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29.12.12

Um podcast para reflexão

No último podcast Conversa entre Adeptus de 2012 (*), o primeiro após o fim do mundo, fui o convidado especial e falei sobre meu blog Textos para Reflexão; assim como sobre Espinosa, Deus, mitologia, sexo, morte e amor, não necessariamente nesta ordem. Uma boa oportunidade para refletir neste início de mundo. Clique na imagem abaixo para acessar a primeira parte da conversa:

» Na segunda e última parte, continuamos falando sobre o amor (ao final, eu recito uma de minhas poesias)


(*) Agradecimentos aos Adeptus: Emerson, Danda e PH; e também a excelente edição de Élder Bernardi, com Beatles e Sigur Rós ao fundo :)

***

Artigos citados e/ou complementares a conversa:

» Frescobol cósmico

» Reflexões sobre o nada

» Maldito Benedito

» A roda dos deuses

» O sexo e a morte

» 4 amores

» Filhos de neandertais

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24.12.12

Os anjos de Swedenborg

Texto de Jorge Luis Borges em "O livro dos seres imaginários” (Ed. Cia. das Letras) – trechos das pgs. 16 e 17. Tradução de Heloisa Jahn.

Durante os últimos vinte e cinco anos de sua estudiosa vida, o eminente homem de ciência e filósofo Emanuel Swedenborg (1688-1772) fixou sua residência em Londres. Como os ingleses são taciturnos, adquiriu o hábito cotidiano de conversar com demônios e anjos. O Senhor lhe permitiu que visitasse as regiões ultraterrenas e trocasse ideias com seus habitantes. Cristo havia dito que as almas, para entrar no céu, devem ser justas; Swedenborg acrescentou que deveriam ser inteligentes; Blake estipularia depois que fossem artísticas. Os anjos de Swedenborg são as almas que escolheram o céu.

Podem prescindir de palavras; basta que um anjo pense em outro para tê-lo junto de si. Duas pessoas que se amaram na Terra formam um só anjo. Seu mundo é governado pelo amor; cada anjo é um céu. Sua forma é a de um ser humano perfeito; a do céu também é. Os anjos podem olhar para o norte, o sul, o leste e o oeste; sempre verão a Deus frente a frente. São antes de mais nada teólogos; seu maior deleite é a prece e a discussão dos problemas espirituais. As coisas da Terra são símbolos das coisas do céu. O Sol corresponde à divindade. No céu não existe o tempo; as aparências das coisas mudam segundo os estados de ânimo. Os trajes dos anjos resplandecem de acordo com sua inteligência.

No céu os ricos continuam sendo mais ricos que os pobres, já que estão acostumados à riqueza. No céu, os objetos, os móveis e as cidades são mais concretos e complexos que os da nossa Terra; as cores, mais variadas e vívidas. Os anjos de origem inglesa têm propensão à política; os judeus, ao comércio de joias; os alemães andam com livros que consultam antes de responder. Como os muçulmanos estão acostumados à veneração de Maomé, Deus lhes propiciou um anjo que finge ser o Profeta. Os pobres de espírito e os ascetas estão excluídos dos gozos do paraíso porque não os compreenderiam.


Se aqueles que vos guiam vos disserem: vê, o Reino está no céu, então os pássaros vos precederão. Se vos disserem: ele está no mar, então os peixes vos precederão. Mas o reino está dentro de vós e está fora de vós. Se vos reconhecerdes, então sereis reconhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo. Mas se vos não reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a pobreza (O Evangelho de Tomé, versículo 3).

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Crédito da imagem: Ole Graf/Corbis

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21.12.12

Um adendo ao fim do tempo

Em Maio de 2011 publiquei no blog a série Reflexões sobre o tempo, e na última parte, O fim do tempo, falei sobre o apocalipse dos rapanui, povo da ilha da Páscoa, famoso por seus gigantes de pedra, os moais.

Para meu comentário acerca do fim da cultura rapanui, me baseei num artigo chamado As testemunhas de pedra, que havia sido publicado numa especial da revista Superinteressante sobre o fim do mundo. Aquele artigo trazia a versão mais aceita, até hoje, acerca do que ocorreu aos rapanui. Segundo esta versão, resumidamente, a construção dos moais se tornou cada vez mais dispendiosa, pois cada um dos clãs da ilha desejava mostrar para o outro que era capaz de construir o moai mais alto e pesado. Ainda segundo esta versão, para transportar seus gigantes de rocha vulcânica, os rapanui empregavam trilhos, trenós e alavancas de madeira. Ora, esta madeira era extraída da própria ilha, e precisamente isto teria sido a razão principal do colapso ecológico de Páscoa: extração predatória excessiva da madeira, para construção de monumentos religiosos, até o ponto onde a natureza não podia mais se regenerar.

Esta versão é particularmente atraente num mundo acadêmico com tendências seculares e ecológicas, por duas razões principais: (a) Demonstra como um disputa religiosa entre clãs rivais levou ao colapso de um povo (Moral da história: religião é veneno!); e (b) Demonstra como a extração predatória de árvores levou ao colapso ecológico do meio ambiente da ilha (Moral da história: Desmatar nos levará a extinção!). Mas será que esta versão, apesar de ser de longe a mais conhecida e aceita, corresponde a história real do que ocorreu em Páscoa?

O que sabemos, ou melhor, não sabemos, acerca dos rapanui, se deve precisamente ao fato de a colonização européia haver terminado de extinguir uma cultura já decadente. A única coisa que sabemos com boa dose de convicção é que quem terminou de extinguir os rapanui foram as doenças e "evangelização" europeias. Não sobrou um registro escrito do povo rapanui, tudo que sabemos sobre eles vem do estudo dos vestígios deixados em Páscoa: os moais e outras pequenas esculturas religiosas (como os moais kavakava, que mostravam seres com olheiras profundas e costelas sempre a mostra, características de um povo que passava fome, que foram talhados já na fase decadente dos rapanui).

Na metade de 2012, a National geographic lançou um programa especial sobre os moais de Páscoa, trazendo uma teoria, relativamente convincente, que demonstra que os moais podem ter "caminhado" até o local onde hoje se encontram sem o uso de madeira, mas apenas de cordas presas as suas cabeças, e uma engenhosa brincadeira de "puxa puxa" realizada por algumas dúzias de rapanui musculosos. Embora não necessariamente esta teoria de transporte dos moais dê conta de como foram transportados os moais maiores [1], ela lança luz a possibilidade de que não fora a extração de madeira, afinal, que ocasionou o colapso ecológico da ilha.

Mais para o final do ano de 2012, uma outra reportagem sobre o apocalipse rapanui, com embasamento científico bem maior, foi publicada na Scientific American. Em O colapso dos rapanui, Terry L. Hunt demonstra como análises mais profundas dos vestígios da fauna e flora de Páscoa revelam que a causa do apocalipse pode muito bem ter sido algo antes impensável - uma explosão demográfica descontrolada de roedores:

Durante milhares de anos, a maior parte de Páscoa esteve coberta de palmeiras. Registros de pólen mostram que a Jubaea se estabeleceu lá há pelo menos 35 mil anos e sobreviveu a várias mudanças climáticas e ambientais. Mas, na época em que Roggeveen chegou, em 1722, a maior parte da floresta havia desaparecido. Não se trata de uma observação nova o fato de que virtualmente todas as cascas de sementes de palmeira encontradas em cavernas ou escavações arqueológicas de Páscoa mostram sinais de terem sido roídas por ratos, mas o impacto desses ratos no destino da ilha pode ter sido subestimado. Evidências de outros locais no Pacífico revelam que com freqüência esses animais contribuíram para o desmatamento, e eles podem muito bem ter tido um papel importante na degradação ambiental da ilha dos rapanui.

Ora, na posse dessas informações, podemos considerar que: (a) Não necessariamente o homem é a causa direta de desastres ambientais, pois muitas vezes são outras espécies, quando vivem sem preadores por perto e podem se procriar aceleradamente, as causadoras dos desastres. Entretanto, os ratos não chegaram em Páscoa nadando, vieram em navios e barcos humanos. Isso demonstra o quanto o estudo sistemático da natureza é tão importante quanto a ecologia e sustentabilidade: há, certamente, muita coisa que ainda não sabemos; e, finalmente (b) Não necessariamente houve alguma disputa religiosa entre os clãs rapanui. Não necessariamente a religião é veneno. O veneno está na ignorância, e na falta de religiosidade, mas não na religião.

Isto tudo invalida minha crítica as disputas religiosas feitas no artigo? Em relação ao exemplo dos rapanui, certamente (devemos desculpas aos sacerdotes de Páscoa); Já em relação as disputas religiosas que vemos pelo mundo afora, não - neste caso, a crítica continua válida. Se em Páscoa o que ocorreu foi apenas um colapso ecológico que, provavelmente, tenha sido atribuído pelos sacerdotes rapanui a alguma "punição divina" (enquanto a culpa pode ter sido dos ratos), em muitas outras partes do mundo, e da história humana, o que vemos são "guerras santas", e gente matando em nome de algum deus estranho, e outros anunciando um fim do mundo sempre iminente, talvez por ansiarem chegar nalgum céu de ociosidade eterna, para fazer "sabe-se lá o que"... Enfim, pelo que nós, espiritualistas, sabemos, o problema não é necessariamente a religião, mas o dogma, o pensamento represado, incapaz de ver os ratos que devoram nossa própria alma, nos afastando de Deus. O Deus que existe em nossa mente, e por toda a natureza a volta, e por tudo o que há.

***

[1] A National geographic fez demonstrações de transporte de moais pequenos, mas grande parte dos moais é bem maior. Muitos não sabem, por exemplo, que boa parte de seus "corpos" está enterrada abaixo da terra, e que vemos somente a parte superior das esculturas (ver imagem que ilustra este artigo).

Obs: Agradeço a quem me enviou o link do artigo da Scientific American nos comentários da série de artigos sobre o tempo, quando esta foi publicada no Portal TdC (quem enviou pediu para o comentário não ser publicado).

Crédito da imagem: Anônimo/Desconhecido (moais da ilha de Páscoa)

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18.12.12

Amor químico

A ocitocina é um hormônio produzido pelo hipotálamo e armazenado na hipófise posterior (ambos partes do cérebro humano), e tem a função de promover as contrações musculares uterinas durante o parto e a ejeção do leite durante a amamentação. Segundo Paul Zak, um economista americano que estuda a ocitocina através de ferramentas de scanning cerebral, ela também está intimamente ligada a empatia, de modo que, quando alguém possuí ocitocina em níveis elevados, tende a se comportar de modo mais altruísta e amoroso. Zak a chamou de "a molécula do amor", mas alerta que é muito melhor produzi-la naturalmente do que, quem sabe nalgum dia, tomar algum "comprimido de amor". Um abraço é mais do que suficiente para aumentar a ocitocina, contanto que seja verdadeiro, contanto que haja empatia envolvida. Neste TED Talk, Zak fala mais sobre o assunto:

De fato, conhecermos os processos cerebrais envolvidos com a sensação, a experiência do amor, não necessariamente nos diz muita coisa acerca do amor. Se o amor for apenas uma "regulação hormonal", poderíamos compará-lo a um combustível que faz com que um dado automóvel possa se locomover... Mas nenhuma analogia científica e racional parece dar conta da complexidade envolvida no amor. Afinal, se o amor é um combustível, ele é um combustível especial: que, quanto mais é utilizado, mais potente se torna. Com um litro somos capazes de dar a volta ao mundo, contanto que continuemos a ter a coragem de manter o pé no acelerador. O amor é um combustível que não termina nunca - sendo assim, será possível que possamos "nos abastecer de amor", como quem se abastece de vitamina C?

Nesta animação a seguir, projeto final de Nadav Nachmany para sua faculdade de artes e design, temos uma visão um tanto quanto sombria de como pode ser a vida de alguém "viciado em pílulas de amor", em amor químico... Dá o que pensar:

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Crédito da imagem: Tim Pannell/Corbis

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16.12.12

Redenção

Era um anjo
E, como anjo, havia sido criado
Assim perfeito: angelical

Mesmo corrompido
Caído no mal
Era perfeito...
Perfeitamente oposto a Deus
Perfeitamente em queda
Não importa:
Tudo isso são apenas palavras

Fato é que era um anjo
Do qual dizem os mitos:
Rebelou-se por inveja da humanidade!

Ocorre-me agora que, talvez,
Não invejasse o amor
Com que Deus ama o homem
Mas sim a imperfeição
A sublime imperfeição humana

Que os homens e mulheres
Não surgiram do nada
Já perfeitos
Evoluíram, enfim, como seres
Não como anjos
Não como autômatos programados
Para uma perfeição alheia

Era, dessa forma, um anjo
Que buscou a corrupção
Como há homens
Que buscam a salvação

Porém, mesmo no andar mais baixo do inferno
Percebeu: jamais poderia navegar para fora de Deus
Pois que não há
Nunca houve
Nem haverá
“Fora de Deus”

Esta compreensão é, portanto, sua pena
Sua angústia infernal
Seu tormento mais profundo
E toda
Toda a redenção do mundo

Ó buscador:
Não há “a perfeição” ou “a salvação”
Há apenas este caminho perfeito
Por onde antigas rodas percorrem os velhos sulcos

raph’12

***

Crédito da imagem: Google Image Search (capa de um livro sueco chamado Fallen angel)

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12.12.12

12.12.12

Para qualquer espiritualista dedicado, o fim do mundo, seja quando for, tem tanta relevância quanto uma noite de sono. Todos os dias nos despedimos deste mundo, viajamos brevemente por outro e, se for o caso deste mundo continuar existindo, retornamos: é manhã, e os raios de sol são novos, diferentes dos da manhã anterior. Todos os dias este mundo, e todas as substâncias, se renovam.

Se termina um calendário (Maia ou ainda mais antigo), o que isto significa é que um outro calendário se inicia. O que um calendário marca é um ciclo, e ciclos se renovam ad infinitum. Não é culpa dos Maias todo este pânico do fim dos tempos... Isto sempre existiu, e sempre interessou a certos grupos sua divulgação. Dizem que nos EUA a "indústria do apocalipse", por exemplo, já é um negócio relevante para o PIB de certas regiões.

Mas mesmo entre os espiritualistas que compreendem que o mundo se renova, e que um novo mundo só se inicia após a morte do antigo (assim como os dias e noites), há certos equívocos incompatíveis com reflexões um pouco mais aprofundadas...

Muitos esperam por "portais" de renovação espiritual, como se fossem pílulas de vitamina para "uma evolução espiritual instantânea" - é o fastfood da alma. Dizem que um portal se abriu, ou abrirá, hoje, 12/12/12. E daí?

Jesus já dizia, no Evangelho de Tomé, que o Reino de Deus se encontra espalhado pela Terra, mas os homens não o percebem... Todos os cantos para onde queira olhar, queira ouvir, queira sentir: todos são portais para um conhecimento que sempre esteve dentro de sua própria alma. Basta abrir o portal da alma. O Éden não foi nem será, é. Se não fosse assim, se Deus já não estivesse nos encharcando por todos os lados, de que outra forma seria?

É como dizia Tolstói, "muitos pensam em mudar o mundo, poucos pensam em mudar a si mesmos"... Todos querem ser santos, iluminados, atravessadores de portais, profetas do apocalipse. Muitos se encaminham para fora. Muitos desistiram deste mundo e anseiam pelo fim. Muitos esperam a nave mãe de alguma raça alienígena, ou que algum novo Noé apareça e os aceite em sua arca... Mas, eu lhes pergunto: e quem quer ficar? Quem quer mudar a si mesmo, e assim, um pensamento de cada vez, mudar este mundo?

Nossa mente pode nos fazer um ser iluminado, ou uma fera. Se queremos fazer deste mundo um céu, é aqui e agora que o caminho começa. Os portais sempre estiveram abertos, para aqueles que tem olhos para ver, e vontade para seguir neste caminho.

E, se for loucura seguir caminhando sem saber exatamente onde a estrada vai desaguar, não importa: faça desta loucura uma luz!

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Crédito da imagem: Divulgação (Itsukushima Shrine)

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11.12.12

Questões infernais

A palavra inferno, que hoje conhecemos, origina-se da palavra latina pré-cristã inferus, que significava "lugares baixos"; foi dela que surgiu o termo infernus. Na Bíblia latina, a palavra é usada para representar o termo hebraico Seol e os termos gregos Hades e Geena, sem distinção. A maioria das traduções ao português seguem o latim, e elas não fazem distinção do original hebraico ou grego.

Geena, do grego, se refere a um lago de fogo. Já o Seol hebraico e o grego Hades parecem se referir a uma mesma ideia, muito anterior à própria Bíblia: um reino dos mortos (que ficava abaixo da terra, daí a conexão com infernus).

Segundo a mitologia grega, os deuses olímpicos saíram vitoriosos da batalha travada contra os titãs (a titanomaquia), e Zeus, Poseidon e Hades partilharam entre si o universo; Zeus ficou com os céus, Poseidon ficou com os oceanos e Hades ficou com o mundo dos mortos, que leva o nome deste deus (além disso, todos eles partilharam a terra igualmente, daí a ideia de que poderiam influenciar os vivos).

A influência de Hades no reino dos vivos é quase que estritamente negativa e maléfica, vinculada à pragas, doenças, destruições e guerras, mas também é tida como influência de desafios, afinal nas tradições antigas, para seguirem o "caminho do herói", testes e provações físicas e psicológicas eram necessárias... Da mesma forma, o reino de Hades, o reino dos mortos, não é um conceito que poderia ser associado somente ao que o cristianismo passou a compreender por inferno.

No Hades as almas eram julgadas por três juízes [1], com responsabilidades específicas: Minos tinha o voto decisivo; Éaco julgava as almas europeias; e Radamanto julgava as almas asiáticas. Nem mesmo Hades interferia no julgamento deles, a não ser em raras ocasiões. Este tipo de julgamento moral se assemelha a concepção cristã do julgamento do final dos tempos, mas o que ocorre com as almas boas? Elas saem do Hades?

Aí é que está: não saem, pois o próprio Hades é um reino com o seu céu e o seu inferno. O céu é conhecido na mitologia grega como Campos Elíseos; o inferno, como Tártaro. Ambos ficam no reino dos mortos, no Hades. Dessa forma, apesar de a mitologia bíblica haver bebido da fonte da mitologia antiga, há algumas contradições importantes... O exegeta bíblico poderá dizer que o cristianismo é uma espécie de refinamento das ideias pagãs anteriores, mas será que isto se sustenta?

Por “refinamento”, quero dizer “interpretação mais espiritualmente aprofundada”. Porém, ocorre que, apesar de tanto a mitologia bíblica quanto a grega concordarem que os mortos são julgados pelas suas obras, o julgamento do deus bíblico me parece mais autoritário e implacável. Dependendo da interpretação, mesmo um ladrão de galinhas pode ser condenado ao inferno. Outro problema é a gradação de penas: na mitologia bíblica, o ladrão de galinhas e o assassino parecem destinados a receber a mesma pena (arder eternamente num lago de fogo); na mitologia pagã, pelo contrário, as penas são dadas de acordo com as faltas, como ocorre num tribunal de justiça terrena. Eu, sinceramente, não vejo refinamento algum nesta exegese bíblica.

Há, em todo caso, uma primeira questão infernal que se aplica ao inferno bíblico: Os bons, aqueles que chegarão ao céu, não ficariam tristes por saber que boa parte de seus familiares e amigos estarão condenados a arder num lago de fogo por toda a eternidade?

Ora, segundo a mitologia grega, no Hades os julgamentos ocorrem após a morte, e não após um juízo final. Ainda assim, a questão persiste... Mas no caso pagão, há muitas interpretações alternativas que dizem que o condenado ao Tártaro pode eventualmente cumprir sua pena e assim se elevar aos Elíseos; Ainda outras teorias, mais antigas, simplesmente afirmam que após o cumprimento da pena no Tártaro o condenado estaria apto a reencarnar na terra. Enfim, no paganismo não haviam dogmas infalíveis, e os mitos eram constantemente reinterpretados.

Mas no mito bíblico nada disso ocorre. Há um julgamento final, e depois cada grupo irá para o seu canto, por toda a eternidade... Ora, de fato, ainda que o inferno cristão não fosse um local de sofrimento eterno, o simples fato de familiares e amigos serem separados pela eternidade inteira seria um motivo de sofrimento... Eterno?

Como se não bastasse esta, há uma segunda questão infernal ainda mais complexa. Segundo a bíblia, o governante do inferno é um anjo que, por haver se corrompido e escolhido o caminho do mal, tornou-se ele próprio o supremo representante do mal – o anjo caído. Eis a questão: Seria este anjo incapaz de arrepender-se, por toda a eternidade? Um anjo, quando cai, e se corrompe, não tem nenhuma, nenhuma oportunidade de se arrepender, de remediar sua situação? Haveria justiça divina nesta ideia?

Se não houvesse o livre-arbítrio, todos seríamos fantoches nas mãos de Deus. Portanto, é preciso a liberdade para que um ser exista enquanto ser, e não enquanto autômato [2]. Dessa forma, se o anjo caído, Lúcifer, não tiver a liberdade para decidir se arrepender, isto significa que ele é mero fantoche nas mãos do deus bíblico – o que equivale a dizer que tudo o que Lúcifer faz seria, no fundo, decidido pelo Mestre dos Fantoches. Eu não sei quanto a vocês, mas acho esta uma ideia absurda.

O exegeta bíblico poderá responder a tais questões infernais de forma superficial, quem sabe: (a) Ao chegar no céu, Deus apaga da memória dos escolhidos todas as lembranças daqueles que foram para o inferno, e dessa forma não sentirão saudades nem sofrerão pelo que ocorre a eles; e (b) Lúcifer simplesmente não se arrependeu, e talvez jamais se arrependa, por isso ainda existe o mal no mundo. Pois bem, vocês acham, honestamente, que tais respostas vagas resolvem essas questões?

Os pensadores contemporâneos têm concepções bem mais profundas e interessantes do mito do céu e inferno. Sejam cristãos, não cristãos, agnósticos, existencialistas, espiritualistas, estudiosos de mitologia, não importa muito, pois este é um mito que toca a humanidade inteira [3]: Não poderíamos interpretar o céu e o inferno como estados da consciência humana?

Seguindo esta bela reflexão, devemos considerar que cada um constrói o seu próprio céu e inferno em sua própria consciência. Portanto, aquele que encontrou Deus dentro de si [4], mesmo no deserto mais árido e seco, estará ainda num Oceano de Amor em sua própria consciência, dentro da alma, que carrega consigo para todo lugar.

E, assim, chegando neste céu, não titubeará nem por um segundo em descer ao inferno [5] para convidar quem lá está a se aventurar neste vasto Oceano. A questão, no entanto, é que apenas um convite não basta: é preciso mergulhar. Somente o ser em si poderá decidir por abandonar os dogmas antigos, e dar este verdadeiro salto de fé no desconhecido, na imensidão da própria alma... Então, quem sabe, alcance o céu. Então, quem sabe, seja salvo – salvo da ignorância.

Mergulhe suave. Os mensageiros orientam!

***

[1] Os juízes não são deuses e sim mortos que devido à sua forte personalidade e seu senso de justiça tornaram-se juízes. Em algumas versões Hades seria o presidente do tribunal dos mortos.

[2] Fôssemos criados “já perfeitos”, não somente não haveria mérito algum de nossa parte em “sermos perfeitos”, como na prática seríamos autômatos, robôs “programados para a perfeição” por algum deus estranho. Isto é, seja lá o que for esta “perfeição”...

[3] A concepção de alguns ditos cristãos que afirma que somente aqueles que aceitam Nosso Senhor Jesus Cristo serão salvos é tão absurda que nem a incluí neste artigo. Para início de conversa, isto seria condenar todos que viveram antes do Cristo, e todos que jamais ouviram falar do Cristo, automaticamente ao inferno. Isto dá um montão de inocentes condenados!

[4] Ou “o amor”, ou “a iluminação”, ou “a vida”, ou “o Cosmos”, ou “o Verdadeiro Eu”, etc.

[5] Como Sartre já disse: “o inferno são os outros”.

Crédito da imagem: John Springer Collection/CORBIS (cena do filme Dante's Inferno)

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10.12.12

Madiba!

Quando Nelson Rolihlahla Mandela chegou a Joanesburgo, aos 23 anos, não trazia muito mais do que a roupa do corpo e sua alma nobre, também por nascimento: Rolihlahla era da nobreza do clã dos Madiba, do povo Thembu, e veio ao mundo numa pequena aldeia do interior da África do Sul, onde se vivia do mesmo jeito há centenas de anos. Rolihlahla queria mudança, queria novos ares, queria conhecer o mundo e os seres a sua volta. No fim, foi à alma de Mandela que prevaleceu.

Foi ainda criança que ganhou seu primeiro nome, Nelson. Estudava numa escola primária com um único cômodo, teto de zinco e chão e terra. Uma de suas professoras seguiu o costume de dar nomes ingleses a todas as crianças de etnias locais que frequentavam a escola. Mandela não se importou: não havia nada de errado em usar um nome inglês, acreditou que aquilo serviria para facilitar seu convívio com eles...

Mas não foi o que viu na cidade grande. Tornou-se advogado e um dos líderes da juventude negra que protestava de forma não violenta contra o apartheid, um vergonhoso sistema oficial de segregação racial implementado pelo governo sul-africano, que veio a ser abolido somente muito tardiamente (se comparado com outros países onde havia segregação amparada pela lei), já em 1994. Como devem saber, Mandela foi vital neste processo.

No entanto, nada ocorre da noite para o dia, e concepções arraigadas em sociedades, particularmente nas elites dominantes das sociedades, demoram muito tempo para desaparecer. Na realidade, não fosse pela pressão do resto do mundo, Mandela dificilmente teria saído ainda vivo da cadeia onde passou 27 anos. Tampouco foi algum santo: caiu na tentação de descambar para uma espécie de guerrilha armada contra o apartheid, embora a princípio houvesse participado apenas em alguns planos terroristas de ataques com bombas a alvos não humanos, como antenas de rádio e TV, e torres transmissoras de energia elétrica. No fim, talvez a prisão o tenha salvado de haver morrido bem mais jovem, quem sabe com uma arma na mão...

Mas 27 anos tampouco passam da noite para o dia. Enquanto permaneceu enclausurado numa pequena cela, sem acesso a informações do mundo exterior, teve todo o tempo do mundo para avaliar qual seria a melhor forma de continuar em sua luta contra a segregação. Do lado de fora, por todos os cantos da África do Sul, a juventude negra, pobre em quase sua totalidade, continuava a se revoltar cada vez mais. Elegeram Winnie, então esposa de Mandela, como sua representante direta – “Madiba! Madiba!” era seu grito de guerra... Muitos morreram em conflitos com a polícia, mas Mandela continuava encarcerado, e a violência só aumentava.

Com o passar das décadas, o governo segregacionista começou a temer por sua própria segurança. No fundo, o apartheid foi implementado como forma de manter a cultura dos colonizadores europeus viva numa terra estranha, conquistada pela força das armas, e não da diplomacia. Agora, eles temiam não somente pelo fim de sua cultura, mas pelo fim de toda a sua sociedade, pois que sempre existiriam mais negros do que brancos naquela terra: eles viveram ali por muitos milhares de anos, os brancos eram recém-chegados.

Dizem que, mesmo preso, Mandela sempre manteve sua “aura” de nobreza. Uma nobreza antiga, tribal, ancestral, do tipo que nem mesmo décadas de prisão é capaz de apagar. Quando Mandela era escoltado para o pátio fora da cela, eram os guardas que seguiam seu ritmo de caminhada, e não o contrário. Uma vez, disse a um jornalista que o visitara por lá: “Bom dia, esta é a minha guarda pessoal”. O chefe carcerário confessou que seu maior medo era ter de dar a notícia ao governo de que Mandela havia falecido na prisão. Aquilo seria o fim da África do Sul, disto ninguém tinha dúvidas, ao menos entre os brancos...

Mas Mandela venceu pela força de sua alma, e sua habilidosa diplomacia. Através de anos de negociações diretas com os governantes do apartheid, inclusive tendo encontrado presidentes pessoalmente, em escoltas secretas para fora de sua prisão, um dia finalmente aconteceu: em 11 de fevereiro de 1990 Mandela é solto. Caminhou pela porta da frente da prisão, de mãos dadas com Winnie. Do lado de fora, não somente negros, como uma boa parcela de brancos, o saudavam entusiasmados. Aquela altura, Mandela era um cidadão do mundo.

Em 1994, Mandela é eleito presidente da África do Sul com 62% dos votos. Como seu vice-presidente, de Klerk, o último presidente do apartheid, e uma espécie de “garantia” de que Mandela não queria “usurpar o poder dos brancos”. Mas foi somente cerca de um ano depois de assumir a presidência, em 1995, já com quase 80 anos, que Mandela finalmente sacramenta sua missão...

No campeonato mundial de rúgbi de 1995, realizado na África do Sul, o time nacional tinha poucas chances de avançar na competição. O rúgbi era um esporte herdado da cultura branca, colonizadora, e nunca havia tido popularidade alguma entre os negros... Mas o time avançou, e Mandela viu ali uma oportunidade de ouro. Viu ali uma chance de, finalmente, promover uma união de culturas, algo que iria tornar a África do Sul uma nação de verdade, pois que toda a verdadeira nação é feita de irmãos, de cultura em comum.

Seu time chegou a final e, quando Madela entrou, uniformizado, para os saudar no estádio antes do início da partida, foi uma grande maioria branca que gritou nas arquibancadas: “Nelson! Nelson!” era seu grito de guerra... O time da África do Sul venceu aquele campeonato. Pelas ruas de boa parte do país, negros e brancos comemoravam. Não comemoravam juntos, quem sabe, mas este era apenas o início... O início de uma nova era. “Madiba” ou “Nelson”, tanto faz: ele cumpriu sua missão [1].

***

Morgan Freeman é um excelente e conhecido ator americano que se parece muito com Mandela fisicamente. Foi ele quem o representou no filme Invictus, que conta esta extraordinária história do campeonato mundial de rúgbi de 1995. Em entrevistas, Morgan é às vezes polêmico, por exemplo, ao defender que “o dia da consciência negra é uma ideia ridícula”. Segundo ele, não existe um dia da consciência branca, e, portanto, não faz sentido haver um dia reservado para a consciência negra. Para Morgan, todos os dias são dias da consciência: a consciência humana.

Polêmicas a parte [2], hoje sabemos, pela ciência, que não existem brancos e negros, ou índios e japoneses, etc. Todos temos o mesmo sangue e a mesma raça, o que varia são apenas pequenas características físicas que nunca seriam capazes de determinar que “esta raça tem alma, aquela não tem”, nem que “esta raça tem mais inteligência, aquela tem menos”. Também sabemos, por teorias científicas bastante contundentes, que o homo sapiens surgiu na África, que Adão e Eva habitaram alguma região selvagem do sul ou da região central deste continente, e que, portanto, todos somos os ancestrais das antigos tribos africanas.

No fim, todos somos da mesma tribo de Rolihlahla. Uma só tribo, um só mundo. É hora de compreendermos este fato, pois que não há mais muito tempo para essas brigas idiotas entre nós. A Natureza dá o alarme, os mensageiros orientam. Obrigado, Madiba, pela orientação. Obrigado por tudo!

***

[1] Recomendo o excelente documentário The long walk of Nelson Madela, sobre sua história de vida (infelizmente, apenas em inglês).

[2] É claro que aqueles que lutaram pela instauração de “dias da consciência negra” tinham a melhor das intenções. Mas fato é que, pela lógica, é estranho que exista um “dia da consciência” apenas para negros, e não para os demais seres humanos com outros níveis de melanina na pele. Tanto quanto é estranho que haja um “dia da mulher”, enquanto não existe um “dia do homem”, etc.

Crédito das imagens: [topo] MAISANT Ludovic/Hemis/Corbis (cerâmica do rosto de Madela jovem, no Soweto Hotel, Joanesburgo); [ao longo] Divulgação (Invictus)

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7.12.12

De Brahman ao último talo de erva

Texto de Mircea Eliade em "História das crenças e das ideias religiosas, vol. II” (Ed. Zahar) – trechos das pgs. 57 a 59. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. As notas ao final são minhas.

[Segundo a sanquia-ioga [1]], a substância (prakrti) é tão real e eterna como o espírito (purusa) [2]. Contudo, ao contrário do purusa, é dinâmica e criadora. Embora perfeitamente homogênea, essa substância primordial possui, por assim dizer, três “modos de ser” que lhe permitem manifestar-se de três maneiras diferentes, chamadas gunas: 1) sattva (modalidade da luminosidade e da inteligência); 2) rajas (modalidade da energia motora e da atividade mental); 3) tamas (modalidade da inércia estática e da obscuridade psicomental). Os gunas têm, portanto, por um lado, um caráter objetivo, já que constituem os fenômenos do mundo exterior, e, por outro lado, uma caráter subjetivo, uma vez que sustentam, alimentam e condicionam a vida psicomental.

[...] O Universo – objetivo e subjetivo – é apenas a transformação de uma etapa inicial da natureza, ahamkara (que quer dizer: massa unitária aperceptiva, desprovida ainda da experiência “pessoal” [3]), quando, pela primeira vez, na massa energética surgiu um pressentimento do ego [4]. Mediante um duplo processo de desenvolvimento, o ahamkara criou um duplo Universo: interior e exterior, esses dois “mundos” que têm entre si correspondências eletivas. Dessa maneira, o corpo do homem, assim como suas funções fisiológicas, seus sentidos, “estados de consciência” e até sua inteligência são, todos, criações de uma mesma e única substância: aquela que produziu o mundo físico e suas estruturas [5].

É oportuno observar a importância fundamental que o sanquia-ioga, como quase todos os sistemas indianos, atribui ao princípio da individualização pela “autoconsciência”. A gênese do mundo é um ato quase “psíquico”. Os fenômenos objetivos e psicofisiológicos têm uma matriz comum, sendo que a única diferença que os separa é a fórmula dos gunas, como o sattva predominando nos fenômenos psicomentais, o rajas nos fenômenos psicofisiológicos (paixão, atividade dos sentidos, etc.), enquanto os fenômenos do mundo material são constituídos pelos produtos cada vez mais densos e inertes do tamas (átomos, organismos vegetais e animais, etc.) [6].

Com esse fundamento fisiológico, compreende-se por que o sanuia-ioga considera toda experiência psíquica um simples processo “material”. A moral ressente-se disso: a bondade, por exemplo, não é uma qualidade do espírito, mas uma “purificação” da “matéria sutil” representada pela consciência [7]. Os gunas impregnam todo o Universo e estabelecem uma simpatia orgânica entre o homem e o cosmo [8]. De fato, a diferença entre o cosmo e o homem é apenas uma diferença de grau, e não de essência [9].

Graças ao seu “desenvolvimento” progressivo (parinama), a matéria produziu formas infinitas, cada vez mais compostas, cada vez mais variadas. Acredita o sanquia que uma Criação tão vasta, uma construção de formas e organismos a tal ponto complicada, exige uma justificativa e uma significação exteriores a ela mesma. Uma prakti primordial, informe e eternamente imóvel, pode ter um sentido. Mas o mundo, tal como o vemos, apresenta, ao contrário, um número apreciável de estruturas e formas distintas. A complexidade morfológica do cosmo é elevada pelo sanquia à categoria de argumento metafísico. Pois ensina-nos o bom senso que todo composto existe em função de outro composto [10]. Assim, por exemplo, a cama é um conjunto composto de várias partes, mas essa articulação provisória das partes é efetuada em função do homem (Samkhya-karika, 17).

O sanquia-ioga revela, assim, o caráter teleológico da Criação; se a Criação não tivesse por missão servir o espírito, seria absurda, despida de sentido. Tudo na natureza é “composto”; tudo deve, portanto, ter um “superintendente”, alguém que possa servir-se desses compostos. Esse “superintendente” não poderia ser a atividade mental nem os estados de consciência (também eles produtos extremamente complexos da prakti). Temos aí a primeira prova da existência do espírito: “o conhecimento da existência do espírito pela combinação para proveito de outrem” [11].

Ainda que o eu (purusa) seja encoberto pelas ilusões e confusões da Criação cósmica, a prakti é dinamizada por esse “instinto teleológico” inteiramente voltado para a libertação do purusa. Porque, “desde Brahman até o último talo de erva, a Criação existe em proveito do espírito até que tenha atingido o conhecimento supremo” (Samkhya-sutra, III, 47).

***

[1] Sistema de ioga que data da época dos Upanixades.

[2] As questões levantadas lidam com o famoso dualismo filosófico entre a substância material e a substância espiritual.

[3] Complementação do autor: Mas com a consciência obscura de ser um ego (donde a experessão ahamkara, aham = ego).

[4] No início, havia apenas o Grande Uno refletido na forma de um ser. Ao refletir, não encontrou nada além de si mesmo. Então, sua primeira palavra foi: “Isto sou eu”... (Upanixades)

[5] É precisamente aqui que a filosofia védica se une a concepções praticamente idênticas que datam do antigo Egito (hermetismo) e da Grécia antiga (Parmênides, e depois Plotino), para muitos séculos depois culminarem na bela síntese de Benedito de Espinosa: “uma substância não pode criar a si mesma”. Sem grandes adaptações, podemos encontrar noções próximas no taoismo e em certas vertentes do budismo. Mesmo o espiritismo não dista desta ideia tanto quanto imaginamos, se considerarmos que os espíritos foram muito claros ao afirmar: “os espíritos não são imateriais, mas formados por um tipo de matéria desconhecida, etérea” (questão #82 de O livro dos espíritos).

[6] John Wheeler, um físico americano, cunhou a expressão “o it que vem do bit”. Em suas palavras: “Cada it – cada partícula, cada campo de força e até mesmo o próprio continuum espaço-tempo – deriva inteiramente sua função, seu significado, sua própria existência – mesmo que em alguns contextos indiretamente – de respostas induzidas por equipamento a perguntas sim ou não, escolhas binárias, bits. O it que vem do bit simboliza a ideia de que cada item do mundo físico tem no fundo – bem no fundo, na maioria dos casos – uma fonte e uma explicação imateriais; que aquilo que chamamos de realidade vem em última análise da colocação de perguntas sim-não, e do registro de respostas evocadas por equipamento; em resumo, que todas as coisas físicas são informacional-teóricas na origem” (Citado em O universo inteligente, de James Gardner, publicado pela Cultrix/Pensamento).
O que isto quer dizer é que, além de existir um paralelo claro entre o pensamento de alguns físicos modernos e o pensamento dos filósofos védicos, mesmo o pensamento precisa “trabalhar com informações” – ou seja, mesmo o pensamento parece lidar com esta substância que forma tudo o que há a partir de si mesma.

[7] Para mim, o grande erro da sanquia-ioga é situar o espírito (purusa) como algo completamente dissociado de ahamkara, ou seja, da substância “material” primordial. Eu não compactuo com este dualismo extremo, e exatamente por isso posso ser considerado um espiritualista materialista, ou talvez fosse melhor dizer: um dualista de propriedade (ver Monismos e dualismos).

[8] Complementação do autor: Quando é o sattva que predomina, a consciência é calma, clara, compreensível, virtuosa; dominada pelo rajas, ela mostra-se agitada, incerta, instável; atormentada pelo tamas, é obscura, confusa, apaixonada, bestial (Yoga-sutra, 11, 15, 19).

[9] O que combina perfeitamente com a grande lei hermética: assim em cima, assim embaixo.

[10] Espinosa foi o apóstolo do bom senso.

[11] Acredito que Mircea tenha sido bastante infeliz na escolha de algumas palavras neste parágrafo, embora ele provavelmente só estivesse tentando “incorporar” o pensamento da filosofia do sanquia-ioga: (a) a missão da Criação não me parece ser de “servir” ao espírito, mas, pelo contrário, conforme nos contam os textos védicos: “quem compreende isso, torna-se, nesta Criação, um co-criador” – ora, e o que seria este isso, senão o próprio conhecimento de que nós também somos da raça dos deuses? (b) não há nenhuma “prova do espírito” ali, mas antes uma defesa de uma hipótese imaterial para o espírito, totalmente dissociado de tudo o que há, morando “nalgum canto inacessível do cosmo” – conforme já disse acima, repudio esta ideia.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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6.12.12

A idade do ser, parte final

« continuando da parte 2

“Acorde! Recorde que você é um ser, que veio de uma estrela, que está em uma estrela, que irá para outra estrela. Pouse suave. Os mensageiros orientam” (Hermes Trimegisto)

A resposta de Buda

Em fevereiro de 1990, tendo completado sua missão primordial, foi enviado um comando a sonda espacial Voyager 1 para se virar e tirar fotografias dos planetas que havia visitado. A NASA havia feito uma compilação de cerca de 60 imagens, criando neste evento único um mosaico do Sistema Solar. Uma imagem que retornou da Voyager mostrava nosso planeta, a Terra, a 6,4 bilhões de quilômetros de distância, como um “pálido ponto azul” no meio da imensidão cósmica.

Foi precisamente tal imagem que inspirou Carl Sagan a nos trazer mais uma reflexão: “Olhem de novo para esse ponto. Isso é a nossa casa, isso somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um dos que escutamos falar, cada ser humano que existiu, viveu a sua vida aqui. O agregado da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões autênticas, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e colheitador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilização, cada rei e camponês, cada casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada mestre de ética, cada político corrupto, cada superestrela, cada líder supremo, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu aí, num grão de pó suspenso num raio de sol”.

Perto do infinito do Cosmos, é difícil não nos sentirmos estranhamente humildes e espantados quando seguimos a luz de pensamentos como este. É difícil não contemplar o céu noturno, que ainda com toda a poluição ainda nos permite ver incontáveis estrelas, e não se indagar: “por que tudo isso?”.

Porque vir até este pálido ponto azul, tantas e tantas vezes, e a cada vez, reencenar alguma peça, escolher mais um tanto de máscaras, e com elas sermos novamente um ser, humano, vivendo uma vez mais uma vida humana, na idade humana. Para que?

A mesma mentalidade científica e racionalista que nos ajudou a criar de nossas mentes a tecnologia necessária para que fosse possível lançarmos sondas na imensidão espacial, e tirar fotos de nossa casa conforme vista a bilhões de quilômetros, esta mesma mentalidade não parece conviver muito bem com o “porque”, e então se foca no “como”. Para todos aqueles que têm asco da espiritualidade, a ideia de que tenhamos sido criados por alguma superinteligência é absurda, assim como a noção de que temos, por detrás das máscaras que formam nossa personalidade, alguma coisa oculta, preciosa, e que precisa ser mantida pura...

Conforme os antigos mitos foram mal interpretados e esquecidos, a sociedade moderna passou a reinventá-los noutro contexto. Dessa forma, o que já foi um espírito da natureza, um gnomo, um anjo ou arcanjo, hoje é um ser alienígena, algum santo sábio de outras eras, um bioengenheiro mágico que inseminou a espécie humana na Terra, e de vez em quando volta para fazer anotações científicas. Como se não bastasse tudo isso, há aqueles que esperam por uma nova Arca de Noé, desta vez uma nave espacial que virá salvar alguns escolhidos do final dos tempos terrenos.

Mas, estranho de pensar: e quem seriam os alienígenas, afinal, senão nós mesmos? A ciência atual ainda não chegou numa teoria consistente de como uma mistura de aminoácidos subitamente formou a primeira bactéria na Terra. Segundo muitos biólogos e astrobiólogos, ir do aminoácido inorgânico a bactéria orgânica é um passo consideravelmente mais complexo e misterioso do que ir da bactéria ao chimpanzé. Para muitos cientistas, a teoria da panspermia é a melhor teoria para explicar o surgimento da vida na Terra.

Segundo ela, boa parte ou mesmo a totalidade do tipo de matéria que possibilitou o surgimento das primeiras células vivas chegou a nós incrustada em asteroides que se chocaram com a Terra no período de centenas de milhões de anos após sua formação. Nós buscamos pelos alienígenas lá fora, mas de certa forma sempre fomos, nós mesmos, os próprios alienígenas: filhos das estrelas, parte dos elementos pesados que são somente formados, no universo conhecido, nas reações nucleares do núcleo dos sóis.

***

Dizem que o príncipe nepalês, Siddharta Gautama, alcançou a iluminação interior suprema, o nirvana, após meditar por 49 dias ao lado de uma árvore. Tinha então cerca de 35 anos, e após haver renascido em vida, dedicou o restante de seus dias a tentar ensinar aos outros em sua volta sobre aquilo que descobriu, a refletir a luz que havia descoberto dentro de si mesmo.

O que o Buda descobriu é algo que a ciência moderna já sabe há algum tempo: nada se cria [1], nada se perde, tudo se transforma. Assim sendo, não somente as coisas, como a própria matéria orgânica que forma nosso corpo, tudo que há é formado por substâncias impermanentes, não duradouras, em constante metamorfose e mutação. Mesmo o sofrimento e a alegria são impermanetes: a compreensão da impermanência está no cerne da doutrina budista.

Dizem também que o príncipe nepalês decidiu tornar-se um asceta após passear no entorno de seu palácio e ter encontrado um homem velho, outro doente, um corpo já em decomposição, e um asceta meditando. Por muito tempo tentou chegar à iluminação pelo ascetismo extremo, pela dissociação do mundo impermanente, mas por fim, após quase morrer de inanição, desistiu desta dissociação extrema [2] – e foi assim, no caminho do meio, que finalmente compreendeu. Todas aquelas máscaras que apertavam sua cabeça e coçavam seu nariz, todas elas nada mais eram do que poeira e fumaça, como o restante do mundo impermanente. Somente após retirar todas essas máscaras, após descascar todas as suas personalidades, ele encontrou algo lá dentro...

Mas o que o Buda encontrou, e compreendeu, dentro de si mesmo, talvez esteja além da linguagem, além da capacidade de se explicar por símbolos gramaticais. Tudo o que ele fez desde então, até o fim de sua vida, foi tentar servir como exemplo para os que estavam a sua volta. Não existia um manual de natação infalível, era preciso que cada um mergulhasse em si mesmo, e descobrisse. “Confiem em si mesmos, não dependam de mais ninguém. Fazei de vós mesmos uma luz” – Siddharta sabia!

***

Detrás de todas essas máscaras que usamos numa mesma vida, ou em vidas a fio, há o Jogador Mais Precioso. Tal Jogador pode ter, conosco, se aventurado no “mundo real”, ou no mundo de Azeroth. Mas, no fim, por mais que lhe digam que este é um mundo de ofícios de guerra, o Jogador sabe, sempre soube, que em realidade estamos aqui para um ofício de amor [3]: para desenvolver nossa potencialidade de amar, de nos conectar, de compreender, de nos religar a este Cosmos que nos abarca por todos os lados, desde sempre.

Para tal, devemos então deixar de sermos alienígenas em nossa própria terra, e explorar, com sondas mentais, o planeta da alma. E lá descobriremos o Mistério, o Monolito Posto de Pé, o Jogador, o Eu Sou. E então atingiremos o nirvana, e calaremos sobre ele – nosso amor será todo exemplo, todo incentivo, para que outros também mergulhem, para que outros também deixem de ser desconhecidos de si mesmos. E isto basta: terão chegado na idade do ser, a eterna idade.

Assim foi que, no fim do experimento, apenas o Buda soube da resposta certa: Sally, a garota que quer brincar, deve buscar sua bola em si mesma – fora, nada realmente permanece de pé.


“Se você não me achar em você, nunca me achará. Pois, tenho estado contigo, desde o começo de mim” (Rumi)

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[1] Ver nota de Huberto Rohden sobre Crear e criar.

[2] Seja o que for que forme a nossa alma, também é parte da Substância Primeira.

[3] World of Lovecraft (mas não estou falando do Chutulhu, nem de algum provável filme ou game erótico).

Crédito das imagens: [topo] Voyager1/NASA (O pálido ponto azul: onde estamos hoje); [ao longo] Ram Bahadur Bomjon ("Buddha Boy")

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5.12.12

A idade do ser, parte 2

« continuando da parte 1

"A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos." (Erasmo de Rotterdam)

A ilha errante de Azeroth

Aos 19 anos, estava terminando a faculdade, gostava de assistir basquete americano na TV, e jogar Role Playing Games [1] na casa de amigos até a alta madrugada. Teve uma ou outra paixão, mas naquele ano não conseguiu engatar um namoro duradouro. “Que bom, assim não preciso faltar o RPG” – pensou, mas a verdade é que sangrava por dentro (da alma).

15 anos depois, aos 34, estava casado, morando noutra cidade, e trabalhando com algo que não tinha muito a ver com a faculdade que fez, embora gostasse mesmo assim. Ainda jogava basquete, e voltou a acompanhar o campeonato americano assim que seu time conseguiu retornar aos playoffs finais após quase uma década de vacas magras. As paixões antigas viraram amizades duradouras (quando foi possível).

Não podia mais jogar RPG na casa dos amigos, mas passou muitos anos jogando num mundo virtual, com milhares de outros jogadores do mundo todo, alguns deles seus amigos da “vida real”. E, dessa forma, ainda era o mesmo de antes, poderia pensar: ainda arremessava bolas ao cesto nas tardes de sábado, e ainda poderia jogar RPG com os amigos no mundo de Warcraft [2], caso assim desejassem... Tudo era exatamente como antes, a mesma vidinha de sempre. Será?

Muitas vezes reencontramos paixões antigas, ex-namoradas ou ex-namorados, antigas amizades da época de colégio, e alguma coisa dentro de nossa alma percebe: mudou, o mundo mudou, os convívios e amizades mudaram, a personalidade mudou, a alma mudou... Pretendemos, em nossa inocência no paraíso ilusório que criamos para nós mesmos, sermos sempre os mesmos, imortais, ancorados no que já somos. “Não mudarei!” – brada alguém em nossa alma: “Serei sempre eu mesmo, com estes mesmos defeitos, estas mesmas qualidades, estes mesmos amigos, estas mesmas crenças e descrenças!”.

No entanto, conforme já disse um sábio antigo: tudo vibra, tudo tem seu ritmo, nada está parado. A maior parte das células de nosso corpo não tem mais do que uma década de idade. Ao longo da vida, todas as células que nos formavam ao nascermos terão morrido, e sido substituídas... O que permanece? Um fluxo, um teatro mental, uma encenação cerebral? E, ainda assim, quem nos garante que este teatro têm nos apresentado a mesma peça, a exata mesma peça, de 15 anos atrás? Quem nos garante que as máscaras que usávamos então, ainda são as mesmas?

Muitas vezes o folião não percebe como suas máscaras têm mudado, carnaval a carnaval... E não é preciso se converter a Nosso Senhor Jesus Cristo ou a Nosso Doutor Richard Dawkins para efetivamente mudarmos. Para mudar, basta viver!

Da mesma forma que cada novo dia recebe fótons inteiramente novos do sol matinal, em nosso cérebro algumas células estão morrendo, e outras nascendo. Em nossa personalidade, ideias, símbolos, crenças, informações, pensamentos, estão em constante mutação e afloramento. Não as represemos! É de nossa natureza mudar, e todo questionamento é divino... Foi da dúvida, e não do dogma ou da certeza infalível, que surgiram à religião, a filosofia, a ciência, a arte e a mitologia. Foi para reencenar este turbilhão de ideias internas, quem sabe, que Deus nos deu a imaginação. Mas então, para que tudo isso? Para que imaginar, ou vivenciar, todos esses bailes sem fim?

***

Na primeira vez que adentrou Azeroth, o mundo de RPG virtual, veio a convite de seus amigos em sua cidade natal. Nasceu novamente como humano, mas um humano feito de pixels, que habitava a capital Stormwind, e soltava raios de gelo pelas mãos! Ganhou muita experiência e níveis de poder ao se agrupar com seus amigos virtuais, e enfrentar a horda inimiga, seus orcs e trolls, ao longo de toda a Azeroth. Quando chegou ao nível máximo, adentrou Molten Core e matou o Demônio em pessoa (ou pixels), ganhando poderosos tesouros... Mas depois, com o tempo e as repetições, após matar o Demônio pela 42º vez, enjoou.

Voltou ao “mundo real”, e só se lembrava de suas aventuras em Azeroth num ou noutro sonho... Mas então, o mundo de Warcraft se expandiu, e agora seus amigos lhe chamavam para renascer novamente neste baile de pixels. Entretanto, ele estava relutante: “Não vai dar, fazem muitos anos que parei, eu mal lembro como era o jogo, e as regras mudaram muito, vou ter de subir de nível com um outro personagem, tudo de novo”.

Ao que seu amigo respondeu: “E eu também. Mas quem disse que jogamos este jogo para estarmos sempre no nível máximo, e sempre com os mesmos personagens? Jogamos porque somos amigos, e gostamos de nos aventurar juntos, ora bolas!”.

Estranho de se pensar, seu amigo tinha toda razão... Desta vez, criou um monge panda [3] que nasceu numa ilha formada no casco de uma gigantesca tartaruga, a navegar por Azeroth. Depois escolheu defender a horda, e fez muitos amigos entre os orcs e trolls que, da outra vez, eram seus inimigos mortais. Uma nova vida, uma nova encenação, uma nova personalidade virtual – não importa, o importante é que estava ali para se divertir com os amigos, reais ou virtuais [4].

Assim também é este dito “mundo real”, e se aqui não podemos soltar bolas de fogo ou voar nas costas de dragões, podemos ainda imaginar tudo isto, pois que tudo, no fim do dia, surgiu da imaginação. Em nossa mente, nada nos impede de nos reunirmos com aqueles que amamos, ainda que seja no casco de uma tartaruga gigante, numa ilha errante.

Vivemos nesta idade humana, nesta humanidade, que por vezes nos acusa de sermos loucos por imaginarmos que, nalgum dia, adentramos masmorras obscuras dentro de nós mesmos, e por lá enfrentamos terríveis dragões, e conquistamos tesouros fantásticos. Se lhe acusam de tudo isto, não faz mal, minta para eles: “Sou são, e não comungo com tais loucuras”.

Porém, entre seus amigos, entre todos os iniciados, continue batalhando para que sua loucura seja feita de luz. Cada vez mais luz...

» Em seguida, alienígenas entre nós...

***

[1] Jogo de interpretação de personagens, criado por Gary Gygax e Dave Arneson no século passado, a partir de jogos de tabuleiro com miniaturas.

[2] World of Warcraft, ambientado no mundo imaginário de Azeroth, foi o primeiro RPG online a alcançar a marca de 10 milhões de assinantes mensais no mundo, e até hoje domina boa parte deste mercado.

[3] Aos iniciados: um pandaren, nova raça da expansão Mists of Pandaria.

[4] Boa parte disto é uma narrativa fictícia, se eu realmente estivesse voltando a jogar World of Warcraft, este blog estaria seriamente ameaçado :)

Crédito das imagens: [topo] Elmore; [ao longo] Divulgação (World of Warcraft: Mists of Pandaria)

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A idade do ser, parte 1

Personalidade é o conjunto de características psicológicas que determinam os padrões de pensar, sentir e agir, ou seja, nossa individualidade pessoal e social.

Bem vindo ao baile

Numa sala há três crianças e dois adultos a observá-las. Duas dessas crianças, Sally e Ann, são atrizes mirins, contratadas para o experimento. A outra criança se chama Sarah, e é o objeto do experimento em si – ou, mais precisamente, sua mente.

Na sala, a frente de onde Sarah está sentada (apenas observando, conforme instruída pelos cientistas), há três objetos: uma bola de plástico, um cesto e uma caixa de papelão... Inicia-se o experimento: Sally caminha até a bola, a pega e coloca dentro do cesto. Enquanto a outra garota, Ann, apenas observa, Sally sai da sala. Neste momento, Ann se levanta rapidamente e vai até o cesto, pega a bola e a coloca dentro da caixa, logo voltando para a mesma posição onde estava. Então, cerca de um minuto após, Sally retorna a sala. Ela diz em voz alta: “Quero brincar com a bola!”; e então uma voz de desenho animado ressoa nos alto falantes da sala: “Sarah, onde Sally vai procurar pela bola, no cesto ou na caixa?”. Os cientistas anotam a resposta.

O que este experimento aparentemente bobo (chamado “Teste Sally-Ann”) pode demonstrar é algo extraordinariamente importante para o convívio do ser humano no mundo: a capacidade de compreender o outro como um ente em separado, uma mente que pensa por si mesma.

Caso Sarah responda que Sally vai procurar pela bola na caixa (onde Ann a colocou), ela não demonstrará a capacidade de formular uma teoria da mente, ou seja, de considerar que a mente de Sally está dissociada da sua, e opera por si mesma, portanto não teria como saber que a bola havia sido retirada do cesto no minuto em que se ausentou da sala. No entanto, quando crianças como Sarah respondem que Sally vai procurar pela bola no cesto, e que não irá encontrá-la, demonstram que sua mente já é suficientemente desenvolvida para compreender duas coisas: (a) Que cada mente opera por si mesma, e tem sua própria personalidade; (b) Que exatamente por isso, uma mente pode enganar a outra, mentir.

Estudos recentes [1] mostraram que crianças tão jovens quanto 10 meses de idade já conseguem “passar” neste teste. Algumas crianças autistas terão muito mais dificuldades para chegar a este estado de compreensão “do outro”... Ao que tudo indica, esta capacidade de conviver com outras mentes, e as compreender como dissociadas de nós mesmos, está no cerne de nossas potencialidades sociais, estas que vêm se desenvolvendo desde os primórdios dos hominídeos.

Não é a toa que a mentira e a falsidade são amplamente repudiadas em qualquer grupo ou sociedade: desde a época em que convivíamos em pequenas tribos espalhadas por ermos inóspitos e desconhecidos, precisávamos confiar um no outro – esta era a essência da sobrevivência em grupo. Por mais paradoxal que seja, no entanto, sempre houveram aqueles dentre nós que souberam usar da falsidade para obter vantagens pessoais. Afinal, se podemos enganar as pessoas sem sermos pegos, ou acreditando que não seremos pegos, porque não ir em frente?

Mas ainda assim é preciso tomar muito cuidado. Não muito tempo atrás, quando um marido era traído por sua esposa, estava em seu direito puni-la, às vezes até com a morte. Esta “defesa da honra” pode hoje parecer barbárie (e, de fato, o era [2]), mas diz muito sobre o quanto o ser humano odeia ser passado para trás, principalmente quando acredita estar num certo patamar social, quando crê piamente ser “o dono da situação”.

O que muitos não sabem, no entanto, é que foi o próprio ato mental de reconhecer uma “vontade alheia” no outro que fez com que criássemos nossa própria personalidade. O termo vem do latim persona ou personare, que significa “máscara”, mas há alguns que também o ligam etimologicamente ao latim per se esse, “ser por si”... E, como num baile de máscaras, só entram aqueles que trazem a sua.

Não houvessem outros seres humanos no mundo, ninguém com quem pudéssemos conversar, confiar ou enganar, amar ou odiar, provavelmente não estaríamos aqui pois não teríamos nascido. Mas, se por alguma razão algum deus estranho nos houvesse criado já humanos, a partir do nada, e estivéssemos por aqui sós, não teríamos personalidade alguma: seríamos a mais pura e inocente das pessoas e, provavelmente, a mais ignorante. Talvez por isso os mitos sempre afirmem que fomos criados aos pares: é preciso conviver, é preciso enganar e ser enganado, confiar e ser confiado, odiar e ser odiado, amar e ser amado.

Mas, será que teremos apenas uma única personalidade? E, mesmo que seja apenas uma, será que ela tem se mantido a mesma, exatamente a mesma, ao longo dos anos?

» Em seguida, 15 anos depois...

***

[1] Ver O livro do cérebro (Ed. Duetto).

[2] Inclusive porque, quando ocorria o contrário – o marido trair a esposa –, a esposa traída não tinha, na prática, nenhum direito legal a uma “defesa da honra”.

Crédito da foto: Heide Benser/Corbis

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4.12.12

Nem ateu, nem agnóstico: cientista

Neste depoimento extraordinário para o Big Think, Neil deGrasse Tyson explica o porque de não ser exatamente um agnóstico, e muito menos um ateísta, mas tão somente um cientista, um livre pensador, e educador:

Transcrição de parte do depoimento
Muitas vezes me perguntam, ocasionalmente de uma maneira acusatória: "Você é ateísta?". Sabe, o único "ista" que eu sou é cientista, certo? Eu apenas penso por mim mesmo [1].

No momento em que o vinculam a uma filosofia ou movimento, eles transferem toda a bagagem que vem com isto para você! E quando quiser ter uma conversa, eles irão afirmar que já sabem tudo o que é importante saber sobre você, pode causa desta associação. E esta não é a maneira de se ter uma conversa. Desculpe, não é.

Seria melhor se explorássemos as ideias uns dos outros em tempo real, ao invés de atribuir um rótulo. O que as pessoas estão atrás é sobre minha postura sobre a religião, a espiritualidade, ou Deus. E eu diria, se pudesse encontrar uma palavra que chegasse mais perto, que seria agnóstico. Uma palavra que data do século XIX. Para se referir a alguém que não sabe, mas realmente não viu evidência para isto, embora esteja preparado para abraçar a evidência se estiver lá. Ok?

Existem muitos ateístas que dizem: "Bom, todos os agnósticos são ateístas." Ok. Sou constantemente reivindicado pelos ateístas. Eu acho isto intrigante. De fato, na minha página da Wikipedia, diz-se que sou ateísta. Então eu corrijo: "Neil deGrasse Tyson é um agnóstico". Volto uma semana depois, e diz-se novamente que sou ateísta... Em uma semana!

Tais termos não são a mesma coisa, e lhe direi porque: Ateístas que conheço, que orgulhosamente vestem a camisa, são ateístas ativos! Está na cara deles, ateístas! E eles querem mudar políticas, eles estão tendo debates. Eu não tenho o tempo, o interesse e a energia para fazer nada disso.

Sou um cientista. Sou um educador. Meu objetivo é fazer as pessoas pensarem direito em primeiro lugar, e ficarem curiosas sobre o mundo natural. E isto é tudo, não vou além disto.

E é estranho que a palavra "ateísta" até mesmo exista! [2] Eu não jogo golf, e há uma palavra para não-jogadores de golf? Eu não consigo me reunir e falar com todos numa sala sobre o quanto não acreditamos em Deus. Apenas não tenho energia para isto. Então, ser agnóstico me separa da conduta dos ateístas. Mas no fim do dia, seria melhor que eu não fosse de categoria nenhuma.

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[1] Recordemos que a ciência em si não é nem espiritualista nem materialista, nem ateísta nem teísta, mas os cientistas, como seres humanos, não têm como escapar de estar "aqui ou acolá". Acho que o que o Tyson quis dizer (ao longo de todo o depoimento) é que simplesmente odeia rótulos de qualquer tipo, e prefere "conhecer as pessoas por detrás dos rótulos". Nesse sentido eu concordo com ele.

[2] Mas vale lembrar que, bem antigamente, o termo "ateísta" se referia não exatamente a quem não acreditava em nenhum deus, como parece ser o uso mais comum atualmente, mas principalmente a quem não seguia os rituais e os deuses das religiões "dominantes" de uma dada região. Exatamente por isso, Sócrates, Jesus e Espinosa foram acusados de ateísmo, embora todos acreditassem, cada um a sua maneira, nalgum deus.

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3.12.12

Tudo o que você queria saber sobre deuses

E nem sabia ao certo de onde começar...

Que tal começar por esta palestra de Marcelo Del Debbio na Loja Teosófica Liberdade, em São Paulo, onde ele fala sobre os paralelos entre os deuses e a árvore da vida? Pode parecer difícil de entender, mas não é:

A Kabbalah e os deuses de todas as religiões
O vídeo é uma gravação em áudio acompanhada das imagens da apresentação. É recomendado alterar a qualidade para 480 pixels e ver em tela cheia.

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» Veja também a série de artigos A roda dos deuses

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Christ crucified

(translated by the author from the original portuguese tale, “Cristo crucificado”)

You, who walked through this world of men when men where little more than beastly beasts; you, who came from afar, from where even the light takes time to travel; you, who have been in the enlightened realm, the home of lasting peace, and even then decided to return… For us!

You, who have been watching the foundation of the first tribe, and also of the first civilization. You, who have been a friend of men for so many ages. You, who have been taking care of our fire, so that it doesn’t be extinguished by the cold winds of the obscure nights. You: our friend, and a friend of the sun. You are that which is most precious in our existence and, even then, you are just one of us…

Not God, but just one more from the race of gods. Not God, but just one more from the race of men. Not God, but just a being who came from somewhere in infinity, and now fly besides the angels of heaven.

We hunted you when we saw you in the sky. We harpooned you down, to the same level of thought, to our fetid marsh of rampant desires. We cut your wings and made you scream in agony, and what did you showed us? The other face!

Nevertheless, you were born man again, you grown again as a man, you lived the life of a man. You ran among the world’s sheep as a young shepherd that some lunatic saw among the hills by the afternoon’s ending. You kneeled in front of the great sages of the Orient and told them: “teach me”, but they answered: “no, you teach us, messenger!”

Not a prophet, but just someone who saw this sphere spin for so many ages. Not a messiah, but just someone who now goes anywhere he wants along the Cosmos. Not a magician, but just someone who makes us recall love. Not a witchdoctor, but just someone who makes us find the health of our own souls once again. In the end: not a King, but an Emperor of the spirit.

Nevertheless, we spitted into your message of light. We lashed you and told you to be gone from here. And to make sure that you were wrong in your vain hope for an age of love, we let your own people, your beloved people, choose between you, oh bleeding lamb, and Barabbas, that dirty murderer, inciter of rebellions and killings. And they didn’t choose you, they let you bleed until the end…

We, the emperors of earth, the conquerors of realms, the Coliseum’s mob, we crucified you and banished you from our lives. At your left we left a thief, at your right another one, and we only let in some women to give you farewell because we all knew how much you cried in that cross. You still had the boldness to ask the Cosmos for forgiveness, saying that we didn’t knew what we were doing. But we all knew; we knew exactly what was being done on that day!

But that was only the beginning of our revenge. Later, we raised a glorious Church of the Chosen upon the dismembered bodies of each of your beloved disciples. They preached your message saying that the Realm of God covered every place, among broken branches and bellow small rocks along the roads… And we told them that no: “All roads lead to Rome, and only the Church of Rome could save them from eternal damnation!”

You came to tell us that the existence is a party made by the Cosmos, and that everything that we needed to quest for was love. But we said to you that every being is born a sinner, that some obscure ancestor had bitten some rotten apple at some fabulous grove, and that because of it we crucified you: so that you could pay for the shadowy sin of all of us, of all mankind!

And there was a day when our Church controlled the thoughts of one half of all men. We, that crucified you and clapped when you were bleeding, drop by drop, we made your moment of supreme agony, your Calvary, our greatest image of glory. At the entrance of each one of our Golden Temples, raised among the poverty and miserability of men, we showed the Christ Crucified in all of its greatness…

Nevertheless, you still lie crucified to this day, and to this day they still forget you and cry out among the mob: “Save Barabbas!”

So I ask you, my friend: when you will finally come out of that cross? When there will finally be established a realm of life, and no more of death, into this land? When you will finally resurrect from the dead, as to bring back all of those disciples of long ago, and all of your friends who have been loving you in the night prayers, and saving your teachings in hidden brush strokes and vessels buried at the deserts?

When you will take away the three hideous spikes from this colossal cross, and will come comfort us again? Or maybe it’s us who will need to climb into your cross, to free you, and bring you definitely to our heart?

There is still light down here, there is still light everywhere… You conquered the night of every soul… Only you, oh invincible one!

for Moore.

received by raph at 2011.

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Image credits: J. H. Williams III (Promethea, comics by Alan Moore)

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