ia na porta da criança que não é batizada [como cristã]. Fiquei com medo, chorando"

Manuella Araújo da Costa, 10, candomblé

"Para nós não tem inferno, só céu. Assim: vamos fingir que você está no teatro. Se foi uma muito boa pessoa, ficaria na frente, mais perto de Deus. Se foi uma ruim pessoa, ficaria lá atrás"

Luke Saul Jospa, 9, judaísmo

***

"Sonhei que Jah estava no deserto e fazia todas as pessoas ficarem felizes. Ele é o meu coração e fica batendo em todos os momentos. Peço a Jah que o mundo fique bem limpinho"

Núbia Selassie Cestari Granello, 6, rastafári

"Deus é tudo para mim. Peço para Ele deixar chover, mas algumas vezes não penso na água. Penso em jogar Nintendo DS"

Mohamed Hussein Abid Ali, 8, muçulmano

***

"Deus nos ama e nos ilumina. Ele me ajuda quando alguém briga comigo. Teve uma confusão na escola, e a professora disse que eu participei, mas só estava lá comendo meu lanche"

Pietra Hanna Castanho, 10, evangélica

"Desenhei o mestre Gabriel, o nosso guia. É muito legal beber [ayahuasca]. Tem gente que vomita, mas eu não sinto medo, sinto amor. E vontade de rir muito! Já vi árvores falando comigo"

Darah Cally Patrício, 8, União do Vegetal (dissidência do Santo Daime)

***

"No antigo tempo, não cortavam cabelo, então Deus tem o cabelo longo. Hoje Ele tá no meio do coração de todo mundo. Eu rezo para Ele deixar a gente ficar com o recreio um pouquinho maior"

Beatriz Dias Samuel, 8, católica

"Deus criou a borboleta. Ela é bonita e feliz. Começa como se fosse um bicho horroroso, gosmento, e vira uma borboleta linda. É como o espírito que reencarna: você vai crescendo e evoluindo"

Clara Veiga Carvalho, 10, espírita

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Crédito das fotos: Gabriel Cabral (o desenho na última imagem é de Clara Veiga Carvalho)

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10.12.14

Malala - uma menina, entre muitas

Em homenagem à Malala Yousafzai, vencedora do Prêmio Nobel da Paz 2014, mais de 40 meninas de 12 países, incluindo Paquistão, Etiópia, Zâmbia, Ruanda, Brasil, Nicarágua e Filipinas reproduziram seu mais famoso discurso pela educação de todas as meninas do mundo, proferido na ONU.

Yolanda, moradora do Capão Redondo, em São Paulo, é uma das estrelas do filme Uma menina, entre muitas. O filme foi produzido pela Plan Brasil, organização não governamental que desenvolve programas e projetos com o objetivo de capacitar e empoderar crianças e suas comunidades para transformar a sua realidade.

Com vocês, as palavras de Malala, mais uma recém-chegada da mansão do amanhã:

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Crédito da foto: Google Image Search (Malala Yousafzai)

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5.12.14

Como trazer as ideologias de volta a política?

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

[Raph] Se pode ser complexo analisar a política brasileira como um todo, há um fator que é incrivelmente simples de ser compreendido: se algumas empresas, gigantes em seus respectivos setores [1], financiam sistematicamente as campanhas dos principais partidos do país [2], certamente não há nenhuma ideologia envolvida neste processo, que eu pessoalmente prefiro chamar de Grande Negócio Eleitoral. Há muitas ideias para reformas políticas no Brasil, mas o que parece ser consenso geral é que o sistema de financiamento privado, particularmente de grandes empresas, precisa ser limitado, fiscalizado ou até mesmo proibido. Dizem que o financiamento público geraria mais custos para os cofres públicos, mas o financiamento público já existe, o que está em discussão é se as eleições precisam ser tão caras, e cada vez mais caras – até mesmo porque sabemos que onde há muito dinheiro envolvido, as ideologias tendem a ser suprimidas. A minha pergunta, portanto, é essa: Como fazer para trazer as ideologias de volta para a Política?

[Carvalho] De forma semelhante ao que acontece com os conceitos de “direita” e “esquerda”, que discutimos da última vez, muitas outras simplificações didáticas tanto podem auxiliar nosso entendimento quanto nos dar uma equivocada impressão de simplicidade real aos assuntos a que se referem. Creio que seja bem este o caso, a propósito, quando visamos as relações entre empresas e políticos, ou melhor, entre “poder econômico” e “poder político”.

Às vezes, os equívocos se dão em virtude de má interpretação, entretanto, alguns dos esquemas didáticos que mais nos atrapalham a compreender as relações econômicas, políticas e sociais – tanto neste quanto no século anterior – são fruto de uma filosofia cheia de equívocos já na origem, e não somente nos intérpretes, que é a filosofia de Karl Marx. De fato, com a ajuda de um outro filósofo, o italiano Antônio Gramsci, as ideias daquele pensador alemão foram responsáveis por infundir na sociedade, de forma lenta e meio camuflada, uma coisa que o economista Ludwig Von Mises chamou de “a mentalidade anticapitalista”.

Ocorre que esta mentalidade semi-oculta transparece, por exemplo, quando a mídia insiste em sempre chamar os empresários de “corruptores” e os políticos de “corruptos”, como se a iniciativa maliciosa fosse exclusividade dos primeiros e corrupção fosse sempre por conta de ganância individual. Ora, não é preciso muito esforço para perceber que alguns esquemas são montados por iniciativa de políticos e servidores públicos, muitas vezes  com intuito de engordar suas contas bancárias, mas frequentemente, também, para fortalecer um projeto político.

Baseado em tais considerações não posso dizer que concordo que “onde há muito dinheiro envolvido, as ideologias tendem a ser suprimidas”. Entretanto, é importante lembrar, ainda, que a ascenção de quase todas as empresas doadoras milionárias do Brasil ocorreu em virtude de uma ideologia específica chamada “desenvolvimentismo”, um modelo de política econômica em que se atribui ao estado o papel central não só na regulação do mercado, mas também no seu intenso fomento – frequentemente selecionando “campeãs nacionais” – e visando forçar o processo de desenvolvimento do país.

Não é à toa, portanto – nem por mera ganância capitalista – que algumas empresas tenham se tornado gigantes no governo “50 anos em 5” de JK, como a Andrade Gutierrez, ou durante o “milagre econômico” da Ditadura Militar, como a Camargo Correa e a Odebrecht, ou mesmo devido à intensa atividade do BNDES no período atual, caso da JBS-Friboi. Todas elas são crias de uma ideologia que promove uma relacão promíscua entre o Estado e o Mercado. Consequentemente, também não é à toa que tais campeãs nacionais tenham aumentado extraordinariamente seus lucros e doações de campanha exatamente após o lançamento do PAC, o principal elemento da política desenvolvimentista do governo atual.

Não creio que caiba aqui fazer uma análise mais aprofundada sobre o desenvolvimentismo, até porque isso envolve conhecimentos específicos de economia que eu não possuo. Da mesma forma, não sei exatamente quais os mecanismos que uma reforma legal deveria criar para evitar interferências indevidas do mercado na política – e vice versa. Todavia, não posso deixar de destacar a importância de um olhar abrangente e cuidadoso sobre esses problemas para compreendê-los em toda a sua complexidade, expurgando preconceitos ideológicos que pairam no senso comum.

Existem inúmeros projetos de lei sobre reforma política tramitando no Congresso, cada um deles com peculiaridades próprias e todos com alguma relevância. Todavia, há um complexo processo de síntese a ser realizado, pois cada contribuição não compõe, isoladamente, um novo sistema eleitoral. Algumas delas, aliás, se instituídas de forma isolada, podem ser um belo tiro no pé.

Um sistema exclusivamente público de financiamento, por exemplo, pode até ser uma opção viável, todavia, podemos piorar as coisas se outras providências não forem tomadas em conjunto, como o fim da reeleição e a adoção do voto em legenda com lista fechada. Este seria justamente o caso se o STF vetasse o financiamento privado, pois, aí, um candidato à reeleição ficaria com toda a máquina estatal à sua disposição, enquanto os candidatos de oposição teriam que se contentar apenas com o fundo partidário. Além do mais, por se tratar de dinheiro público, a fiscalização deveria ser mais intensa, mas na disputa para deputados e senadores, com milhares de candidatos, o TSE simplesmente não teria condições para tal.

Enfim, eu realmente julgo que uma reforma política deve ser conduzida, mas por meio de mecanismos constitucionais e pelo Congresso Nacional. Até compreendo a desconfiança de que os parlamentares tenham pouco interesse em conduzi-la, mas entendo que a tese de driblá-los através de uma “constituinte exclusiva” tem tudo para ser uma armadilha. Nossos políticos são resistentes, é verdade, mas eles já aprovaram leis incômodas para si, como a de Responsabilidade Fiscal, a da Transparência e a da Ficha Limpa. Assim, tenho certeza que com menos comodismo e mais paciência para agir na complexa e trabalhosa realidade política – este debate faz parte do processo – podemos ter esperanças de construir um sistema mais justo, sem corrermos o risco de dar passos para trás.

[Teo] O filósofo e psicanalista Slavoj Žižek, no documentário O Guia do Perverso para Ideologia, explica o funcionamento da ideologia. Quando nascemos, somos recebidos num mundo que existe anteriormente a nós. Ao sermos introduzidos pelo Outro (outro adulto, outro sociedade, outro cultura, etc.) neste mundo, em suas regras simbólicas, seus modos de convivência, aprendemos não só como andar, a usar roupas, não fazer necessidades fisiológicas em público, mas também como pensar, se comportar, e por aí vai. Nesta operação de introdução ao mundo cultural ocorre uma alienação universal: tudo aquilo que percebemos da realidade é sempre mediado por conteúdos culturais aprendidos, sendo impossível uma “percepção pura”, pois sempre que percebemos algo nossa consciência faz associações com nossas ideias anteriormente adquiridas de forma a encaixar nos referenciais que possuímos este novo objeto que surgiu para a consciência.

No senso comum, podemos até imaginar que ideologia são ideias deturpantes que nos incapacitariam de enxergar a realidade. Mas pelo contrário, a ideologia é justamente aquilo que nos permite enxergar algo. A ideologia é a forma como nos relacionamos com o mundo, forma esta que desenvolvemos socialmente, sendo profundamente marcada pelo que é aceito e cultuado em nosso tempo. Todos nós estamos sempre submetidos a alguma ideologia, já que a realidade em si seria apenas um vazio de significação.  Žižek, a partir da psicanálise, é ainda mais contundente: nós gostamos da nossa ideologia, pois de certo modo, encontramos satisfação nela.

A ideologia é como se fosse um par de óculos para enxergar, vivermos e pensarmos a realidade. Ao mudarmos de óculos, enxergamos outra realidade. E se usássemos nenhuns óculos, nada enxergaríamos. Quando um sujeito se diz capaz de enxergar a realidade de fato, estando acima de quaisquer ideologias, é sinal que mais submerso em sua própria ideologia ele se encontra. E esta tem servido para ele em seu papel principal: ser a realidade de fato.

Deste modo, podemos entender que isto que nosso amigo Raph chama de Grande Negócio Eleitoral não é uma corrupção do sistema, um corpo estranho que surgiu no panorama político afastando o pensamento ideológico dele. O Grande Negócio Eleitoral é, na verdade, consequência da ideologia hegemônica, a ideologia do capital, e do modo de se fazer política que está instituído. É a própria resposta sintomática que emerge do nosso sistema, em que tudo é potencialmente explorável.

O financiamento privado da macropolítica é a intromissão do âmbito privado naquilo que é de interesse público. É o uso de um instrumento que deveria ser utilizado para produzir um bem-estar coletivo para gerar vantagens e lucros a grupos que se apropriam do sistema em benefício próprio. O financiamento privado gera um compromisso do político com o grupo que o beneficia, além da diferença de orçamentos entre partidos criar um grande desequilíbrio no sistema democrático. Se quisermos manter a democracia representativa (lembrando que há outros modelos de democracia possíveis que podem ser discutidos), deveríamos pensar seriamente em proibir o financiamento privado. Como a própria pergunta sugeriu, as eleições não precisam ser tão caras, pois sabemos como grande parte deste dinheiro não é utilizado para promover um bom debate que de fato possa fazer a diferença.

Podemos discutir algumas propostas para a democracia representativa. Por exemplo, uma reforma que proponha o financiamento público exclusivo, assegurando que os valores cheguem de forma igualitária a todos os candidatos para não beneficiar os grandes partidos em detrimento dos pequenos. Proibir a transferência de verbas entre partidos, o que faria com que na prática grandes coligações tivessem maior verba que as pequenas. Também a exigência de apresentar as contas dos partidos publicamente para se exercer uma rigorosa fiscalização do chamado “caixa-dois”. Como a possibilidade de corrupção não descoberta ainda assim é possível, fazendo com que na prática haja um financiamento duplo, público e privado, outra possibilidade é limitar não apenas na fonte, mas no fim: limitar, de alguma forma, a campanha. Por exemplo: permitir apenas o tempo de horário eleitoral gratuito da TV e do rádio, ainda que esse tivesse que ser estendido. O tempo de propaganda poderia também ser dividido igualmente entre partidos, tendo menos tempo para o sorriso da Dona Maria e a felicidade do Seu João, devendo focar-se em propostas e resultados reais. Da mesma forma uma limitação da poluição urbana, como panfletagem, placas e carros de som.

Se muitos advogam que o gasto com as campanhas seria um problema para os cofres públicos, com a limitação da possibilidade de propaganda o gasto consequentemente seria menor, e isso nada atrapalharia o processo democrático, pois todos saberiam onde se informar. Quanto à internet, temos pouca forma de controle devido a seu caráter “espontâneo” (com muitas ressalvas ao que seria essa suposta espontaneidade). Mas de qualquer modo, o que torna viral na internet não depende tanto da quantidade de postagens, mas a iniciativa de alguém querer compartilhar com sua rede de contatos, o que é saudável para o processo democrático. Outra coisa muito importante: proibir pesquisa de intenções de voto, cujo enviesamento e questionabilidade apresentada nas últimas eleições demonstraram mais ter atrapalhado que ajudado no processo eleitoral.

Enfim, apenas algumas ideias para serem pensadas. De todo modo, para o sucesso de qualquer proposta depende-se de um importante ponto: a conscientização do eleitor, não dando seu voto sem antes pesquisar e refletir, e não dando seu voto para candidatos que desrespeitem o decoro.

O que temos hoje no cenário macropolítico nacional é a ideologia hegemônica do capital, da exploração acima de tudo, seja esta do público ou privado, de modo que tem servido aos interesses de riqueza e poder de pequenos grupos. Uma reforma deste processo poderá trazer outras ideologias para o palco principal, que nas condições atuais pouca atenção recebem, de forma a serem discutidas, pensadas, analisadas, votadas, e para que de fato haja um processo democrático neste país.

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[1] Empreiteiras como a Odebrecht, a OAS, a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez, também conhecidas como “as quatro irmãs”, expandem seus negócios para muito além do setor de construção civil – Oi/Telemar, CPFL Energia e Brasken são somente alguns exemplos de empresas controladas por algumas destas empreiteiras. Juntas, elas são campeãs absolutas de doações para campanhas políticas, e há muitos casos em que elas são suspeitas de formação de cartel para decidirem entre si quais delas vencerão certas licitações bilionárias para grandes obras de infraestrutura do governo federal e em grandes estados e capitais do país. Não é difícil, portanto, entender como opera o Grande Negócio Eleitoral. Saiba mais sobre “as quatro irmãs” na excelente reportagem de Adriano Belisário para a apublica.org.

[2] Nas eleições presidenciais de 2014, mais de 90% do financiamento privado se concentrou nos partidos que tinham chances (segundo as pesquisas) de ir para o segundo turno: PT, PSDB e PSB. Em alguns casos uma mesma empresa doou a todos os três partidos, como por exemplo, a JBS-Friboi. Veja aqui os dados oficiais das doações privadas no segundo mês de campanha.

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Crédito da imagem: Google Image Search/raph

O debate continua nos comentários, não deixem de acompanhar.

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4.12.14

A canção do dragão dourado

Como um trovador dos dias atuais, eu viajo a incontáveis locais e encontro inspiração em diversas culturas sem me identificar especificamente com uma única nação ou país, mas antes com a riqueza cultural de todo o mundo. Minha música é o reflexo de uma estrutura clássica, com técnicas do flamenco, raízes ciganas, e características latinas. Meu nome é Estas Tonne.


Bem, quem frequenta este blog deve saber que eu também me interesso muito pela música. E, em se falando de música, não há nada mais genuíno e intenso do que a chamada world music que, na prática, engloba quase tudo o que não seja a chamada música comercial... Ora, nada contra a música comercial, tem quem goste, mas fico imensamente feliz em ver que com a era da internet e do YouTube, genuínos artistas de rua, músicos de verdade, têm sido descobertos aqui e ali.

Este é um caso especial. Estas Tonne, apesar de nascido na Rússia, é um músico do mundo. Já tem quase 10 álbuns gravados que são distribuídos gratuitamente na web, mas o que é mais interessante é como eles foram gravados – como afirma o próprio músico, "Cada álbum é um demo gravado ao vivo. O que significa caminhar em um estúdio e tocar o que se sente."

Mas ele ficou conhecido mesmo por esta apresentação em plena rua (em Landshut, na Baviera alemã), onde dedilha em seu violão mágico um feitiço chamado The song of the golden dragon ("A canção do dragão dourado"):

O vídeo acima está muito próximo de 10 milhões de visualizações e é de longe a maior audiência do artista no YouTube, mas eu considero este outro ainda mais impactante, Between fire and water ("Entre o fogo e a água", apresentado na mesma cidade alemã):

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Crédito da foto: Divulgação/Estas Tonne

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2.12.14

É preciso transver o mundo

“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”

O poeta responsável por tais linhas é brasileiro, nascido nalgum canto do Pantanal (real e/ou inventado), e só começou mesmo a fazer sucesso perto da terceira infância, em seus sessenta e poucos anos. Mesmo assim, diz que nunca viveu de poesia, já que a poesia é uma coisa inútil. Manoel de Barros viveu a poesia em seu estado mais bruto: o sentimento puro. Manoel se deleitava em ser um vagabundo para o mundo, e um manobrista da linguagem, um fraseador, um descascador dos frutos das emoções. Este documentário fala sobre tais cascas:

Só Dez Por Cento é Mentira (2008) é um original mergulho cinematográfico na biografia inventada e nos versos fantásticos do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros. Alternando sequências de entrevistas inéditas do escritor, versos de sua obra e depoimentos de “leitores contagiados” por sua literatura o filme constrói um painel revelador da linguagem do poeta, considerado o mais inovador em língua portuguesa. Só Dez Por Cento é Mentira ultrapassa as fronteiras convencionais do registro documental. Utiliza uma linguagem visual inventiva, emprega dramaturgia, cria recursos ficcionais e propõe representações gráficas alusivas ao universo do poeta.

O documentário que trazemos abaixo é extraordinário, e vai muito além de uma mera entrevista com o poeta que recentemente encerrou seus dias no Mato Grosso do Sul; se trata de uma obra altamente original que transpira as emoções genuínas da infância e da vida pacata, tão presentes nos poemas de Manoel.

No entanto, um dos comentários do vídeo no YouTube retrata o conjunto da obra melhor do que qualquer texto que eu pudesse lhes trazer aqui. O comentário é de Camelo Bike Tour:

Estou em luto, mas não triste.

O meu poeta favorito que usava borboletas, gostava de vazios, pedras, rios e sapos, seguiu quinta-feira passada seu caminho (13/11/14), tornou-se aquilo que tanto amou – virou natureza.

O poeta administrava o à-toa como ninguém e possuía outras habilidades inigualáveis – era árvore, sabia como amarrar o tempo no poste, fotografar o silêncio, e quase sempre achava o que não procurava. Ele tinha olhar de passarinho, imagine!

Morava em quintais, preferia coisas desimportantes, e talvez por isso tenha conseguido perceber o óbvio, que de tão manifesto ninguém enxerga, como na frase que eu adoro – “Sapo é um pedaço do chão que pula.”

Com praticamente 98 anos, completaria agora dia 19 de dezembro, costumava dizer que só tinha tido infância e, portanto, tudo o que escrevia era “apenas” sobre ela. Ele sempre soube que os objetos não se restringiam a seu significado literal, ao rigor da letra – “palavras que me aceitam como sou, eu não aceito”. “As coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis”, “Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”, dizia.

Não posso estar triste, afinal nasci no mesmo país deste artesão das palavras, um gênio contemporâneo que se dizia poeta em tempo integral – “Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às seis horas da tarde”.

Manoel de Barros usava a palavra para compor o silêncio que sempre fará muito barulho dentro de mim. Estou contente pois ele voltou à Gaia, à terra, voltou a ser poeira de estrela e como tal se espalhará por todos os lugares.

Muito obrigado, por fazer tanto e ainda se achar incompleto, poeta!

“O ser biológico é sujeito à variação do tempo, o poeta não” (Manoel de Barros)

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Crédito da foto: Divulgação/Família Barros

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