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28.6.10

O homem no espelho

É interessante como a mídia trata de erguer e destruir seus ídolos de pés de barro. É que nossa sociedade sempre dependeu de mitos. Importa, entretanto, enxergar a realidade por trás do mito - ou o que há de real no mito, e o que há de fantasia. Este homem, o homem no espelho, infelizmente não teve infância, e viveu a vida como uma doce fantasia infantil... Fomos nós quem tratamos de esfregar a realidade em seu rosto, fomos nós quem não aceitamos que um homem pudesse viver como uma criança. Só que todos somos crianças, a única diferença é que uns percebem, e outros não. Entenda quem souber encarar ao homem no espelho.

Estou começando com o homem no espelho
Estou pedindo a ele que mude seus conceitos
E nenhuma mensagem poderia ter sido mais clara:
Se você quer fazer do mundo um lugar melhor
Olhe para si mesmo, e então faça uma mudança!

"Man in the mirror" - cantada por Michael Jackson (retirado do filme "Moonwalker") in memoriam

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25.6.10

Cacique Cobra Coral: charlatão?

Este artigo visa analisar a suposta capacidade do espírito conhecido como Cacique Cobra Coral de afetar o clima em diversas regiões do mundo, e mais precisamente nas cidades brasileiras onde sua Fundação tem convênio com prefeituras. O espírito age através da médium Adelaide Scritori, que supostamente o incorpora de acordo com as práticas da umbanda. Este artigo pretende analisar o fenômeno de forma verdadeiramente cética e imparcial. [1]

De acordo com informações colhidas na Wikipedia e em reportagem da revista Veja, a Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) é uma fundação brasileira com sede em Guarulhos, criada pela médium Adelaide Scritori, e que ficou mundialmente famosa por manter convênios gratuitos com governos para intervir no clima e no tempo, como forma de prevenir ou minimizar catástrofes, ou não atrapalhar a realização de eventos.

A FCCC relaciona entre seus supostos feitos a elevação de 29 graus centígrados na temperatura de Londres, em 1987, o deslocamento para o mar de temporais que castigariam o Rio de Janeiro, em 2006, e o desvio de uma chuva para apagar incêndios florestais na Grécia, em 2007. Corretora de imóveis "acima de 1 milhão de reais", como gosta de frisar, Adelaide mora nos Jardins e costuma viajar o mundo oferecendo seus dotes sobrenaturais. Jura que o cacique não a ajuda nos negócios ou em relacionamentos. "A entidade só faz alterações climáticas para beneficiar a população". Pertencente a uma tribo americana, o índio apareceria à médium desde os 7 anos de idade e se comunicaria num português "com sotaque caboclo".

Mantida por uma empresa de seguros, a FCCC ganhou fama internacional depois que o escritor Paulo Coelho foi seu vice-presidente, entre 2004 e 2006. Hoje, dezessete países, em três continentes, receberiam ajuda do cacique. No Brasil, três estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) e duas prefeituras (do Rio de Janeiro e de São Paulo) contariam com sua força para lidar com as tempestades. Adelaide diz que não cobra nada das cidades para desviar os temporais. Mas pede, em troca, algumas obras para evitar enchentes. "Funcionamos como uma espécie de airbag: reduzimos os danos, mas as autoridades têm de fazer a parte delas", explica Adelaide. "O cacique não pode servir de muleta para os humanos".

Em posse dessas informações, e sem negar a priori que esse tipo de fenômeno seja possível (como o fazem os “pseudo-céticos de negação”), vamos analisar os fatos pela luz da lógica espiritualista e científica (se você está escandalizado, mantenha-se firme, pois acredito que sairá dessa análise no mínimo com um maior entendimento da espiritualidade):

1. Da capacidade de se afetar o clima
Desde épocas pré-históricas há registros de rituais e danças tribais direcionadas especificamente a afetar o clima, a mais famosa delas talvez seja a dança da chuva. Muitos espiritualistas antigos e modernos consideram a possibilidade do clima ser direta ou indiretamente regido por espíritos e/ou entidades da natureza [2]. Nesse contexto, os rituais e as danças não seriam em si os catalisadores das mudanças climáticas, mas sim uma forma de contato com tais entidades, uma espécie de “pedido” feito através de uma linguagem simbólica que seria compreendida por esses supostos espíritos da natureza.
Certos ocultistas afirmam que conseguem afetar o clima e desviar chuvas, mas em sua maioria dizem que tais técnicas exigem muitos anos de estudo nas artes ocultas, e que tais fenômenos estão longe de serem “triviais” de se fazer. Mesmo no Novo Testamento, temos uma passagem em que Jesus “acalma a tempestade ” e permite que a pescaria siga tranqüila no barco onde estava com seus discípulos – porém, mesmo Jesus não realiza esse tipo de fenômeno de forma trivial.
Segundo a FCCC, eles (a médium e o cacique) precisam estar fisicamente presentes (no caso da médum) nos locais onde realizam seus trabalhos de mudanças climáticas. Até aqui faz certo sentido, se afirmassem que conseguem mudar o clima em qualquer parte do globo, estariam se igualando, no mínimo, a semi-deuses.
Já quanto ao nível de modificação imposta ao clima, a FCCC admite que atua como “um paliativo” e não como uma solução derradeira. Adelaide costuma dizer que eles são um airbag contra os temporais. Para realizarem seus trabalhos, eles precisam de equipamentos de ponta na ciência metereológica. Observa-se um casamento entre ciência e umbanda, ou ao menos sabe-se que a própria FCCC depende de tecnologia física para sua atuação.
Cientificamente, entretanto, é praticamente impossível comprovar que a médium consiga realmente afetar o clima – ainda que “de forma paliativa, em pequena escala”... Sabe-se que os eventos que regem o clima são muitos e extremamente complexos, de modo que mesmo a previsão do tempo para daqui a uma semana é algo longe dos 100% de eficácia, enquanto que a previsão para daqui a meses é praticamente impossível pela ciência atual.
Pela lógica espiritualista, ainda que a existência de entidades da natureza seja considerada, há que se perguntar se o clima está realmente “esperando as ordens” de alguém... Ou, ainda mais profundo do que isso, se seria justo desviar tempestades de um local para o outro. Digamos que todas as tempestades fossem desviadas para o oceano e não para cidades vizinhas, ainda assim ficaria difícil de explicar como isso poderia ser feito em qualquer parte, mesmo nas cidades afastadas do litoral!
Se a natureza é um sistema, os seres vivos dentro da atmosfera terrestre estão todos conectados a ele – e esse sistema também inclui o clima, portanto. Seria estranho esperar que tempestades simplesmente “sumissem no ar”, até mesmo porque o espiritualismo trata de fenômenos lógicos que, ainda que não possam ainda ser entendidos pela ciência atual, não devem ser reduzidos ao pensamento mágico. Sabemos que na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma, e uma tempestade precisa ocorrer quando as nuvens estão carregadas – não há médiuns ou entidades capazes de “teleportar” a precipitação para outro planeta...
Dito tudo isso, como a FCCC afirma que atua como um airbag e que não consegue realizar grandes transformações no clima, talvez ainda tenhamos um espaço lógico para crer que uma parte do que afirmam fazer seja verdade. Nada que possa ser comprovado experimentalmente, mas também nada que possa ser provado como fraude – por enquanto.

2. Do trabalho diretamente condicionado aos convênios
Retirado de matéria do O Globo: Quatro dias após o violento temporal que atingiu o Rio de Janeiro no início de 2010, o prefeito Eduardo Paes renovou o convênio com a FCCC, que presta assistência técnico-científica gratuita para o município em questões climáticas. A  cerimônia de renovação da parceria ocorreu em uma audiência com a médium Adelaide Scritori com Paes na sede da prefeitura.
“Infelizmente, a Fundação não foi acionada no forte temporal de sábado passado no Rio. O convênio com a prefeitura estava à espera de renovação, mas temos um acordo em vigor com o governo do Estado. Mas a Defesa Civil do Estado também não nos alertou – disse Osmar Santos, porta-voz da Fundação Cacique Cobra Coral.”
Apesar de afirmarem que todos os convênios que possuem não envolvem o gasto de verbas públicas, me parece estranho que a FCCC seja “inerte” em relação as suas atividades... É que, conforme a própria Adelaide afirma, “eles só atuam quando são chamados”, e também quando existe um convênio, é claro.
Mas, e que tipo de convênios são esses? Ora, se eles não precisam de dinheiro, talvez exista uma troca de aparelhagem ou até mesmo uma intervenção da FCCC nas políticas de sustentabilidade nos governos em questão. São suposições baseadas em informações que encontrei no próprio site da FCCC, como essa afirmação (talvez um pouco exagerada):
“FCCC alerta CEE (Comunidade Econômica Européia), USA e países do Oriente (China e Japão): Não vamos atender a partir de 2010 os países que se omitirem na redução de CO2 no próximo mês em Copenhagen”.
Mas são somente suposições, pois não temos acesso aos detalhes desses convênios – sabemos apenas que existem, mas não o que significam exatamente... A grande questão é até mesmo óbvia: mas, e porque diabos eles precisam desses convênios para atuar?
Suponhamos que o cacique e a médium não ganhem absolutamente nada em troca de seu trabalho em prol da humanidade – nem mesmo o reconhecimento devido... Ora, qualquer espiritualista sério conhece inúmeros médiuns que fazem o mesmo, e não dependem de nenhuma espécie de retorno financeiro ou tecnológico, de nenhum reconhecimento público e muito menos de convênios com prefeituras!
Ainda que seja viável crer nas boas intenções do cacique, resta-nos compreender o porque de ele só atuar quando chamado, ou através de convênios... Para que um espírito indígena precisa de convênios para trabalhar em prol do bem estar das pessoas? Ou ainda, o que interessa a um cacique evitar que chova em um evento de Rock? Isso seria realmente algo importantíssimo frente a tantas catástrofes naturais que ocorrem no mundo – e ao que tudo indica, independente de convênios entre fundações umbandistas e prefeituras?
Se a FCCC buscava reconhecimento público através de seus convênios, o mais provável é que tenha sido apenas alvo de chacota (e com razão, independentemente de suas intenções serem sérias ou não). Se a FCCC buscava a contra-partida dos governos em ações de sustentabilidade, poderia fazer isso de uma outra forma – por exemplo, poderia reunir um fundo de ajuda aos desabrigados e feridos em grandes enchentes e catástrofes ambientais; ou ainda incentivar as pessoas a olhar a natureza com maior cuidado (o que já vem sendo feito por inúmeras organizações científicas e espiritualistas, aliás); ou até mesmo reunir-se de tempos em tempos com as supostas entidades de natureza para discutir a melhor forma de tratar as mudanças climáticas – desviando chuvas na origem e não no fim. Talvez até a FCCC já faça algo na linha do que foi sugerido, mas em nenhum dos casos faz qualquer lógica a necessidade desses convênios com os governos.

3. Da possibilidade do uso de verbas públicas
Ainda que a FCCC e os prefeitos afirmem categoricamente que seus convênios são inteiramente gratuitos, fica difícil imaginar para que diabos serviria um convênio gratuito. É mais ou menos como telefonar ou enviar um e-mail para alguém e ter isso registrado em cartório... Ora, se tudo o que ocorre são trocas de informação, para que é preciso o convênio?
Agora, no caso de verbas públicas serem gastas nesse tipo de convênio, daí sim teríamos um caso bizarro em mãos. O estado é laico, e ainda que não fosse, não podemos usar verbas públicas em serviços de eficácia altamente duvidosa e não comprovada, por mais que a possibilidade de serem efetivos exista (não é possível provar como fraude). Embora muitos vejam a FCCC como uma espécie de site humorístico e tais convênios com uma espécie de piada de mau gosto, há que se criticar esse tipo de coisa com muito mais contundência. Principalmente por parte dos espiritualistas.
É por casos como esse que a espiritualidade ainda irá demorar muito para penetrar na mente daqueles que (sabiamente) cultivam um pensamento racional. É uma pena que em muitos casos seja necessário praticamente jogar o cérebro no lixo para seguir adiante com crenças que, embora pareçam fantásticas a primeira vista, podem configurar uma enorme perda de tempo em nossa evolução espiritual.
A espiritualidade não precisa abandonar a razão, a ciência ou o ceticismo – a fé racional é a fé ideal segundo os grandes sábios; a ciência nunca foi materialista nem espiritualista, mas sim uma forma de conhecermos o mundo; e o ceticismo é uma ferramenta filosófica que serve em qualquer área ou crença, desde que usada com bom senso.
Se a FCCC é realmente uma Fundação séria, e se o cacique realmente tem boas intenções, que se dediquem ao que importa – a regenerar este mundo, a mudar as mentes e não apenas desviar as tempestades, a findar a ignorância e não apenas servir de “paliativo”... Para nada disso precisarão de convênios, exposição na mídia ou reconhecimento público – pois que se o cacique é realmente quem afirma ser, deve saber que o único reconhecimento que importa é o de nossa própria consciência, e a única tempestade que precisa ser desviada é a tempestade da ignorância.

***

[1] Quem acompanha o blog talvez tenha lido a defesa que fiz de Chico Xavier e a análise que fiz da mediunidade de João de Deus (ambos acusados de charlatanismo). Como nos outros artigos tratei de fenômenos muito mais paupáveis (ao menos do ponto de vista espiritualista), resolvi falar sobre a FCCC como forma de contra-ponto, até mesmo para demonstrar que um espiritualista também pode ser cético (ou deveria ser).

[2] Quanto a essa questão eu sou particularmente agnóstico, até mesmo porque não vejo uma conexão clara entre esse tipo de fenômeno e um caminho de evolução espiritual. Porém, no que tange uma análise mais científica do fenômeno, talvez o caminho para uma melhor compreensão passe pela questão das bactérias que (talvez) influenciam o clima.

Nota: Títulos como "Cacique Cobra Coral" ou "Maria Padilha", etc., vem da umbanda e costumam se referir a coletividades de espíritos – não apenas um. Este artigo se refere exclusivamente ao cacique da FCCC, que se é que existe, é "um dos" caciques, e não "o" cacique.

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Crédito da imagem: Anônimo.

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23.6.10

Um dia a gente chega, noutro vai embora

Um dos clássicos da música do interior do Brasil, que "chegou lá de cima no tempo de fazer um cafézinho":

"Tocando em frente", de Almir Sater e Renato Teixeira.

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No YouTube temos uma série de vídeos de slides de fotos com essa música ao fundo. Este abaixo foi um dos melhores que encontrei, na voz do Renato:

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18.6.10

Ferida aberta

Rockall é um pequeno rochedo desabitado com 27 metros de diâmetro, 23 de altura e uma superfície de 570 metros quadrados, no meio do Oceano Atlântico, entre a Islândia e a Irlanda. Pertence à Zona Econômica Exclusiva do Reino Unido desde 1997, depois de ter sido anexado por Londres em 1955. Mas a riqueza que esconde na profundidade das águas em seu redor, em hidrocarbonetos e minerais, é motivo suficiente para ser disputado por quatro nações.

Reino Unido, Irlanda, Dinamarca e Islândia reclamam direitos sobre Rockall – Cada país conta com extenso relatório de razões históricas, geográficas e políticas para demandarem os direitos sobre uma rocha perdida no meio do mar. A disputa ainda promete levar muito tempo e render dividendos a muitos burocratas, mas pelo menos esperamos que não entrem em guerra por conta disso.

Em 1854 o presidente dos EUA, Franklin Pierce, enviou uma carta ao Chefe Seattle com uma oferta não muito generosa de dinheiro para comprar as terras dos índios locais. Ainda que fosse generosa a oferta, o Chefe Seattle pareceu não compreender a lógica do presidente. Em sua carta de resposta, escreveu:

Mas como pode comprar ou vender o céu, a terra? Essa idéia é estranha para nós. Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo (...) Cada grão de areia da praia, cada névoa na floresta escura (...) O destino de vocês é um mistério para nós (...) O que vai acontecer quando os recantos secretos da floresta estiverem passados com o odor de inúmeros homens e a vista das colinas verdejantes se macular com os fios que falam?

Será o fim da vida e o começo da sobrevivência. Quando o último pele-vermelha sumir com a natureza selvagem, e sua lembrança for só a sombra de uma núvem sobre a planície, essas praias e florestas ainda estarão aqui? Terá sobrado algum espírito do meu povo?”

O sábio indígena parecia antever as atrocidades que os homens fariam com a natureza de seu próprio país, incluindo a tal “terra” que gostariam de comprar. Mas se ele parecia preocupado apenas com os “fios que falam” e o fim das florestas selvagens, é porque não viveu para ver as grandes “selvas de asfalto” e tudo o mais que foi erguido nos lares sagrados dos índios que se foram – em sua maioria mortos brutalmente por não aceitarem as “ofertas” dos colonizadores americanos.

Comparando-se as épocas, podemos dizer que ao menos nossa civilização evoluiu um pouco em relação à busca desenfreada por riquezas, ao menos ninguém mais se acha no direito de dizimar nações e inúmeros inocentes em guerras sem sentido, apenas para se abocanhar um pouco mais de terras e riquezas... Será mesmo? Bem, ao menos casos como o da invasão do Iraque não ocorrem mais sem o protesto permanente da mídia mundial...

Talvez mesmo por isso os governantes tenham voltado os olhos para as reservas de riquezas enterradas no fundo dos oceanos – o fétido ouro negro que continua a dominar os desejos daqueles obssediados pela conquista de riquezas, que infelizmente ainda parece ser o caso da maioria dos chefes de governo. A lógica é simples: pode ser mais caro extrair petróleo do mar, mas pelo menos não é preciso invadir países e provocar tragédias diplomáticas, ou ainda que seja necessário algum confronto, será apenas entre militares em navios no meio do mar, longe da mídia.

Mas, ainda que seja cara a tecnologia para cavar tão fundo no leito dos oceanos, mais caro ainda seria pesquisar procedimentos realmente seguros de extração, certificando-se que acidentes sejam raros e as medidas de contenção eficazes... Imaginava-se que a maioria das nações tenha gastado um pouco mais para se certificar que a natureza não seria ameaçada pela extração do ouro negro abaixo do mar, mas era a mais pura ilusão...

Em 20 de Abril de 2010 uma plataforma de exploração de petróleo da British Petroleum (BP) no Golfo do México explodiu, causando 11 mortes de operadores e um vazamento direto para o oceano, que até este momento – cerca de dois meses depois – ainda não foi completamente controlado, e nem parece que vai ser tão cedo. A BP vem tentando conter o vazamento desesperadamente, mas seus engenheiros admitem que simplesmente não tinham a tecnologia necessária para conter um vazamento a tal profundidade (1,6 Km).

A BP têm uma excelente razão para conter o vazamento o mais rápido possível: desde que a mídia passou a anunciar o que provavelmente será (ou já é) o maior desastre ambiental da história dos EUA (e talvez do mundo), suas ações despencaram a valores de mais de uma década atrás, e certamente continuarão em queda livre. O atual presidente americano, Barack Obama, está furioso com o ocorrido, e atrás de “traseiros para chutar” entre os diretores da BP. A verdade, entretanto, é que ninguém sabe até onde irá esse desastre, o vazamento é uma ferida aberta nas águas do Golfo – o sangue negro não tem data para ser estancado.

Ao que parece, tudo se resume a uma questão financeira na mente dos governantes e diretores de empresas como a BP: vamos explorar petróleo nas profundezas porque a tecnologia para extração custa menos do que uma guerra para invadir outros países; porém, não vamos gastar tanto assim com essa tecnologia, vamos gastar apenas o necessário para extrair, assim garantimos maior margem de lucro; se por acaso um dia uma plataforma explodir e vazar o petróleo a centenas de metros de profundidade, seja o que Deus quiser... A gente pensa em um jeito de resolver isso quando o custo da não-resolução passe a justificar o custo da resolução.

Nós tendemos a pensar que os governantes e diretores de grandes empresas sejam homens e mulheres de grande capacidade e inteligência, que zelam pelo bem estar do mundo e das pessoas... Mas eles muitas vezes infelizmente são tão ou mais ignorantes que nós. Mesmo quando não são, sua obssessão por riquezas, influência do deus do consumo, acaba deixando-os cegos. Afinal, da mesma forma que nossa sociedade educa as pessoas a consumir o máximo possível, como se isso fosse fonte de felicidade, influencia os governos para que adquiram o máximo de riquezas e energia possível, como se este fosse o único caminho para o desenvolvimento de seus países. Estão todos cegos, mas ainda há tempo...

Ainda há tempo para se abrir os olhos e reconhecer que todo o movimento ecológico das últimas décadas não surgiu em vão. Que ninguém sabe de onde exatamente vêm os jovens, mas sua tarefa de renovação é quase sempre mais do que evidente. Porque insistir em procurar o fétido ouro negro nas profundezas dos oceanos se os jovens cientistas, engenheiros e sociólogos nos trazem tantas opções e tecnologias mais promissoras? É que os jovens olham para o futuro, e os velhos ficam estagnados no passado – isso independe da idade.

Infelizmente o espírito do povo do Chefe Seattle foi removido de nosso planeta. Não é que eles não merecessem aqui estar, somos nós que não merecemos mais a presença deles... Mas, seja lá onde estiverem, tomara que ainda consigam nos influenciar e iluminar com sua sabedoria. Tomara que aprendamos com eles há tempo. Tomara que decidamos viver, e não apenas sobreviver.

A você que é jovem (de alma), suspeite...
Suspeite de quem vai atrás de rochedos, e não de amor.
Suspeite de quem quer conquistar terras, e não corações.
Suspeite de quem muito fala sem lhe dar tempo de falar.
Suspeite de quem quer pensar por você.

Suspeite de quem dita regras, mas não as explica.
E, a quem as quer explicadas, dizem que não há como explicar.

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» Veja o tamanho do vazamento no Golfo do México comparado com sua cidade (Google Maps)

Crédito das fotos: [topo] Wikipedia (Rockall); [ao longo] BrazilPhotos

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13.6.10

Newton, Einstein e Deus

Texto de Marcelo Gleiser no Caderno Mais! da Folha de São Paulo. Baseado em uma versão mais completa, publicada em inglês no blog 13.7: Cosmos and Culture. Retirado do blog de Alam Kenjiminowa. As notas ao final são minhas.

Talvez isso surpreenda muita gente, mas tanto Newton quanto Einstein, sem dúvida dois dos grandes gigantes da física, tinham uma relação bastante íntima com Deus.

É bem verdade que o que ambos chamavam de "Deus" não era compatível com a versão mais popular do Deus judaico-cristão [1].

Numa época em que existe tanta disputa sobre a compatibilidade da ciência com a religião, talvez seja uma boa ideia revisitar o pensamento desses dois grandes sábios.

No epílogo da edição de 1713 de sua obra prima "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1686), Newton escreve que o seu Deus (cristão, claro) era o senhor do Cosmo e que deveria ser adorado por estar em toda a parte, por ser o "Governante Universal". Essa visão de Deus pode ser considerada panteísta, se entendermos por panteísmo a doutrina que identifica Deus com o Universo ou que identifica o Universo como sendo uma manifestação de Deus [2].

A visão que Einstein tinha de Deus, devidamente destituída da conotação cristã, ecoava de certa forma a de Newton. Einstein desprezava tudo o que dizia respeito à religião organizada, em particular a sua rígida hierarquia e ortodoxia [3].

Para ele, um Deus que se preocupava com o destino individual dos homens não fazia sentido. Sua visão era bem mais abstrata, baseada nos ensinamentos do filósofo Baruch Spinoza, que viveu no século 17. Numa carta dirigida a Eduard Büsching, de 25 de outubro de 1929, Einstein diz: "Nós, que seguimos Spinoza, vemos a manifestação de Deus na maravilhosa ordem de tudo o que existe e na sua alma, que se revela nos homens e animais" [4].

Em 1947, numa outra carta, Einstein escreveu: "Minha visão se aproxima da de Spinoza: admiração pela beleza do mundo e pela simplicidade lógica de sua ordem e harmonia, que podemos compreender".

Como essas posições podem ser usadas no debate sobre a compatibilidade da ciência com a religião?

De um lado, ateus radicais como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris argumentam que não pode haver uma compatibilidade, que a religião é uma ilusão que precisa ser erradicada, que o sobrenatural é uma falácia [5].

De outro, existem vários cientistas que são pessoas religiosas e até mesmo ortodoxas, e que não veem qualquer problema em compatibilizar seu trabalho com a sua fé. O fato de existirem posições tão antagônicas reflete, antes de mais nada, a riqueza do pensamento humano. Nisso, vejo um ponto de partida para uma possível conciliação [6].

É verdade que o ateísmo radical está respondendo a grupos fundamentalistas que tentam evangelizar instituições públicas. "Guerra é guerra e devemos usar as mesmas armas", ouvi de amigos. Mas o pior que um fundamentalista pode fazer é transformar você nele.

Einstein e Newton encontraram Deus na Natureza e viam a ciência como uma ponte entre a mente humana e a mente divina.

Para eles, adorar a Natureza, estudá-la cientificamente, era uma atitude religiosa. Acho difícil ir contra essa posição, seja você ateu ou religioso. Religiões nascem, morrem e se transformam com o passar do tempo [7]. Mas, enquanto existirmos como espécie, nossa íntima relação com o Cosmo permanecerá.

***

[1] Como sempre digo por aqui, raramente algum livre-pensador terá a mesma visão de Deus que outro. Somente os que seguem dogmas, ou os que atacam ferozmente os dogmas, têm uma visão ou um conceito mais homogêneo do que quer que seja Deus.

[2] Muitos teístas criticam o panteísmo afirmando que Deus não pode ser a mesma coisa que sua obra, assim como uma pintura não é a mesma coisa que um artista. Porém, se a pintura é a manifestação do artista, o universo pode ser a manifestação de Deus. Um panteísta pode achar que absolutamente toda a natureza é sagrada, portanto, mas não quer dizer que afirme que Deus é limitado ao universo. Até mesmo porque do nada, nada se faz, e daí se tira - pela lógica - que Deus é "algo mais do que o tudo".

[3] Por "religião organizada e/ou ortodoxia", leia-se Igreja (ekklesia). A religiosidade, ou Religião (religare), é muito mais do que isso.

[4] O belíssimo conceito que Espinosa (eu prefiro usar seu nome latino) fazia de Deus é resumido no primeiro capítulo de sua "Ética". Mas talvez possa ser resumido ainda mais na frase "uma substância não pode criar a si mesma". O Deus de Espinosa é tão somente - pela lógica - a Primeira Substância, da qual tudo o mais se irradiou.

[5] Vale lembrar que inúmeras doutrinas religiosas concordam que o sobrenatural não existe. Complexo, entretanto, é afirmar que já sabemos tudo sobre o natural - obviamente ainda nos falta muito a desvendar.

[6] Eu certamente não concordo com muitas crenças ou descrenças de Gleiser, mas isso não me impede de admirá-lo por sua inteligência e bom senso, além é claro do trabalho exemplar na divulgação científica. Muitas vezes a discussão sobre a existência de Deus é absolutamente inútil, é quando um "deus-barreira" serve apenas para se interpor entre o entendimento dos seres. Busquemos então o ponto de encontro, e não um debate infindável sobre a discórdia.

[7] As Igrejas (ekklesia) são fundadas e esquecidas, é verdade. A Religião (religare), porém, é sempre um mesmo caminho. Caminho talvez infinito, mas que é trilhado por cada um, e não há sábio ou cientista que possa fazê-lo por você...

***

Crédito da imagem: Guto Lacaz (exposição "Einstein no Brasil")

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11.6.10

Ubuntu – the world goes around

best if viewed in Fullscreen ("More" > "Fullscreen"):


Ubuntu is a very peculiar african word
It has so many meanings, as many as the breeds of men
For to know it’s true meaning, we would have to ask one of them
Of the hundred that left Africa to explore the world
The adams and eves of our age
The mothers and fathers of men

Ubuntu means that a hunter wouldn’t need to ask for food
When passing by the villages of another people
Cause we hunt to survive
But it’s in the sharing, it’s in the kindness to each other
That we actually find that precious feeling
A breeze of joy
A pleasure to be alive

Ubuntu means that no man is an island
That we are like continents, looking to sail back
Looking to unite the shores of our kingdoms
To form once again the Pangaea
A place with no foreigners, no rulers and no slaves
Where roads connect every city and every heart
And nobody see any frontier

Ubuntu means that the age of men is just a blink
In the eyes of eternity
That we are but a link in the web of life
Billions came before us, billions are yet to pass
To walk in the long plains and to climb the hills of Africa
To look at the grass, and the flowers, and the trees
And understand that no daylight is the same
And all things float like dust in gentle wind, unbound
The world goes around

Ubuntu means that no man can live in cages
Be it prisons or dogmas
We must look to discover, to uncover, to enlight
To love and to change, to move millions with thoughts
Like the gandhis, the mandelas, the kings
Cause this world is no kingdom for just one ruler
But we are all rulers of our own lands
We should exchange our knowledge and wisdom
And never bullets and bombs

Ubuntu means that men should work toghether
Walking beside, holding hands
Facing the horizon like the old hunters
Yet, no more to fight in the war of hunger and pain
But to reach a precious trophy
The prize of self-knowledge
A distinct vision of the true meaning of the word

Yes, there are many breeds of men indeed
And many breeds of life
But we are all one, all of us
Represented in so many forms, so many substances
So many meanings for this one concept
So many villages in the ocean of night
So many hunters walking on all those waves of light
So many preys waiting to be unbound
Ubuntu – the world goes around

raph’10 (aka. Rafael Arrais, this blog's author)

***

Ubuntu – o mundo dá voltas

Ubuntu é uma palavra africana muito peculiar
Ela tem tantos significados, tantos quanto as linhagens dos homens
Pois para saber seu verdadeiro significado, precisaríamos perguntar para um deles
Um dos cem que deixaram a África para explorar o mundo
Os adãos e evas de nossa era
As mães e os pais de todos nós

Ubuntu quer dizer que um caçador não precisaria pedir por comida
Quando passando pelos vilarejos de outros povos
Pois nós caçamos para sobreviver
Mas é no compartilhar, no carinho para com cada um
Que nós realmente encontramos essa sensação preciosa
Uma brisa de alegria
Um prazer em se estar vivo

Ubuntu quer dizer que nenhum homem é uma ilha
Que somos como continentes, esperando navegar de volta
Procurando unir as praias de nossos reinos
Para formar uma vez mais a Pangeia
Um lugar sem estrangeiros, governantes ou escravos
Onde as estradas conectam cada cidade e cada coração
E onde ninguém vê nenhuma fronteira

Ubuntu quer dizer que a era dos homens é tão somente um piscar
Dos olhos da eternidade
Que nós somos apenas um fio na teia da vida
Bilhões vieram antes de nós, bilhões esperam passar
Para caminhar nas longas planícies e escalar os montes da África
Para olhar para a grama, e as flores, e as árvores
E compreender que nenhuma luz da manhã é a mesma
E que todas as coisas flutuam como poeira em brisas suaves, libertas
O mundo dá voltas

Ubuntu quer dizer que nenhum homem pode viver em celas
Sejam prisões ou dogmas
Nós precisamos descobrir, desvelar, iluminar
Amar e mudar, mover milhões com pensamentos
Como os gandhis, os mandelas, os kings
Porque este mundo não é um reino para apenas um rei
Mas todos somos os reis de nossas próprias terras
Nós deveríamos trocar nosso conhecimento e sabedoria
E nunca mísseis e bombas

Ubuntu quer dizer que os homens deveriam trabalhar juntos
Caminhando lado a lado, de mãos dadas
Encarando o horizonte como os antigos caçadores
Porém, não mais para lutar na guerra da fome e da dor
Mas para alcançar um troféu precioso
O prêmio do auto-conhecimento
Uma distinta visão do verdadeiro significado da palavra

Sim, existem realmente muitas linhagens de homens
E muitas linhagens de vida
Mas todos somos um, todos nós
Representados em tantas formas, em tantas substâncias
Tantos significados para apenas este conceito
Tantos vilarejos no oceano da noite
Tantos caçadores caminhando em todas essas ondas de luz
Tantas presas aguardando a liberdade
Ubuntu – o mundo dá voltas

raph’10

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Em homenagem ao espírito da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul

Crédito da foto: Daylife (Nelson Mandela e Desmond Tutu - grandes colaboradores de Ubuntu)

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9.6.10

A comunicação simbólica como sistema de herança

Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.241 a 245. Tradução de Claudio Angelo. As notas ao final são minhas.

Nós já sugerimos que nossa capacidade de se comunicar por meio de símbolos está na raiz de muitas das coisas que nos tornam tão diferentes de outros animais [1]. Os seres humanos têm um método único de transmitir e adquirir informação. O que queremos agora é examinar o sistema de comunicação simbólica de um ponto de vista mais focal, o do sistema que fornece uma quarta dimensão à hereditariedade e à evolução. Queremos tentar caracterizar esse sistema especial de herança da mesma forma como fizemos com os sistemas genético, epigenético e comportamental e ver o quanto ele é similar a cada um desses sistemas [2].

Existe pelo menos uma semelhança superficial entre a maneira como transmitimos informação através da fala e a maneira como os animais usam seus diversos cantos e chamados, então será que o sistema simbólico funciona da mesma maneira que o sistema de herança comportamental? Ou será mais parecido com o sistema genético? O DNA é chamado de “linguagem da vida”, e dizemos que nossas características estão “escritas nos genes”, portanto deve haver semelhanças óbvias entre os dois sistemas. Quais são elas? Que traços o sistema simbólico compartilha com outros sistemas de transmissão de informação, e o que o torna tão diferente e especial?

Existe uma propriedade importante compartilhada pelos sistemas genético e simbólico, mas que está ausente na herança comportamental. Símbolos e genes podem transmitir informação latente, ao passo que a informação precisa ser usada antes de ser transmitida ou adquirida por meios comportamentais. É fácil ver isso se pensarmos como um canto ou uma dança são transmitidos. Consideremos três casos: transmissão através do sistema genético, transmissão através do sistema comportamental e transmissão através do sistema simbólico. Para o exemplo genético, podemos usar as moscas-das-frutas do gênero Drosophila, que têm cantos e danças muito bonitos. As canções são entoadas pelos machos, que produzem-nas vibrando as asas (...) Cada espécie tem cantos e danças característicos, que permitem às moscas identificarem a própria espécie. Esses cantos e danças são inatos e sabe-se um bocado sobre sua genética, mas o ponto importante é que eles serão herdados mesmo que os pais nunca cheguem a executá-los (talvez porque um cientista malvado tenha arrancado suas asas) (...) Em outras aves e mamíferos, no entanto, o canto deve ser executado na frente dos indivíduos para que eles possam aprendê-lo. Somente ouvindo um canto é que os indivíduos poderão obter a informação que lhes permitirá reproduzi-lo. Em outras palavras (...), não existe informação latente que possa pular gerações.

Isso não acontece com a transmissão através do sistema simbólico. Seres humanos podem transmitir uma canção ou dança uns para os outros mesmo que sejam desafinados ou tenham dois pés esquerdos. Não é preciso cantar uma nota ou dar um passo de dança, pois podemos transmitir a informação necessária para a reprodução de uma canção ou de uma dança usando discos ou filmes, ou mesmo com instruções escritas ou orais. Não é preciso agir de imediato em cima de informações simbólicas para que elas sejam transmitidas. Ainda que a cultura capaz de interpretá-las permaneça intacta, elas podem permanecer latentes por gerações [3]. As informações para construir o Terceiro Templo têm sido transmitidas entre os judeus por quase 2 mil anos, mas o templo ainda não foi construído. E a receita da sopa da vovó pode ser passada entre várias gerações de uma família até que alguém resolva preparar a sopa de novo.

Os sistemas genético e simbólico são parecidos porque ambos podem transmitir informação latente, mas o sistema simbólico pode fazer muito mais do que isso. Como símbolos são convenções compartilhadas – signos socialmente pactuados –, eles podem ser mudados e traduzidos em outras convenções correspondentes. Teoricamente, seu potencial de tradução é ilimitado. Uma instrução em inglês que seja dada em letras romanas também pode ser dada em código Morse, num semáforo ou em código binário de computador. Os símbolos podem até mesmo ser “traduzidos” entre sistemas: a idéia de Jesus na cruz pode ser expressa em linguagem, em imagens, na dança e em mímica. “Perigo” pode ser expresso por uma palavra, uma imagem, um assobio. Uma história pode ser transmitida oralmente depois de ser decorada; pode ser transmitida também por meio de uma canção ou pantomima; pode ser transmitida por escrito; e, hoje em dia, pode ser transmitida também através de filmes, TV e jogos de computador. Assim, embora a informação simbólica seja como a informação genética no sentido de que é codificada e traduzível, o potencial de tradução da informação simbólica é muito maior que o da informação no sistema genético. Já que podemos “traduzir” símbolos de uma forma para outra e separar e combinar diferentes formas e níveis seguindo princípios gerais de coerência, é enorme a quantidade de informação simbólica que pode ser gerada.

(...) [Porém], a informação simbólica é muitas vezes transmitida de adultos para crianças com quem eles não têm parentesco (como na escola), de crianças a adultos e entre indivíduos da mesma faixa etária [4]. Nesse ponto, o sistema simbólico se parece com o sistema comportamental de outros animais. Mas há uma diferença significativa: instruções ativas são importantes nos sistemas de transmissão simbólica. Em outros animais, o aprendizado social em geral não envolve ensinamento intencional, mas para os humanos este é essencial, pois é o próprio sistema simbólico, e não apenas a cultura local que ele produz, que precisa ser culturalmente adquirido [5]. Por exemplo, embora as pessoas discutam o papel do aprendizado e o tipo de aprendizado envolvido, ninguém duvida de que é necessário muito aprendizado para uma criança compreender e usar a linguagem. A necessidade de aprendizado e instrução é vista ainda com mais clareza em outros tipos de sistema simbólico: nos ensinam o sistema simbólico da leitura, nos ensinam o sistema simbólico da matemática, nos ensinam como entender e participar dos rituais da nossa cultura. O arcabouço necessário para a interpretação das informações simbólicas precisa ser aprendido.

***

[1] A teoria exposta pelas autoras ao longo do livro identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir. Veja também meu comentário em outro trecho do livro publicado neste blog – “Astrologia genética”.

[2] Nada expõe de forma mais contundente a importância da capacidade de interpretar símbolos entre os seres humanos do que os casos de crianças selvagens – perdidas ou abandonadas em áreas selvagens e “criadas” por animais selvagens. Como no caso de Amala e Kamala, “criadas” por lobos em florestas da Índia, onde foi constatado que, após serem “salvas”, elas eram em realidade “pouco mais do que lobos”. Entretanto, vale também lembrar que o ser humano é um ser de potencialidades, e suas potencialidades de consciência e interpretação simbólica, uma vez despertas, o colocam sempre muito acima dos outros animais (que não têm tais potencialidades).

[3] Exemplos pela história não faltam. Os evangelhos de Nag Hammadi, encontrados em vasos séculos e séculos após terem sido escritos, nos trouxeram preciosidades como “O evangelho de Tomé”. Já o conhecimento contido nos manuscritos da Biblioteca de Alexandria, no entanto, infelizmente não teve a mesma sorte, e foi perdido em fogueiras acesas por seres ignorantes.

[4] Para o sistema simbólico a hereditariedade é apenas uma das formas de transmissão. Nesse sentido, ele é muito mais abrangente do que o genético, enquanto ainda tem muito mais possibilidades de transmissão e tradução que o comportamental. Não é difícil deduzir, diante dessa reflexão, que ele é o sistema de evolução da informação mais completo que conhecemos.

[5] A educação é, portanto, o cerne do desenvolvimento humano. Por isso verificamos que todos os sábios se preocuparam tanto em desenvolver as potencialidades de seus discípulos, ainda mais do que deixar manuscritos para a posteridade. É que eles sabiam que o sistema simbólico se transmite muito mais pela interpretação e pela compreensão do que pela escrita, que é apenas uma ferramenta da mente.

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8.6.10

Como criar um universo

Trecho do Projeto Ouroboros

(S.) Antes que fiquem angustiados com nossa questão pendente, vamos tentar finalmente resolvê-la... Diga-me P., sobre aquele mesmo carpinteiro que falamos anteriormente: você diria que ele precisa apenas de seu corpo e da madeira para construir uma cadeira decente?

(P.) Vejo onde quer chegar: ele precisaria antes estudar carpintaria.

(S.) Mas digamos que fosse o maior mestre de carpintaria que já existiu. Ainda assim ele usaria apenas seu corpo e a madeira para construir a cadeira?

(P.) Bem, ainda que sua mente faça parte de seu corpo, ele sem dúvida usaria os comandos do cérebro para guiar suas mãos na construção da cadeira.

(S.) Não vamos discutir sobre a dualidade mente-corpo agora, digamos que mente e corpo fossem uma mesma entidade chamada carpinteiro: ainda assim, ele necessitaria da mente para sua construção, correto?

(P.) Sem dúvida, sem a mente suas mãos de nada serviriam...

(S.) Mas a mente não serve apenas para guiar as mãos. Diria que, antes que as mãos recebam o comando da mente, a cadeira de certa forma já existia como uma espécie de “imagem mental” na mente do carpinteiro... Da mesma forma que um pintor não escolhe uma cor de tinta sem antes consultar a imagem do quadro em sua mente; Ou que um construtor não coloca um tijolo na parede sem antes consultar o projeto que, em última análise, é fruto de sua mente.

(P.) É a mais pura verdade, acredito.

(S.) Dessa forma, antes da cadeira ser concebida pelas mãos que talham a madeira, foi concebida na mente do carpinteiro... Ou poderíamos imaginar uma cadeira que fosse construída a esmo, e que só penetrasse na mente do carpinteiro após estar, de alguma forma estranha, já pronta?

(P.) Não poderíamos, ao menos não dentro da natureza.

(S.) E toda obra material foi antes, uma obra mental.

(P.) Correto.

(S.) Chamemos a essa terceira forma de criação: a mental. Mas ainda não temos a questão ganha... O que se diz da velocidade do pensamento?

(P.) Que é bem rápida, embora no cérebro certamente não possa ser mais rápida que a velocidade da luz.

(S.) Poderíamos dizer, no entanto, que o pensamento depende apenas da própria mente para existir? Ou seja, que não necessitaria a priori de qualquer outra substância além da própria mente que o originou?

(P.) Bem, tecnicamente um pensamento está atrelado às memórias já existentes no cérebro, e dependeria delas para ocorrer. Por exemplo: o carpinteiro só pensaria em construir a cadeira porque já tem toda a experiência da carpintaria registrada em sua memória...

(O.) Permitam-me interromper: a substância de que falamos não seria exatamente um cérebro. Pensemos em uma analogia da mente e da criação mental, e não exatamente em um “cérebro gigantesco flutuando no nada”... Um sábio antigo já nos disse que “o que está em cima é como o que está embaixo”, porém não é exatamente a mesma coisa.

(S.) Exato, aqui não temos escolha senão deixar nossa imaginação flutuar um pouco acima de nossa razão.

(P.) Bem, nesse caso, concordo: o pensamento depende apenas da própria mente para existir.

(S.) Além disso, o pensamento pode se realizar de forma muito rápida, ou pelo menos mais rápida do que qualquer outra ação não mental.

(P.) Explique isso melhor, por favor.

(S.) Você afirmou, com razão, que no cérebro o pensamento se realiza em velocidade necessariamente inferior a velocidade da luz. Porém, pensemos em um quantum de luz, um fóton: ele não pensa. Se considerarmos, portanto, qualquer ação mental, o pensamento será a mais rápida delas, e necessariamente mais rápido do que uma ação não mental.
Por exemplo: não poderíamos dizer que o carpinteiro tenha talhado à cadeira ainda mais rápido do que tenha pensado em construí-la inicialmente. De fato, sequer poderíamos dizer que o primeiro corte da madeira tenha sido mais rápido do que a mera idéia, o pensamento de criá-la.

(P.) Certo, faz sentido, embora isso esteja ficando confuso... O que exatamente isso tem a ver com a Causa Primeira?

(S.) Ora, deixe-me explicar então... Não dissemos que a substância que originou a Causa Primeira existia, antes da criação do Cosmos, fora do tempo?

(P.) Certo.

(S.) E não postulamos que ela, a substância eterna, não poderia depender de qualquer outra substância além dela própria para realizar a criação?

(P.) Correto.

(S.) E que não poderia se dividir nem se transformar em outra substância?

(P.) Dissemos tudo isso.

(S.) Então que os sábios me perdoem se estiver errada, mas a única forma de criação que nos restou é a criação mental, e somente esta pode explicar, por analogia, a Causa Primeira!
Vejamos: uma mente-substância eterna, causa de si mesma, que existindo fora do tempo elaborou mentalmente uma idéia peculiar, a idéia da criação do Cosmos; E dependendo somente de si própria em sua elaboração mental, essa mente, em uma velocidade incomensurável criou o próprio tempo, o espaço, as partículas e todo um sistema de leis naturais que se desenvolveram e deram lugar à evolução gradativa do universo que conhecemos através do tempo em nossa interação com tudo o que existe.
Este Cosmos semente, surgindo dentro da mente-substância, irradiou-se como um grandioso pensamento, uma explosão criativa, sem nunca ter dependido de qualquer outra substância “fora dele” para se desenvolver e continuar existindo; Sem nunca ter realmente se dividido, sendo ainda neste preciso momento à mesma idéia, a mesma mente-substância, o mesmo pensamento infinito que nada mais é do que a grande causa, a Causa Primeira.

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4.6.10

A crença do espiritualista

Através de diálogos pela internet uma vez fiquei sabendo de uma história, conforme contada por um amigo cético. Ele dizia que um amigo a quem admirava a inteligência sofreu um acidente de carro e ficou alguns dias desacordado. Ao recobrar a consciência, consta que ele perguntou “se ainda estava vivo, ou se já estava do outro lado”. Seu amigo era espírita e acreditava em vida após a morte (na realidade, em vida após a vida), e ele se perguntou: “mas como uma pessoa tão inteligente pode crer numa coisa dessas?” – Esta é uma excelente pergunta...

Muitos céticos e aqueles classificados como “eruditos ou intelectuais” parecem não conseguir resolver tal enigma. É que eles esbarram em duas interpretações algo preconceituosas: a primeira é a de que a fé não pode ser racional, e a segunda é a de que a grande maioria dos espiritualistas e religiosos é alienada da realidade. Este artigo tentará abrir os olhos dessas pessoas, para que possam analisar aos espiritualistas pelo que eles realmente são: pessoas como qualquer outra, mas que consideram a possibilidade da existência do espírito.

Fé e Razão
A etimologia da palavra “fé” nos traz duas origens não necessariamente complementares. A primeira deriva do grego pistia e quer dizer “acreditar”. Este é o significado mais usual, entretanto ainda incompleto, pois não basta crer, é necessário também compreender a razão pela qual se crê. Esta é a chamada fé raciocinada. Antes de ser uma contradição, como podem pensar alguns, o uso da razão solidifica a fé, pois ao analisarmos o objeto de nossa fé, compreendo-o e aceitando-o, estamos criando alicerces que tornarão nossa fé inquebrantável, fortalecendo-nos frente aos desafios mais árduos. Por outro lado, a fé sem a razão é frágil, está sujeita a ser desfeita e pode, frente ao menor abalo, desmoronar. Ou ainda pior, esta fé irracional pode nos conduzir ao fanatismo, a negação de tudo que seja contra o nosso ponto de vista. Por não ser oposta a razão, a pistia é por si mesma não dogmática e, portanto, perfeitamente compatível com o ceticismo.

Mas temos uma outra origem da palavra “fé”, derivada do latim fides, que também possui o sentido de acreditar, mas agrega a este o conceito de fidelidade, ou seja, é necessário que sejamos fieis ao objeto de nossa fé. Falando em fé religiosa, estamos falando em Deus, portanto é preciso que sejamos fieis a Deus e isto só é possível seguindo os seus preceitos: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos”.

No entanto, é preciso tomar muito cuidado na definição deste Deus, pois muitas vezes as pessoas de fé seguem o deus definido pelo discurso eclesiástico, quando o caminho da espiritualidade nos leva a busca de nossa própria definição de Deus. E isso nos leva ao contraponto do segundo tipo de interpretação preconceituosa...

O Deus de cada um
Cada doutrina religiosa traz sua própria concepção de Deus, e na maioria das vezes elas são conflitantes. Isto, por si só (e não sem razão), já soa absurdo para aqueles que cultivam um pensamento mais cético e racional. Não é a toa que muitos acabam taxando a maioria dos teístas de alienados: se não chegam a um acordo sequer sobre a natureza de Deus, como podem querer ditar regras de conduta a serem seguidas?

Essa pergunta é pertinente porque toca no cerne da religiosidade. O verdadeiro religioso não é aquele que se inscreveu em uma comunidade dos escolhidos de Deus (a origem de “igreja”, do grego ekklesia), mas aquele que pratica uma comunhão com Deus ou com o Cosmos, um caminho de retorno a compreensão de sua própria origem (do latim re-ligare, origem de “religião”). Desnecessário seria dizer que são definições bastante distintas, e que embora todo seguidor de igrejas possa ser religioso, nem todo religioso é seguidor de igrejas. Mas, ainda mais profundo do que isso: a todo verdadeiro espiritualista parece mesmo óbvio que a forma de comunhão com Deus (ou o Cosmos) é própria de cada um, pessoal e intransferível. Não serão livros nem padres nem gurus espirituais quem poderão lhe ensinar – todos esses ajudam, mas cada um aprende por si próprio, e na prática.

Uma comparação pertinente pode ser feita entre aprender espiritualidade e aprender a nadar: de nada adianta ler extensos manuais sobre natação, ou infindáveis palestras de grandes nadadores – você só irá se tornar um grande nadador se tomar coragem de mergulhar e enfrentar as ondas por si próprio.

O verdadeiro espiritualista não é, portanto, um alienado da realidade. Ele apenas mergulhou na própria consciência, enquanto outros (não sem razão) preferiram abster-se da aventura.

Navegar é preciso
Para o espiritualista em constante estudo e deslumbramento perante o infinito do Cosmos, a razão e a fé andam lado a lado com a moral e o amor, e ele encontra na religião, assim como na filosofia e na ciência, preciosos instrumentos para sua longa caminhada...

Nada pode ter contra o cético. Se este ainda não acredita, é por dois motivos: ou porque ainda não passou pela mesma experiência religiosa – e, portanto, subjetiva – que o espiritualista; ou porque simplesmente o espírito realmente não existe, e todas as questões espirituais se resumem a questões psicológicas, a serem analisadas conforme o avanço da ciência. Em ambos os casos, não há razão para nenhuma inimizade entre o espiritualista e aquele que não crê.

Na verdade, se alguém tem o dever moral de evitar brigas e permanecer em postura apaziguadora e amorosa, este é o espiritualista – que bem ou mal, assumiu a responsabilidade de assim o ser, um ente amoroso e equilibrado. Os outros não têm responsabilidade alguma, tampouco Deus algum para lhes inspirar temor, e não há nenhum problema nisso.

Pois que se o caminho espiritual foi trilhado apenas por medo de punições divinas, por barganhas ridículas em troca de um céu para poucos, então ele já se iniciou na direção errada. Que aquele que ainda não compreendeu que todos os seres do infinito são filhos da mesma substância, e que entrarão todos no céu de mãos dadas, é porque ainda está no início da trilha.

Então, perdoai-vos, pois eles não sabem o que fazem. E perdoai-nos, pois nós também não. Mas dos confins do Cosmos uma ponta da longa teia é puxada, e todos somos impelidos em sua direção... quer compreendamos, quer não.

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Crédito da foto: 21guilherme

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1.6.10

Onde está o seu deus?

No início do século II d.C., no mercado principal de Enoanda, cidade de 10 mil habitantes no sudoeste da Ásia Menor, foi erigida uma enorme muralha de oitenta metros de largura e quase quatro metros de altura, com inscrições baseadas na filosofia de Epicuro, e cuja finalidade era atrair a atenção dos compradores. Era uma espécie de alerta:

“Comidas e bebidas requintadas... de modo algum libertam do mal ou proporcionam a saúde da carne. Deve-se atribuir à riqueza excessiva o mesmo grau de inutilidade que representa acrescentar água a um recipiente que já estava prestes a transbordar. Os verdadeiros valores não são gerados por teatros e termas, perfumes e essências... mas pela ciência natural.”

O muro foi pago por Diógenes, um dos homens mais ricos de Enoanda, que desejava, 4 séculos após Epicuro e seus amigos terem fundado o Jardim de Atenas, compartilhar os segredos da felicidade que ele havia descoberto na filosofia de Epicuro.

O antigo filósofo cuja maior parte das obras se perdeu foi bem mais incompreendido – ou analisado de forma superficial – do que compreendido. Dizem que tudo que ensinava era a busca pelo prazer (hedonismo) e o materialismo (atomismo), mas é preciso desconhecê-lo profundamente para tais tipos de hiper-simplificações de seu pensamento.

Sobre a busca do prazer, Epicuro em realidade afirmava que “o homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou velho demais para ser feliz.” Longe de ensinar uma busca desenfreada por prazeres mundanos, ele defendia que uma vida equilibrada e na companhia de boas amizades era todo o necessário para a felicidade – neste caso, pão e água eram suficientes... “De todas as coisas que nos oferecem a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade... alimentar-se sem a companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.”

Poucos foram aqueles que, ao longo da história, enxergaram o quanto a filosofia de Epicuro sempre se fez necessária para nos afastar das tentações e desejos inúteis da vida em sociedade. Ele separava os desejos da seguinte forma:

O que é essencial para a felicidade

Natural e necessário Natural mas desnecessário Nem natural nem necessário
Amigos, Liberdade, Reflexão, Casa, Comida, Roupas Palacete, Terma privativa, Banquetes, Empregados, Peixe, Carne Fama, Poder, Status

Dizem também que Epicuro era ateu. Mas de fato tudo o que defendia era que os deuses viviam em uma realidade muito superior a mundana, de modo que provavelmente não estariam preocupados com nossos afazeres, e nem era necessário que nos afligíssemos com eles ou que preparássemos rituais e oferendas para aplacar sua ira ou barganhar por favores sobrenaturais.

Para Epicuro, isso tudo era fonte de angústias desnecessárias... Porque se preocupar com política, com os deuses, com o acúmulo de riquezas ou com a morte, se o prazer da vida está exatamente em compartilhá-la com os amigos, em não viver com mais do que o necessário, e na constante reflexão sobre a natureza infinita do Cosmos?

Em sua recusa em se preocupar com um panteão de deuses com seus próprios afazeres e em sua exaltação da felicidade que advém da vida harmoniosa, em contato constante com os amigos e a natureza, Epicuro era bem mais religioso que a maioria dos eclesiásticos – e bem mais monoteísta que a maioria dos religiosos que dizem seguir somente a um único Deus, mas que ao fim do dia seguem a vários...

Pensemos nos dias atuais, em que a maior religião e o maior deus passam desapercebidos da grande maioria, embora quase todos acabem rezando para ele: o deus do consumo. Seus evangelizadores estão em cada canal de TV paga ou aberta, sua bíblia é ensinada desde as “orientações vocacionais” das escolas aos “discursos sobre a dura realidade da vida e sobre como um bom salário é mais importante do que tudo”... Andando pelas ruas, vemos suas orações expostas em outdoors e páginas de jornal. Ele é tão poderoso que abocanhou até mesmo o tempo – “tempo é dinheiro, eu sou o tempo, eu sou o seu deus!”

Ao contrário do deus de Epicuro, que podia ser encontrado em qualquer grama de jardim, nalgum galho partido ou nos sorrisos dos amigos, este deus é feito sobretudo de coisas sem vida e de desejos desenfreados; muito embora possa parecer “onipresente” em nosso dia a dia – uma roupa de grife, um terno, um celular, um videogame, um carro, um iate... Ele nunca se cansa, e o tempo é a prova:

Porcentagem dos norte-americanos que declararam os seguintes itens como necessários

  1970 2000
Segundo carro 20% 59%
Segunda televisão 3% 45%
Mais de um telefone 2% 78%
Ar-condicionado no carro 11% 65%
Ar-condicionado em casa 22% 70%
Lava-louças 8% 44%

Hoje em dia vivemos correndo, "utilizando" todas as horas do dia. Comendo em fast-foods e tendo relacionamentos no estilo fast – simples, rápidos, indolores, muitas vezes “anestesiados”. Se nos angustiamos com a vida ou se caímos em depressão, oramos também ao grande profeta do deus do consumo – o guardião dos comprimidos em seu manto de tarja preta... Com tudo isso economizamos bastante tempo. Tempo para...?

Não era esse tipo de religião que Epicuro professava. Ele preferia simplesmente ser livre, talvez por reconhecer que perto da imensidão da natureza, suas angústias e desejos eram como poeira e folhas espalhadas pelo vento em seu jardim.

Quaisquer que sejam as diferenças entre as pessoas e seus desejos e angústias, elas não são nada perto das diferenças entre os seres humanos mais poderosos e os grandes desertos, as altas montanhas, geleiras e oceanos, a luz das estrelas. Existem fenômenos naturais tão grandes que tornam as variações entre duas pessoas quaisquer ridiculamente pequenas. Ao passar um tempo em amplos espaços, a consciência de nossa própria insignificância na hierarquia social pode se transformar na consciência reconfortante da insignificância de todos os seres humanos no Cosmos.

Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes ou desejando fama, poder ou status, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas infinitamente maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de natureza, vida, infinito, eternidade – ou simplesmente Deus.

Mas, sobretudo, quem mantém os pés no chão florido das amizades duradouras e a mente na imensidão estelar do Cosmos, este não poderá jamais ser seduzido pelas efêmeras promessas dos arautos do deus do consumo, tampouco necessitará recorrer a tratar da angústia com comprimidos (*). Este tem a seu lado o amor ao saber, as reflexões diárias, a liberdade de pensamento: este encara toda angústia e todo desejo por si mesmo, ou talvez com a ajuda de amigos. Seres reais, não imaginários nem inanimados – aí está o deus de Epicuro. Onde está o seu deus?

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(*) Certas doenças necessitam de medicação, e é excelente dispor da medicina atual para tratá-las. O que não podemos é usar comprimidos como muletas - nesse sentido nossos comprimidos serão nossos deuses, e nós os seus fantoches. Por outro lado, também é necessário "cortar o mal pela raiz": a filosofia nos ajuda a evitar a necessidade de comprimidos, evitando antes a doença.

Leitura recomendada: “As consolações da filosofia” e “Desejo de status” – ambos de autoria de Alain de Botton e publicados no Brasil pela Editora Rocco. As citações de Epicuro e Diógenes foram retiradas do primeiro.

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Crédito das imagens: Bettmann/Corbis (anúncio de cigarros de 1936) [topo], Iplan/amanaimages/Corbis [ao longo].

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