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31.8.12

Aristóteles e Higgs: uma parábola etérea

Texto de Marcelo Gleiser para a coluna Ciência da Folha de São Paulo (29/07/12). O comentário final é meu.

Aristóteles e Peter Higgs entram num bar. Higgs, como sempre, pede o seu uísque de puro malte. Aristóteles, fiel às suas raízes, fica com um copo de vinho.

"Então, ouvi dizer que finalmente encontraram," diz Aristóteles, animado.

"É, demorou, mas parece que sim," responde Higgs, todo sorridente. "Você acha que 40 anos é muito tempo? Eu esperei 23 séculos!" "Como é?", pergunta Higgs, atônito. "Você não acha que..."

"Claro que acho!", corta Aristóteles. "Você chama de campo, eu de éter. No final dá no mesmo, não?"

"De jeito nenhum!", responde Higgs, furioso. "O seu éter é inventado. Eu calculei, entende? Fiz previsões concretas."

"Vocês cientistas e suas previsões...", diz Aristóteles. "Basta ter imaginação e um bom olho. Você não acha que o meu éter é uma excelente explicação para o que ocorre nos céus?"

"Talvez tenha sido há 2.000 anos. Mas tudo mudou após Galileu e Kepler", diz Higgs.

Aristóteles olha para Higgs com desprezo. "Você está se referindo a esse 'método' de vocês, certo?"

"O método científico, para ser preciso", responde Higgs, orgulhoso. "É a noção de que uma hipótese precisa ser validada por experimentos para que seja aceita como explicação significativa de como funciona o mundo."

"Significativa? A minha filosofia foi muito mais significativa para mais gente e por muito mais tempo do que sua ciência e o seu método."

"É verdade, Aristóteles, suas ideias inspiraram muita gente por muitos séculos. Mas ser significativo não significa estar correto."

"E como você sabe o que é certo ou errado?", rebate Aristóteles. "O que você acha que está certo hoje pode ser considerado errado amanhã."

"Tem razão, a ciência não é infalível. Mas é o melhor método que temos para aprender como o mundo funciona", responde Higgs.

"Nos meus tempos bastava ser convincente", reflete Aristóteles com nostalgia. "Se tinha um bom argumento e sabia defendê-lo, dava tudo certo", continuou.

"As pessoas acreditavam em você, mas não era fácil. A competição era intensa!" "Posso imaginar", responde Higgs.

"Ainda é difícil. A diferença é que argumentos não são suficientes. Ideias têm que ser testadas. Por isso a descoberta do bóson de Higgs é tão importante."

"É, pode ser. Mas no fundo é só um outro éter", provoca Aristóteles.

"Um éter bem diferente do seu", responde Higgs. "E por quê?", pergunta Aristóteles. "Pra começar, o campo de Higgs interage com a matéria comum. O seu éter não interage com nada."

"Claro que não! Era perfeito e eterno", diz Aristóteles.

"Nada é eterno", rebate Higgs.

"Pelo seu método, a menos que você tenha um experimento que dure uma eternidade, é impossível provar isso!" afirma Aristóteles.

"Touché, você me pegou", admite Higgs. "Não podemos saber tudo." "Exato", diz Aristóteles. "E é aí que fica divertido, quando a certeza acaba."

"Parabéns pela descoberta do seu éter", diz Aristóteles.

"Existem muitos tipos de éter", afirma Higgs. "E muitos tipos de bósons de Higgs", retruca Aristóteles.

"É, vamos ter que continuar a busca." "E o que há de melhor?", completa Aristóteles, tomando um gole.

***

Comentário
Em meu último artigo, O frescobol cósmico, trouxe uma curiosa comparação conceitual entre a descrição científica do Campo de Higgs e um trecho do Livro dos Espíritos que detalha o conceito espiritualista do chamado Fluido Universal (algo análogo ao Éter ou a Quintessência de Aristóteles). Se alguns céticos se "incomodaram" com a comparação vinda de um espiritualista que, afinal, "só escreve um blog e nada entende de ciência", fico curioso para saber sua opinião acerca deste artigo do renomado cientista brasileiro, Marcelo Gleiser, que em essência aponta exatamente para a mesma comparação conceitual.

» Veja o post original, no site da Folha

***

Crédito da foto: Site oficial de Marcelo Gleiser

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O frescobol cósmico

No Frescobol não existe rivalidade, não há vencidos e nem vencedores. Como se joga cooperativamente, não há adversários, e sim parceiros. É um jogo em que cultiva-se a amizade e o comprometimento nas jogadas... Recomenda-se jogar em praias ensolaradas, junto ao mar:


Antes de o oceano existir, ou a terra, ou o firmamento, a Natureza era toda igual, sem forma. Até que a Natureza generosa separou o Céu da Terra, e as coisas evoluíram, encontrando seus lugares... (Metamorfoses, Ovídio)

O Caminho é vazio e inesgotável, profundo como um abismo. Não sei de quem possa ser filho, pois parece ser anterior ao Soberano do Céu... (Tao Te Ching, Lao Tsé)

No início o Senhor criou os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia, e a escuridão vagava sobre a face do abismo... (Gênesis)

No início havia apenas escuridão por toda parte, escuridão e água. E a escuridão se adensava em certos lugares, e depois se dissipava. Adensava e dissipava... (A Canção do Mundo, Índios Pima [1])

E os elohim se moveram sobre a face das águas. E o Senhor disse: “Faça-se a luz”, e a luz se fez... (Gênesis)

No início, havia apenas o Grande Uno refletido na forma de um ser. Ao refletir, não encontrou nada além de si mesmo. Então, sua primeira palavra foi: “Isto sou eu”... (Upanixades)

Viemos da Luz, de onde a Luz se originou dela mesma. Ela permaneceu e revelou-se a si mesma em sua imagem... (O Evangelho de Tomé)

Como poderia o Ser perecer? Como poderia gerar-se? Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a gênese se extingue e da destruição não se fala... (Da Natureza, Parmênides)

Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido... (Ética, Espinosa)

O Cosmos é tudo o que é, ou foi, ou nalgum dia será... (Cosmos, Carl Sagan)

Como é que a matéria, corpo do Todo, que está em permanente devir, pode servir à imortalidade do Cosmos? Diríamos que é porque ela flui em si mesma e não para fora de si. Permanece a mesma, não cresce nem diminuí, e não envelhece... (Enéadas II, Plotino)

No início houve uma explosão que ocorreu simultaneamente em toda a parte, enchendo o espaço desde o início, cada partícula de matéria fugindo de todas as outras. Pouco importa, neste momento da história, que o espaço fosse finito ou infinito... (Os 3 primeiros minutos do universo, Steven Weinberg)

No início Deus criou a radiação e o ylem. E o ylem não tinha forma ou número, e os núcleos moviam-se livremente sobre a face das profundezas... (George Gamow [2])

Então o Senhor criou seres à sua própria imagem e semelhança, e lhes disse: “Crescei e multiplicai-vos”... (Gênesis)

Unumbotte fez um ser humano e seu nome era Homem, e depois fez muitos outros seres. Então, deu-lhes sementes de todos os tipos e lhes disse: “Plantem todas essas sementes”... (Mitos do Povo Bassari [3])

Então, ele percebeu – “na verdade eu sou essa criação, pois eu a expeli de mim mesmo”. Dessa forma, ele se tornou essa criação, e aquele que sabe disso se torna, nesta criação, um criador... (Upanixades)

Alguma parte de nosso ser nos diz que essa é a nossa origem. Desejamos muito retornar, e podemos fazê-lo, pois o Cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar, somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo... (Cosmos, Carl Sagan)

Se vos perguntarem quem sois vós, dizei-lhes: somos seus filhos e somos eleitos do Pai Vivo. Se vos perguntarem qual é o sinal do vosso Pai em vós, respondei-lhes: é o movimento e o repouso... (O Evangelho de Tomé)

***

Agora uma última partida, antes do pôr do sol:


Pode haver este campo de energia que permeia todo o universo. Ele foi inicialmente proposto porque ninguém entendia como as partículas subatômicas ganhavam suas respectivas massas. O campo proposto deve interagir com tais partículas e lhes conferir massa. As partículas massivas devem interagir mais diretamente com tal campo, enquanto partículas sem massa alguma provavelmente sequer interagiriam com ele.

Para compreender melhor esta ideia podemos usar uma analogia com o oceano e os nadadores. A água faz o papel do campo proposto: Um peixe barracuda, por ser esguio e pontiagudo, pouco interage com o campo e pode se deslocar facilmente por ele. A barracuda seria similar a uma partícula com pouca ou nenhuma massa; Em contraste, um sujeito obeso, amante das rosquinhas, se moverá muito lentamente pela água. Em nossa analogia, ele seria uma partícula massiva, pois interagiria bastante com a água.

Se tal campo fluido não existisse, nenhuma partícula teria massa, e veríamos apenas luz e energia por aí. Chamamos a este campo hipotético de Campo de Higgs, em homenagem a Peter Higgs, criador da teoria. O Bóson de Higgs [4] nada mais seria do que a partícula que forma tal campo, da mesma forma que as moléculas de H2O formam a água do oceano.

(adaptado do vídeo de divulgação científica de Don Lincoln, do Fermilab)


Ao elemento material é preciso juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre a luz e a matéria propriamente dita, muito densa para que a luz possa exercer alguma ação sobre ela. Embora, sob certo ponto de vista, se possa classificar o fluido universal como um elemento material, ele se distingue deste por propriedades especiais. Se fosse realmente matéria, não haveria razão para que a luz também não fosse. Está colocado entre a luz e a matéria; é fluido, como a matéria é matéria, e suscetível, pelas suas inúmeras combinações com esta e sob a ação da luz, de produzir a infinita variedade das coisas das quais os homens não conhecem senão uma ínfima parte.

Esse fluido universal, ou primitivo, ou elementar, sendo o agente de que a luz se utiliza, é o princípio sem o qual a matéria estaria em perpétuo estado de divisão e jamais adquiriria as propriedades que a gravidade lhe dá.

(trecho final da resposta à pergunta #27 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec [5])

***

[1] Do estado do Arizona, nos EUA.

[2] Conforme citado em A dança do universo, de Marcelo Gleiser (pg. 380). O ylem foi um termo criado por Gamow e seus colegas para descrever uma hipotética “substância primordial”.

[3] Da África Ocidental.

[4] Também conhecido como “partícula de Deus”; muito embora caso exista um Criador todas as partículas devam ser, obviamente, “de Deus”.

[5] Onde, para criar “mais clima”, substituí o termo “espírito” pelo termo “luz”, e esta foi à única coisa que alterei no trecho. Talvez, quem sabe, o conceito de fluido universal (que remonta, em realidade, ao conceito de quintessência da Antiguidade) tenha alguma similaridade com o conceito do Campo de Higgs? Talvez, quem vai saber?

» Vejam também o que o cientista Marcelo Gleiser teve a dizer sobre a similaridade conceitual do Campo de Higgs com o Éter (ou quintessência, ou fluido universal) de Aristóteles: Aristóteles e Higgs: uma parábola etérea

Crédito da imagem: Google Image Search

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30.8.12

Conversa Alheia: Capitalismo, Utopias e Modernidade

Com vocês, o segundo episódio do Conversa Alheia, onde alguns blogueiros e livres-pensadores falam sobre o que quer que lhes venha a mente...

Episódio #2: Capitalismo, Utopias e Modernidade.
Igor Teo, Rodrigo Ferreira, Raph Arrais e Josinei Lopes batem um papo sobre as facilidades do mundo moderno, a necessidade de utopias para continuarmos caminhando e tentam responder a pergunta: "Deus proverá?"

Citado no programa:
Sociedades Modernas x Sociedades Tradicionais
Onde está o seu deus?

Encerramento:
Leitura final de Raph Arrais de um trecho dos Discursos (Diatribes) de Epicteto, filósofo estoico do século primeiro. Na música de fundo, um trecho do "concerto para violino em lá" de J. S. Bach, arranjo de Edigar Monteiro.

Obs: Estamos tentando melhorar a qualidade da voz nas gravações dos próximos episódios.

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» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube


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28.8.12

Os apócrifos e o gnosticismo

Como hospedo transcrições de alguns dos chamados Evangelhos Apócrifos neste blog, achei por bem trazer aqui algumas observações acerca do que são exatamente estes apócrifos, e da sua relação (nem sempre muito clara) com o chamado gnosticismo.

Que são os apócrifos?
Os evangelhos apócrifos são basicamente todos aqueles que não foram incorporados “oficialmente” ao Novo Testamento [NT], embora se relacionem claramente com Jesus Cristo e tragam muitos dos eventos citados no NT, muitas vezes sob outra ótica ou interpretação. A maior parte dos evangelhos apócrifos que chegaram à modernidade faz parte da Biblioteca de Nag Hammadi [1].

Esta Biblioteca é uma coleção de textos do cristianismo primitivo (período que vai da fundação até o Primeiro Concílio de Niceia, em 325 d.C.) descoberta na região do Alto Egito, perto da cidade de Nag Hammadi, em 1945. Naquele ano, um camponês local chamado Mohammed Ali Samman encontrou uma jarra selada enterrada que continha 13 códices de papiro embrulhados em couro. Os códices contêm textos sobre 52 tratados classificados majoritariamente como gnósticos, além de incluírem também 3 trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum (do hermetismo), e ainda uma tradução/alteração parcial de A República de Platão.

Na introdução de sua obra A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson sugere que estes códices podem ter pertencido ao monastério de São Pacômio, localizado nas redondezas de Nag Hammadi, e tenham sido enterrados por monges que tomaram os livros proibidos [2] e os esconderam em potes de barro na base de um penhasco. Ali ficaram esquecidos e protegidos por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora todos os trabalhos sejam traduções do grego. O mais conhecido trabalho é provavelmente o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está nesta Biblioteca. Atualmente, todos os códices estão preservados no Museu Copta do Cairo, no Egito [3].

Os textos de Nag Hammadi são todos gnósticos?
Pois bem, a polêmica que surge em relação aos textos da Biblioteca não toca sua relevância histórica nem espiritual, mas sim a questão de classificação da sua doutrina em específico. São muitos textos diferentes, uns muito mais profundos do que os outros, sendo que pelo menos dois dos principais (Tomé e Maria) se assemelham num aspecto: não necessariamente seriam gnósticos.

Para explicar porque, primeiro é necessário considerarmos que nem sequer sabemos ao certo o que exatamente é o gnosticismo, pois para muitos ele parece ser mais um conjunto de doutrinas (nem sempre congruentes) do que apenas uma única doutrina em específico.

Desse modo podemos considerar o gnosticismo (do grego gnosis, conhecimento) como um conjunto de correntes filosófico-religiosas sincréticas que chegaram a mimetizar-se com o cristianismo primitivo, vindo a ser declarado como um pensamento herético após uma etapa em que conheceu prestígio entre os intelectuais cristãos. De fato, podemos falar em um gnosticismo pagão e em um gnosticismo cristão, ainda que o pensamento gnóstico mais significativo tenha sido alcançado como uma vertente heterodoxa da aurora cristã.

O movimento originou-se provavelmente na Ásia Menor, difundindo-se da região do Irã à Gália, exercendo a sua maior influência sobre o cristianismo entre os anos de 135 e 200. Tem como base elementos das filosofias pagãs que floresciam na Babilônia, Antigo Egito, Síria e Grécia Antiga, combinando elementos da Astrologia e mistérios das religiões gregas como os de Elêusis, do Zoroastrismo, do Hermetismo, do Sufismo, do Judaísmo e do Cristianismo.

Se há um elemento do gnosticismo que parece “permear” tantas vertentes diversas, este sem dúvida seria a reflexão primordial de que “a gnose é nada mais do que o conhecimento de Deus”. A partir deste pressuposto, entretanto, temos muitos caminhos incongruentes em todas estas vertentes, inclusive nos textos da Biblioteca de Nag Hammadi.

Uma visão superficial: o deus mau que criou a natureza
A visão superficial mais comum encontrada em quem mal compreende o gnosticismo, ou que o compreende apenas pelo aspecto exotérico (superficial), é aquela que interpreta literalmente os mitos gnósticos que apresentam ora a batalha eterna de um deus bom contra um deus mau (o que também é encontrado no zorastrismo), ora a história de um deus chamado Demiurgo, que foi gerado por Deus (o Deus incriado), e que gerou a natureza, sendo que a natureza seria “má” e “corrupta”. Segundo tal mito, o objetivo da alma seria se livrar da natureza material e voltar ao “mundo espiritual”.

Como no Mito da Caverna de Platão, este mito apresenta uma distinção entre uma realidade supranatural, incognoscível e a materialidade sensível, da qual o Demiurgo é o criador. Porém, em contraste com Platão, aqui o Demiurgo é apresentado como um antagonista do Deus Supremo. Seu ato de criação, seja ele inconsciente e uma imitação fundamentalmente falha do modelo divino, ou formado com a intenção maligna de aprisionar aspectos do divino na materialidade, funciona como uma solução para o problema do mal.

Bem, se no Mito da Caverna já encontramos diversas interpretações, nem todas tendendo necessariamente para uma desvalorização forçosa do mundo material, neste mito do Demiurgo uma interpretação esotérica (espiritualmente profunda) se faz essencial... Não terei espaço aqui para adentrar neste assunto, mas se iniciarmos pela consideração que a batalha do Bem contra o Mal se dá essencialmente em nossa própria alma, e que o Demiurgo não é um ser “que existe fora de nós mesmos”, já teremos dado um importante passo para a compreensão do mito.

Uma visão profunda: o Reino está em toda parte
Agora gostaria de trazer a consideração importante de como alguns dos textos da Biblioteca de Nag Hammadi pouco ou quase nada têm em comum com a visão da natureza como “má” e/ou “corrupta”. Tanto pelo contrário, tais textos consideram que a Natureza não só é sagrada, como o Reino de Deus se encontra espalhado por todas as coisas, inclusive as coisas materiais, sendo que os seres não o veem.

Para que tal ideia fique clara e cristalina em suas mentes, não é necessário nada mais do que citar o terceiro versículo do Evangelho de Tomé, por exemplo:

Jesus disse: Se aqueles que vos guiam vos disserem: vê, o Reino está no céu, então os pássaros vos precederão. Se vos disserem: ele está no mar, então os peixes vos precederão. Mas o reino está dentro de vós e está fora de vós. Se vos reconhecerdes, então sereis reconhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo. Mas se vos não reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a pobreza.

Alguém consegue associar esta ideia da Natureza com algo “corrupto” do qual necessitamos “escapar”? Pois é, eu também não consigo imaginar nenhum tipo de associação entre tais ideias.

E, se já citamos Tomé, deveremos citar também o Evangelho de Maria, no qual é demonstrado não somente a natureza sagrada da Natureza, como também da própria mulher, na pessoa de Maria Madalena. Esther A. de Boer é uma das pesquisadoras dos apócrifos cristãos que se opõe totalmente a classificação do Evangelho de Maria como gnóstico. Vejamos um trecho do que ela escreveu em seu livro, The Gospel of Mary:

A linguagem particular do Evangelho de Maria [...] pertence a um contexto mais especificamente estoico, no qual a matéria é uma construção do pensamento, e a matéria e a natureza estão entrelaçadas. Isso significa que o mundo material como tal não pode ser evitado, como seria o caso de uma visão dualística gnóstica, mas que se deve tomar cuidado para não ser governado pelo poder contrário à natureza.

Esta visão profunda da Natureza, associada à emanação do pensamento do Uno, da Substância Primeira, ou de Deus, não foi inaugurada nem pelos apócrifos, nem pelos estoicos, mas pode ser traçada na antiguidade até ao menos Parmênides e, quem sabe, a sabedoria de Hermes Trimegisto. Se formos considerar certas interpretações dos Vedas do hinduísmo, tal ideia esbarra quase nos primórdios da religião em si. É esta a Natureza que assombrou Plotino, Espinosa, e até mesmo Einstein – é este o Reino que se espalha por tudo que há, mas somente alguns veem.

Uma questão de nomenclatura
Finalmente, precisamos considerar que a maior parte dos cristãos primitivos que escreveram ou seguiram aos ensinamentos dos apócrifos não chamavam a si mesmos de gnósticos, mas sim de cristãos. Dá o que pensar...

***

» Conheça mais sobre os apócrifos no site Early Chrstian Writings (em inglês)

[1] Todas as transcrições hospedadas neste blog foram retiradas dos textos encontrados em Nag Hammadi. Conforme constam em A Biblioteca de Nag Hammadi (organização de James M. Robinson, publicado no Brasil pela Editora Madras, com tradução de Teodoro Lorent), ou, para o caso específico do Evangelho de Tomé, conforme originalmente publicado no portal Sangha EEU.

[2] Quando o bispo Atanásio de Alexandria condenou o uso de versões não canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367 d.C., após o Concílio de Niceia.

[3] Conforme aumenta à tensão política no Egito, particularmente os atos de hostilidade da maioria islâmica contra a minoria cristã copta, os pesquisadores ficam apavorados com a possibilidade da Biblioteca de Nag Hammadi ser saqueada ou destruída. Em todo caso, há cópias fotográficas de alta definição de todos os papiros espalhadas por todo o mundo – hoje este conhecimento não se perderá tão facilmente.

Crédito da imagem: gnosticisme.com

 

Os Evangelhos de Tomé e Maria

Veja também
Esta edição traz dois dos textos mais profundos encontrados em Nag Hammadi: Os Evangelhos segundo Tomé e Maria Madalena. Os acompanha uma série de contos (O Mensageiro) inspirados no gnosticismo e escritos por Rafael Arrais.

» Versão impressa

» eBook (Kindle)

» eBook (Kobo)

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A Natureza, com amor...

A banda islandesa Sigur Rós deu a uma dúzia de cineastas o mesmo orçamento modesto e os pediu para criar o que viesse em suas mentes quando ouvissem as músicas de seu novo álbum, Valtari. A ideia é permitir liberdade criativa total aos artistas.

Este vídeo estreou hoje e se refere a música Dauðalogn. Para ver e ouvir no silêncio da alma...

Caso o vídeo acima dê algum erro, veja no site do Vimeo. No Firefox as vezes os vídeos do Vimeo não abrem, então será necessário usar outro browser para ver.

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» Veja outros vídeos do Valtari mystery film experiment


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27.8.12

O grande campo

Somos todos reflexões
Da luz que irradiou de si mesma
A natureza de todas as paixões
E, da vida, toda a beleza.

No princípio havia apenas o Grande Ser
Refletido na forma de si mesmo;
Disse, então, tudo que havia por saber:
“Isto sou eu”.

Surgindo de tal pensamento, tornou-se a criação;
E aquele que o busca com ardor
Torna-se, na criação, um criador.

Em tudo que há existe o repouso e o movimento;
Somos todos luz condensada, luz repousada:
“Tudo existe neste momento”.


raph’12

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Crédito da imagem: BordomBeThyName

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Algo caminha pelo ar

Se o mundo for uma escola, os poetas serão como anjos, a passearem desapercebidos em meio ao recreio, cantando os ecos dos tempos antigos. Dizem que Bituca é quase um setentão, mas como pode haver um setentão com um coração destes, ainda tão aberto, ainda tão estudante? Tancredo fez deste hino da poesia mineira, o hino das Diretas... Mal sabia ele que este algo de que falam, que caminha pelo ar, ainda há de libertar muito mais do que a democracia, há de libertar nossa alma:

Clipe de Coração de Estudante, composição de Wagner Tiso e Milton Nascimento.


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25.8.12

Serpentes

As serpentes são nossas velhas conhecidas dos mitos de criação...

Diz-nos o Gênesis que a serpente era a mais astuta de todos os animais do Éden. Javé havia alertado ao primeiro homem e a primeira mulher, Adão e Eva, que jamais comessem do fruto proibido da árvore que estava no meio do jardim, pois que tal ato causaria a morte. Mas a astuta serpente disse a Eva: “Se o comer, certamente não morrerás. Porém, Javé sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Javé, sabendo do bem e do mal”.

Então Eva percebeu que o fruto daquela tal árvore era agradável aos olhos e desejável para o entendimento. Comeu o seu fruto, a depois ofereceu a iguaria também ao primeiro homem. E diz-nos o Gênesis que “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus”. Eis uma excelente estratégia de Javé e da serpente...

Agora vejam esse trecho de um mito do povo Bassari da África Ocidental [1]: Unumbotte fez um ser humano e seu nome era Homem. Em seguida criou um antílope e o chamou Antílope. Também fez uma serpente chamada Serpente. E disse a eles: “A terra ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados”; e tendo lhes entregado sementes de todos os tipos, prosseguiu: “Plantem todas essas sementes”. Tendo obedecido às ordens de Unumbotte, perceberam que haviam criado um jardim sobre a terra, cheio de frutos os mais variados. Havia um tipo de fruto, entretanto, para o qual Unumbotte alertou que não comessem.

Um dia, porém, Serpente disse: “Nós também devemos comer esses frutos. Porque passar fome?”. Antílope então disse: “Mas não sabemos nada sobre esse fruto”. Então Homem e sua Mulher tomaram o fruto e o comeram. Unumbotte prontamente desceu do céu e perguntou: “Quem comeu o fruto?”. Homem e Mulher foram sinceros: “Fomos nós”. Unumbotte indagou-os: “Quem disse que vocês podiam comer desse fruto?”. Homem e Mulher foram um pouco mais maliciosos: “Foi Serpente quem disse”.

Pobres serpentes que levam a culpa pela suposta corrupção do homem e da mulher, a despeito de conhecimento prévio de Javé e Unumbotte acerca do que viria a ocorrer... Nem era preciso ser onisciente para saber: ofereça a possibilidade de conhecimento oculto, proibido, aos seres ávidos por conhecer, e eles arriscarão tudo por eles, tal qual Prometeu arriscou despertar a ira dos deuses (e de fato a despertou) para entregar aos homens os segredos do seu fogo. Seriam as serpentes e os titãs, seres tão astutos e conhecedores, o “grande mal” personificado, ou antes, meros atores a colaborar com o ainda mais astuto plano divino?

Diversos autores discutem sobre diversas religiões do Oriente Próximo, muitas das quais representavam a Deusa Mãe por uma serpente, e outras por uma simbologia de comunhão realizada pelo ato de comer uma fruta de uma árvore que crescesse perto do altar dedicado à Deusa. Estas deusas também representavam o conhecimento, a criatividade, a sexualidade, a reprodução, os novos ciclos naturais, e o destino [2].

De fato, não foi à toa que Eva levou a culpa do tal Pecado Original, juntamente com a serpente. Há aqui que se considerar que diversas sociedades matriarcais ancestrais foram sendo suprimidas pelo patriarcado. Por muito tempo após o advento da agricultura, as mulheres passaram a organizar a colheita, tornando-se, talvez, mais importantes para a sobrevivência da tribo do que os próprios homens, os caçadores. Tal sucesso, no entanto, fez com que o ser humano prosperasse e se espalhasse pelo mundo. Nalgum dia alguma tribo tornou-se próspera o suficiente para que despertasse uma antiga ideia brutal dos caçadores: “Porque arriscar caçar no campo selvagem, se podemos saquear os grãos e a colheita dessas tribos de ovelhas?”.

Então surgiram os lobos a assustar as ovelhas. Alguns dos lobos se ofereceram para proteger as ovelhas dos outros lobos, em troca de comida. Surgiu o primeiro exército. Os homens voltaram a dominar pela força, e a sabedoria das mulheres no lido com as colheitas e a natureza não era mais tão primordial. Com o tempo os mitos alcançaram tal história. Seguem alguns exemplos sugestivos...

Na mitologia babilônica: A morte da serpente-dragão Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois, é considerada um grande exemplo de como ocorreu a mudança de poder do matriarcado ao patriarcado. Na mitologia grega: Na juventude, Apolo matou a serpente Píton, que vivia em Delfos e tomava conta do oráculo de Têmis, e tomou o oráculo para si. Depois foi punido, pois Píton era a filha de Gaia, a Mãe Terra. Ah sim, Apolo também tomou o cuidado de dividir o corpo da serpente em dois.

Finalmente, retornando a Bíblia: Diversos autores modernos analisam a história da criação do Gênesis como uma narrativa alegórica sobre a divindade Javé suplantando a Deusa Mãe, representada pela árvore da vida, e a religião hebraica suplantando este culto. Isto é demonstrado na passagem sobre a origem do pecado em que o conhecimento proibido relaciona-se a sexualidade e a reprodução, especialmente o conhecimento de que os homens participam da reprodução [3].

Eis que achamos à culpada por nosso conhecimento da sexualidade e dos mistérios naturais: a serpente-dragão, a Deus Mãe. Mas, se no Ocidente tais mitos carregaram as serpentes com características supostamente negativas, no Oriente foi algo diferente... Abaixo da Árvore da Iluminação, está o Buda sentado em posição de meditação. Quando uma grande tempestade se aproximou, uma enorme serpente levantou-se acima da caverna subterrânea e envolveu o Buda em sete espirais por sete dias, para não interromper o estado de meditação. Para os orientais, o conhecimento da natureza, não somente científico, mas sobretudo espiritual, pode levar a paz de espírito duradoura e, quem sabe, a grande iluminação interior.

Sim, há grande sofrimento no mundo, e os místicos orientais não negam isso, mas o reafirmam: nada pode ser mais prazeroso do que enfrentar esse sofrimento, e prosseguir no caminho de retorno ao Éden. A diferença é que o Éden não foi nem será – o Éden está aqui neste momento, dentro de nós, e fora de nós, espalhado sobre a terra, e os homens não o veem. Buda o viu, e esta visão o fez caminhar por milhares de quilômetros da Ásia, trazendo a “boa nova” para os desavisados, iluminando o caminho daqueles que combatiam incessantemente a natureza, sem perceber que estavam conectados a ela. Era preciso saber encarar o sofrimento face e face, e se renovar, se reinventar, à todo momento, para que os traumas e as cicatrizes fossem parte de nossa antiga história, de nossa antiga pele, e não mais do momento atual. Deste momento.

A serpente que abraça a terra e os galhos das árvores sagradas sabe: ela já provou do fruto proibido, e amargou, quem sabe, um conhecimento indesejado, o conhecimento do sofrimento e do mal; Porém, foi assim também que obteve o conhecimento da felicidade e do bem, e percebeu que o caminho para a luz da felicidade era infinito, enquanto que o sofrimento se acumulava apenas em sua pele, em sua casca. A serpente aprendeu a trocar de pele, e deixar seus antigos traumas para trás. Todo este veneno antigo não era mais necessário: fez do próprio veneno um antídoto para a vida. Serpenteia sempre renovada, pelos mesmos sulcos de terra criados por suas irmãs. A serpente sabe.

Até quando os seres de pouca visão permanecerão crendo que todo impulso natural é pecado, que a natureza deve ser subjugada, e que o sofrimento deste mundo de nada nos serve que não para esperarmos com ainda mais afinco, com as ancas ainda mais fincadas no solo do dogma, pelo suposto retorno ao antigo estado de ignorância do Éden, quando nada sabíamos e nada conhecíamos, nem éramos conscientes de nós mesmos, mas caminhávamos junto ao Pai Bondoso?

Pois saibam que este foi o grande esquema, a grande lição arquitetada por Javé e Unumbotte, com a ajuda de todas as serpentes do mundo, e com o aval da Deusa Mãe: tirar seus filhos de casa, para que sobrevivam e evoluam por si mesmos, e paguem suas próprias contas.

Está na hora de tornar-se adulto.


Então Ele percebeu, “na verdade Eu Sou essa criação, pois Eu a expeli de mim mesmo”; Dessa forma, Ele se tornou essa criação, e aquele que sabe disso torna-se, na criação, um criador (Upanishads)

***

[1] Todas as citações do povo Bassari foram retiradas de O poder do mito, a célebre entrevista de Joseph Campbell para Bill Moyers.

[2] Ver, por exemplo, este artigo de Ana Maria Mendes Moreira: A mulher, o divino e a criação.

[3] Acho proveitoso citar aqui uma das respostas de Chico Xavier no célebre Pinga-Fogo da TV Tupi (1971): “Nós temos um problema em matéria de sexualidade na humanidade, que precisamos considerar com bastante respeito recíproco: se as potências do homem na visão, na audição, na tatilidade das mãos, foram dadas ao homem para a educação e o rendimento no bem, seria então o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas? A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual, transmitindo aos nossos filhos os valores do espírito de que sejamos portadores.”

Crédito das imagens: [topo] Robert Recker/Corbis; [ao longo] Guido Mocafico (Serpens)

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24.8.12

Citações no mural

Após ter iniciado a série Play a Myth, comecei a utilizar o mural de fotos da página deste blog no Facebook para divulgar os mitos. A primeira coisa que percebi é que o Facebook valoriza muito mais as fotos do que os posts de textos ou links, pois com as fotos ele cria automaticamente um mural que pode ser facilmente acessado posteriormente. Ou seja: é bem mais simples encontrar uma foto postada há 6 meses, do que um texto ou um link, que já estará “enterrado” na linha do tempo da página.

Refletindo um pouco mais sobre o assunto, e também navegando no próprio Facebook, percebi que na realidade há muitas outras páginas no Facebook que usavam do mesmo expediente. A grande maioria divulgando imagens com humor, memes, mensagens políticas ou aquelas famigeradas correntes de “curte ou compartilha”, dentre outras...

Pensei então: nessa overdose de informação, não adianta postar imagens de mitos, pois quase ninguém vai se interessar em dedicar 15 minutos do seu tempo para tentar “decifrar” essas imagens (há não ser quem já conhece o blog e já sabia da série, claro). Era preciso “pescar” a atenção das pessoas com algo mais direto.

Foi daí que pensei em seguir aqueles exemplos de páginas do Facebook que divulgam frases ou citações de pensadores famosos, só que de uma forma um pouco mais elaborada, e de preferência com um pouco mais de texto: o suficiente para fisgar a reflexão, mas sem assustar pela quantidade de informação a ser lida (no rio largo da informação diluída, precisamos utilizar alguns ensinamentos dos publicitários, os magistas da nova era).

A série com frases ou pequenos trechos de poemas, ou citações de grandes pensadores e livros sagrados, já está compondo o mural de nossa página no Facebook há pouco mais de dois meses. Carl Sagan, Fernando Pessoa e Epicuro foram os primeiros a fazer grande sucesso, com 50+ compartilhamentos cada. Mas nada se compara a citação do Alan Moore, que virou um meme fulminante, com 50+ compartilhamentos em 1h, 500+ em 3 dias, e que hoje já tem mais de 1000 compartilhamentos – quase o total de pessoas que curtiram a página.

Minha ideia em geral tem sido trazer alguns grandes textos de autores não tão conhecidos, e alguns grandes textos relativamente desconhecidos dos autores mais conhecidos... Em alguns casos tive de "encurtar" os textos para que pudessem caber no espaço, mas tomando o devido cuidado para não afetar (muito) a essência das mensagens.

Eu gosto de pensar que essa “pescaria” serve para contrabalancear toda a overdose de informação não lá muito relevante. Quem vai saber?

» Veja o nosso mural de fotos no Facebook. Curta e compartilhe, se lhe apetecer.

***

Crédito da imagem: Google Image Search + raph + The Mindscape of Alan Moore (esta foi a tal imagem que estourou os 1.000 compartilhamentos)

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23.8.12

Conversa Alheia: Homem-Aranha, Mitos, Religião, Deus

Agora vocês vão conhecer minha voz.

Eu, que sou um estudante de poesia, fui convidado por Igor Teo e Rodrigo Ferreira, estudantes de psicologia e autores do blog Artigo 19, para participar de um bate papo descontraído sobre todas essas coisas que passam por nossa mente de vez em quando, e que por vezes refletimos também em nossos respectivos blogs.

Poderíamos estar num Café Parisiense, mas a conversa discorreu através das vias digitais. Esperamos que gostem deste que na verdade é ainda apenas o piloto da série. Com vocês, o Conversa Alheia:

Episódio #1: Homem-Aranha, Mitos, Religião, Deus.
Igor Teo, Rodrigo Ferreira e Raph Arrais batem um papo sobre os heróis do Universo Marvel, mitologia moderna e o lugar da crença na atualidade.

Citado no programa:
The Mindscape of Alan Moore
Alain de Botton
Texto de Psicologia Evolucionista "Por que discutimos tanto?"
Freud, Religião e Ciência
Xamãs, Heróis e Dragões

Música de fundo:
"Bolero" de Ravel, interpretação do maestro André Rieu.

***

» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube.

***

Crédito da imagem: roboppy (fotografia) + raph (logo)

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22.8.12

Indecência espiritual

Por agora encerrando as traduções dos poemas de Rumi em inglês... Há alguns poemas de Rumi que trazem metáforas “grosseiras”. De fato, tanto é assim, que os primeiros tradutores de tais poemas para o inglês, nos idos dos 1920s, preferiram manter tais passagens em latim, supondo que “quem quer que saiba ler em latim, terá refinamento suficiente para não se escandalizar”... Zoofilia! Os puritanos e os de mente em conserva iriam levá-lo a fogueira! Sorte de Rumi que sua poesia tem se irradiado somente entre os amantes, estes que sempre serão bem vindos a passear em sua Grande Carruagem...


[A importância do artesanato de cabaças]

Havia uma camareira
que usou da inteligência para treinar um asno
ensinando-o a fazer o serviço de um amante.

De uma cabaça,
ela esculpiu um engenhoso orifício
de modo que encaixasse no pênis do animal,
impedindo-o de penetrar muito profundamente nela.

Ela arquitetou sua cabaça de tal modo que a penetração ia somente até o ponto máximo de seu prazer.
E ela aproveitava seu brinquedo sempre que podia!

Ela entrou em êxtase, mas o asno começava a aparentar um pouco magro e um tanto cansado.

Sua patroa começou a suspeitar.
Um dia ela espiou através de um buraco na porta
e viu o espantoso membro do asno,
e o deleite da garota
esticada embaixo do animal.

Não disse nada. Mais tarde bateu na mesma porta
e incumbiu a criada de uma tarefa,
uma tarefa longa e complicada.
Não entrarei em detalhes.

A camareira soube o que se passava, no entanto.
“Ah, minha senhora,” ela pensou consigo mesma,
“você não deveria ter mandado embora a especialista.

Quando começa num caminho sem conhecimento total,
você arrisca sua vida. Seu pudor lhe impede
de me perguntar sobre a cabaça, mas ela é necessária
para que possa se unir a este asno.
Há um truque que desconhece!”

Mas a mulher estava muito fascinada com a ideia
para considerar qualquer perigo. Ela deixou o asno entrar
e trancou a porta, pensando, “Com ninguém em volta,
poderei gritar de prazer.”

Ela estava desorientada
pela ansiedade, sua vagina ardia
e cantava como um rouxinol.

Ela arrumou a cadeira abaixo do asno,
assim como viu a criada fazer. Ela levantou suas pernas
e o colocou dentro dela.

Seu fogo brilhou ainda mais,
e o asno educadamente a estocou conforme ela o instigou,
seu membro entrou fundo e através de seu intestino,
e, sem uma palavra, ela morreu.

A cadeira caiu para um lado,
e ela pro outro.

O quarto estava manchado de sangue.

Leitor,
alguma vez já viu alguém martirizado por um asno?
Lembre o que o Corão diz sobre o tormento
de desgraçar-nos a nós mesmos.

Não sacrifique sua vida por sua alma animal!

Acaso morra pelo que ela lhe instigou a fazer,
você será como a mulher morta no chão.
A imagem da imoderação.

Lembre-se dela,
e mantenha seu equilíbrio.

A criada retorna e diz, “Sim, você viu
meu prazer, mas não percebeu a cabaça
que colocava nele um limite. Você abriu
sua loja antes que um mestre
houvesse lhe ensinado a arte.”

***

[A grande carruagem]

Quando vejo sua face, as pedras começam a girar!
Você aparece; todo o estudo vagueia.
Eu perco meu lugar.

A água se torna perolada.
O fogo aplaina e não mais destrói.

Em sua presença não desejo o que achei
que desejava, essas três lamparinas suspensas.

Dentro de sua face os manuscritos antigos
mais parecem espelhos enferrujados.

Você respira; surgem novas formas,
E a música de um desejo mais conhecido
que a Primavera começa seu ritmo
como uma grande carruagem.

Conduza-a devagar.
Alguns de nós caminhando ao seu lado
são mancos!

***

Hoje, como qualquer outro dia, nós acordamos desocupados
e aflitos. Não abra a porta para o estudo.
Guarde seu instrumento musical.

Deixe a beleza que amamos ser o que criamos.
Existem centenas de maneiras de se ajoelhar e beijar o chão.

***

Além das ideias de certo e errado,
há um campo. Eu lhe encontrarei lá.

Quando a alma se deita naquela grama,
o mundo está preenchido demais para que falemos dele.
Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um”
não fazem mais nenhum sentido.

***

A brisa matinal têm segredos a lhe contar.
Não volte a dormir.
Você precisa perguntar por aquilo que realmente deseja.
Não volte a dormir.
As pessoas estão indo e vindo através da soleira onde os dois mundos se tocam.
A porta é arredondada e está aberta.
Não volte a dormir.

***

Eu amaria lhe beijar agora.
O príncipe do beijo é sua vida.

Então meu amor está correndo em direção a minha vida, gritando,
Que barganha, vamos comprar.

***

Luz matinal, cheia de pequenas partículas a dançar,
e o grandioso a girar, nossas almas
dançam contigo, sem pés, elas dançam.
Você pode vê-las quando eu sussurro em seus ouvidos?

***

Eles tentam dizer o que você é, espiritual ou sexual?
Eles especulam sobre Salomão e todas as suas esposas.

No corpo do mundo, dizem, há uma alma,
é isto o que você é.

Porém nós temos caminhos entre nós
que nunca serão mencionados por ninguém.

***

Venha para o pomar na Primavera.
Há luz e vinho, e namorados
nas flores de romã.

Se você não vir, estes não farão diferença.
Se você vir, estes não farão diferença.


(Poemas de Jalal ud-Din Rumi. Refletidos do inglês para o português por Rafael Arrais)

***

Crédito da foto: Atlantide Phototravel/Corbis

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21.8.12

A arte sufi

Já que pediram, continuarei traduzindo alguns dos mais belos poemas de Rumi em inglês... Há muitos que julgam o Islã pelo que passa hoje na TV, mas se esquecem, ou, mais provavelmente, não sabem, que há um milênio atrás eram os islâmicos quem detinham os expoentes de nossa filosofia, tendo sido os grandes responsáveis por salvar a sabedoria grega do esquecimento; de nossa ciência, da medicina a matemática; e sobretudo de nossa espiritualidade. Somente numa época como esta poderia ter vindo a Terra um poeta como Rumi, talvez o último filho de Al-Andalus...


[A arte chinesa e a arte grega]

Disse o Profeta, “Há alguns que me veem
sob a mesma luz que os vejo.
Nossas naturezas são unas.

Sem referência a linhagens
de parentesco, sem referência a textos e tradições,
nós bebemos o mesmo líquido da vida, juntos.”

Eis uma história sobre este mistério oculto:

Os chineses e os gregos estavam debatendo sobre quais seriam os melhores artistas.
O rei então disse, “Resolveremos tal questão com um debate”.
Os chineses começaram a falar,
mas os gregos nada diziam.
E foram embora.

Os chineses então sugeriram que a cada grupo fosse dado em salão para que pudessem trabalhar em sua arte,
dois salões voltados um para o outro, separados por uma cortina.

Os chineses pediram ao rei por uma centena de cores, todas as variantes,
e a cada manhã eles voltavam onde as tintas eram deixadas
e as pegavam todas.
Os gregos não pegavam tinta alguma.
“Elas não são parte do nosso trabalho”.

Eles foram para o seu salão e começaram a limpar e polir as paredes.
Todo dia, a cada dia, tentavam deixar as paredes puras e límpidas
como o céu aberto.

Há um caminho que parte de todas as cores para a ausência de cor.
Saiba que a magnífica variedade das nuvens e do clima
vêm da simplicidade total do sol e da lua.

Os chineses concluíram sua arte, e estavam muito felizes.
Bateram seus tambores pela alegria da conclusão.
O rei entrou em seu salão,
espantado pelas cores maravilhosas e pelos detalhes.

Os gregos subiram a cortina que dividia os ambientes.
As imagens e figuras chinesas refletiram cintilantes
nos muros vazios dos gregos. Elas viviam lá,
ainda mais belas, e sempre
se modificando junto com a luz.

A arte grega é o caminho sufi.
Eles não estudam livros ou pensamento filosófico.

Eles fazem seu amor puro e cada vez mais límpido.
Sem desejos, sem raiva. Nessa pureza
eles recebem e refletem as imagens de cada momento,
daqui, das estrelas, do vazio.

Eles as absorvem
como se estivessem a ver
sob a mesma luminosidade
que os observa.

***

Sob sua luz eu aprendi como amar.
Ante sua beleza, como compor poemas.

Você dança em meu peito,
onde ninguém o vê,

por vezes tenho lhe visto,
e isto que contemplo torna-se minha arte.

***

O som de tambores se eleva pelo ar,
são uma pulsação, meu coração.

Uma voz dentre os batimentos me diz,
“Eu sei que está cansado,
mas venha. Este é o caminho.”

***

Está com ciúmes da generosidade do oceano?
Porque se recusaria a doar
esta alegria aos outros?

Os peixes não guardam o líquido sagrado em canecas!
Eles nadam nesta imensidão de liberdade fluída.

***

[Diga eu sou você]

Eu sou a poeira no raio solar.
Eu sou o sol circular.

Para os pedaços de pó eu digo, Fiquem.
Para o sol, Continue a viajar.

Eu sou a neblina da manhã,
e o suspirar da tardinha.

Eu sou o vento no topo do bosque,
e a arrebentação ao pé do penhasco.

Mastro, leme, timoneiro, e barco,
Sou também o recife de corais onde naufragaram.

Eu sou uma árvore com um papagaio treinado em seus galhos.
Silêncio, pensamento, e voz.

O ar musical saindo de uma flauta,
a faísca de uma pedra, uma oscilação

num metal. Tanto a vela,
quando a mariposa alucinada ao redor.

A rosa, e o rouxinol
perdido em sua fragrância.

Eu sou todas as ordens do ser, a galáxia circundante,
a inteligência evolucionária, a ascensão,

e a queda. O que é,
e o que não é. Você quem sabe

Jalal ud-Din, Você, o uno
em tudo, me diga quem

Eu sou. Diga eu
Sou Você.

***

[A grama]

O mesmo vento que arranca os troncos
faz a grama brilhar.

O vento senhoril ama a fraqueza
e a humildade da grama.
Jamais se vangloria de ser forte.

O machado não se preocupa com a grossura dos galhos.
Ele os corta em pedaços. Mas não as folhas.
Ele deixa as folhas em paz.

Uma flama não considera o tamanho da pilha de lenha.
Um açougueiro não corre de um rebanho de ovelhas.

O que é a forma na presença da realidade?
Muito pobre. A realidade mantém o céu revirado
como um cálice acima de nós, girando. Quem rodou
a roda do céu? A inteligência universal.

E o movimento do corpo
vêm do espírito como uma roda d’água
construída num riacho.

A inalação e a exalação vêm do espírito,
agora raivoso, agora em paz.
O vento destrói, e protege.

Não há realidade que não Deus,
diz o xeique completamente entregue,
que é um oceano para todos os seres.

Os níveis da criação são como pequenas ondulações neste oceano.
Seu movimento provém de uma agitação na água.
Quando o oceano deseja acalmar as ondulações,
ele as envia para perto da costa.
Quando ele as quer de volta, junto as grandes ondas do mar profundo,
faz com elas o mesmo que faz com a grama.

Isso nunca acaba.


(Poemas de Jalal ud-Din Rumi. Refletidos do inglês para o português por Rafael Arrais)

***

Crédito da foto: Donna Wilding/First Light/Corbis

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20.8.12

O filho da vida

Numa noite fria um homem letrado veio tratar com Yeshua, que o recebeu em sua tenda, animado por poder conversar com um sacerdote. Seu nome era Nicodemus...

Sacerdote – Shalom, rabi.

Mensageiro – Está errado: tu que és o rabi, e eu é que estou em paz.

Sacerdote – Mas como pode estar em paz, vendo seu povo sofrendo, oprimido?

Mensageiro – E quem não sofre nesta vida?

Sacerdote – Mas nós judeus temos sofrido em demasiado. Onde está Adonai para libertar nosso povo? Dizem que você trouxe-nos sinais de que é seu enviado, seu filho... Então me diga, onde está este Senhor Ausente?

Yeshua apanhou um galho seco do solo onde foi montada a tenda...

Mensageiro – Você vê a vida aqui?

Sacerdote – Não, isto é apenas um galho seco.

Mensageiro – Esta é a diferença. Tu achas que teu senhor está aqui e ali, e eu o percebo em todo lugar, para onde quer que olhe estou sempre coberto por seu perfume. Este galho seco um dia abrigou vida, e agora se torna inerte novamente, porém não menos sagrado. Eis o meu sinal e a minha mensagem, rabi: tudo é sagrado, tudo vibra e nada está parado. Quem há de ter iniciado esta roda senão aquele quem proclamas ausente?

Sacerdote – E porque não o convoca então? Quero vê-lo!

Mensageiro – Ele já está aqui. Ainda mais perto de tua alma do que teu próprio olho.

Sacerdote – Mas não o vejo, não o vejo! Se o vê, diga-te então que nos ajude, que nos lidere, que expulse os opressores de nossa terra...

Mensageiro – Mas como pode alguém retirar a moeda ou o trigo da balança, sem que torne a transação injusta para o vendedor ou o comprador? Tu desejas um Senhor dos Exércitos, mas como pode um general marchar contra o seu próprio exército?

Sacerdote – O que está dizendo, rabi? E acaso Adonai também defende aos opressores?

Mensageiro – E como poderia existir um exército de homens que não pertença ao Senhor da Vida? Não é sua culpa que os homens busquem a morte, e não a vida. Em verdade lhe digo, ó Nicodemus, que Nosso Pai não é um general, mas um semeador... E nós somos as sementes! Algumas há que germinaram em solo fértil, enquanto outras encontraram o solo seco, e viveram vidas de galhos secos. Porém, há sempre a oportunidade de aproveitar as chuvas que antecedem a primavera.

Sacerdote – Eu não compreendo... Se este de quem fala é o senhor dos romanos, não pode ser Adonai. Você é filho de um falso deus, um deus ausente, um deus traidor. Quem é você afinal?

E dizem que aquela foi a primeira vez que o viram exaltado:

Mensageiro – Ó Nicodemus, porque tanto proclamas ser um conhecedor das coisas celestes, se mal compreende das coisas do mundo? A quem pretende ensinar com esta alma cega? Tu acusas Nosso Pai de ser ausente, e, no entanto, ele é tão ausente quanto à luz das estrelas é ausente da noite! Tu acusas Nosso Pai de ser traidor, quando não há no mundo quem ele possa trair, visto que não fez promessa alguma! Tu me acusas de ser filho de um deus falso, quando ele é a fonte única de todos os Elohim, que são a essência de tudo o que há de belo e verdadeiro no mundo!
Saia desta tenda, Nicodemus, e volte para seus manuais de palavras vazias e sem vida. De nada adianta conhecer as palavras se você não percebe o baile da vida a escorar pelo ombro, o vento que sopra onde quer, e não atende ao chamado de almas secas.

Mas, antes de sair, Nicodemus virou-se e perguntou:

Sacerdote – E como tu fazes para falar com esse tal deus? Quem sabe um dia eu consiga falar com ele, para que possa fazer por nosso povo o que você se recusa a pedir...

Mensageiro – Em verdade lhe digo, hipócrita, que ele fala na única linguagem que não és ainda capaz de compreender sequer duas palavras: o amor. E, caso te perguntem como eu sei de tudo isso, diga-lhes que eu sou o Filho da Vida.


raph’12

***

Este conto é uma continuação direta de "O zelote", e continua em "O recitador".

***

Crédito da foto: Janis Christie/Corbis

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19.8.12

Os mistérios de Abadiânia

Discovery Channel, National Geographic e BBC foram alguns dos canais de TV estrangeiros, bastante conceituados, que já realizaram filmagens e documentários acerca de João de Deus. Apesar de ser relativamente conhecido no próprio país, ao ponto de ter sido chamado para auxiliar no tratamento de câncer do ex-presidente Lula, e também do ator Reynaldo Gianecchini, o médium é muito mais famoso fora do país, tanto que mereceu uma visita exclusiva de Oprah Winfrey, provavelmente a apresentadora de TV mais famosa do mundo.

Filmadas por todos os ângulos, as cirurgias físicas de João de Deus causam um misto de espanto e certa repudia. Certamente não é todo dia que vemos uma pessoa sem qualquer formação médica fazer incisões profundas na pele das pessoas com facas de cozinha, “raspagem” de catarata em olhos abertos (com o mesmo instrumento, tudo filmado), e inserções de tesouras pelo orifício nasal. Em estudo da Associação Médica Brasileira, ficou comprovado que tais cirurgias são reais, e que os tecidos extraídos e “raspados” dos olhos são inteiramente compatíveis com a fisiologia dos pacientes. Mas, a pergunta que fica é: com ou sem cirurgias físicas [1], João de Deus opera um tratamento que pode resultar em cura?

É exatamente esta pergunta que o documentário Cura: Milagres e Mistérios de João de Deus procura responder. Ganhador de 3 prêmios no festival internacional de Mônaco, em 2008, é de longe o documentário mais bem produzido acerca do médium de Abadiânia. Ainda que não creiamos que espíritos estão a operar e curar valendo-se das mãos de João, o documentário é tocante em seu lado humano. Nele, vemos um homem que veio se tratar e até hoje não pode se distanciar algumas centenas de metros da Casa, pois do contrário suas convulsões retornam imediatamente. Vemos uma jovem que veio a Abadiânia por pura curiosidade, e encontrou motivos para lá residir o resto da vida, encerrando uma longa viagem pelo mundo, e iniciando uma nova viagem interior. Vemos um homem que teve de vir dezenas de vezes ao Brasil, e não compreendia porque afinal nunca se livrava de sua doença, até que finalmente conseguiu algo mais importante: tratar e curar a causa, e não o efeito.

E de todos esses, nenhum nasceu no Brasil. Há que se perguntar o que todo esse povo estrangeiro tem a tratar com João de Deus:

Caso o vídeo acima dê algum erro, veja no site do Vimeo. No Firefox as vezes os vídeos do Vimeo não abrem, então será necessário usar outro browser para ver.

***

[1] O documentário mostra, em curtos momentos, cenas de cirurgias físicas operadas pelo médium. Sabe-se que tais cirurgias na verdade não participam de cura alguma, o próprio médium conta que servem apenas para "reduzir o ceticismo dos pacientes quanto ao tratamento". Eu não concordo com tais cirurgias, mas em todo caso elas são uma parcela ínfima do total de cirurgias espirituais (sem cortes, etc.) realizadas por João ao longo de décadas. Portanto, não concordo, mas isso por si só não me impede de admirar todo o amor e toda a espiritualidade que existem em Abadiânia.

» Para uma análise cética centrada exclusivamente nas cirurgias físicas mostradas no documentário, ver o artigo João de Deus: charlatão?

Crédito da imagem: Divulgação/Cena do documentário (Healing)

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17.8.12

Vinho, Luz e Silêncio

É uma sexta-feira à noite e estou mergulhado na poesia de Rumi. Por falta de livros em português, fui atrás de traduções de Rumi para o inglês. Após haver lido alguns poemas extraordinários, pensei: hoje à noite não vou jogar videogame, vou traduzir esses poemas de Rumi.

Vinho para se embriagar com o sagrado, alma aberta para refletir a Luz adiante, e Silêncio para que possamos escutar aos ecos da eternidade...


[Cada nota]

O conselho não ajuda aos amantes!
Eles não são do tipo de corrente d’água da montanha
que você possa represar.

Um intelectual não compreende
o que um embriagado está sentindo!

Não tente adivinhar
o que aqueles perdidos dentro do amor
farão a seguir!

Alguém no comando abdicaria de todo o seu poder,
se ele apanhasse uma lufada de almíscar do vinho
aberto no quarto onde os amantes
estão fazendo sabe lá o que!

Um deles tenta cavar um túnel através da montanha.
Outro foge das honrarias acadêmicas.
Enquanto outro ri do bigode dos famosos!

A vida congela se não abocanha um pedaço
deste bolo de amêndoa.

As estrelas vêm girando a cada noite,
aturdidas no amor.
Do contrário estariam hoje cansadas,
de todo este rodopio.
E diriam, “Até quando teremos de fazer isso!”

Deus pega a flauta de cana do mundo e sopra.
Cada nota é uma carência passando através de um de nós,
uma paixão, a dor de uma saudade.

Lembre dos lábios
onde o sopro se originou,
e deixe sua nota soar livre.
Não tente interrompê-la.
Seja a sua nota.
Eu lhe mostrarei como isso já basta.

Suba no telhado ao anoitecer
nesta cidade da alma.

Deixe que todos subam em seus telhados
e cantem suas notas!

Cantem alto!

***

[Com você aqui no meio]

Os amantes trabalham, de modo que quando corpo e alma
não mais estiverem juntos,
seu amor será livre.

Banhe-se na água da sabedoria, de modo que não tenha arrependimentos
de seu tempo neste mundo.

O amor é o núcleo vital da alma,
e de tudo o que vê, apenas o amor é infinito.

Sua não existência antes de seu nascimento
é o céu no leste.

Sua morte está no horizonte oeste
com você aqui no meio.

O caminho não leva nem ao leste nem ao oeste,
mas para dentro.

Bata suas asas de amor e as faça fortes.
Esqueça a ideia das escadas religiosas.
O amor é o telhado. Seus sentidos são calhas d’água.

Beba a chuva diretamente do telhado.
Calhas são facilmente quebradas
e por vezes precisam ser trocadas.

Recite este poema em seu peito.
Não se preocupe como ele soa
passando por sua boca.

Um corpo humano é um arco.
Respiração e linguagem são flechas.

Quando a aljava está gasta ou as flechas se acabaram,
não há nada mais para o arco realizar.

***

[O sonho que precisa ser interpretado]

Este lugar é um sonho.
Somente alguém adormecido o considera real.

A morte chega com o amanhecer,
e você acorda gargalhando
do que pensava ser sua aflição.

Mas existe uma diferença neste sonho.
Toda ação cruel e inconsciente
realizada na ilusão do mundo presente,
nada disso se esvai no despertar da morte.

Tudo isso persiste,
e precisa ser interpretado.

Todos os risos mesquinhos,
todo fugaz desejo sexual,
estes mantos rasgados de Josué,
transformam-se em lobos ferozes
que terás de enfrentar.

A retaliação que por vezes chega agora,
o repentino contra golpe,
é apenas brincadeira de criança,
comparado com os outros.

Aqui você sabe da circuncisão.
Lá é a castração total!

E este tempo cambaleante em que vivemos,
eis ao que ele se assemelha:

Um homem vai dormir na cidade em que sempre viveu, e ele sonha que está morando noutra cidade.
No sonho, ele não lembra mais da cidade onde seu corpo está adormecido na cama. Ele crê na realidade da cidade do sonho.

O mundo é este tipo de sonho.

A poeira de muitas cidades em ruínas
instala-se sobre nós como um cochilo,
mas somos mais antigos do que tais cidades.

Nós iniciamos como um mineral. Emergimos na vida vegetal
e então no estado animal, e depois no ser humano,
e sempre temos esquecido dos nossos estados anteriores,
exceto no início da primavera quando lembramos brevemente
sermos novamente verdes.

É assim que um jovem se volta para um professor.
É assim que um bebê se inclina para os seios,
sem saber do segredo de seu desejo,
inclinando-se instintivamente.

A humanidade vem sendo conduzida por um curso evolutivo,
através desta migração de inteligências,
e apesar de aparentemente estarmos adormecidos,
há uma vigília oculta
que direciona o sonho,

e isto eventualmente irá nos espantar de volta
para a verdade do que somos.


(Poemas de Jalal ud-Din Rumi. Refletidos do inglês para o português por Rafael Arrais)

***

Crédito da foto: Wildlifewatcher

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16.8.12

As mesas giram, mas não pensam

Eu (Raph), Igor Teo, Peterson Danda, Raphael PH e Jeff Alves, antigos membros do Links Mayhem, estamos participando de um novo projeto: Sobre um tema específico cada um dos participantes irá publicar um texto, em uma ordem estabelecida aleatoriamente, formando uma discussão, um agradável bate papo, onde o leitor será levado a refletir e meditar sobre diversos pontos de vista e abordagens do mesmo tema. Eis então o projeto Entrementes. Boa leitura!

O tema da segunda rodada é “Mediunidade”, e coube a mim o artigo inicial [1]...

Como já falei bastante sobre o tema em meu blog [2], optei por abordar aqui a mediunidade sob outro ponto de vista. Digamos que você não acredita em espíritos, ou em consciências incorpóreas. Digamos que você não acredita em vida após a morte e que, acerca da existência de Deus, não pode conceber nada de muito concreto. Então, neste caso, a mediunidade seria o último assunto que deveria lhe interessar, correto? Pois continue lendo, e veja se conserva esta mesma conclusão até o final deste artigo:

Uma festa angustiante
Começaremos a utilizar a imaginação... Digamos que você seja uma senhora que vai na festa de aniversário da própria filha. Sua mãe mora em outro estado e você a vê apenas uma vez por ano, mas as preocupações de sua vida giram em torno de sua filha: Está bem casada? Tem um bom emprego? Já está na idade de ter filhos, mas será que está preparada para ser mãe?
Estes são seus pensamentos do dia a dia no convívio com sua filha, e esta festa deveria te deixar muito feliz e satisfeita: sua filha parece estar feliz e satisfeita, era o que você queria... No entanto, subitamente, você começa a pensar na sua mãe. “Não há de ser nada, e já está tarde” – você pensa, evitando a todo custo à vontade de ligar para ela. A festa continua e todos estão felizes, mas você está profundamente angustiada. Com o que exatamente?
Você dorme angustiada, mas acorda bem melhor. No sonho, parece que conseguiu finalmente falar com sua mãe, e nem precisou usar o telefone. No entanto, lá pelo horário do almoço seus parentes ligam do outro estado: sua mãe teve uma morte súbita na noite anterior. Ela realmente queria falar contigo, e falou. E você sabia. De alguma forma, mesmo sem o telefone, houve esta ligação entre vocês. Teria sido a última ligação? Isso é outra história, mas o que importa é que dois espíritos se comunicaram de ontem para hoje.

O primeiro porre
Continuemos a imaginar... Agora você é um jovem recém chegado à adolescência, e seu irmão mais velho finalmente aceitou te levar junto com ele para a balada. É a tão sonhada iniciação: agora finalmente você também poderá sair da casa dos pais e voltar mais tarde, quem sabe de madrugada. E vai namorar as garotas mais belas dessa parte da cidade. E dançar e se divertir... A vida será uma grande festa!
No entanto, o primeiro lugar que seu irmão te leva é para um barzinho onde se pode beber muito pagando um preço razoável. Mas você nunca bebeu, você não gosta de bebida!
Em todo caso, as horas passam e você começa a ficar incomodado com os olhares dos amigos do seu irmão. São todos apenas alguns anos mais velhos que você, mas te olham como se você fosse uma criancinha, e eles os maiorais, os experientes, os adultos. Seu irmão não deixou que ninguém te forçasse a beber, mas mesmo assim a pressão é muito grande... Você terá de dar pelo menos alguns goles num copo de cerveja, se pretende se enturmar com esse pessoal – se pretende participar dessa tal festa.
E você dá o primeiro gole, e o segundo, e o quinto, e um copo já foi, e depois vários, e lá pela madrugada, já no meio da balada, você já provou tantas bebidas diferentes que já nem se lembra mais que não gostava de beber. Na verdade, você já nem se lembra mais de quem você é exatamente. Os pensamentos se sucedem tão rapidamente que você não consegue mais construir para si um mundo que faça algum sentido. Você desmaia.
Esse foi o seu primeiro porre. Mas, será que haverão outros?

“Ele pode estar transando nesse minuto”
Que tal agora uma universitária cheia de sonhos, prestes a se formar, apaixonada por um cara um pouco mais velho, já formado, que tem progredido no escritório e no contracheque, mas tem trabalhado demais... Vocês quase não se veem mais!
Eles lhe ensinaram que quem ama deve cuidar de sua propriedade, então você cuida da sua: liga para o seu namorado umas 7-8 vezes ao dia. Quando não podem dormir juntos na casa dos seus pais, ou dos pais dele, a ligação noturna é longa e cheia de indagações. Ele é o namorado perfeito, afinal, e é exatamente por isso que você não consegue deixar de pensar nele, e no que anda fazendo quando não está perto de você.
“Todos os homens traem”, sempre dizem suas amigas da faculdade. “Não adianta acreditar em príncipe encantado fiel, se for assim tão encantado, vai encantar outras mulheres também. E, sabe como é, não é? Basta aquele shortinho encravado na bunda, aquela mini saia, e eles não resistem. Na verdade, ele pode estar transando com outra nesse minuto... Já pensou nisso?”.
Com o tempo, você já não sabe mais se essas frases foram ditas por suas amigas, ou se chegaram com o vento... Mas o fato é que você mal consegue se concentrar nas aulas. Está para se formar, mas as notas vão de mal a pior... Para piorar, seu príncipe encantado passou a não atender mais o celular de vez em quando. Agora, atende somente umas 5 vezes ao dia, nas outras está em “reunião de trabalho”.
“Reunião de trabalho”, você sabe bem o que é isso! Antes que fique claro e evidente para todos que está sendo traída, você resolve terminar com seu namorado. Ele finge que não entendeu nada, e diz que ainda te ama... Mas você percebe que ele também se sente aliviado por ter se livrado de você.
Então é isso: não existe príncipe encantado, e todos os homens traem mesmo. “Da próxima vez, os trairei antes” – você pensa, e parece ter sua vida amorosa bem resolvida... Será mesmo?

Shine on you crazy diamond!
E, para terminar: um solteirão convicto que convidou o pai para um show de rock. Mas não qualquer show, e sim o show daquela banda das antigas, de quando o seu pai era o solteirão convicto da vez. “Quem sabe não encontra neste estádio a mãe dos seus filhos, como o seu pai encontrou sua mãe há décadas atrás?” – mas este lhe pareceu um pensamento estranho.
O show começa e você se emociona. Não é só a questão da música ser maravilhosa, mas é a música que o seu pai lhe ensinou a ouvir. O seu pai, que não ia numa show há muitos anos, e que esteve muito triste e deprimido desde que sua mãe se foi há 3 anos, hoje está mais feliz do que nunca, e nem precisou se drogar – a década de 70 ficou para trás, o espírito roqueiro despertou novamente.
Quando toca Shine on you crazy diamond, a preferida de seu pai, e por tabela, também a sua preferida, ele lhe abraça e chora ao final da música: “Sinto que sua mãe está aqui. Ouvimos esta música tantas vezes juntos... Estou aproveitando o momento para me despedir dela de uma vez. Seja onde esteja, sei que ela ainda pode dançar, e isso me basta”.
Estranho de se pensar, logo seu pai que nunca foi lá muito religioso, nem parecia crer que qualquer parte da sua mãe ainda existira, falou dela como se ela estivesse ainda ali, ao lado dele. E não era uma questão de se crer ou não no que se passou, vocês sentiram a mesma coisa, e não era possível usar linguagem para descrever.
Naquela mesma noite, você encontrou a mãe de seus filhos. Quando sua mulher ficou grávida da primeira vez, souberam que era uma menina, e ela te disse: “Quero dar o nome da sua mãe, sinto que conheço ela desde que te conheci”.

***

Falávamos da importância do pensamento na primeira rodada do projeto, e aqui o pensamento está também na essência da mediunidade.  Podemos abrir uma enciclopédia e ler, quem sabe, assim: A mediunidade é a capacidade da consciência humana de trocar informações com outras consciências de forma não verbal, influenciar e ser influenciada por elas. Sejam consciências que habitam um corpo físico, sejam consciências incorpóreas. Mas, no fundo, a mediunidade é muito mais uma experiência, como estas citadas nos 4 casos acima.

E, neste caso, nem é tão importante crer ou descrer em espíritos. O primeiro espírito que precisamos crer, conhecer e incorporar, é o nosso próprio. Devemos tomar conta de nosso próprio pensamento, para que este não seja alvo fácil na ventania. Devemos ancorar nossa essência nos altos ideais da existência: no amor, na liberdade, no conhecimento; para que os ventos não venham e a levem sabe-se lá para onde...

Ter uma alma, ter um espírito, ter uma consciência, ter uma vontade capaz de gerar seu próprio pensamento, é uma grande responsabilidade. A mediunidade é também a arte de lidar com tal responsabilidade da melhor forma possível.

A senhora que perdeu a mãe deveria ficar deprimida e triste, ou feliz por ter conseguido conversar com sua mãe uma última vez antes que ela fosse para o lado de lá? O adolescente que tomou seu primeiro porre terá coragem para não beber nas próximas baladas (ou beber moderadamente), ou se tornará um especialista em comas alcoólicos? A universitária ciumenta saberá compreender que amores não são propriedades suas, ou continuará obsessivamente ligada aos seus namorados? O roqueiro terá a sensibilidade suficiente para encontrar com sua mãe, deste lado de cá, ainda outras vezes, ou isso ocorrerá somente nos grandes shows de rock?

Muitas dessas perguntas não trazem uma única resposta, nem muito menos uma resposta perfeitamente racional. Na introdução do Livro dos Espíritos, Allan Kardec explica como viu no fenômeno das mesas girantes [3] algo muito maior do que a mera “força mecânica cega”. Ora, as mesas passaram a responder perguntas, com pancadas no chão que ditavam “sim” e “não”. “As mesas giram, mas não pensam” – notou Kardec, e este foi o início do espiritismo. Acaso as mesas “pensassem” ou agissem por conta própria, ou quem sabe através de alguma força desconhecida da natureza, a mediunidade poderia ser, quem sabe, uma ciência física. Porém, conforme o próprio Kardec notou mais tarde, “não se experimenta com espíritos como se experimenta com pilhas voltaicas”.

Não somos, afinal de contas, nem mesas girantes, nem pilhas voltaicas, nem máquinas incapazes de ter vontade própria. Somos espíritos, temos vontade... Pensemos nisso, e cuidemos disso. Do contrário, outros cuidarão por nós.

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» Veja todos os artigos do Projeto Entrementes

[1] A sequencia dos artigos desta rodada será: blog Diário do Adeptu (PH); blog Autoconhecimento e Liberdade (Peterson); blog O Alvorecer (Jeff); encerrando no blog Artigo 19 (Igor).

[2] Ver, por exemplo, a série “Para ser um médium”.

[3] Reuniões onde médiuns europeus supostamente levitavam mesas pouco acima do chão, e as faziam girar. Para Kardec, entretanto, era óbvio que existia um fenômeno inteligente por detrás, já que as mesas pareciam “responder perguntas”.

Crédito das imagens: [topo] Mike Agliolo/Corbis/Rafael Arrais; [ao longo] Divulgação (David Gilmour)

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