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30.11.12

Abrindo portas na mente, parte final

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

« continuando da parte 2

Uma semana depois, retornava ao consultório de Kátia. Naquela altura, já tinha elaborado boa parte do que havia relembrado uma semana antes, e me considerava praticamente “curado”. Não sabia exatamente o porque, mas uma intuição me dizia que “já estava bom”, que não seria mais necessário, nem recomendável, insistir em abrir mais portas da mente, em adentrar ainda outras vidas antigas... Mas Kátia não concordou, achava que era necessário prosseguir com o tratamento [1]:

Ao abrir a mesma porta imaginária, estranhamente vi um castelo, cercado por uma cidade medieval, mas em vista aérea... O que depois vim a perceber que se tratava de minha chegada a Terra, o renascimento!
Logo após vi água, mar, e um imenso casco de navio cortando a imensidão azul e provocando pequenas ondas que surgiam para logo depois desaparecerem. Estava observando o barco no qual eu era encarregado por cortar o Mediterrâneo. Tinha por volta de 30 anos, bigodinhos pontudos e ridículos (que vira no espelho), uma roupa aparentemente típica da época do renascimento europeu. E tinha um longo chapéu também, apenas evitava usa-lo quando na proa para não voar para longe...
Era empregado de uma companhia de comércio marítimo, e após algum tempo como marujo me tornei encarregado de um barco inteiro. Eu adorava velejar, ver aquelas velas imensas e decoradas com símbolos serem acariciadas pelo vento... E o mar, sobretudo amava o mar!

A impressão que tive é que passei toda uma vida a observar o mar, a navegar dentre pequenas cidades do Mediterrâneo, vivendo do comércio de alimentos e especiarias variadas. Parecia um conto de fadas a primeira vista, mas como sempre, as aparências enganam...

Infelizmente não era uma vida só de alegria. Eu havia me casado moço, e pouco antes de ganhar aquela função importante, já havia gerado seis filhos, e outros dois nasceriam depois... Mas eu usava todo meu tempo no trabalho, nas viagens, no comércio... Nunca tive muita disposição para amparar minha esposa e assistir meus filhos crescerem de perto, aquilo não me atraía, apenas o mar era meu refúgio naquele tempo.
Então minha esposa morreu doente. Eu a havia amado bastante, principalmente no início de nossa relação. Dessa vez ao menos eu soube dar valor a esse tipo de amor... Mas não fui exatamente um bom pai. Após sua morte, deixei as crianças numa espécie de orfanato, e as mantinha muito bem com o dinheiro que ganhava no comércio, apenas não lhes dava amor e atenção, exatamente o que uma criança mais precisa...
E o tempo passou, e chegava a hora de me aposentar, mas isso aconteceu antes do que eu esperava, fui simplesmente demitido de um dia para o outro. Não me faltava dinheiro, mas sentia muitas saudades do mar... E meus filhos não eram mais do que amigos distantes, já crescidos e com suas próprias vidas, e eu os entendia muito bem, claro, não tinha o que exigir deles.

Na hora da morte, constatei mais uma vez o valor do amor:

Graças a Deus, minha única filha, e ao que parece a que mais me amara, me aceitou em sua casa, e passei o final da vida aos seus cuidados. Eu aprendi a gostar dela, é claro, e a partir daí passei a lamentar meu egoísmo em relação as minhas crianças... Mas ainda havia tempo para me reabilitar: nesses anos passei a me aproximar dos meus filhos com cautela, e eles de certa forma me aceitaram. Poderia ter sido bem melhor, é claro, mas pelo menos ainda houve tempo para uma reavaliação das minhas escolhas.
E quando morri de complicações intestinais, lá estavam minha filha e mais dois filhos que puderam comparecer a sua casa no dia final. Eu morri sem tanta dor assim, pois na passagem já estava sendo auxiliado por um grupo de espíritos amigos. Minha filha, principalmente, chorou muito minha morte, ela realmente sempre me amou, e eu só lamentava por essa falha por tantos anos de minha vida, e o desperdício da oportunidade de ter criado meus filhos mais próximos de mim.

Embora não soubesse exatamente quem eram, sentia em minha alma que aqueles que vieram me buscar eram conhecidos, e não desconhecidos como os que me visitaram na vida ateniense. Isso parecia fazer toda a diferença do mundo: um ser que lamentava minha morte na Terra, que se lembraria de mim, e que deu sentido a uma vida inteira; e amigos do outro lado, amigos de outras épocas, outras vidas... O que mais eu poderia desejar? Estava começando a achar que valeria a pena continuar visitando minhas vidas passadas.

Mas isto durou pouco. Pouco antes das memórias se encerrarem, tive um pequeno vislumbre do motivo de ter vivido toda aquela vida velejando pelo Mediterrâneo... Lembrei-me, num breve relance, da vida imediatamente anterior, de ter sido um dos guerreiros cruzados, que acreditava piamente que estava seguindo aos desígnios de Cristo e da Igreja Católica ao invadir, pilhar e assassinar nas terras árabes, na dita “terra santa”. Este relance foi o suficiente para que eu desistisse de prosseguir adiante na investigação de minhas memórias.

Uma vida inteira de contemplação no mar, porque? Para que? Ora, porque, ao contrário do que os filmes de Hollywood podem fazer crer, espadas não cortavam homens como se corta manteiga, e não se mata com a mesma facilidade que um herói do cinema. Lutar nas guerras medievais mais parecia um açougue do inferno, com sangue por todo lado, gemidos de dor aterrorizantes, e cenas surreais – como procurar por amigos feridos ou mortos em meio a pilhas de corpos apodrecendo dentro de metal. Hoje, apesar de tudo, ainda se mata a distância; mas matar ao lado, isto sim, era o terror [2].

E, este sim, foi motivo suficiente para que eu interrompesse o tratamento com a Kátia, o que não me arrependo nem um pouco; embora também não me arrependa de ter iniciado o tratamento, pois acredito que tenha me auxiliado, nesta vida, de muitas formas:

Provavelmente não farei mais regressões, mas eu sabia que seria assim. Havia curiosidade, havia medo, hoje só há mesmo uma profunda fé, uma fé renovada, de que não existe nada melhor do que existir, de que não estou sozinho, e nada pode ferir aquele que ama, pois o amor é uma energia poderosíssima, escudo contra todo o mal, e combustível para qualquer realização verdadeira nessa esteira temporal, onde vidas não passam de momentos, e onde a luz irradiada dos confins do Cosmos nos aponta o caminho, sempre...

***

[1] Se por um lado, é óbvio que seria do interesse dela prosseguir com o tratamento – afinal, nenhuma terapeuta sobrevive de uma seção única por paciente –, por outro ela tinha razão no sentido de que meu tratamento psicológico ainda deveria prosseguir. O caso é que não necessariamente deveria prosseguir com mais regressões, pois elas nem sempre são somente benéficas, como veremos na sequencia do texto.

[2] É preciso explicar que tais lembranças hoje são totalmente indiretas, isto é: já as imagino como se fossem a história de uma outra pessoa, e não de mim mesmo. Isto é bem diferente do que senti no rápido vislumbre emocional, já no fim da regressão – é deste tipo de trauma que procurei me afastar. É este também boa parte do motivo do meu grande temor em me aproximar do meu Eu Superior, pois é exatamente Ele quem comporta todas as lembranças – as boas, e as ruins. Felizmente ainda O encontrei em outras oportunidades, quando estava mais preparado para encará-Lo... Mas isso é uma outra história.

***

Crédito da imagem: Paul Edmondson/Corbis

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29.11.12

Atalanta fugidia

Dizem que foi uma caçadora virgem que transpassava seus pretendentes com sua lança, mas os mitos não contaram esta outra história acerca de Atalanta:

Na primeira vez que a viu, Hipomene duvidou dos próprios olhos. Não era o fato de uma mulher, totalmente nua, haver vencido grandes guerreiros numa corrida, que o deixara espantado. Espantado estava Hipomene com a beleza de Atalanta, que parecia resumir toda a beleza da Natureza, e de todas as mulheres do mundo, em um único corpo, esguio como a água dos riachos, misterioso como a lua cheia em meio à noite obscura.

Todos aqueles que perderam a corrida nunca mais foram os mesmos: tornaram-se melancólicos e tristonhos, e desistiram das guerras e da vida. Antes seus olhos brilhavam com a glória prometida em seus sonhos e devaneios, agora eram escravos dos vinhos, das tavernas e das cortesãs. Como não conseguiram alcançar Atalanta, passaram a buscá-la em todas as mulheres do mundo, como se, ao possuírem uma por uma, estivessem de certa forma a possuir a própria caçadora, filha dos ursos... Ante tal horrendo exemplo de vidas perdidas, Hipomene abdicou do duelo com Atalanta.

Passou a estudar sobre ela em mitos ainda mais antigos que o seu. De tanto buscar pela inspiração, acabou tendo alguma sorte mais tarde em sua vida, quando os primeiros cabelos brancos já eram vistos a escorrer pela fronte... Numa noite, enquanto seguia as passadas de Atalanta, munido de sua lanterna, de um cajado e dos óculos de Benedito (um amigo), chegou a uma estranha floresta que nunca havia visto, embora nem estivesse assim tão distante do reino de seu pai.

De suas árvores frondosas, de carvalho ancestral, pendiam frutos que lembravam maçãs, mas eram dourados, e pareciam brilhar no escuro, de modo que por vezes Hipomene os confundia com as próprias estrelas. Ao chão, viu diversos frutos que pareciam já maduros, e tinham uma cor acinzentada – estes não brilhavam mais...

Ao agachar para pegar um deles, espantou-se com seu peso – mais pareciam esculturas de maçãs, só que de ferro, ou algum material ainda mais pesado! Foi neste momento que Afrodite apareceu, como se o estivesse seguindo desde o início de sua aventura.

Que deseja nesta floresta, filho de Megareu?” – perguntou a deusa do amor.

“Quem dera eu soubesse ao certo, ò deusa... Apenas busco por esta inspiração, por sentir uma vez mais aquilo que senti quanto era jovem, ao ver a bela Atalanta correr nua pelos campos, deixando aos homens para trás”.

“Você deseja alcançar a musa fugidia? Você deseja ser um artista, filho de Megareu?”.

“Sim!” – respondeu, emocionado, Hipomene. Então Afrodite trepou numa das árvores (que só permitiam que deusas de seu porte as escalassem) e lhe trouxe três frutos dourados, além de um conselho:

“Vai, seja célere filho de Megareu, que fora das árvores tais frutos não tardam a se tornarem Chumbo. Vai e os coloca no caminho de sua musa, a fim de seduzi-la para ti. Vai agora mesmo!”.

E Hipomene, seguindo a intuição que Afrodite havia camuflado em meio as suas palavras, calculou tudo ainda naquela noite. Seguindo um teorema ainda mais antigo do que aquele atribuído a Pitágoras, colocou dois dos frutos nas extremidades de uma longa hipotenusa e, sabendo que os deuses adoram geometria, colocou-se no ângulo reto formado por seu triângulo, com o terceiro fruto nas mãos, aguardando a chegada de Atalanta...

Mas infelizmente sua musa não era muito boa de cálculos, e acabou por levar horas e horas para lhe encontrar, de modo que, quando chegou, o sol já se precipitava a nascer, e o fruto nas mãos de Hipomene estava amadurecendo, de forma que ele mal conseguia segurá-lo nas mãos.

“São precisos três frutos dourados para realizar minha transformação. Como se atreve a me ludibriar e me fazer chegar aqui, se tudo que me oferta é Chumbo?” – avisou a deusa nua, com uma imensa lança em riste, no alto da cabeça, carregada em sua mão esquerda, e apontada para o coração do pobre Hipomene.

“Me desculpe! Eu desisto, eu desisto; mas me poupe a vida!”.

“Sua vida já está selada, ó aspirante a Arte. O que nos resta saber é se irá renascer ou não”.

Aquelas palavras calaram fundo na alma de Hipomene. Então, subitamente, ele finalmente compreendeu... Largou o fruto de Chumbo ao chão e, como um cordeiro sorridente, caminhou à frente.

Quando Atalanta o transpassou pelo coração com sua lança, ainda pôde ver os primeiros raios de sol a refletirem em sua lâmina... Antes de desfalecer, ainda achou estranho como seu coração, arrancado do corpo, mais parecia um outro pequeno sol na extremidade daquela lança. Ele parecia cintilar, brilhar, parecia um coração de Ouro...

***

Ao despertar, já era dia, e Atalanta não se via. Via-se apenas uma imensa mariposa, que voou de um arbusto próximo até sua mão. Assim Hipomene soube: havia alcançado sua inspiração, havia se tornado um com ela, havia finalmente transformado tudo que era Chumbo em Ouro...

Deixou o cajado, os óculos e a lanterna para o próximo aspirante desta aventura, pois a sua havia terminado, e já não necessitava de nada além do que já trazia em sua alma.


raph’12

***

Naqueles dias do belo acordar das forças espirituais, os sentidos e o espírito não tinham, com rigor, domínios separados, já que em deus algum faltava a humanidade inteira (Schiller, acerca da mitologia grega)

***

Parte da série Esta outra história

Crédito da imagem: escultura de Vilhelm Bissen (Atalanta)

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28.11.12

Em nome do sexo

Texto de Alain de Botton em "Como pensar mais sobre sexo” (Ed. Objetiva) – trechos das pgs. 139 a 142. Tradução de Cristina Paixão Lopes. As notas ao final são minhas.

Seria tão melhor se não tivéssemos desejo sexual. Durante a maior parte de nossa vida, ele só representa problemas e angústias. Em nome dele, fazemos coisas revoltantes com pessoas de quem, na verdade, não gostamos, e acabamos nos sentindo nojentos e pecaminosos. As pessoas que desejamos geralmente nos dispensam por nos considerarem feios demais, ou não sermos seu tipo; os bonitinhos quase sempre já têm um namorado ou namorada. A maior parte da vida adulta envolve rejeição, música triste e pornografia ruim. É um milagre quando finalmente alguém se compadece e nos dá uma chance; mas, mesmo quando isso acontece, não muito tempo depois já começamos a nos interessar pelas pernas e cabelos de outras pessoas. Seria tão bom se não houvesse sexo – bom como são os meninos e meninas de 7 anos, cheios de doçura e encantamento com a vida dos saguis e veados [1].

Quando envelhecemos, podemos esperar o horror e a humilhação de não conseguir um bom desempenho, de olhar com luxúria para pulsos e tornozelos de pessoas que ainda eram bebês quando estávamos na universidade, e assistir ao lento colapso de nosso corpo, antes viçoso e elástico. Num dia ruim, a coisa toda parece feia para nos derrotar.

Mas há um outro lado, claro; um lado de êxtase e descoberta. Talvez o melhor momento para percebermos isso seja numa noite clara de verão numa cidade grande, por volta das 18h30, quando o trabalho em boa parte já acabou e as ruas cheiram a diesel, café, fritura, asfalto quente e sexo.

[...] O sexo nos faz sair de casa e de nós mesmos. Em nome dele, abrimos nossos horizontes e nos misturamos imprudentemente com membros aleatórios de nossa espécie. Pessoas que de outro modo se manteriam para si mesmas, que acreditam tacitamente que nada tinham em comum com a classe ordinária da humanidade, entram em bares e discotecas, sobem nervosas as escadas de cortiços, esperam em ambientes desconhecidos, [e] gritam para se fazerem ouvir acima da vibração da música [2].

[...] Em nome do sexo, expandimos nossos interesses e pontos de referência. Para nos ajustarmos aos nossos amantes, ficamos fascinados com a história dos móveis suecos do século XVIII, aprendemos sobre ciclismo de longa distância, descobrimos a porcelana sul-coreana. Por sexo, um carpinteiro robusto e tatuado se sentará em um café com uma delicada aluna de doutorado com franja, e ouvirá parcialmente uma torturante explicação sobre a palavra grega eudaimonia, deixado seus olhos traçarem padrões em sua impecável pele de porcelana, enquanto alguém grelha salsichas ao fundo.

[...] Somente pelo prisma do sexo o passado torna-se apropriadamente inteligível. A estranheza aparente da Roma Antiga e da China da Dinastia Ming não poderia, afinal, ter sido tão grande, apesar das barreiras da língua e da cultura, porque ali também as pessoas conheciam a força das fazes coradas e dos tornozelos bem-torneados. Durante o reinado de Montezuma I, no México, ou de Ptolomeu II, no Egito, deve ter sido mais ou menos igual entrar em alguém e suspirar ante a pressão de seu corpo contra o nosso.

Sem o sexo seríamos perigosamente invulneráveis. Poderíamos achar que não éramos ridículos. Não conheceríamos a rejeição e a humilhação tão de perto. Poderíamos envelhecer respeitavelmente, nos acostumaríamos aos privilégios e acharíamos que compreendíamos o que estava acontecendo. Poderíamos sumir apenas nos números e palavras. É o sexo que cria o estrago necessário nas hierarquias comuns de poder, status, dinheiro e inteligência [3].

O professor se colocará de joelhos e implorará para ser açoitado pela trabalhadora rural sem estudos. O CEO perderá a razão diante da estagiária; já não importará que ele comande alguns bilhões de dólares e que ela alugue um quartinho no porão. Sua única prioridade será o prazer dela; por ela ele aprenderá os nomes de bandas que não conhece, entrará numa loja e comprará um vestido amarelo-limão que não caberá nela; será delicado onde antes era indiferente, reconhecerá suas idiotices e sua humanidade; e quando tudo estiver terminado, ele se sentará em seu carro alemão do lado de fora da imaculada casa de sua família e chorará incontrolavelmente [4].

Talvez até mesmo abraçaremos a dor que o sexo nos causa, pois sem ela não conheceríamos tão bem a arte e a música. Haveria muito menos sentido nos Lieder de Schubert e na Ophelia de Natalie Merchant, nas Cenas de um casamento, de Bergman, e na Lolita de Nabokov. Estaríamos muito menos familiarizados com a agonia – e, portanto, muito mais cruéis e menos prontos a rir de nós mesmos. Quando já se tiver dito tudo de desprezível, mas justo, sobre nossos infernais desejos sexuais, ainda poderemos celebrá-los por não nos permitirem esquecer por mais do que uns poucos dias o que realmente está envolvido no viver uma vida humana encarnada, química e imensamente insana.

***

[1] Conforme Adão e Eva, antes de comerem do fruto proibido, e “descobrirem a nudez”. Mas é nossa sina inevitável: tornarmo-nos adultos.

[2] Segundo Schopenhauer, a força da vida é a grande responsável por muito do que fazemos, inconscientemente, no sentido de tentar propagar nossa prole adiante (sim, ele postulou isso muito antes da psicologia evolutiva). Muito do que os paulistanos fazem na Rua Augusta, assim como muito do que os cariocas fazem na Lapa, pode ser compreendido dessa forma: a maneira com que a vida anseia por si mesma. E, uma vez isto tendo sido compreendido, trazido à consciência, será tanto mais fácil “entrar em acordos” com nosso lado animal, nos tornando cada vez mais humanos, de fato.

[3] Pois o entendimento ao qual o sexo nos catapulta, o amor, este jamais seguiu hierarquias.

[4] A vida está sempre apontando para dentro: “Lá está o que procura!”, ela grita... Mas insistimos em ignorar nosso próprio pensamento e intuição, insistimos em procurar lá fora por fórmulas mágicas de sabedoria instantânea e, mais recentemente, por comprimidos de felicidade diluída.

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Crédito da imagem: Hans Neleman/Corbis

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27.11.12

Abrindo portas na mente, parte 2

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

« continuando da parte 1

Eu era criança e tinha a visão de uma criança. A mesa a minha frente era enorme, exatamente como seria para uma criança. Eu mesmo, nesta vida, me lembro bem de como a pia do banheiro da minha casa era tão alta que, quando eu tinha de escovar os dentes, precisava subir num banquinho. Foi uma associação direta, visual, com esse tipo de lembrança...

Em torno da grande mesa, via as pernas das pessoas andando para cá e para lá. Parece que havia um bolo, ou coisa parecida, sendo feito pelas serviçais da minha casa. Minha família era nobre, e era um dia tradicional, haveria uma festa à tarde em minha casa. Podia ver que tinha muitos irmãos.

Pois bem, há muitos que desejariam ter sido grandes reis ou nobres em suas vidas passadas, como se isto fosse indicativo de alguma espécie de “superioridade”... Ledo engano, são exatamente estes que, muitas vezes, se enveredaram pelas vidas mais corruptas e distantes do amor, não muito diferente de como ocorre ainda hoje com todas as famílias que possuem muitos bens materiais – muitas coisas com que se preocupar, e se esquecer do amor. Quando o amor, ou melhor, a potencialidade de amar, esta sim, é tudo o que viemos aqui desenvolver, passo a passo, vida após vida.

E esta criança, que havia nascido nalguma região da atual França, nalgum tempo entre 120 a.C. e 105 a.C., pelos meus cálculos [1], podia perceber claramente esta falta de afeto numa grande família nobre. Preferiu migrar em direção à península grega, mesmo contra a recomendação dos pais (isto provavelmente nunca muda), e se estabelecer, como escriba, na grande Atenas, o centro da cultura mundial – ou, pelo menos, o mundo conforme a visão de um jovem europeu da época:

Cheguei lá após as vidas de Sócrates e Platão, daí eu ter ido também por causa da fama da cidade. Primeiramente fui a um templo bem tradicional onde uma mulher, o oráculo, me disse que só eu posso seguir meu próprio caminho, não adiantava tentar achar a um sábio, um guia, ou mestre, pois ninguém poderia trilhar meu próprio caminho além de mim. Depois me vi conseguindo trabalho como escriba, e talvez com a ajuda de uma carta de meu pai, que por certo era um homem influente.

Se depois, ao relembrar tais memórias com a razão da vida atual, fiquei feliz em saber que já era um “sujeito letrado” desde esta época, na prática isto não me ajudou muito, pois me faltava ainda a sabedoria que as letras não ensinam... Quando Atenas foi “finalmente anexada” pelos romanos, não houve guerra nem destruição na cidade em si; mas nas imediações, nas pequenas zonas rurais em seu entorno, houve morte e carnificina, estupros e todo tipo de horror que acompanha a sina dos inocentes que tiveram o azar de estar no caminho das hordas de soldados.

Pois é, ocorre que o tal sujeito letrado tinha um grande amor nos arredores de Atenas – que poderia ter sido salva, quem sabe, se tivesse sido “assumida” e trazida para residir em sua casa, na segurança da cidade:

Depois me vi já mais velho, provavelmente acima dos 30 ou 40, e percebi que havia me apaixonado por uma camponesa... Até o dia em que vi Atenas sendo invadida por soldados, e eram romanos, com certeza. Eles passaram a controlar a cidade, era o período da tutela romana... Mas eu nem me importava, pois ao que parecia eles atacaram antes os campos, e eu sabia que aquela camponesa havia sido morta. Então eu pensei que se eu tivesse assumido meu amor por ela talvez ela estivesse ainda viva, e isso doeu demais. Daí eu comecei a frequentar festas e me relacionar com diversas mulheres. Passei a me autocastigar, e não tomar mais conta da minha própria saúde como deveria. Comecei a beber bastante...

De que me valia haver “nascido nobre” agora? Provavelmente, foi à prepotência adquirida através desta “nobreza” que me impediu de assumir um amor “não tão nobre”. Os preconceitos que temos hoje, o desejo de ser “superior”, é algo tão antigo, tão antigo... E mais antiga ainda é a cerveja, e o vinho, e os inúmeros entorpecentes que nos têm servido como “rotas de fuga da realidade”. Quantas vidas teremos desperdiçado assim?

Me vi morrendo com 50 para 60 anos [2], num quarto com minhas serviçais e meus amigos. Então eu lamentei profundamente por não ter amado nessa vida tanto quando poderia ter amado. Aprendi muitas coisas, mas não pude aprender a ser sábio sobre mim mesmo, e não pude amar como gostaria. Vi duas luzes chegando, os seres que me levariam de volta. Não os conhecia, e isso me deixava muito apreensivo. Mas fiquei mais tranquilo ao saber que iria para um lugar onde poderia tentar aprender tudo aquilo que ficou faltando dessa vida... Então, eu subi...

Somente muitos anos depois, ao ver documentários e estudar sobre as experiências de quase morte (EQMs [3]), é que pude reparar que os relatos de “pontos de vista flutuando no teto, vendo o corpo abaixo, numa cama” eram surpreendentemente parecidos com tais “visões de morte” que tive na regressão. De fato, não existe vida após a morte, mas vida após a vida, por tudo o que estudei e “vivenciei”, provavelmente exista.

Antes de prosseguirmos, gostaria de tecer duas considerações finais acerca desta experiência de morte: (a) Me parece ser muito, muito importante, ter familiares, amigos e conhecidos, no momento da morte. Isto é uma pena, pois em nossa era morremos sozinhos, em hospitais, entubados e ligados a máquinas. Naquela época, e durante muitos séculos, a morte não era assim tão assustadora [4], e as famílias compareciam aos momentos finais do moribundo, que muitas vezes morria em casa, na mesma cama em que dormia todas as noites; e (b) Se tem uma coisa que parece ser intransponível, é o acesso as memórias que ocorreram entre vidas, no chamado plano espiritual. Mesmo nas centenas de casos de crianças que lembram vidas passadas, estudados minuciosamente por Ian Stevensson [5], que eu saiba não se viu um único relato do período entre vidas. Um mistério, um mistério!

» Na continuação, guerras e navegações...

***

[1] Baseados na época em que, segundo a História, Atenas foi invadida pelos romanos (após uma revolta contra o domínio do Império, cerca de 88 a.C.). Eu não me lembro de ter estado atento a estes eventos em específico antes de ter realizado a regressão, mas é possível que tenha estudado isto, por alto, muitos anos antes, nas aulas de história do colégio. Em todo caso, já conhecia Atenas (e Sócrates, Platão, etc.) nesta época, de modo que certamente fiquei em dúvida se tais memórias não poderiam ser produção de uma “imaginação que tentava reconstruir uma Atenas antiga”. Por fim, considerando outras vidas relembradas (estas sim, que nada tinham a ver com qualquer assunto que estivesse lendo ou estudando na época), acabei considerando que mesmo esta vida, em que estive em Atenas (conforme será explicado na sequencia do texto), foi uma “vida real”.

[2] É preciso considerar que a minha tentativa de “conferir uma idade” as fases desta vida foi baseada na razão desta vida atual, moderna, onde uma pessoa que aparenta ter de 50 para 60 anos muitas vezes pode ser até mais velha. Naquela época antiga, pelo contrário, talvez alguém com 40 anos já aparentasse ter mais de 50 (por nossa visão atual).

[3] Sobre o assunto, recomendo a série Quase morte.

[4] Ver o artigo O sexo e a morte.

[5] Ver a série Caso Parmod.

***

Crédito da foto: SOPA RF/SOPA/Corbis

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26.11.12

Uma visita a Zygmunt Bauman

Em Julho de 2011, uma equipe do Café Filosófico (TV Cultura) foi recebida pelo professor Zygmunt Bauman, em sua casa, na cidade de Leeds, Inglaterra. Previsto para durar aproximadamente sessenta minutos, o encontro se alongou por cerca de três horas. Bauman revelou-se uma pessoa de extrema simpatia e cordialidade com a equipe que virtualmente “invadiu” sua casa naquela tarde de verão inglês com câmeras de cinema, gravadores de som e equipamentos profissionais de iluminação.

Bauman os recebeu em um ambiente familiar despojado, marcado por imagens de sua esposa Janina Bauman, de seus filhos e netos e de muitos livros em variados idiomas. Foi uma longa conversa que tratou de expectativas para o século XXI, internet, a necessidade de construção de políticas globais, a construção de uma nova definição de democracia, e finalmente, a necessidade da constante elaboração e reelaboração de nossas identidades sociais em uma era de modernidade líquida...

Trecho em destaque: Os 500 amigos do Facebook
Um viciado do Facebook gabou-se para mim de que havia feito 500 amigos em um dia. Minha resposta foi que eu vivi por 86 anos, mas não tenho 500 amigos. Eu não consegui isso. Então, provavelmente, quando ele diz "amigo", e eu digo "amigo", não queremos dizer a mesma coisa. São coisas diferentes.

Quando eu era jovem, um nunca tive o conceito de "redes". Eu tinha o conceito de laços humanos, de comunidades, esse tipo de coisa, mas não redes. Qual é a diferença entre comunidade e rede? A comunidade precede você. Você nasce numa comunidade. Por outro lado, temos a rede. O que é uma rede? Ao contrário da comunidade, a rede é feita e mantida viva por duas atividades diferentes. Uma é conectar e a outra é desconectar.

E eu acho que a atratividade do novo tipo de amizade, o tipo de amizade do Facebook, como eu a chamo, está exatamente aí. Que é tão fácil de desconectar. É fácil conectar, fazer amigos. Mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar. Imagine que o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões off-line, conexões de verdade, face a face, corpo a corpo, olho no olho.

Então, romper relações é sempre um evento muito traumático. Você tem que encontrar desculpas, você tem que explicar, você tem que mentir com frequência e, mesmo assim, você não se sente seguro porque seu parceiro diz que você não tem direitos, que você é um porco, etc. É difícil, mas na internet é tão fácil, você só pressiona delete e pronto.

Em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500... E isso mina os laços humanos.

Os laços humanos são uma mistura de benção e maldição. Benção, porque é realmente muito prazeroso, muito satisfatório, ter outro parceiro em quem confiar e fazer algo por ele ou ela. É um tipo de experiência indisponível para a amizade no Facebook; então, é uma benção. E eu acho que muitos jovens não tem nem mesmo consciência do que eles realmente perderam, porque eles nunca vivenciaram esse tipo de situação.

Por outro lado, há a maldição, pois quando você entra no laço, você espera ficar lá para sempre. Você jura, você faz um juramento: até que a morte nos separe, para sempre. O que isso significa? Significa que você empenha o seu futuro. Talvez amanhã, ou no mês que vem, haja novas oportunidades. Agora, você não consegue prevê-las. E você não será capaz de pegar essas oportunidades, porque você ficará preso aos seus antigos compromissos, às suas antigas obrigações.

Então, é uma situação muito ambivalente. E, consequentemente, um fenômeno curioso dessa pessoa solitária numa multidão de solitários. Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo.


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24.11.12

A náufraga

Na superfície
Existe a dor

O amor é mais profundo
O amor é todo
Um oceano

Vivemos neste mundo
Como barcos a deriva
Temerosos em se chocar
Em naufragar

Quando era criança
Vi uma náufraga que vivia no mar
E nadava junto aos peixes
E dançava com as ondas
E cantava antigos cânticos de sereias...

Quando perguntei qual era sua magia
Ela me respondeu:
“A Natureza não está interessada
em nosso orgulho;
Todo o vasto oceano esteve sempre à espera
do nosso primeiro mergulho.”

raph’12

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Crédito da ilistração: Caroline Jamhour (Fada Mariposa)

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21.11.12

Abrindo portas na mente, parte 1

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

Até hoje me lembro de quando finalmente me dei conta do que havia se passado realmente. Estava então no meio da viagem entre Copacabana e a Gávea, onde morava, no Rio de Janeiro, e meditando sobre aquilo tudo. Até aquele momento, tudo o que se passou na minha primeira regressão a vidas passadas, nesta vida, havia sido assimilado como algo corriqueiro – não havia nada para se temer, nem duvidar, ou causar qualquer espanto... Foi ali, naquele ônibus, que minha razão finalmente alcançou e abarcou toda aquela experiência, tentando racionalizar o que talvez estivesse para sempre além da racionalização, e da linguagem.

Regredir, viajar pelos portais do tempo e do espaço, certamente foi minha maior experiência espiritual, e a mais estranha das festas estranhas. Até então, havia relutado em aborda-la aqui, mas acredito que esta série não estaria completa sem este relato [1].

Não é mesmo recomendado regredir sem ter uma excelente razão, e eu talvez tivesse as minhas... Havia finalmente concordado em fazer terapia, pela insistência de meu pai, que sempre me conheceu muito bem. Estava há cerca de um mês gripado, e não me lembro de ter ficado doente por tanto tempo em outra fase desta vida [2]. Alguma coisa, de fato, estava errada comigo, mas nem eu mesmo sabia o que. Aceitei, dessa forma, iniciar uma terapia com a Kátia, uma terapeuta holística e espiritualista, que se não me engano me foi indicada por alguém da minha família. Eu só não imaginava que já iria passar por uma experiência de regressão de memória a vidas passadas já na primeira sessão [3]...

Antes de prosseguir, gostaria de passar brevemente sobre o problema psicológico que eu acreditava estar tratando, e o problema que eu tinha realmente. Não irei entrar em maiores detalhes, pois este relato não é sobre mim, e sim sobre a experiência em si:

Muito bem, em suma, eu tinha um problema que hoje costumo chamar de “complexo de santo”. Acreditava que devia me sacrificar para ser um “menino santinho”, sem namorar, sem muita vida boêmia (em pleno Rio de Janeiro!), e me dedicando com afinco a espiritualidade (foi pouco antes desta época que comecei a escrever sobe o tema [4]). No final das contas, e após as regressões, descobri duas coisas que guardei fundo na memória e na alma, até hoje: (a) Que na verdade meu “problema” com namoros advinha de traumas antigos, de outras vidas, com certas falhas minhas na formação de famílias e cuidado com meus filhos; e (b) Que em realidade toda aquela história de “ser santinho” era somente o meu ego tentando construir para si mesmo um “patamar de santidade” – em outras palavras, estava querendo “ser santinho” por mim, e não pelos outros. Essas lições foram (espero) assimiladas, mas são problemas que, decerto, ainda permearão esta e muitas outras vidas.

Agora podemos voltar à terapia em si. O consultório da Dra. Kátia parecia bastante comum, com um sofá para ela, um sofá maior, ou divã, para o paciente se deitar confortavelmente, um tapete felpudo, e baixa luminosidade. Devo dizer que a experiência em si foi tão impactante, que hoje mal me lembro das feições da Kátia, e por isso nem vou descrevê-las aqui [5].

O procedimento padrão do início da regressão era uma espécie de meditação “guiada” pela terapeuta, que me dava indicações sobre o que procurar imaginar, tentando “destravar” minha mente e alça-la em estados alterados de consciência. Uma das coisas extraordinárias da experiência é que eu permaneci consciente o tempo todo, embora certamente não num estado normal, desses do dia a dia. Somente muitos anos depois dessa experiência que fui chegar a estados similares, quando comecei a desenvolver minha mediunidade. Infelizmente, não tenho mais contato com a Kátia, e não faço ideia de qual “ramo” ou “técnica” terapêutica ela utilizou.

Mas fato é que funcionou muito bem... Após me imaginar voando pelos céus num grande balão, e deixando o solo cada vez mais distante de mim, entrei nalgum estado estranho, onde meu corpo inteiro parecia “ondular”, quase como se fosse feito de luz, e não mais de átomos com massa. Foi então que as lembranças iniciaram. Isto aqui faz parte de algumas anotações que fiz na época, dias depois das regressões:

Assim que ela indicou a idealização de um longo corredor de diversas portas, e me mandou abrir uma delas, eu comecei a regredir... Após um certo clarão de luz, me vi num monte, a grama era bem verde e a frente havia uma depressão que revelava uma extenso rio e algumas árvores. Sempre sendo guiado pelas perguntas da terapeuta, vi perto do rio uma pessoa, provavelmente um guia espiritual, que me esperava. Eu sabia que ele tinha a resposta que eu procurava, mas eu não podia andar até lá porque alguma coisa no meu peito me impedia, uma dor física mesmo, um mal estar tremendo que me fixava onde estava. Mesmo assim pude ver que usava sandálias de couro amarradas até a canela e uma túnica de cinza bem claro. Meu cabelo era castanho e dava até os ombros. Devia ter por volta de 30 anos... De resto não consegui ver mais nada.

O que acho interessante complementar aqui, sobre esta experiência inicial: (a) As lembranças eram lembranças mesmo, e não visões, ou algo como vídeo ou trechos de cinema. O que conseguia observar, era através dos meus próprios olhos (na época, sabe-se lá qual), e isto significa que não podia me ver realmente, ou seja: via apenas parte do meu vestuário, as mechas de cabelo que caiam sobre a face, meus pés e mãos, etc; (b) O registro desse tipo de memória é icônico, simbólico [6], e me parece que as lembranças mais profundas e facilmente acessáveis são aquelas revestidas de alta carga emocional – sejam lembranças boas, felizes, ou traumáticas; (c) Aquele que achei ser meu guia espiritual era, em realidade, eu mesmo, ou melhor, o meu Eu Superior, aquela entidade que parece ser capaz de lembrar perfeitamente de todas as minhas vidas e, portanto, de todas as minhas escolhas, boas ou ruins. Até hoje, se me lembro bem, esta “sensação” que me impedia de me aproximar desta entidade foi, em realidade, o maior medo que já senti nesta vida. Mas só fui compreender isso tudo anos depois, quando consegui me aproximar um pouco mais deste Eu divino [7].

Então “pulei” a uma época em que devia ter uns 8 para 10 anos...

» Na continuação, um escriba na antiga Atenas...

***

[1] Em todo caso, devo revelar muito pouco acerca de minhas vidas passadas, já que devem (ou deveriam) interessar somente a mim. Este relato está totalmente focado na experiência de regressão em si.

[2] E nunca mais fiquei mais do que alguns dias gripado, após a regressão.

[3] Decerto não seria algo indicado, mas talvez a Kátia tenha “sentido” que seria algo seguro naquele momento, e no contexto do meu tipo de problema psicológico (falo dele na sequencia do texto).

[4] Ver o conto O mensageiro dos céus, para ter uma ideia de como tudo começou...

[5] Muito do que experienciei nas regressões foi lembrado perfeitamente por muitos anos, mas nalgum momento comecei a esquecer, aos poucos, de fatos e imagens isoladas. Hoje este relato só é possível por que deixei algumas coisas anotadas na época, em 1999 (alguns trechos do texto acima foram retirados diretamente dessas anotações, geralmente estarão em itálico).

[6] Sir Charles Scott Sherrington traz uma definição muito precisa dessa questão, em seu livro Man on his nature, onde ele imagina a mente como um “tear encantado” a tecer padrões mutáveis porém sempre significativos – tecendo padrões de sentido: “Esses padrões de sentido transcenderiam programas ou padrões puramente formais ou computistas e dariam margem à qualidade essencialmente pessoal que é inerente a reminiscência, inerente a toda mnesis, gnosis e práxis. [...] Padrões pessoais, padrões para o indivíduo, teriam de possuir a forma de scripts ou partituras – assim como padrões abstratos, padrões para computador, têm de estar na forma de esquemas ou programas. Portanto, acima do nível de programas cerebrais, precisamos conceber um nível de scripts e partituras cerebrais. [...] A experiência não é possível antes de ser organizada iconicamente; a ação não é possível se não for organizada iconicamente. ‘O registro cerebral’ de tudo – tudo o que é vivo – tem de ser icônico. Essa é a forma final do registro cerebral, muito embora o feitio preliminar possa ser moldado como cômputo ou programa. A forma final de representação cerebral tem de ser, ou admitir, a ‘arte’ – o cenário e a melodia artística da experiência e da ação.”

[7] Alguns ocultistas chamam a isto de S.A.G.

***

Crédito da imagem: Paul Anderson/Images.com/Corbis

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Ventos do deserto

Quando os ouvi pela primeira vez, neste vídeo do Playing for Change, achei sua música estranha. Na segunda, algo me chamou a atenção. A partir da terceira vez, compreendi... São os ventos do deserto, os únicos que podem explicar como tal luz veio a brilhar, décadas atrás, em músicos vindos de povos nômades do Saara, que cantam em dialetos locais, mas que ainda assim foram capazes de antever esta bela Primavera que se arma no horizonte.

Este é um mantra da banda Tinariwen, Imidiwan Afrik Temdam, que se canta assim:

A letra:
Meus companheiros por toda a África, eu tenho uma pergunta... Uma pergunta que continua a me assombrar: seria a revolução como algumas árvores, onde os galhos só irão crescer se as regarmos?

***

Crédito da imagem: Johannes Mann/Corbis

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20.11.12

Tudo está conectado...

"- É essa. A música dos meus sonhos."

"- Eu a chamo de Sexteto Cloud Atlas. São movimentos que eu escrevo imaginando a nós... Nos encontrando repetidas vezes em vidas diferentes, épocas diferentes..."


Dia 25 de Dezembro de 2012 estréia no Brasil o filme A Viagem, dos criadores de Matrix, e do diretor de Corra Lola, Corra... Qualquer semelhança com teorias espiritualistas milenares talvez não seja, afinal, mera coincidência. Tudo está, de fato, conectado:

Agora é aguardar a estréia, e a futura análise do Acid0 :)

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19.11.12

Carta a um evangélico

Olá Sr. Evangélico, aqui quem fala sou eu, o Sr. Espiritualista.

Antes de mais nada, preciso lembrar-lhe de que somos irmãos, ou pelo menos não há nada explícito em nossas doutrinas que afirme o contrário...

Vejamos, então, a questão da espiritualidade africana. Tenho visto o senhor dizer que os orixás são demônios e que toda macumba é necessariamente coisa do Capeta... No entanto, é preciso que saiba: para o pessoal lá dos terreiros, macumba é só um instrumento musical, tipo reco-reco, sabe como é? Nem tem tanta importância assim, o som dos tambores é bem mais importante no ritual deles; E, já que falamos nos rituais, são coisas bem antigas, bem antigas mesmo! Muito antes dos termos “demônio” e “Capeta” terem sido inventados, já se faziam rituais para os orixás na África. Se ler um pouco de ciência e antropologia, saberá o que os cientistas já dão por quase certo: que viemos todos da África, o homo sapiens surgiu em algum ponto entre a parte sul e central do continente mãe.

O próprio deus bíblico deve muito ao deus que era cultuado na Mesopotâmia por povos que já eram bisnetos milenares dos primeiros africanos que batiam tambores em homenagem a Natureza. Sem El, Javé não seria muito mais do que o espírito ancestral de alguma tribo de hebreus perambulando por Canaã. Javé foi cultuado como um patriarca de homens, El foi compreendido como um deus cósmico, criador de tudo o que há [1]... Mais ou menos como Olorun, que criou o mundo, mas está tão acima de nosso plano de existência que não há nenhum xamã africano que tenha tido coragem de tratar diretamente com ele [2].

Foi muita engenhosidade dos hebreus esta que associou Javé a El, e com isso criou a ideia de um deus cósmico que, não obstante, poderia ser contatado como qualquer outro grande patriarca. O problema é supor que somente os rabinos podiam contatá-lo... Não foi exatamente por isto que Lutero lutou toda sua vida? Para que as pessoas comuns pudessem ler os textos sagrados e conhecer a Deus por si mesmas, sem a intermediação de Roma? Pois bem, pois os nossos irmãos africanos já falavam com Deus há muito mais tempo que a gente, e nem precisavam de livros para isso.

Quer dizer que todo o ritual que evoca orixás é coisa do bem? Claro que não, mas a maioria é. Maçãs podres, temos em qualquer pomar, e tenho certeza de que mesmo o neopentecostalismo tem as suas... Ou o senhor acha que abençoar talismãs com óleo ungido, ou derrubar fileiras inteiras de pessoas ao chão, é algo perfeitamente baseado nas Escrituras?

Tudo bem, vamos ser honestos: o que achamos um barato é essa tal experiência religiosa. Decerto Pentecostes foi uma loucura do Espírito Santo, mas quem garante que foi a primeira? Se até hoje os senhores procuram falar a língua dos anjos, porque encrencar com o caboclo que fala a língua dos espíritos da Natureza? Por mim, anjos e rios, cachoeiras e carruagens de fogo, florestas e sarças ardentes, se foram vistas pelas mentes que creem, se fizeram o bem para elas, que mal há? Onde o senhor vê o Capeta nessa história toda?

Por mim, se existe um ser assim, condenado a ser mal por toda a eternidade, ele não iria atuar sobre os verdadeiramente religiosos, mas antes optar pela via mais simples: tentar aqueles que já não creem, que não se dedicam, que nunca se arriscaram realmente a mergulhar neste Oceano de Amor que permeia todo o espaço e todos os tempos...

Me perdoe, eu tenho certeza que não é o seu caso, mas acaso nunca viu um cristaozão desses que bate no peito dentro da Igreja e diz: “Sou de Cristo!”, mas que começa a falar mal da sogra 5 minutos depois de terminar a oratória do pastor? De que adianta se achar um grande cristão ao chutar imagens de santos e orixás por aí, se ao chegar em casa chuta o seu cachorro e esbofeteia sua esposa? Será que Cristo falou numa espada para matar os infiéis, ou em oferecer a outra face para o agressor?

Os índios das Américas, coitados, também nunca tinham ouvido falar em Cristo. Os colonizadores europeus não deram muitas escolhas para eles: ou se convertiam, ou eram exterminados [3]. Até mesmo muitos que disseram ter se convertido foram exterminados do mesmo jeito, pois não serviam para o trabalho escravo... E o que há de cristão nisso tudo? Nas Cruzadas, o general francês perguntou ao representante do Papa como iriam identificar os cristãos dos não cristãos, na invasão de uma cidade onde cristãos, judeus e cátaros viviam em harmonia; Ele apenas disse isto: “Matem todos, que Deus escolherá os seus”... Ao que lhe pergunto: e quais deles não eram “de Deus”?

Ainda hoje, no Centro-Oeste do Brasil, há tribos indígenas sendo evangelizadas. Evangelizar não é o problema, pois ao menos estão dando a oportunidade para que esses indígenas se tornem parte de alguma outra comunidade que não a sua, e não vivam isolados, como párias, em um país construído sobre a invasão e o extermínio de suas terras ancestrais... O problema, este sim, é proibi-los de pintar o corpo de vermelho. “Vermelho é a cor do Capeta!”, seus colegas dizem... Mas, e o que diabos os índios tem a ver com o Capeta? Na maioria das mitologias indígenas, sequer existe um ser representante do mal, quanto mais um anjo caído... Eles nem sabem o que é um anjo! Se não podem se pintar de vermelho, vão se pintar de branco? Ou de verde? Ou lilás? Convenhamos, isso não faz o menor sentido.

Vamos tentar ser mais seguidores de El, e menos seguidores de Javé. Javé era um espírito ancestral, e precisava de barganhas e favores, e tinha ciúmes dos cultos de espíritos e deuses alheios, como foi o caso com Baal. Mas El não, El não tinha um oposto, pois o Tudo não tem oposto – o Nada não existe.

Dessa forma, se existe um Capeta, seria injustiça da parte de Deus que ele pudesse controlar a mente dos seres puros, corrompendo-os... Acho que faz mais lógica, além de estar mais de acordo com o que vemos na Natureza e na psicologia humana, considerarmos que o mal existe na alma de cada um de nós, e que é somente lá, precisamente lá, que precisamos fazer uso desta espada de que Cristo falou...

Para cortar a trave que obstruí nosso próprio coração. Para que nossa luz de amor transborde, e englobe os irmãos a nossa volta. Para que evangelizemos realmente uma boa nova, uma notícia de uma nova era, de uma nova sociedade, uma nova espiritualidade, uma nova religião... Assim, quem sabe, também poderemos ler, dentro de nossa alma, conectada a Alma do Mundo: “também eu sou da raça dos deuses, também eu trago o Pai dentro de mim, também eu farei tudo aquilo que o Cristo realizou, e talvez até mais”. E nem sequer precisaremos de um livro para guardar tal Verdade.

Cristo salva, afinal, todos aqueles que o encontram dentro de si mesmos... Mas Cristo é apenas uma palavra. O que salva é a fé, e não há fé mais profunda do que a fé no Amor. Pense nisso meu amigo, meu irmão. Pense, e reflita esta boa nova adiante!

***

[1] Maiores detalhes na série A roda dos deuses (esta teoria não é minha, mas de Mircea Eliade, um dos maiores especialistas em mitologia do séc. XX).

[2] Na mitologia Iorubá, talvez a de maior influência no Brasil, Olorun ou Olodumare é o criador do universo e mora no Orun (Céu). Embora reconhecido como Ser Supremo, não existe um culto ou templo que lhe é dedicado exclusivamente. Os orixás são os seus representantes em Aiye (Terra).

[3] Michel de Montaigne dá sua opinião, bem mais embasada do que a minha, nesta série de Reflexões sobre o sexo.

***

Crédito das imagens: [topo] Mark Keathley (Dance of Grace); [ao longo] Stephen Frink/Science Faction/Corbis

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Conversa Alheia: Estados alterados de consciência, Rituais e Personalidades

Com vocês, mais um episódio do Conversa Alheia, onde alguns blogueiros e livres-pensadores falam sobre o que quer que lhes venha a mente...

Raph Arrais, Dani Roses e Igor Teo chamam Carl Gustav Jung para uma conversa.

Citado no programa:
Invocando os Deuses
Xamãs Ancestrais

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» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube

» Para baixar os vídeos do YouTube, você pode usar o complemento Ant Video Downloader (para Firefox)


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14.11.12

Uma filosofia para o erotismo

Texto de Alain de Botton em "Como pensar mais sobre sexo” (Ed. Objetiva) – trechos das pgs. 29-31 e 41-42. Tradução de Cristina Paixão Lopes. As notas ao final são minhas.

Eles se deitam na cama e acariciam-se ainda mais [1]. Ele leva a mão para o meio das pernas dela e faz uma delicada pressão, percebendo, com intensa alegria, que ela está molhada. Ao mesmo tempo, ela o toca e fica satisfeita de forma equivalente ao sentir a extrema rigidez do pênis.

Se estas duas reações fisiológicas são emocionalmente tão satisfatórias (tão eróticas) é porque sinalizam um tipo de aprovação que está totalmente além da manipulação racional. Ereções e lubrificações simplesmente não podem ser estimuladas somente pela força de vontade e são, portanto, indícios de interesse particularmente verdadeiros e honestos [2]. Em um mundo em que falsos entusiasmos são frequentes, em que é muitas vezes difícil dizer se as pessoas estão nos dizendo a verdade ou se estão sendo delicadas apenas por educação, a vagina molhada e o pênis rígido funcionam como agente inequívocos de sinceridade [3].

[...] Os momentos em que o sexo domina nosso ser racional costumam ser altamente eróticos. Daqui a algumas semanas, nosso casal irá para o litoral passar o fim de semana. No sábado à noite, no hotel, depois de um dia de sol e banhos de mar, eles se deitarão juntos e começarão a conversar e, eventualmente, o assunto sobre fantasias sexuais irá surgir. Ambos admitirão que gostam muito de uniformes. [...] O erotismo em relação a uniformes parece brotar da lacuna entre o controle racional que eles simbolizam e o desejo sexual que pode, momentaneamente, mesmo que na fantasia, ganhar vantagem sobre ele.

Claro que, na maior parte do tempo, quando as pessoas conversam conosco – de médicos e enfermeiras a gerentes de investimento e contadores –, elas não estão molhadas ou com ereções; elas quase não nos notam e com certeza não estão dispostas a interromper um procedimento médico ou atrasar uma teleconferência por nossa causa. Essa indiferença profissional pode ser dolorosa ou humilhante para nós. Daí o poder particular da fantasia de que a vida pode ser virada de cabeça para baixo e suas prioridades normais podem ser revertidas [4].

[...] Em nossos jogos sexuais, podemos reescrever o roteiro: agora a enfermeira deseja tanto fazer amor conosco que se esquecerá totalmente de que está ali para tirar uma amostra de sangue. [...] Ao transarmos apaixonadamente em uma cabine de banheiro de um hospital imaginário ou em um armário, a intimidade, ao menos simbolicamente, prevalece sobre o status e a responsabilidade. Muitos ambientes formais podem ser inesperadamente eróticos em si mesmos.

[...] Transar no fundo de um avião cheio de viajantes executivos é experimentar inverter a hierarquia normal das coisas, é tentar introduzir o desejo em um ambiente onde a fria disciplina geralmente predomina sobre os nossos desejos. A 10 mil metros de altura, a vitória da intimidade parece maior, e nosso prazer aumenta na mesma proporção. Dizemos que o cenário no banheiro do avião é “sexy”, mas o que realmente queremos dizer é que estamos excitados por termos superado um tipo de alienação do contrário opressiva.

O erotismo é, portanto, manifesto de forma mais clara na interseção entre o formal e o íntimo. É como se precisássemos ser lembrados das convenções para apreciar de maneira adequada as maravilhas de se estar desprevenido ou para continuar a ultrapassar os limites de nosso ser vulnerável a fim de sentir com real intensidade as qualidades especiais do local ao qual nos foi permitido acesso. Isso explica o apelo das lembranças da nossa primeira noite com alguém, quando os contrastes eram mais nítidos [5]. Por outro lado, mais tristemente, também explica a falta de erotismo que sentimos numa praia de nudismo ou com um parceiro de longa data que se esquece de esconder sua nudez contra os constantes perigos de nossa predatória ingratidão [6].

[...] Uma das dificuldades do sexo é que – no quadro mais amplo – ele não dura muito tempo. Mesmo em seus extremos, estamos falando de um fenômeno que pode ocupar apenas raramente duas horas, ou a duração aproximada de uma missa católica.

O ânimo, depois disso, tende a ser deprimido. A tristeza pós-coito normalmente se instala no casal. Pode haver um impulso de um ou ambos para dormir, ler o jornal ou fugir. O problema, em geral, não é o sexo em si, mas o contraste entre sua inerente ternura, energia e hedonismo, e os aspectos mais mundanos do resto de nossa vida, o eterno tédio, repressão, dificuldade e frieza. O sexo pode dar um alívio quase insuportavelmente grande aos desafios que enfrentamos [7].

Além disso, com nossa libido gasta, nossos entusiasmos anteriores podem parecer inibidoramente estranhos e desconectados do nosso eu cotidiano e de nossas preocupações triviais. Esforçamo-nos para ser sensíveis, mas um momento antes – é isso mesmo? – estávamos desesperados para chicotear nosso amante. Vivemos contentes num moderno mundo democrático, mas agora mesmo passamos parte da noite dando asas ao nosso desejo de ser um sádico nobre que aprisiona uma donzela numa masmorra medieval.

Nossa cultura os encoraja a reconhecer bem pouco de quem normalmente somos no ato sexual. Parece um processo puramente físico, sem importância psicológica. Mas, como vimos, o que acontece quando se faz amor está ligado a algumas de nossas ambições mais importantes. O ato do sexo acontece pelo roçar de órgãos, mas a excitação não é uma reação fisiológica grosseira; é um êxtase pelo encontro de alguém que pode ser capaz de solucionar alguns de nossos maiores temores e nos ajudar a construir uma vida em comum calcada em valores partilhados [8].

***

[1] Alain está usando como personagens um casal que está fazendo sexo pela primeira vez, neste trecho ele fala especificamente sobre a excitação que antecede o ato sexual em si.

[2] Em suma, não é possível fingir o genuíno interesse sexual, ao menos não sem o auxílio de drogas e lubrificantes. Mesmo os atores pornô mais profissionais necessitam de ajuda para manter o pênis ereto entre interrupções de cena, enquanto as atrizes pornô provavelmente têm de caprichar nos lubrificantes.

[3] Alain parece que pegou emprestada a ironia socrática, e a têm utilizado de forma magistral...

[4] Este é o princípio básico do período de Carnaval, quando a loucura e a fantasia “saem da toca” por breves momentos, e salpicam com um pouco de cor a um mundo excessivamente racional e cinzento. Mas felizes são aqueles que pulam o seu Carnaval todos os dias, em suas mentes livres de tabus e preconceitos descabidos. Mas é claro que existe o Carnaval, e os carnavais; Assim como existe a filosofia de Epicuro, e os que a interpretaram de forma absolutamente equivocada.

[5] Alain postula que as pessoas vivem em espécies de “casulos de intimidade”, e que a primeira noite de sexo com alguém é por si só especial, talvez principalmente, por ser a primeira vez que “penetramos no casulo alheio”. No sexo com intimidade, é preciso dar e receber, se expor para estar apto a explorar – é meio caminho andado para o amor em si.

[6] O amor que ainda não aprendeu a arder por si mesmo, quando depende de um erotismo renovado, esbarra na rotina da vida conjugal. Ou, em outras palavras: a intimidade é uma merda.

[7] Mas não faz milagres, particularmente em quantidade. E, mesmo na qualidade, o sexo nada resolve por si só: é preciso a Vontade para acender de uma vez a pira do próprio Amor. A sociedade moderna, algo esquizofrênica, de um lado “anuncia” por todos os cantos ao sexo como o grande catalisador da felicidade, mas de outro condena a promiscuidade e a infidelidade, para ainda assim escancarar a promiscuidade e infidelidade das celebridades nas revistas onde há mais fotos do que texto – e, para nossa surpresa, vendem como água. Há algo errado, definitivamente...

[8] Neste livro recente, primeiro com o selo de sua School of Life (“Escola da Vida”), uma espécie de “universidade da filosofia do dia a dia”, Alain de Botton me parece estar no auge da forma, mais irônico e original do que nunca – e mais pensador, mais filósofo, mais sábio. Há essa altura, já devem ter percebido que o próprio título do livro é uma provocação, uma provocação muito bem vinda: precisamos realmente pensar mais sobre sexo, mas com a mente, com a alma, não com o pênis ou a vagina, e muito menos com um Manual de Preceitos nas mãos. Chico teria adorado.

***

Crédito da imagem: beyond/Corbis

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12.11.12

O voo da arara

Alguns sonhos parecem como que deslocados no tempo... E algumas vidas, também...

Era uma vida cheia de trabalho nos portos, e cheia de contemplação no mar. Cuidava de um grande barco de uma companhia espanhola, saia de Málaga e perambulava pelo Mediterrâneo, algumas vezes alcançando a Turquia, antes de retornar. Seu barco estava quase sempre estocado de alimentos ou moedas, mas pouquíssimos livros – se conseguisse ler durante os solavancos das ondas sem enjoar, já teria terminado toda a obra de Platão.

Mas o que mais fazia era sentar na proa, nas horas vagas, e contemplar... Todo aquele mar, a separar civilizações tão antigas, lhe transmitia imensa paz. Sentia-se triste por ver tão pouco os filhos e a mulher em Málaga, mas prometera a si mesmo que iria se aposentar alguns anos antes, para que pudesse conviver ao menos com sua filha caçula, a sétima, a primeira mulher.

Ainda assim, os sonhos sempre lhe atormentavam. Eram como uma lembrança antiga, de grandes batalhas entoadas em nome de Deus, mas que mais pareciam um açougue no Inferno. Seria ele mesmo um desses cruzados que foram derramar sangue árabe muito longe de casa? Como poderia ser, se desde que se entendia por gente havia sido um legítimo espanhol? Se nunca havia pego uma espada, mas apenas o leme de um barco? O que seriam afinal tais sonhos, se perguntava enquanto contemplava o sol se pôr por detrás de Creta.

Naquela noite sonhou um sonho bem diferente. Ouviu centenas de piares de pássaros e, ao subir na proa, viu que se tratava de pequenos pássaros azuis rechonchudos, de uma espécie que nunca havia visto antes. Alguns deles seguravam com as patas, em conjunto, um livro estranho. Ao abri-lo, viu que se tratava de uma coleção de pinturas de rostos e bustos, muito familiares por sinal... De alguma forma, neste sonho, soube que se tratava dele mesmo, em outras épocas. Antes da sua própria imagem em Málaga, vinha o guerreiro cruzado; mas se interessou mais pela imagem à direita e, quando olhou para ela, desmaiou.

Despertou numa imensa carruagem de vários cômodos que estava, por alguma estranhíssima magia, a correr por debaixo da terra... Surpreendentemente, achou aquilo tudo normal, e desceu com os outros quando a carruagem parou. Todos tinham vestes estranhas, e embora parecessem arrumados para alguma grande ocasião, nenhum homem usava peruca... Deu de ombros e os seguiu pelo que pareceram escadarias de um imenso templo subterrâneo. Ao chegar no alto, olhou para o portal que dizia: “Ave Paulista”. Seria um imperador romano desconhecido?

Estava num imenso pavimento onde carruagens estranhas, grandes e pequenas, rápidas e barulhentas, se moviam para cá e para lá. E, na via em que estava, todas as pessoas também se moviam, para cá e para lá... Achou aquilo tudo tão cômico que mal reparou nas grandes torres que cercavam a paisagem e, de tão altas, impediam que visse o sol. “Será que estou no céu? Mas as pessoas aqui parecem tão atarefadas, e não vejo nenhum pomar”, pensou consigo mesmo.

Decidiu seguir duas meninas que passavam por perto, pois elas pareciam menos atarefadas. Conseguia ouvir seus pensamentos antes das palavras familiares que pronunciavam, mas que não conseguia entender inteiramente – parecia espanhol ou português, e ao mesmo tempo nem tanto... Mesmo assim, entre um e outro pensamento, percebeu que falavam de sexo e afins. Isto não era estranho, estanho era o fato de ambas falarem em ter relações com homens e com mulheres! “Estranho, se me lembro bem, o padre disse que esse tipo de gente não estaria no céu”...

Seguiu-as até a entrada de uma imensa biblioteca. Nunca havia visto tantos livros juntos, nem com tantas cores diferentes. Procurou por “Filosofia” e achou as obras de Platão que ainda não havia lido. Decididamente estavam escritas em português, mas pegou de uma, Fedro, e começou a tentar ler. Foi então que viu: um imenso pássaro de penas vermelhas e bico encurvado, belíssimo, empoleirado no alto da estante ao seu lado. Era um pássaro falante ou, pelo menos, pensante:

“Crá! Crá! O que está fazendo aqui, meu rapaz? Esta não é a sua época!”

“Isto aqui não é o céu?” – estava começando a pensar que poderia ser, pois o céu certamente teria bibliotecas como aquela.

“Crá! Isto aqui é o seu próprio mundo, mas no futuro!”

“Futuro? Mas, e o que diabos eu estou fazendo aqui?”

“Ora, sendo você mesmo, no futuro... Crá!”

“Mas, eu já estou morto? Então isto não é o céu, mas o purgatório?” – decididamente, se o purgatório tinha uma biblioteca daquelas, o céu seria realmente maravilhoso!

“Crá! Crá! Meu rapaz, é hora de ir, é hora de voar de volta. Você está somente sonhando um sonho inadequado, onde já se viu!”

E o imenso pássaro o agarrou pelos ombros com as patas e, sem machucá-lo nem um pouquinho, voou por entre as prateleiras de livros lustrosos, através da entrada, e para o céu azul... Foi então que olhou para baixo e viu que estava na maior cidade do mundo! Antes de desmaiar novamente, ainda encontrou forças para um último diálogo:

“Espere! Me diga ao menos que tipo de pássaro é você?

“Crá! A’rara! A’rara’pyrang! Mas você vai me conhecer como arara vermelha...”

“Mas, e onde você vive? É perto de Málaga?”

“Não, meu rapaz, é muito distante de Málaga. Um oceano distante! Crá! Crá!”

“E que terra é essa? A Atlântida?”

“Quem sabe, quem sabe? Crá! Crá! Esta é a terra que iremos, eu e você, morar um dia...”

Foi então que percebeu que aquele pássaro era uma amiga... Mas, antes que pudesse perguntar de onde exatamente a conhecia, o voo da arara se fez completo, e ele mergulhou de volta, dentro de si mesmo, de volta para seu velho barco, e contemplação.

Acordou com um sorriso nos lábios, só não se lembrava exatamente porque...


para A’rara Brasil.


raph’12

***

Crédito da foto: Edu Fortes

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9.11.12

A iniciação de Márcio Lupion

Outra grande alma que vi pelo III Simpósio de Hermetismo é Márcio Lupion, monge, arquiteto, franciscano, liberto [1]. Eis o que disse acerca da própria iniciação [2] (o comentário ao final é meu):

No primeiro dia, após Marcio ser aceito como aluno no Ashram foi um momento de imensa felicidade, pois depois de tanto tempo de leitura e espera, conseguir fazer parte das aulas era um triunfo pessoal enorme; para aquele que leu a vida do Paramahansa Yogananda e viu a dificuldade que o swami teve para encontrar seu mestre, ser aceito equivalia encontrar a própria libertação.
E não era um lugar qualquer, pois ali se reunia toda sua história pessoal, sua busca espiritual, os livros, sua memória sagrada. Parecia que ele havia se preparado para encontrar esse swami, naquele exato dia, um verdadeiro e feliz renascimento!

Na primeira aula, dividida em cinco yogas diferentes, começava-se pela Hatha Yoga, depois eram mais minutos de pranayamas - aqueles exercícios de respiração que preparam o corpo para a meditação, onde a mente vai silenciando, passo a passo, o batimento cardíaco vai diminuindo, chegando em um determinado momento em que simplesmente se sentava pra meditar, com a mente calma, o corpo tranqüilo e aí aprendia-se a ouvir, a mergulhar no silêncio, de um modo profundo, repleto de bem-aventurança e uma paz incomensurável.

Aos 20 e poucos anos, percebia-se o mundo somente agora, no momento em que sua mente se esvaziava, que as aflições do corpo silenciavam e não se sentia mais o corpo, onde ele começava nem terminava, não se tinha noção de tempo, nem da sua própria respiração; eram horas de silêncio onde, de repente, um sino tocava, e a partir dele, cantava-se mantras que falavam de Ganesha, Shiva, Krishna e de Rama, mesmo sem saber direito quem era Krishna, quem era Rama, cantava-se por 15, 20 minutos com uma devoção impressionante. As aulas eram divididas como em qualquer Ashram que se preze, segunda e quarta-feira, as meninas; terça e quinta-feira, os meninos, das 19:00h as 20:30h.

Foram meses e meses de exercícios com uma alegria indescritível. Cada vez que ele se sentava para meditar, ao voltar da meditação, sabia e sentia que era outra pessoa. Em nenhuma meditação verdadeira, a pessoa que se senta é a mesma que se levanta. A cada dia o ego, ou o que restou dele, ia se esvanecendo, se extinguindo e a vacuidade que a meditação trazia junto com bhakti e as canções...

Seu mestre falava que na "volta para casa" precisava-se de duas asas de anjos, uma asa chamada meditação, silêncio interior, mente vazia, som guardado, silencioso, corpo e gesto silencioso; a outra asa era a devoção, amar realmente Deus. Os Avatares são as pessoas que vêm para a Terra sem ego e promovem ajuda a todos os seres ao seu redor, a amar todo esse sistema de forma incondicional.
Quando se cantava, entendia-se o que era esse amor... Ao sair do Ashram à noite, Marcio pegava o ônibus para casa, sentava e sentia de verdade cada ser humano, os olhos do trocador, cansado, sonolento, atrás da catraca e, cada um ali, que enfrentava uma rotina, carregando pelas costas o peso do dia, ficando às vezes duas horas olhando pela janela sem ver nada; sentia mentes e corpos cansados e pessoas sem esperança. Mas de uma forma incrível, para ele, andar do lado do mais humilde era infinitamente melhor do que sentar na faculdade ao lado das pessoas que estavam curtindo a vida. Não conseguia entender como elas festejavam enquanto em volta haviam pessoas com falta de alegria, sem possibilidades...

Os contrastes foram ficando cada vez mais acentuados. Qanto mais meditação mais devoção, mais silêncio, menos ele conseguia viver com pessoas que achavam essa vida maravilhosa; não a vida do comer dos pássaros, do vento, a vida pura; mas a vida mental, a vida imposta, aquela vida em que a gente fala que as pessoas viraram pessoas de-mentes, pessoas que mentem para elas mesmas, porque a natureza da mente - me desculpem o trocadilho - é produzir mentiras. E no meio dessas mentiras pessoais, ele começou a entender o que é o ego, uma persona, uma máscara que as pessoas usavam para se colocar sempre em uma condição melhor do que elas mesmas, melhor do que os outros e, em alguns casos, até, em condições piores, doentes, porque aquilo desfazia algum tipo de bem que até hoje não entende.

O ego é a nossa máscara e a meditação tira a nossa capacidade de ver o ego no outro. Nesses meses, chegar perto de qualquer pessoa de atitudes mundanas, engajadas na realidade vigente, era incômodo, era uma sensação de dor física que pegava o estômago, um enjôo... e com o ouvido familiarizado agora ao silêncio, não conseguia conversar, nem mais jogar conversa fora. Parecia que a vida era mais importante do que relatar coisas que aconteceram de forma superficial ou simplesmente julgar o outro, falar, analisar o outro sem estar dentro dele. Como é que pode a meditação e a devoção o levarem a sentir o outro, falar de uma pessoa que você já sabe o que está sentindo?

Naqueles dias era praticamente desnecessário falar ou conviver com qualquer pessoa, porque parecia que você sentia realmente que a vida que habita dentro de cada um de nós, é a mesma que habita todo o cenário externo, e você percebia que cada pessoa queria somente ser feliz, e viver em paz, mas parecia que o tempo já não importava, era um contraste enorme entre essa sensação, esse brilho no olhar de cada pessoa, como se fosse uma criança perdida nos olhos de um adulto, era impressionante a diferença entre este ser que habitava em cada um de nós e os pensamentos externos, tendenciosos, os pensamentos do ego.
Naquele dia, Marcio entendeu uma frase simples que martelava em sua cabeça sobre o Cristo, "o Cristo ser o que ele é". Ramana falava o tempo inteiro em ser, os mestres falam sempre que temos que manifestar a nossa essência pura.

Assim, ele compreendeu quem era Cristo... e o anti-Cristo... Aquilo que não é nada essencial, a superficialidade das ações, gestos, da fala, era uma doença e tantas vezes via o seu mestre passar, sorrir e gesticular com a boca aqueles barulhinhos de "tsc, tsc, tsc", de desaprovação... e dizia: o homem está doente"... sorria e comentava: "penso e logo desisto". Passava sempre sincero, verdadeiro, honesto, leve, gentil, carregando o peso de todos em seus olhos, mas nunca lhes devolvendo nenhum mal estar.

Assim era a vida de aluno daquele Ashram... Determinado dia, lá para o dia 15 de agosto, de um ano que nem se recordava mais, talvez 1982, teve uma crise de choro, comprou flores e frutas, e foi ao Ashram, eram 17:00h e a aula começaria 2 horas depois. Fazia isso algumas vezes para meditar, mas nesse dia chegou sem motivo algum.
A mãe do Ashram, a Mãe Sutra - que significa ensinamento, falou: filho, você vai ser iniciado hoje? Ele falou: não, não sei, só cheguei mais cedo para meditar. Aí, ela disse: coloca a sua roupa branca e espera no vestiário, por favor. De repente, ele escutou uma batida no vestiário, seu mestre entrou e falou: Bom, você, já está há algum tempo aqui como aluno e chegou o dia de morrer, chegou o dia da sua iniciação, vem comigo que chegou a hora de você optar, se você quer realmente a felicidade plena, ou simplesmente caminhar como os outros homens que ficam entre a alegria e a dor. Venha comigo, filho!

"Neste céu de liberdade, Pai, deixe meu país despertar" (Tagore)

***

Comentário
No Simpósio, Márcio deu um relato comovente e sincero acerca de seu primeiro vislumbre do sagrado (dentro de si mesmo), quando entrou em estado alterado de consciência ao assistir, no cinema, a obra prima de Zeffirelli - Irmão Sol, Irmã Lua -, que conta a história de Francisco e Clara de Assis, dois dos maiores santos de nossa história. Santos não pela família em que nasceram, cargos que ocuparam, livros que escreveram, mas pelo exemplo de amor... E só se ama como seres assim quando se descobriu a fonte que não seca, a sarça que arde pelo fogo de si mesma, o Amor Sem Fim, dentro do próprio ser. Daí então se sabe o que é Cristo, e anti-Cristo... Márcio é um bom exemplo de como isso ainda pode ocorrer em qualquer lugar, em qualquer época, ou mesmo na Liberdade.

[1] Conheça seu extraordinário trabalho em projetos de reformas (redesigns) de cenários urbanos: kallipolis.org

[2] O texto foi retirado do blog Stigmatized Girl.

Crédito da imagem: Kallipolis Arquitetura (projeto Caminho do Imperador, de reforma do cenário urbano do bairro da Liberdade, em São Paulo)

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6.11.12

O recitador

Numa noite quente, enquanto retornava de seu passeio pelo deserto, Yeshua reencontrou o rabino andarilho, que um dia havia lhe convidado para sua sinagoga. Parecia cintilante em meio aquela noite sem tantas estrelas, uma alma entusiasmada sempre parecia mais com um oásis em meio a tanta secura...

Andarilho – Rabi! Rabi! Finalmente encontrei-o novamente. Estive perdido, com saudades de tua luz, então decidi abandonar as sinagogas e rumar para o deserto, atrás de tuas pegadas!

Mensageiro – Mas porque abandonou sua sinagoga?

Andarilho – Os textos antigos me escravizavam, eu quero uma nova religião, uma nova interpretação. Eu quero ser livre como tu e teus pescadores, me ajude a ser também um pescador de almas.

Mensageiro – Mas rabi, existe um lugar para cada um de nós neste grande deserto, e cada um de nós deve fazer sua parte para que ele um dia se torne um pomar.

Andarilho – Não me chame de rabi, tu que és o Rabi da Alma, e agora eu sei disso... Todos aqueles textos antigos, de nada nos servem mais, tu veio renovar à tudo, tu veio trazer uma nova lei; Tu nos oferta a Verdade, e os livros de minha sinagoga são incapazes de transmiti-la.

Mensageiro – E você acha que eu vim negar a lei antiga, apagar o texto e escrever um outro? Rabi, rabi, eis o que ocorre: a Verdade já está nos textos, e espalhada pelos ventos, pelas pedras e os galhos secos, mas nós temos dificuldade em interpretá-la, em criarmos olhos de enxergar, e compreender... Vou demonstrar o que quero dizer: você conhece a história de como Moshê guiou nosso povo para longe do jugo do Faraó?

Andarilho – Sim, claro... Mas peço encarecidamente que me rememore, pois algo me diz que, saindo de tua boca, será uma nova história, um novo êxodo...

Assim, Yeshua começou a recitar:

Mensageiro – Moshê foi encontrado no Nilo, o rio sagrado, pela filha do Faraó. Admirada pela presença de um filho das águas, decidiu educá-lo como um príncipe dentro da metrópole. Mas, apesar de sábio, Moshê cresceu inquieto, turbulento, como a água que deseja sair da represa...
Diz-se que, ao ver um feitor egípcio açoitando um escravo israelita, foi tomado de imensa compaixão para com o escravizado, e por uma cólera avassaladora contra seu opressor. Matou-o com um pensamento.
Assim, apesar de príncipe do Egito, foi obrigado a fugir da metrópole, para escapar da pena de morte do Faraó. Agradeceu a mãe, e iniciou um longo exílio pelo deserto, levando consigo boa parte dos escravos israelitas. Agora, eram todos livres, e ele era o seu santo pastor pelas areias escaldantes e as noites frias.
Diz-se que o Faraó mudou de ideia, e mandou legiões de soldados em seu encalço, para que os trouxessem de volta a sua metrópole. Moshê pensou que sua mãe poderia estar com saudades dele, mas não poderia retomar uma vida onde houvessem escravos  e opressores por toda a parte – e decidiu apertar o passo, embora não soubesse ao certo para onde fugir de tantos soldados.
Numa dessas noites, enquanto caminhava ao redor da aldeia, como eu mesmo costumo fazer, eis que Moshê se depara com um pequeno arbusto em chamas, a iluminar sua noite como a mais bela das estrelas. Seu fogo não findava, pois parecia ser o gerador de si mesmo. Moshê criou olhos de enxergar, e compreendeu a mensagem que Jeová havia lhe transmitido. Alegrou-se: agora, finalmente, sabia para onde lavar seu povo!
Diz-se que, antes que pudesse adentrar aos territórios prometidos por Jeová, foi encontrado e encurralado pelos soldados do Faraó. E lá estava Moshê, com seu povo liberto, e duas opções: arriscar a travessia do Mar Vermelho, ou render-se ao desejo do Faraó.
Moshê decidiu arriscar um milagre. Levantou, com toda convicção e vontade, seu longo cajado; e, quando o pousou ao solo, veio uma ventania, com nuvens esvoaçantes, que dividiu ao próprio mar a sua frente em duas imensas colunas, cada qual com 36 carpas douradas a nadar tranquilamente em direção à outra margem, como que apontando o caminho, e dizendo: “Venha Moshê, traga contigo todo o teu povo liberto, agora basta dar o primeiro passo”...
E ele, inspirando longamente, tomou da coragem final e adentrou, com seu povo, ao mar. Assim, na medida em que caminhavam dentre as colunas, eram abençoados e elevados, de modo que os soldados que vinham atrás, mesmo com suas carruagens e camelos, escorregavam e tropeçavam uns nos outros, até que metade foi levada pelas águas, quando as colunas desceram.
Diz-se que a outra metade retornou e, contando a notícia ao Faraó, fez com que este enlouquecesse ante sua ausência. Mas Moshê havia vencido, e era livre, finalmente livre. Com a ajuda de seu povo, plantou na Terra Prometida um imenso bosque; e diz-se também que, até hoje, todo aquele com a vontade suficiente para atravessar o deserto, e mergulhar ao mar, é recebido por este povo liberto e alegre, na outra margem da Alma do Mundo.
Isto foi o que compreendi da história da fuga de Moshê do Egito...

O outro rabi tinha lágrimas nos olhos, transbordando de luz irradiada:

Andarilho – Deus te ilumine em todos os teus passos, no deserto ou acima do mar, tu és um recitador divino!

Mensageiro – Mas tudo o que fiz foi ler o mesmo texto que você leu, ó rabi. Agora que sabe do mesmo que sei, vai e retorna a sua sinagoga, e trata de os ensinar tudo isso... Pois eu vim trazer a este mundo todo o tipo de luz que tenho visto na casa de meu Pai. Mas algumas luzes são cintilantes demais para que sejam expostas de uma vez ao mundo. Você, que tem olhos para enxergar, e não ficar cego, será aquele que guardará este segredo, até que um dia este deserto esteja suficientemente ungido e umidificado, para que a luz possa ser exposta, a fim de que o povo do futuro também possa, como Moshê, rebelar-se contra seu Faraó, meditar no deserto, atravessar o mar, e atingir sua própria terra de boa aventurança.
Vá em paz, ó rabi!


(escrito com base na interpretação compartilhada por Rafael Chiconeli no III Simpósio de Hermetismo, em São Paulo, Novembro de 2012)


raph’12

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Este conto é uma continuação direta de "O filho da vida". A série se concluí em "O amante".

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Crédito da foto: RelaXimages/Corbis

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