Pular para conteúdo
29.11.11

Intoxicados, parte 3

« continuando da parte 2

A criança que fui chora na estrada / Deixei-a ali quando vim ser quem sou / Mas hoje, vendo que o que sou é nada / Quero ir buscar quem fui onde ficou (Fernando Pessoa)

Por onde andam os mortos

Um homem caminha pelas vielas do inferno. Ele se veste a caráter: parece mais um mendigo, numa das mãos traz um saco com alguns pães que acabou de comprar na padaria, a face foi cuidadosamente maquiada para parecer tão suja quanto às faces dos mortos que perambulam por lá – perdidos das próprias almas, perdidos de suas essências. No entanto, não há nada de sobrenatural nesse inferno... Os seres mortos são apenas mortos em vida, não mortos-vivos; O inferno fica bem no centro da maior cidade do Brasil; Um homem visita a cracolândia.

Uma menina aborda o homem no meio da rua. Parece menor de idade, mas mesmo assim se porta como se não fosse. Ela está suja – suja no corpo, suja no olhar, suja na alma. Mas não há nada mais a oferecer em troca de um pedaço de pão ou, quem sabe, de 30, 20, 10 reais... Ela oferece a alma, ela oferece o olhar... E o corpo. O homem entrega o saco com os pães, e vai-se embora. Ele queria poder ver mais, mas sua estada no inferno, embora breve, já pesava muito em sua própria alma. Por um momento, se imaginou como aqueles que vivem naquela escuridão, nas trevas do inferno terreno, perdido, sem esperança... Caminhando junto aos mortos... Não foi uma boa imagem [1].

O crack é uma droga feita da mistura de cocaína com bicarbonado de sódio e outros pedaços de sujeira pelo caminho. Geralmente, é fumada. A fumaça produzida pela queima da pedra de crack chega ao sistema nervoso central em dez segundos, devido ao fato de a área de absorção pulmonar ser grande. Seu efeito dura de 3 a 10 minutos, com efeito de euforia mais forte do que o da cocaína, após o que produz muita depressão, o que leva o usuário a usar novamente para compensar o mal-estar, provocando intensa dependência. Não raro o usuário tem alucinações e paranoia... Na cracolândia, vive-se em intervalos esporádicos de alguns minutos, numa semivida eufórica e mecânica que se esvai tão logo chega, como um estranho sonho curto em meio a um pesadelo. No resto do tempo, se morre.

Desde 2005, a Prefeitura de São Paulo tem se dedicado, timidamente, a restaurar a área da cracolândia. Sua ideia de restauração passa pelo fechamento de bares e hotéis ligados a prostituição e ao tráfico de drogas, o aumento do policiamento e a desapropriação de centenas de imóveis numa tentativa de criar “bolsões” onde a iniciativa privada se sinta a vontade para investir. Os moradores de rua, catadores de material reciclável e dependentes de drogas que perambulam pelo inferno vão sendo expulsos aos poucos – sabe-se lá para onde, mas certamente hão de levar seu inferno junto com eles... Muitos grupos de menores de rua dependentes, impedidos de caminhar por seu inferno particular, perambulam sem rumo pelos bairros vizinhos. Bandos e bandos de crianças que, mal tendo nascido, já se encontram mortas...

Na verdade, muitas grandes cidades do mundo em desenvolvimento têm suas cracolândias, seus infernos, para onde se dirigem todos aqueles sem rumo, perdidos de suas almas, que deixaram a si mesmos em algum canto, em alguma esquina, em alguma estrada, e nunca mais encontraram... E muitos se dizem sensibilizados, se dizem “cristãos”, mas se sentem mais a vontade o mais longe possível do inferno. Quase ninguém quer ir para o inferno, contanto que lá não se encontre nenhum parente, familiar, ou grande amigo. Ninguém quer em realidade saber de onde andam os mortos: “deixem que fiquem por lá, morrendo, aos poucos, mas longe, muito longe de nós!”.

E tratamos aos dependentes como seres perdidos, sem volta, condenados. Mas não são todos que pensam assim... A Missão Batista Cristolândia, como foi chamada, é a sede de todos os batistas que desejam capacitação no trabalho de evangelização de dependentes químicos e excluídos socialmente. Como apresenta a coordenadora local do Radical Brasil, missionária Soraya Machado: "A Missão é a resposta dos batistas brasileiros a esta atrocidade chamada cracolândia". O quartel general do Radical Brasil está localizado dentro da cracolândia e nesse espaço são oferecidas 300 refeições diárias - café, almoço e janta, espaço para banho, lavanderia, doação de roupas e calçados. Além do amparo social, o investimento espiritual é alto, com quatro cultos por dia nos períodos da manhã, tarde, noite e madrugada... Felizmente, alguns ainda são crentes o suficiente no ser humano, crentes a ponto de imaginarem que podem sim, adentrar ao próprio inferno, e sair de lá não com demônios ou mortos-vivos, mas com pessoas que podem sim viver uma vez mais.

Nós podemos criticar os evangélicos e crentes fervorosos por algumas de suas crenças descabidas, mas enquanto existirem crentes da esperança, crentes da vida que pode vencer a morte, todas as suas exaltações serão não somente perdoadas pelos que adoram a vida, mas admiradas... Nesse aspecto, pouco importa a crença ou descrença de cada um, e sim os frutos de suas obras, sua caridade, seu amor. É muito fácil desistir dos dependentes como se esses não fossem mais seres vivos, como se não tivessem mais almas, ou, pelo menos, como se não houvesse mais nenhuma esperança de as reencontrarem pela estrada... Mas a alma perdura, em meio ao mais pavoroso inferno, nos vales das sombras e da morte, ela não teme o mal, ela permanece ali, impávida, esperando ser resgatada – como a mais pura e inocente criança a chorar pela estrada: “Veja, aqui estou eu. Venha e salva-me! Venha e cuida de mim! Venha e me ame, que eu também te amarei...”

Paracelso já dizia que a diferença entre o veneno e o remédio é apenas a dose. As drogas e os vícios podem sim nos permitir escapar da tristeza perene da vida, mas o custo é alto: é a própria vida. Ao aprendermos a encarar a melancolia de frente, face a face, poderemos quem sabe perceber que mesmo ela, mesmo ela, era apenas uma dose do leve veneno da vida, mas dose esta que também pode virar um grande remédio... Se estamos intoxicados de angústias, devemos também tentar nos intoxicar de alguma sabedoria, e compreender que há sempre tempo de recomeçar – mesmo o nosso próprio corpo, em sua renovação incessante, será um novo corpo assim que nos limparmos do charco de toxinas químicas e nos banharmos na água cristalina de um rio, uma cachoeira, um oceano, ou da própria vida.

E então, quem sabe, poderemos passar a nos intoxicar da única substância que, independente da dose, só nos fará avançar, mais e mais, cada vez mais, para um céu de liberdade, e felicidade – sejamos todos dependentes do amor, e apenas dele, para que todos os infernos se façam céus, toda a indiferença se faça dor, e toda compaixão, fortaleza intransponível.

***

[1] Este trecho foi inteiramente baseado no depoimento de um amigo.

***

Crédito das fotos: [topo] AMCCE; [ao longo] ALESP

Marcadores: , , , , , , , ,

Karma Ghost

Nesta animação muito bem humorada de "billyblob", a visão algo superficial que muitos têm do carma (ou karma, ou lei de causa e efeito) é retratada de maneira bastante elaborada. O conceito de carma, entretanto, é bem mais profundo, mas isso não diminui em nada a qualidade da animação:

ps. Está em inglês, mas não é necessário saber inglês para compreender o vídeo.

Marcadores: , , , ,

25.11.11

O futuro de Deus

Quem acompanha a página do blog no Facebook pode já ter ouvido falar deste livro, mas achei por bem lhes trazer este resumo em vídeo de seu conteúdo, pois que em breve postarei alguns trechos dele aqui no blog, conforme faço na divulgação de outros livros.

Caso queiram se adiantar, podem comprar logo o livro. Pois se gostam do que há neste blog, dificilmente não irão se deliciar com a "futurologia" de Adjiedj Bakas e Minne Buwalda, que, por conhecerem demais o mundo atual, em todas as suas nuances políticas, econômicas e espirituais, têm uma capacidade quase sobrenatural de prever as tendências (e megatendências) futuras da religião mundial...

Com vocês, o futuro:

O futuro de Deus apresenta sete tendências principais que vão influenciar a nossa vida religiosa e espiritual. Dentre elas estão a tendência à individualização da religião e um cenário multiforme; novas ortodoxias e politização da religião; comercialização da religião e a midiatização de Deus; tendência à ascensão do Deus Verde; a combinação de doutrinas e rituais religiosos de forma pacífica; desenvolvimento de uma consciência mais elevada; nações multiculturais formadas por imigrantes, como os Estados Unidos e o Brasil, que liderarão a renovação da religião com, por exemplo, o surgimento de crenças sincréticas, entre outras tendências analisadas globalmente pelos autores. Publicado no Brasil por A Girafa.


Marcadores: , , , , , , , , ,

Intoxicados, parte 2

« continuando da parte 1

Parece cocaína, mas é só tristeza... Muitos temores nascem do cansaço e da solidão; Descompasso, desperdício – herdeiros são agora da virtude que perdemos... (Legião Urbana)

A guerra dos 50 anos

Se você quer afastar seu filho, filha, ou algum familiar querido, ou amigo, das drogas, fará bem em começar por desiludi-los da lenda de que as drogas fazem sempre mal... Não é verdade, obviamente: se fosse assim, na primeira dose de cachaça um adolescente iria cuspir aquele terrível gosto amargo no chão e nunca mais pensaria em beber novamente. Porém, se esta fosse à regra, não haveriam bebidas alcoólicas sendo vendidas quase como água pelo mundo afora. Pode ser amargo no início, mas depois fica doce, e depois, se exagerarmos na dose, fica amargo de novo; Só que uma amargura muito mais triste – a amargura que anestesia a alma.

Outras drogas podem ser doces desde a primeira dose, gerando “grandes viagens psíquicas” que já chegaram até a inspirar alguns grandes artistas, contanto que sejam usadas com parcimônia – o que raramente é o caso. Você pode subir no pedestal da moralidade e avisar aos desavisados: “Tomem muito cuidado, pois o caminho das drogas é doce somente no início, depois provoca grande tristeza!” – Mas, devemos considerar que há alguns seres civilizados e cultos da pós-modernidade, assim como muitos miseráveis e oprimidos, que, de uma forma ou de outra, constataram que na vida só existe tristeza – Se pelo menos nas drogas conseguem um pouco de doçura aqui e ali, ainda estarão saindo no lucro... São essas tais máquinas tristes, com tendências suicidas, que não veem nenhum problema em se suicidar aos poucos, uma bala, uma cheirada, uma seringa de cada vez.

O vício em drogas produz verdadeiros zumbis psíquicos, incapazes de sentir quase nada de realmente profundo (ou seja, capaz de lhes tocar a alma) no transcorrer de sua fase viciada. Pode parecer terrível, mas ainda assim conseguem o que queriam desde o princípio: não sentir mais aquela melancolia, aquela angústia de terem de cuidar das próprias almas... Ainda que assim também se abstenham de sentir felicidade, está tudo bem: podem então “viajar” nas drogas, até que sua viagem pela vida, uma viagem que não veem muito sentido de ser, em todo caso, finalmente chegue ao fim.  

Porém, o mais incrível em toda essa história é o fato de que alguns dos maiores governos do mundo, influenciados ou não pelas grandes doutrinas religiosas, acreditem até hoje que a repressão é o melhor caminho para se resolver o problema, deixando o tratamento dos zumbis em (décimo) segundo plano, como que se eles fossem efetivamente zumbis, e não mais seres; Não mais pessoas em busca de alguma doçura real nessa vida; Não mais almas atormentadas, mas que podem ainda ser curadas.

A chamada lei seca total entrou em vigor nos EUA em 1920, promulgada durante o segundo mandato de Woodrow Wilson. Seu cumprimento foi amplamente burlado pelo contrabando e fabricação clandestina de bebidas alcoólicas. A lei seca foi abolida em 1933, já no primeiro mandato de Roosevelt. Permaneceu ativa por quase 14 anos... Enquanto esteve efetiva, veio contribuir para o aumento das fortunas de vários mafiosos, dos quais o mais conhecido é, sem dúvida, Al Capone. A sua revogação veio ajudar a débil recuperação econômica (devido ao “crash” da Bolsa em 1929), mas essencialmente contribuiu para o final do período de ouro da máfia norte-americana. Esta década e meia de proibição do álcool em uma sociedade capitalista – e que preza a liberdade – nos ensinou muito acerca da natureza humana, e de sua propensão para a ilegalidade e violência, se for o caso, para conseguir chegar aos seus objetos de desejo ou, pelo menos, aos seus anestesiadores de almas...

No Corão (5:91) é dito que “Satã apenas deseja suscitar a inimizade e o ódio entre vós com intoxicantes e jogo, e impedir-vos de lembrardes de Alá e da prece. Sendo assim, não ireis vos abster?”; Não chega a ser uma proibição cabal, mas uma espécie de aconselhamento... Mesmo assim, ainda que as bebidas alcoólicas tenham sido largamente consumidas no mundo islâmico (e principalmente no período de ouro do Islã, em Al-Andalus), ainda hoje há inúmeros países islâmicos que punem o tráfico de entorpecentes mais pesados, como cocaína e heroína, com a pena de morte. Aparentemente funciona: com a pena de morte em estados totalitários, o tráfico de drogas ilegais é quase nulo nos países do Islã. A questão é que não apenas os traficantes são punidos e perseguidos, mas também os usuários. Aqui está a solução: matar todos os zumbis (que, em todo caso, já buscam a morte)... E então estaremos supostamente seguindo o desejo de algum deus estranho. Para os islâmicos, parece ter resolvido, ou pelo menos enquanto mantém sua população sob o jugo totalitário de seus estados teocráticos. Até que venham as primaveras árabes.

Mas, estranho de se pensar, a grande diversão dos bares islâmicos é fumar narguilé enquanto conversamos com os amigos... Lá, na terra onde quase todos os entorpecentes são proibidos, fuma-se tabaco (e outras especiarias) com essa espécie de cachimbo d’água, à vontade... Então, talvez nem lá, nem lá a questão esteja totalmente resolvida. Hoje a ciência sabe que o tabaco é bem mais prejudicial à saúde do que, por exemplo, a cannabis, entretanto a cannabis é ilegal em quase todo mundo, e a grande fonte de renda dos traficantes de drogas ilegais, enquanto que o tabaco é perfeitamente aceito (com algumas ressalvas) em todo o mundo, inclusive no islâmico...

Segundo a AVAAZ, nos últimos 50 anos as políticas atuais de combate às drogas falharam em toda a América Latina, mas o debate público está estagnado no lodo do medo, da corrupção e da falta de informação. Todos, até o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, que é responsável por reforçar essa abordagem, concordam – organizar militares e polícia para queimar plantações de drogas em fazendas, caçar traficantes, e aprisionar pequenos traficantes e usuários – tem sido completamente improdutivo. E ao custo de muitas vidas humanas – do Brasil ao México, e aos Estados Unidos, o negócio ilegal de drogas está destruindo nossos países, enquanto as mortes por overdose continuam a subir.

Enquanto isso, países com uma política menos severa – como Suíça, Portugal, Holanda e Austrália – não assistiram à explosão no uso de drogas que os proponentes da guerra às drogas predisseram. Ao invés disso, eles assistiram à redução significativa em crimes relacionados a drogas, e são capazes de focar de modo direto na destruição de impérios criminosos.

Lobbies poderosos impedem o caminho da mudança, inclusive militares, polícias e departamentos prisionais cujos orçamentos estão em jogo. E políticos de toda nossa região temem ser abandonados por seus eleitores se apoiarem abordagens alternativas. Mas pesquisas de opinião mostram que cidadãos de todo o mundo sabem que a abordagem atual é uma catástrofe.

Parece complexo, mas pode ser simples como uma partida de futebol: em time que esta ganhando não se mexe, mas em time que está perdendo ou, no máximo, amargando um empate em 0 a 0 ou 1 a 1, devemos pensar em mudanças, nem que sejam provisórias, nem que sejam apenas para que ganhemos o primeiro jogo deste longo campeonato... Se pararmos de dar murro em prego nos próximos anos, a guerra de 50 anos do combate às drogas no mundo ocidental poderá ficar conhecida por nossa história como a primeira tentativa, mas que não deu certo, e nos levou as próximas. Mas, se não pararmos para reavaliar a situação, poderemos chegar a um século de guerra inútil, com máquinas tristes cada vez mais tristes, grandes cidades cada vez mais violentas, playboys cada vez mais alienados, e zumbis cada vez mais aterrorizantes... Para um filme de horror, não está nada mal.

Nós pedimos que vocês acabem com a guerra às drogas e o regime de proibição, e movam-se em direção a um sistema baseado em descriminalização, regulamentação, saúde pública e educação. Essa política de 50 anos falhou, abastece o crime organizado violento, devasta vidas e está custando bilhões. É hora de uma abordagem humana e efetiva (AVAAZ; Manifesto endereçado a ONU, que neste momento conta com quase 650mil assinaturas online).

» Na continuação – um passeio pelo Inferno.

***

» Veja também o post Intoxicados: o fim da guerra, que complementa esta parte da série.

Crédito da foto: Mauricio Abreu/JAI/Corbis

Marcadores: , , , , , , , , ,

Educação secular, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 101 a 104, e 134. Os comentários ao final são meus.

Na esfera secular, podemos ler os livros certos, porém frequentemente deixamos de fazer perguntas diretas a partir deles, declinando de propor questionamentos vulgares e neorreligiosos porque temos vergonha de admitir a verdadeira natureza de nossas necessidades interiores. Estamos inevitavelmente apaixonados pela ambiguidade, sem espírito crítico contra a doutrina modernista de que a grande arte não deveria ter conteúdo moral ou desejo de mudar seu público [1]. Nossa resistência a uma metodologia parabólica vem de um confuso desprazer por utilidade, didatismo e simplicidade, e de uma inquestionável suposição de que qualquer coisa que uma criança possa entender seja infantil por natureza [2].

No entanto, o cristianismo sustenta que, apesar das aparências externas, partes importantes de nós mantêm as estruturas mais básicas da primeira infância. Por conseguinte, da mesma maneira que as crianças, precisamos de assistência. Devemos ser alimentados, de modo lento e cuidadoso, com conhecimento, assim como a comida é cortada em pedacinhos para as crianças conseguirem mastigar. Qualquer coisa além de umas poucas lições em um dia nos esgotará indevidamente.

[...] As técnicas que a academia tanto teme – a ênfase na conexão entre ideias abstratas e nossa vida, a lúcida interpretação de textos, a preferência por sumários em detrimento de totalidades – sempre foram os métodos das religiões, que precisavam enfrentar, séculos antes da invenção da televisão, o desafio de apresentar ideias vívidas e pertinentes a plateias impacientes e distraídas. Elas sempre souberam que o maior perigo não era a simplificação excessiva de conceitos, mas a erosão do interesse e do apoio devido à incompreensão e à apatia. Reconheceram que a clareza preserva as ideias, em vez de as enfraquecer, pois cria uma base sobre a qual o trabalho intelectual de uma elite pode mais tarde se apoiar.

O cristianismo tinha confiança em que seus preceitos eram robustos o bastante para ser compreendidos em diversos níveis, que podiam ser apresentados na forma de xilogravuras toscas para o homem simples da paróquia ou discutidos em latim por teólogos na Universidade de Bolonha, e que cada repetição endossaria e reforçaria as outras [3].

No prefácio de uma compilação dos seus sermões, John Wesley explicou e defendeu sua adesão à simplicidade: “Planejo verdades simples para pessoas simples: portanto (...) abstenho-me de todas as especulações belas e filosóficas; de todas as argumentações complicadas e intrincadas; e, tanto quanto possível, até mesmo da exibição de conhecimento. Meu plano é (...) esquecer tudo o que já li na minha vida.” [4]

[...] Os maiores pregadores cristãos foram vulgares no melhor sentido. Ao mesmo tempo em que não abdicavam das suas aspirações à complexidade ou às percepções, desejavam ajudar aqueles que os ouviam. Em contraste, construímos um mundo intelectual cujas instituições mais celebradas raras vezes consentem em perguntar, quanto mais em responder, sobre as questões mais sérias da alma.

Para lidar com as incoerências da situação, poderíamos reformar nossas universidades e eliminar campos como história e literatura, que, no fim das contas, são categorias superficiais que, ainda que cubram um material valioso, em si mesmas não percorrem os temas que mais atormentam e atraem nossa alma [5].

As universidades redesenhadas do futuro recorreriam ao mesmo catálogo de cultura tratado por suas equivalentes tradicionais, promovendo o estudo de romances, histórias, peças e pinturas, mas ensinariam esse material visando a iluminar a vida dos estudantes, em vez de apenas estimulá-los a atingir objetivos acadêmicos. Anna Karenina e Madame Bovary seriam, desse modo, alocados em um curso sobre as tensões do casamento, e não em um outro, focado em tendências narrativas na ficção do séculos XIX, da mesma maneira que as recomendações de Epicuro e Sêneca apareceriam no currículo de um curso sobre morrer, e não em uma pesquisa acerca da filosofia helenística.

Seria exigido que os departamentos confrontassem diretamente as áreas mais problemáticas de nossa vida. Ideias de assistência e transformação, que hoje pairam de maneira fantasmagórica sobre discursos em cerimônias de formatura [6], ganhariam forma e seriam explorados em instituições locais com a mesma abertura com que são nas igrejas. Haveria aulas sobre, entre outros tópicos, estar sozinho, reavaliar o trabalho, melhoras as relações com as crianças, reconectar-se à natureza e enfrentar doenças. Uma universidade interessada nas verdadeiras responsabilidades dos artefatos culturais dentro de uma era secular estabeleceria um Departamento de Relacionamentos, um Instituto de Morrer e um Centro para o Autoconhecimento [7].

[...] Muitos dos métodos das religiões, embora distantes das concepções contemporâneas de educação, deveriam ser considerados essenciais a qualquer plano para transmitir ideias, sejam elas teológicas ou seculares, de modo mais eficaz a nossa mente porosa. Essas técnicas merecem ser estudadas e adotadas, a fim de que tenhamos, no tempo que nos resta, uma chance de cometer pelo menos um ou dois erros a menos que a geração anterior.

***

[1] Paradoxalmente, conforme Tolstói já dizia, “todos pensam em mudar a humanidade, mas quão poucos pensam em mudar a si próprios”. E, além de não pensarem em mudar a si próprios, os “modernistas” ainda condenam quem sugira qualquer mudança “aos outros”. Entretanto, continuam esperançosos em “mudar a humanidade”, sabe-se lá como ou quando.

[2] Este é sem dúvida o livro mais original de Alain; Neste parágrafo encontram-se resumidos tantos conceitos que merecem uma avaliação mais cuidadosa, principalmente no trecho final, que eu recomendaria que o lessem e relessem...

[3] Aqui Alain está sendo otimista demais com a questão da “interpretação em vários níveis”. Se com isso quer dizer que tal evangelização em vários níveis ocasionou apenas o crescimento da Igreja, tem até razão. Mas se quer dizer que a essência dos textos bíblicos foi compreendida corretamente – ou seja, como metáforas em vários níveis de interpretação – pela maioria dos ditos cristãos, obviamente está equivocado.

[4] O ateu secular intelectual pode estar se indagando se isso não seria “infantilizar o conhecimento” (no contexto do primeiro parágrafo), mas aí é que se engana – simplificar não é “infantilizar”, e muitas vezes nossa educação é falha em supor que todos estamos perfeitamente familiarizados com, por exemplo, questões científicas. Em sua lendária série de TV Cosmos, Carl Sagan nos deu um belo exemplo de simplificação da ciência, da filosofia, e até da mitologia e religião, sem, no entanto, “infantilizar” nada: a isso também chamamos divulgação científica.

[5] Não se assustem: ele está propondo que eliminemos as aulas de história e literatura, e passemos a estudá-las de verdade: através de algo mais próximo dos sermões, das questões da alma.

[6] Ou, nem tão fantasmagórica assim, neste discurso de Steve Jobs. Aliás, Jobs, que nunca se graduou, provavelmente seria um assíduo estudante em um Curso de Caligrafia e Design Aplicado a Existência.

[7] Alain está aqui indo muito a frente de nosso tempo. Provavelmente morreremos sem ver a Academia aderindo a sermões, mas me parece inevitável que isso venha a ocorrer lá na frente, após o fim de todas as primaveras árabes e capitalistas... Nesse meio tempo, entretanto, talvez fosse uma boa reflexão para as pequenas igrejas, centros espíritas e terreiros (etc.): não poderíamos ajustar nossa linguagem, de modo a não necessariamente exigir que alguém creia em Deus, ou espíritos, para que possa assistir a nossas palestras e, por que não, participar efetivamente de nossas atividades de caridade? Humanos, todos nós somos humanos!

***

Crédito da foto: Divulgação (Ed. Intrínseca - Noite de palestra e autógrafos do autor, na Livraria Cultura do Shop. Fashion Mall, no Rio de Janeiro, em 24/11/11)

Marcadores: , , , , , , , ,

24.11.11

Educação secular, parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 95 a 100. A introdução e os comentários ao final são meus.

Introdução
Neste livro provocativo (e muito corajoso), Alain, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Neste trecho em específico ele faz uma comparação entre a atual educação secular, e a educação cristã...

***

Temos familiaridade suficiente com as principais categorias das humanidades, da maneira como são entendidas nas universidades seculares – história, antropologia, literatura e filosofia –, assim como com os tipos de perguntas que aparecem nos exames: Quem foram os carolíngios? Onde surgiu a fenomenologia? O que Emerson queria? Sabemos também que esse esquema deixa os aspectos emocionais de nossas personalidades para se desenvolverem espontaneamente, ou no mínimo de maneira privada, talvez quando estivermos como nossas famílias ou em solitárias caminhadas pelo campo [1].

Em contraste, o cristianismo se ocupa desde o início com nosso lado interior e confuso, declarando que nenhum de nós nasce sabendo como viver; somos, por natureza, frágeis e caprichosos, sem empatia e atormentados por fantasias de onipotência, estando a uma distância enorme da capacidade de reunir até mesmo uma fração do bom senso e da calma que a educação secular toma como ponto de partida para sua pedagogia [2].

O cristianismo está focado em ajudar uma parte de nós que a linguagem secular tem dificuldade até mesmo em nomear, que não é exatamente a inteligência ou a emoção, nem o caráter ou a personalidade, mas outra entidade, ainda mais abstrata, ligada a todas essas de maneira imprecisa e diferenciada delas por uma dimensão ética e transcendental adicional – e à qual podemos nos referir, seguindo a terminologia cristã, como alma. Tem sido a tarefa essencial da máquina pedagógica cristã cultivar, tranquilizar, confortar e guiar nossas almas.

Ao longo da história, o cristianismo se dedicou a longos debates acerca da natureza da alma, especulando como poderia ser sua aparência, onde se localizaria e a melhor forma de educá-la. Na sua origem, os teólogos acreditavam que ela se assemelhava a um bebê em miniatura inserido por Deus na boca de uma criança no momento do nascimento. Na outra extremidade da vida do indivíduo, a hora da morte, o bebê-alma seria, então, expelido pela boca. [...] Uma boa alma era aquela que conseguira encontrar respostas apropriadas para as grandes questões e tensões da existência, uma alma marcada por virtudes pias, como fé, esperança, caridade e amor.

Por mais que possamos discordar da visão do cristianismo com relação àquilo de que nossa alma necessita, é difícil invalidar a provocativa tese subjacente, que não parece ser menos relevante no domínio secular que no religioso – a tese de que temos em nós um núcleo precioso, infantil e vulnerável, que deveríamos nutrir e cuidar ao longo de sua turbulenta jornada pela vida [3].

Por seus próprios padrões, o cristianismo, portanto, não tem escolha senão colocar sua ênfase educacional em questões explícitas: Como podemos viver juntos? Como toleramos os defeitos dos outros? Como aceitar nossas próprias limitações e amainar a raiva? Um grau de didatismo zeloso é mais uma exigência que um insulto. A diferença entre a educação cristã e a secular se revela com particular clareza nos respectivos métodos característicos de instrução: a educação secular fornece aulas, o cristianismo, sermões.

Em termos de intenção, poderíamos dizer que uma se preocupa em transmitir informação, a outra, em mudar nossa vida. Pela própria natureza, os sermões assumem que seus ouvintes estão perdidos, de alguma maneira importante. Os títulos dos sermões de um dos mais famosos pregadores da Inglaterra do século XVIII, John Wesley, já mostram o cristianismo procurando oferecer conselhos práticos a respeito de uma série de desafios comuns da alma: “Sobre seu gentil”, “Sobre manter-se obediente aos pais”, “Sobre visitar os enfermos”, “Sobre a cautela com a intolerância”. Por mais que seja improvável que os sermões de Wesley seduzam ateus por meio de seus conteúdos, eles tiveram sucesso, assim como um bom número de textos cristãos, em categorizar o conhecimento sob títulos úteis.

Ao passo que, a princípio, Matthew Arnold, John Stuart Mill e outros tinham a esperança de que as universidades pudessem fornecer sermões seculares que nos informassem como evitar a intolerância e como encontrar coisas valiosas a dizer ao visitarmos pessoas doentes, esses centros de aprendizado nunca ofereceram o tipo de orientação no qual as igrejas se focaram, a partir de uma crença de que a academia não deveria fazer quaisquer associações entre obras culturais e sofrimentos individuais [4].

Seria uma afronta chocante à etiqueta universitária perguntar o que um livro de literatura [não religiosa] poderia nos ensinar de útil sobre o amor, ou sugerir que os romances de Henry James possam ser lidos como parábolas sobre se manter honesto em um escorregadio mundo mercantil. Contudo, a busca por parábolas é exatamente o que se encontra no núcleo da abordagem dos textos cristãos.

O próprio Wesley era um homem profundamente erudito [...] Ele possuía um grande conhecimento textual de Levítico e Mateus, Coríntios e Lucas, mas citava versos desses apenas quando podiam ser integrados em uma estrutura parabólica e usados para aliviar as tribulações de seus ouvintes. Assim como todos os pregadores cristãos, ele via a cultura principalmente como um instrumento, observando quais regras gerais de conduta cada passagem bíblica poderia exemplificar e promover.

» Na continuação, o Dpto. de Relacionamentos, o Instituto de Morrer e o Centro para o Autoconhecimento :)

***

[1] Em entrevista num programa brasileiro, o médico Patch Adams (que é ateu), diz que costuma perguntar as pessoas que encontra: “Qual é sua estratégia de amor para a vida?”. Dentre jornalistas, médicos, cientistas, etc., normalmente ninguém sabe responder...

[2] É que não somos exatamente máquinas que se auto educam pelo mero registro e computação de informações sobre o mundo. No fundo, todos sabemos que somos seres que interpretam informações e têm sentimentos específicos sobre o mundo, que precisam ser encarados, expostos, analisados, “apaziguados”, etc. Embora qualquer educador secular provavelmente já saiba disso, ele raramente saberá como ensinar nesse formato. E, assim então, tudo permanece como está – até que venha a primavera.

[3] Você pode estar agora se perguntando se de Botton é realmente ateu. Sem dúvida: ele chega a dizer que cresceu com a certeza de que Deus não existia. A questão é que de Botton é um grande filósofo e, talvez mesmo por conta disso, um ateu sem preconceitos com as coisas “irracionais”.

[4] Arnold e Mill foram defensores dos objetivos da educação após o Iluminismo. Segundo Arnold a universidade era “um lar para o que melhor foi dito e pensado no mundo”. Para Mill, “o propósito das universidades não é produzir advogados, médicos ou engenheiros competentes. É criar seres humanos capazes e cultos”. E, voltando a Arnold, uma educação cultural deveria inspirar em nós “um amor pelo vizinho, um desejo de acabar com a confusão humana e diminuir sua miséria”. Infelizmente, até hoje a educação secular está algo distante desses objetivos essenciais.

***

Crédito da imagem: Hulton-Deutsch Collection/Corbis

Marcadores: , , , , , , , ,

23.11.11

Que é, afinal, a vida?

Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.

[Raph] Em sua origem na pré-história, há enorme evidência de que as crenças religiosas antigas compreendiam a natureza como uma espécie de “teia viva”, onde cada elemento natural era animado por algum espírito. Com o advento das doutrinas monoteístas, tais crenças foram reprimidas, e houve época em que se acreditou que escravos e animais não tinham alma...

Também na ciência, o que “anima” a matéria é um mistério. O astrobiólogo Chris Impey (citando a microbiologista Lynn Margulis) diz que “certamente ir de uma bactéria a um chimpanzé é um passo menor do que ir de uma mistura de aminoácidos a uma bactéria” [1]. A vida parece desafiar a entropia universal, mas ao mesmo tempo sabemos que somos também formados por elementos inanimados, forjados em estrelas distantes.

Essa sem dúvida não é uma questão fácil: que é, afinal, a vida?

[Mori] Bem, levou menos de um bilhão de anos desde a formação do planeta para que surgisse vida em sua superfície, na forma das células mais simples. Passaram-se quase 3 bilhões de anos para que essas células ficassem mais complexas e formassem o primeiro organismo multicelular. É algo difícil de compreender, mas foi à parte mais longa da jornada da vida na Terra. Mais longa do que o caminho dos aminoácidos à primeira célula, e mais longa do que o caminho das bactérias até o chimpanzé.

A analogia mais poderosa – e provocadora – que eu poderia oferecer aqui é à própria vida de Jesus segundo o evangelho. Damos muita importância ao seu nascimento, bem como à sua trajetória depois que começou a pregar seus ensinamentos, já adulto, já como uma forma de vida multicelular desenvolvida. Porém a maior parte da vida de Jesus, cronologicamente, é algo como a maior parte da duração da vida na Terra. Não se passou em seu surgimento ou na sua espantosa evolução de bactérias a chimpanzés. Foi bilhão, bilhão, e mais um bilhão de anos como formas de vida muito simples evoluindo muito lentamente.

Então, sim, a distância de um chimpanzé a uma bactéria é um tanto menor do que a de uma bactéria, eucariota, a uma sopa de aminoácidos, mas nosso entendimento científico hoje fornece uma perspectiva inusitada. Vida simples, como a que surgiu em um piscar astronômico de tempo na Terra, pode ser muito comum por todo o Universo. O “mistério” do surgimento da vida pode ser em verdade um caminho natural da físico-química. O lampejo do aminoácido à célula se acende rápido. Vida elementar pode ser ubíqua pela Galáxia. Porém o monte improvável dessa vida simples até organismos multicelulares seria extremamente difícil de escalar, ainda que uma vez vencido, leve então a uma explosão de diversidade e complexidade biológica que possa levar, inclusive, a macacos que vislumbrem todo este processo.

No que eu deva parecer me desviar da pergunta principal e ater-me a detalhes, mas veja, aqui está uma das belezas da ciência. Dos detalhes observados e comprovados no mundo que nos cerca, do conhecimento direto do mundo natural, podemos extrair visões que dificilmente atingiríamos pela mera filosofia. A partir destes detalhes constatamos um aparente paradoxo profundo, pelo qual a maior dificuldade não é nem que a vida surja, nem que evolua de uma simples bactéria a um cientista que estude bactérias, mas que dê o salto de uma célula simples a um simples grupo de células com membranas.

Parece menos misterioso, e mais relacionado à entropia, probabilidades e seleção natural, não? Pois essa é a perspectiva factual que a ciência pode oferecer sobre a vida. E uma provisória, claro, sempre aberta a novas descobertas.

Mas afinal, o que é a vida? Dificilmente encontraremos muitos biólogos dedicando suas vidas em busca da definição última do que seja a vida. Trabalham sim com definições utilitárias, úteis dentro de seu campo, e que possam ser deixadas de lado tão pronto se altere o contexto da pesquisa. Não se confunde o mapa com o território, o mapa é apenas uma ferramenta para conhecer o território.

Há um vasto território a se conhecer sobre a vida, muitas surpresas mais antes que possamos nos atrever a definir de uma vez por todas o que é, afinal, a vida. E a ciência não é, por certo, a única forma de explorar o que é, afinal, a vida. Não apenas pareço me desviar da pergunta principal, ela é mesmo difícil e eu realmente não posso respondê-la, afinal. Só espero que o desvio tenha valido a pena.

[Del Debbio] O maior problema em se definir “Vida” é que, para o Hermetismo, a vida não é um objeto ou substância, mas sim um processo contínuo.

A definição mais aceita de vida na biologia, segundo Paul Davidson (How to Define Life, University of Alabama), é que vida é definida por qualquer ser que apresente os seguintes fenômenos: Homeostase (regulação do ambiente interno para manter um estado constante); Organização (ser composto de células); Metabolismo (a transformação de energia em ingredientes essenciais para a sobrevivência das células); Crescimento; Adaptação; Resposta a Estímulos e Reprodução.

Para os Hermetistas, esta definição pode ser estendida também para Pensamentos e Emoções. Pensamentos (e emoções) nascem; crescem; desenvolvem-se; regulam-se para que continuem existindo; organizam-se em idéias, vontades e Egrégoras; utiliza-se de energia dos hospedeiros (as mentes); mutam; adaptam-se e eventualmente definham e morrem, seguindo as mesmas regras definidas pelas leis da Evolução de Darwin, apenas mais sutis.

O biólogo Richard Dawkins chamou estas unidades de Memes em seu trabalho de 1976, O Gene Egoísta. Um Meme é considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros ou armazenado na internet). No que diz respeito à sua funcionalidade, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma se autopropagar. Os memes podem ser idéias ou partes de idéias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autônoma. Foi o mais próximo que a ciência chegou do estudo das Egrégoras até agora.

Mesmo que o espiritualismo aceite a definição de vida como todo o processo de evolução, dentro ou fora dos corpos físicos, utilizamos o nome “Consciência” para isto, então foge um pouco do escopo específico da pergunta e me fixarei apenas na resposta para a palavra Vita (vital, em latim).

Na Kabbalah, a consciência vital está representada na letra Alef, que conecta simbolicamente as Esferas de Kether e Hochma e representa o “Sopro de Deus” (sem nenhuma conotação sobrenatural; apenas a essência, seja ela qual for, que anima cada ser vivente em particular) e o corpo que esta consciência habita está representado pela letra Beit, que conecta simbolicamente Kether e Binah e representa o “Templo de Deus”.

Quando realizamos nossa Verdadeira Vontade, diz-se que “o Sopro Divino habita o Templo do Ser” (quando nos tornamos pessoas éticas, verdadeiras e honradas, vivendo para um propósito construtivo), então, a partir daí, nos tornamos Alef e a letra Beit passa a representar o templo onde habitamos (nossa casa, nossa escola, nosso trabalho). Quando realizamos nosso dom e modificamos nossa casa, tornando-a um exemplo, a Casa torna-se Alef e a comunidade passa a ser Beit (o espírito da vontade inserido em um novo corpo, em um âmbito maior), e assim, sucessivamente, até que toda a humanidade se torne ética, nobre e honrada, tornando-se Alef, quando o “Templo Sagrado” será o próprio Planeta, modificado para melhor. Nesse simbolismo, podemos considerar o planeta como algo “que tem vida”.

Das letras Alef e Beit temos a origem do termo Alfa-Beta (alfabeto) que forma o conjunto de símbolos que cria e molda nosso entendimento da realidade, ou seja, o corpo total das idéias e pensamentos do Universo (ou memes, se preferir).


» Ver todos os posts desta série


***

[1] Em O universo vivo (Ed. Larousse). Gostaria também de homenagear a memória de Lynn Margulis com este post. De muitas formas, além da própria citação, ela tem a ver com esta série: casou-se ainda jovem com Carl Sagan, e teve com ele Dorian Sagan, que também é divulgador de ciência. Lynn também defendia ideias "fora da caixa" na ciência, e chegou por exemplo a defender a hipótese Gaia, que considera a própria Terra um ser vivo (o que o Del Debbio chega a citar, dentro do ocultismo, em sua resposta acima). Mas, talvez o mais supreendente é que Lynn faleceu ontém, no mesmo dia em que o Mori enviou sua resposta e me lembrou que o trecho do livro de Impey era baseado em uma citação dela. Vida, morte, e tudo se renova... Mas, citando um grande sujeito (e acho que pelo menos aqui todos iremos concordar): "viver na memória daqueles que nos amam, é viver para além da morte".

Crédito da imagem: Frans Lanting/Corbis

Marcadores: , , , , , , , , ,

22.11.11

Intoxicados, parte 1

Droga é toda e qualquer substância, natural ou sintética, que quando introduzida no organismo, modifica suas funções de forma considerável; Particularmente alterações nos sentidos, no caso dos entorpecentes.

Um drama persistente

Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) é um romance de Johann Wolfgang von Goethe. Marco inicial do romantismo, considerado por muitos como uma obra-prima da literatura mundial, é uma das primeiras obras do autor, de tom autobiográfico. Werther – o protagonista – é marcado por uma paixão profunda e tempestuosa, marcada pelo fim trágico. Com seu suicídio, devido ao amor aparentemente não correspondido, Goethe põe um pouco de sua vida na obra, pois ele também vivera um amor não correspondido, apesar de, evidentemente, não ter cometido o ato de se matar. Em todo caso, tão profundamente descrito foi o drama e o suicídio do jovem Werther, que nos anos seguintes a publicação, diversas pessoas se mataram de forma semelhante na Alemanha e, em vários casos, um exemplar do livro era encontrado ao lado do corpo.

É sempre complexo lidar com os momentos em que a vida simplesmente parece não se desenrolar da maneira que esperávamos, que gostaríamos, particularmente nos casos de sentimentos não correspondidos. Sem dúvida que, quando éramos caçadores nômades, tais angústias provavelmente sequer tinham espaço em nossa mente: era preciso sobreviver, não havia muito tempo para refletir sobre a vida... Estranho de se pensar: foi exatamente quanto nos assentamos em grandes e luxuosas cidades, quando tínhamos comida fresca na geladeira e acesso fácil ao conhecimento elaborado da natureza, que passamos a nos angustiar com a vida. Será que a vida foi feita para vivermos sem exatamente pensarmos sobre ela?

Paradoxalmente, ao termos tempo de sobra para refletir sobre nossa própria vida, por vezes acabamos por, ao invés de celebrá-la e aproveitar o tempo livre para viver, criar uma enorme dramaturgia que insiste em tornar tudo cinza e melancólico, ao nos reafirmar que, ao contrário do que pensávamos, a vida não transcorre sempre da maneira que gostaríamos... Se é assim, vale a pena viver? A grande ironia é que o “mal do século”, a depressão, quase que sempre se caracteriza por um medo persistente da morte. Então, por nos angustiarmos com a vida, principalmente por temer a morte, acabamos por deixar de aproveitar este precioso momento do existir. Então, parafraseando o Dalai Lama, vivemos como se não fôssemos morrer, mas com grande medo da morte, e por fim morremos como se não houvéssemos sequer vivido, pois que foi uma vida de medo.

A primeira causa de morte por atos de violência no mundo não são os acidentes de trânsito, os homicídios nem os conflitos armados, mas o suicídio. Esse dado desconcertante foi revelado em 2002, numa reunião da Organização Mundial de Saúde (OMS) em Bruxelas. Ao lê-las (aparentemente pela primeira vez) para os convidados da cerimônia, o então primeiro-ministro da Bélgica, Guy Verhofstadt, não conteve o susto e, quebrando o protocolo, indagou incrédulo: “É isso mesmo?”. Sim, é isso mesmo, a pós-modernidade tem nos relegado esta herança macabra, em que uns optam por findar sua dramaturgia encerrando a própria vida, enquanto outros optam por viverem como se nem mesmo estivessem por aqui...

Ao longo do tempo, muitos encontraram refúgio dessa angústia na anestesia da própria alma... A lista das substâncias que deveriam vencer as depressões, mas que sempre ajudaram apenas alguns afetados, é muito longa. No decorrer dos séculos, os médicos testaram quase tudo o que influenciava o cérebro de alguma forma. O ópio já era considerado na antiga China um meio eficaz contra as doenças do ânimo. O “tratamento com ópio” devia curar a melancolia, mas devido ao seu enorme risco de vício, ao longo dos séculos as pessoas desistiram da droga (mas nem todas), sendo que ela há muito deixou de ser compreendida como um remédio para a angústia.

Em 1802, um médico londrino recomendava um pesado Borgonha contra a melancolia. A cannabis e a cocaína também eram comumente utilizadas no século 19 como medicamento. Nos anos 50, entraram em voga as anfetaminas estimulantes. Em 1953, causou sensação uma notícia que dizia que o medicamento utilizado para tuberculose, a iproniazida, também tinha efeito antidepressivo. Alguns anos mais tarde, porém, ele foi tirado do mercado, pois pode causar graves efeitos colaterais no organismo. De lá para cá, entretanto, temos observado uma grande corrida da indústria farmacêutica mundial em busca de antidepressivos cada vez mais eficazes e com menos efeitos colaterais... Ou, pelo menos, é o que o grande mercado da melancolia gostaria que vocês acreditassem.

Em 2008, o psicólogo Irving Kirsch, da universidade britânica de Hull, examinou os documentos americanos da autorização de quatro novos depressivos. Os produtos, aparentemente ajudavam apenas pacientes com depressão grave. À primeira vista, parecia que as substâncias mitigavam os sintomas da patologia independentemente de sua gravidade. Ora, formas mais amenas de melancolia costumam regredir naturalmente após certo tempo. Essas “curas espontâneas” são tanto mais comuns quanto mais leves forem os estados depressivos. Nos estudos de Kirsch comprovou-se que nos estágios de depressão leve, faz pouquíssima diferença se os pacientes usaram antidepressivos ou placebo (por exemplo, pílulas de farinha). Somente em depressões mais sérias a diferença estatística entre o preparado e o placebo se torna realmente relevante.

Não quero aqui, obviamente, dizer que depressivos devem deixar de se medicar. Muito pelo contrário, estou, como Kirsch, enaltecendo que os remédios são de grande auxílio, contanto que o paciente esteja efetivamente depressivo... A indústria farmacêutica é, ironicamente, junto com a indústria do comércio ilegal de drogas, um dos grandes mercados mundiais, provavelmente com as taxas de lucro mais elevadas – ao lado da indústria de armamentos. Estamos, pois, vivendo na era do culto ao lucro, capitaneada pelo deus do consumo. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o seu grande profeta, o deus da tarja-preta, surja como o grande agente de barganhas por todas as partes do mundo capitalista.

É fácil compreender: se as indústrias deixam de visar apenas o auxílio à cura efetiva, e passam a dar prioridade às margens de lucro, me parece óbvio que seja cada vez mais comum às pessoas serem diagnosticadas apressadamente como depressivas. E, igualmente compreensível, que cada vez mais remédios antidepressivos sejam facilmente recomendados, mesmo nos casos em que não têm eficácia muito distante de uma pílula de farinha... Cada vez mais, o tratamento psicoterápico, tão essencial, é relegado a uma mera medição mecânica onde supostamente se mede um estado de tristeza e se receita antidepressivos X ou Y como tratamento. Cada vez mais, somos que tratados como máquinas complexas que, por alguma estranha razão, estão preferindo se anestesiar a encarar a própria melancolia, e viverem como se não estivessem mais aqui... Para o deus tarja-preta, no entanto, tudo está perfeitamente bem, contanto que não se matem, contanto que não parem de comprar suas maravilhosas “pílulas de felicidade comprimida”.

Mas, as estatísticas da OMS não mentem: não tem dado certo. As máquinas tristes continuam se matando, continuam preferindo se desligar a enfrentar o drama persistente da vida... Talvez fosse a hora de voltarmos a uma medicina de vida, e não de anestesia da vida. A um entendimento de que somos, afinal, seres, e não máquinas, por mais que isso contrarie o materialismo em voga. No fim, o que parece nos salvar da angústia do mundo é algo que sempre esteve dentro de nós mesmos, mas que em nossa dramaturgia encenada cuidadosamente para que continuássemos a buscar algo lá fora, e não aqui dentro, acabamos por ignorar, e a viver como se não tivéssemos uma alma para tomar conta.

Tomar conta de uma alma é uma grande responsabilidade. Requer a compreensão dos eventos da vida que podemos mudar e, sobretudo, daqueles que não podemos. Requer o olhar para si mesmo, e encarar de frente os momentos de tristeza... Não como o jovem Werther, que apostou toda a sua felicidade, toda a sua vida, no sentimento de outro alguém, mas como todo ser que está em via de desenvolvimento, e de lenta aquisição de sabedoria, e que aposta toda a sua vida na própria vida, na existência em si, neste divino momento, e apenas nele.

Há outros, porém, que foram ainda mais iludidos: que aprenderam a se entorpecer, e se tornarem insensíveis para a melancolia, ainda antes que ela viesse...

» Na continuação – o grande dilema do combate às drogas: reprimir ou tratar?

***

Bibliografia
As informações científicas e estatísticas do artigo foram retiradas dos artigos Antidepressivos são mesmo eficazes?, pelo psicólogo e jornalista Jochen Paulus, que foi matéria de capa da revista Scientific American – Mente & Cérebro #226 (Duetto); e Escalada do suicídio, pela jornalista científica Luciana Christante, autora do blog Efeito Adverso.

***

Crédito da imagem: Corbis

Marcadores: , , , , , , , ,

19.11.11

Egito perdido, Egito reencontrado

Texto de Rose-Marie e Rainer Hagen em "Egipto: Pessoas – Deuses – Faraós” (Ed. Taschen [Portugal]), tradução de Maria da Graça Crespo – Trechos das pgs. 218 a 221. Os comentários ao final são meus.

O incêndio da biblioteca de Alexandria teria destruído 700.000 documentos referentes à civilização faraônica; aí se encontrava, entre outros, o único exemplar completo da lista dos reis, redigido pelo sacerdote Manétho. Considera-se que esta catástrofe pôs termo ao legado do Antigo Egito, ainda que dela se ignore a data precisa. Em 48 a.C., quando César mandou incendiar os seus arsenais, ter-se-ia propagado o fogo ao célebre templo-biblioteca? Teria sido em 391, quando o imperador romano Teodósis I, querendo impor o cristianismo como religião oficial, mandou saquear os templos pagãos? Segundo uma terceira visão, os manuscritos – ou o que deles restava – foram queimados por ordem do califa Omar.

Talvez que a biblioteca tenha sido por três vezes presa das chamas. Os manuscritos são material tão combustível que não é difícil admiti-lo. Mas nada proíbe considerar também que este incêndio tenha sido mais fictício que real [1]. As gerações seguintes se recusaram a aceitar o fim de uma grande e misteriosa tradição que [...] havia se arrastado através dos séculos.

Com efeito, as ideias religiosas dos Antigos Egípcios estavam em vias de desaparecer, e a expansão agressiva do cristianismo, e depois do Islã, aceleraram este processo. No Antigo Egito, a vida espiritual estava ligada ao templo. Assim que o clero deixou de ser legitimado ou mantido pelos soberanos locais ou pela população, a base material desapareceu.

Os sacerdotes desapareceram e o conhecimento dos hieróglifos e de outras escritas egípcias extinguiram-se com eles [2]. Foi o declínio da religião, e não as chamas, a causa do termo deste universo.

Uma herança misteriosa
Na Itália, particularmente em Roma, o culto de Ísis, originário do Egito, popularizou-se durante muito tempo, e os monumentos egípcios continuaram a fascinar os viajantes. [...] O imperador Augusto, no ano de 10 a.C., mandou que pela primeira vez se transportasse um obelisco para Roma, que hoje se encontra na Piazza de Popolo. Ergue-se em frente a São Pedro, e a cruz que lhe ornamenta o cimo assinala, de longe, que o cristianismo domina todas as outras religiões, ainda que podendo considerar-se outra interpretação, visto que os ensinamentos cristãos se apoiam na sabedoria egípcia: numerosas imagens e histórias bíblicas são provenientes do Nilo [3].

Os Egípcios pensavam que Deus tinha formado o homem com barro, concepção esta que se encontra no Antigo Testamento. O inferno cristão lembra o submundo egípcio, com os perigos e os castigos que espreitam os defuntos, e os faraós subiram ao céu anteriormente a Cristo [4]. O príncipe da Ressurreição era bem conhecido dos Egípcios, graças ao exemplo de Osíris despedaçado, cujos bocados foram reunidos por Isís, a grande Mãe, tal como Maria, venerada pelos católicos. As similaridades na concepção de Deus são notáveis: o Cristo, cordeiro pascal; a pomba do Espírito Santo correspondente à tradição egípcia, segundo o que os deuses se oferecem sob a forma animal. Quanto à Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo – toda ela é simples e tipicamente egípcia – as divindades manifestam-se sob diferentes formas, são conteúdo de uma e de outra e reagrupam-se preferencialmente em tríades [5].

Os Egípcios já contavam histórias que nos parecem inseparáveis da Natividade bíblica, como por exemplo a deusa Ísis, que prestes a ser mãe, procura um albergue, e, rejeitada por várias grandes damas, deu à luz ao seu filho no pobre abrigo de uma filha de lameiros. Ou como a de Quéops, que, como Herodes, quis mandar matar três dos seus filhos porque uma predição anunciou que eles se disputariam. No que diz respeito aos símbolos visuais, a cruz copta, a dos cristãos egípcios, é descendente direta da cruz alada, a chave da vida dos Egípcios [6].

Seria possível prosseguir indefinidamente por esta via. Estes exemplos não questionam a essência dos ensinamentos cristãos, mas abalam a concepção da Igreja, segundo a qual os textos bíblicos teriam sido, por assim dizer, ditados por Deus. Os historiadores da região sabem desde há muito que nesses textos se encontra algo do legado egípcio, e sem que os crentes tenham consciência disso, as ideias herdadas da civilização faraônica mantêm-se vivas.

A Terra negra
Os Egípcios também inventaram o calendário, dividindo o dia em 24 horas e o ano em 365 dias. Resolveram alguns problemas matemáticos e redigiram listas de doenças com as respectivas terapias. Os seus conhecimentos foram transmitidos e evoluíram por intermédio dos Gregos e dos Romanos. Mas o seu ideal de equidade e retidão, exemplar no plano da vida social, é pelo menos igualmente importante. Maât simboliza a justiça à qual todos os homens estão sujeitos – particularmente os reis – e ensina que a justiça deve ser exercida independentemente do poder. Na Europa, a deusa continua a existir sob os traços da Justiça. Nas democracias ocidentais a justiça é devida, a par do governo e do parlamento, como a terceira potência independente no centro do Estado.

Os Egípcios mostraram-nos o caminho de uma outra herança do Egito faraônico que é a alquimia que visa entre outros objetivos, fabricar o elixir da imortalidade. Este desejo de imortalidade explica a concepção egípcia da preservação do corpo defunto, que será reanimado pela alma no Além.

Vários símbolos da alquimia são também egípcios: a serpente ouroboros que morde a cauda simboliza a eternidade, e a fênix que renasce das próprias cinzas representa a ressurreição. Alexandria foi considerada o berço da alquimia. Seu pai era o deus Hermes Trimegisto, que se identifica com Toth, deus egípcio da Sabedoria e da Escrita, aquele que guia as almas no submundo. A química, tal como nós a consideramos, desenvolveu-se a partir das experiências e das técnicas dos alquimistas. Aliás, o seu nome evoca a sua origem. Kemet significa em egípcio arcaico, Terra negra; Kemet é lodo negro dos campos do Nilo, e o nome que seus habitantes deram ao Egito [7].

***

Comentários
Este livro que faz parte das comemorações de 25 anos da Taschen (1980-2005) foi concebido para ser um belo livro de arte repleto de fotos espetaculares da arte e arquitetura egípcias, mas o estilo do texto dos autores combinado com sua minuciosa pesquisa história, particularmente sobre detalhes da vida cotidiana dos Egípcios (o que bebiam, o que comiam, para quem rezavam, etc.), fez com que acabasse se tornando ao mesmo tempo um surpreendente conjunto de belos textos e imagens.

[1] Independente do legado faraônico ter ou não sido extinto por conta da destruição da grande biblioteca, fato é que sua destruição ocorreu (mesmo que em vários incêndios em separado), e que com ela se perderam grandes escritos não só dos egípcios, como dos gregos – por exemplo, Aristarco de Samos já previa na época que os planetas giravam em torno do Sol, a perda de sua obra atrasou em muito o desenvolvimento da astronomia.

[2] Somente em 1822 o jovem e genial linguista francês Jean-François Champollion decifrou a escrita em hieróglifos a partir de comparação com um mesmo texto em grego, na famosa Pedra de Roseta. Estava então fundada a egiptologia. Segundo alguns reencarnacionistas de renome, Champollion fora ele próprio um sacerdote egípcio em vidas passadas...

[3] Como ficará bem demonstrado no texto que se segue, em realidade as guerras religiosas conseguem que uma igreja seja vitoriosa sobre um território (e isso, obviamente, quase nada tem a ver com religião), mas raramente os mitos antigos são suprimidos, na verdade são incorporados as novas doutrinas dominantes, sem jamais desaparecer por completo. Considerar que o cristianismo se baseia numa doutrina que teoricamente condena o paganismo é de uma ironia monumental...

[4] A grande diferença entre o Hades e o Inferno, é que no primeiro os sofrimentos são proporcionais aos pecados, enquanto que no último ladrões de galinha e assassinos aparentemente sofrem igualmente a mesma punição (algo como queimar eternamente num lago de fogo, sem jamais perecer).

[5] Aqui foram citados Osíris e Ísis, que geram um filho: Hórus. No hinduísmo temos a trindade de Brahma, Vishnu e Shiva. Em mitologias antigas pelo mundo todo veremos diversos agrupamentos parecidos.

[6] É de uma infelicidade tremenda que sejamos obrigados a ver a chave da vida manchada pelo sangue de um grande sábio ainda crucificado nela própria. E mais triste ainda vermos a glorificação dessa imagem de sofrimento.

[7] E eis que mesmo na mitologia sagrada, tanto quanto na alquimia e na química, nada se perde, mas tudo se renova e se transforma.

***

Crédito das imagens: [topo] Corbis Art (escultura do deus Osíris); [ao longo] Kenneth Garrett/National Geographic Society/Corbis

Marcadores: , , , , , , , , , , , ,

Links Mayhem (34)

O Projeto Mayhem foi criado em Março de 2010 como centro de debates e discussões sobre temas Ocultistas e Herméticos. Agora, toda semana, os participantes do projeto divulgam os links mais interessantes para artigos nos blogs de outros participantes.

Especial colunistas do Portal Teoria da Conspiração (posts de 10/11):

***

» Veja todos os posts sobre o Projeto Mayhem

Marcadores: ,

18.11.11

Musa

Quando meus olhos encontraram os teus
Na estrada eterna da lembrança
Eu não sabia teu nome
Ainda assim teus sonhos fizeram-se meus
Que pude ver o brilho distinto de tua alma
E assim, uma vez mais, ter esperança

Ao te buscar pelos campos etéreos
Segui teu perfume como a abelha ao mel
Até te ver assim, a banhar-se no rio, nua

Era preciso ter cuidado ao me aproximar
Esvair-me todo num único orgasmo seria um fel
Quis delongar-me, observar-te daqui
Onde cada brisa me traz parte de ti
E me ensina a te amar

Não se trata de um amor platônico
Mas de amor sentido, boquiaberto, espantado
Amor de verdade, enfim
Amor atônito

Hoje posso tocar-lhe a face, delicadamente
E deitar minha alma em teu pescoço
E adormecer para a amargura do mundo

Ainda não sei teu nome
Oh bela inefável...
Mas quero introduzir-me um dia em ti
E gerar muitos rebentos
E cada um deles nada mais será
Que uma preciosa ideia de amor
Inominável

raph'11

***

Crédito da imagem: Escultura de Paige Bradley

Marcadores: , , , ,

17.11.11

O que é Deus?

Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes, não deixe de ler sobre a premissa da série.

[Raph] Tanto na ciência quanto na religião, a humanidade têm se deparado com conceitos que lhes são transcendentes. Tantas foram às interpretações dos deuses ou das leis naturais, que às vezes parece que cada indivíduo tem sua própria visão deles. O que seria então, para você, o conceito de Deus ou de Cosmos?

[Mori] O Cosmos é tudo aquilo que há, para emprestar a definição de um grande sujeito que falou sobre ele na TV. Etimologicamente o conceito ainda carrega a ideia de ordem e harmonia, desde a Grécia Antiga. Acreditar no Cosmos é assim simplesmente aceitar sua definição englobando todo o Universo; e comprovar ordem e harmonia no mundo talvez só requeira uma olhada no céu noturno com estrelas nascendo e se pondo em uma regularidade que transcende a Humanidade, percebida mesmo por nossos ancestrais mais distantes.

Seria tentador e muito politicamente correto igualar este conceito de Cosmos a Deus, de fato o “Deus de Spinoza” a que Albert Einstein se referiu é muito próximo da ideia de Cosmos de que falamos aqui. O que é um pouco menos conhecido é que o Deus de Spinoza não é apenas mais um tipo de Deus, mas um tipo de Deus definido para rejeitar outros deuses, em particular o tipo de Deus mais popular pelo mundo, o Deus providencial das escrituras. Quando Einstein diz acreditar no Deus de Spinoza, ele não está se incluindo na turma das pessoas que acreditam em Deus, ele está se excluindo.

É preciso questionar conceitos tão abrangentes e flexíveis que acabam perdendo todo seu valor. Uma das primeiras coisas que o ser humano fez no Jardim do Éden, de acordo com a fábula, foi dar nomes aos animais, para diferenciá-los. Carl Sagan, em “Os Dragões do Éden”, interpretou esta fábula como refletindo a importância da linguagem, e é irônico que no pós-modernismo exista essa ideia de que todo significado seja relativo, promovendo um ecumenismo que é em verdade aquilo que George Orwell advertiu com o horror da Novilíngua.

A transcendência que a ciência natural busca, por exemplo, não é a mesma transcendência buscada pela religião – são em verdade conceitos mutuamente exclusivos. A transcendência religiosa está por definição além daquela perscrutável pela ciência natural, que sempre estará limitada por aquilo que possa ser comprovado e observado no mundo que nos cerca. Na religião, se acredita em algo porque é absurdo, do contrário se estará apenas constatando algo. São palavras iguais, mas com usos e definições muito diferentes. Forçar o entendimento de conceitos mesmo contraditórios como parte de uma única ideia é mesmo parte do Duplipensar de Orwell, o ponto cego onde o raciocínio pode ser extinto.

Um ecumenismo politicamente correto onde “todos acreditam em deus de sua própria forma” é um uso político e totalitário da linguagem. Não, quem acredita no deus das escrituras não pode, ao mesmo tempo, considerar que aquele que acredita em Shiva também acredita em deus, ou que aquele físico que diz acreditar no deus de Spinoza também seja teísta. São crenças explicitamente contraditórias.

A verdadeira tolerância é reconhecer estas contradições e respeitar o direito que cada um tem a suas próprias crenças – e descrenças. O Cosmos em que acredito, a ordem e harmonia no mundo que vejo e comprovo, não é deus. É um conceito que se afirma tanto em si mesmo, quanto pela exclusão de outras ideias, que conheço, mas não compartilho com outras pessoas quem, todavia, respeito.

Eu sou ateu.

[Del Debbio] Para os Hermetistas e Cabalistas, Deus é o Universo. A soma de tudo.

Nada de velhinhos barbudos preocupados com o que você faz com a sua genitália; nada de seres relampejantes ou divindades com múltiplos braços, mas a soma de tudo o que pode ser compreendido dentro deste Universo: galáxias, sóis, planetas, continentes, países, estados, cidades, comunidades, casas e, finalmente, cada indivíduo, que passa a ser o deus criador de suas próprias idéias e de todas as ações conscientes, em um fractal infinito de possibilidades.

Para os hermetistas, “Deus” se divide primordialmente em Sabedoria e Entendimento: duas partes que interagem entre si.

Os antigos chineses chamavam estas partes de Yin e Yang; os gregos de Ordem e Caos; os nórdicos de Gelo e Fogo; os católicos de Anjos e Demônios e os cientistas chamam de Física/Matemática e Evolução. Os Cabalistas chamam estas Esferas de Hochma e Binah.

Hochma (a Evolução, Caos, Yang, Fogo, mutação, o Esperma) é compreendida pelos cabalistas como “Sabedoria” porque está associada à idéia de que a sabedoria vem de descobrir algo novo que não estava lá antes.

Como Deus se manifesta de maneira fractalizada, este conceito pode ser aplicado desde as regras de evolução de Darwin até os memeplexes de Dawkins; pode ser aplicado desde as mutações genéticas que desenvolveram toda a miríade de seres vivos diferentes no planeta (uma mutação faz com que algo novo surja dentro da repetição genética) até as variações físicas responsáveis pela gama de estrelas diferentes no universo e a maneira como as formas das galáxias evoluem dependendo da região do cosmos onde estejam. E pode ser aplicada também a uma criança de dois anos que aprende pela primeira vez uma palavra nova.

Binah (As regras, Ordem, Yin, Gelo, o Imutável, o Óvulo) é compreendida pelos cabalistas como “Entendimento” porque está associada à idéia de que somente entendemos o mundo através do processo científico, de escolha, teste e repetição controlados. Binah é a matemática, a física teórica, as regras rígidas e imutáveis que guiam nosso universo e nos permitem “prever” acontecimentos pela certeza de sua repetição (se nada for alterado). Binah é a escolha de UM universo para trabalharmos. Em outros universos, as regras são outras (em outras cabeças, outras idéias)...

A título de curiosidade, a intersecção simbólica entre estas duas Esferas, Hochma e Binah, é feita através da letra “Daleth” que quer dizer “Porta” (a porta de entrada de um universo maior/Hochma para um universo menor/Binah – do deserto para sua cabana, por exemplo) e representa a própria natureza (o Arcano da Imperatriz no tarot). A partir daí, quando Olhamos para cima, temos Kether (“Deus”), quando olhamos para baixo, temos Daath (“Conhecimento”).

Desta maneira, o conceito de “Deus” para os hermetistas depende da escala que você quer trabalhar. O Universo é Deus, mas eu também sou Deus, e o ato de escolher e preparar o meu jantar hoje de noite é Deus; e isso independe de qualquer crença ou descrença.

O problema começa quando as pessoas tentam compreender o que é esta grandiosidade de sensações e experiências através do artifício da antropomorfização (dar forma humana a fenômenos naturais) para tentar explicar o que não pode ser mensurável.

A partir deste momento, a definição e imagem de “Deus” varia de acordo com fatores culturais, temporais, artísticos e espaciais: africanos entendiam esta dicotomia Ordem/Caos como Xangô/Iansã e associavam isto à Montanha (imutável) e à tempestade (caótica), Babilônicos tinham Ea (céu azul e limpo) e Lillith (a tempestade), Egípcios tinham Maat (A Justiça) e Ptah (O escriba de todas as possibilidades), Gregos tinham Ouranos e Nix, Nórdicos tinham Ymir (gigante do gelo) e Surtur (gigante do fogo), católicos têm Adão (deu nome para todas as coisas vivas) e Eva (comeu o fruto da árvore proibida e fez com que fossem expulsos do Paraíso), hindus tem Vishnu e Shiva, os thelemitas têm Therion e Babalon... Dezenas de mitos diferentes; mesmas idéias.

O GRANDE problema acontece quando pessoas resolvem transformar Símbolos em Deuses Literais (que, sendo literais, permitem “crença” ou “descrença”) e os manipulam para impor e manter seus poderes econômicos e políticos sobre a população... Mas isto é uma outra história.


» Ver todos os posts desta série


***

Crédito da foto: APOD (NGC 7822 em Cepheus)

Marcadores: , , , , , , , , , , , , , , ,