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23.5.16

Poeira de estrelas

Apresentado em Agosto de 2015 — porém, com pouca divulgação —, o curta-metragem Star Stuff (Poeira de estrelas), dirigido por Ratimir Rakuljic, retrata em filme o que Carl Sagan relatou em seus livros: o início de sua admirável paixão pela ciência, quando descobriu que os pontos que via no céu à noite eram sóis como o nosso — só que muito mais distantes —, e que esses sóis distantes poderiam conter centenas de milhares de mundos como o nosso, com vida se perguntando acerca do que seriam as estrelas, assim como nós.

Apesar de simples, o curta acerta ao retratar um Sagan jovem e imensamente curioso. Aliás, a curiosidade talvez tenha sido a sua principal qualidade: curiosidade não somente acerca do que ele mesmo veio a considerar e acreditar, mas também sobre o que os demais seres humanos acreditavam (ainda que ele mesmo não compartilhasse da crença).

Já falamos muito de Sagan aqui no blog, e alguns devem saber que ele é o nosso "cientista padroeiro"... Pois Sagan falava de ciência e filosofia e espiritualidade com a mesma desenvoltura, e embora fosse obviamente um entusiasta da racionalidade e do ceticismo, fato é que também soube preencher os seus livros, documentários e filmes com a paixão própria de quem não tem medo do que é "espiritual":

“Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra. A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas. (trecho de O mundo assombrado pelos demônios)

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Crédito da imagem: Star Stuff/Divulgação

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16.5.16

Lançamento: Fausto (Clássicos eternos)

Após muita reflexão e planejamento, as Edições Textos para Reflexão decidiram que era hora de trazer para vocês os maiores clássicos da literatura mundial, pelo preço de um café!

Decidimos começar com a obra-prima de Johann Wolfgang von Goethe, Fausto. Nesta edição digital revisamos cuidadosamente a gramática da célebre e secular tradução de Antônio Feliciano de Castilho, de modo a tornar o português antigo o mais legível possível, sem no entanto interferir no contexto dos versos. Você já pode começar a ler em poucos minutos:

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À seguir, explicamos melhor do que se trata a nossa nova coleção:

Embora tenhamos escrito incontáveis obras desde o advento da escrita, há alguma arte que parece vencer o próprio fluxo do tempo, algumas histórias que se tornaram já mitologia por onde passaram, e que já foram lidas e encenadas pelas mentes de milhões e milhões de seres humanos.

A Coleção clássicos eternos reconhece a importância de trazer esta luz para ser refletida no maior número de espelhos possível, e cada um de nós é um espelho, e a luz foi criada para ser refletida.

Assim sendo, temos o compromisso de trazer edições cuidadosamente elaboradas dos grandes gênios de outrora, por um preço acessível – principalmente por se tratar de material em domínio público.

Também os tradutores são citados e lembrados. Ora, visto que nos valemos de traduções em linguagem já secular, foi necessário revisar o português, sobretudo com relação à gramática, procurando interferir o mínimo no contexto original da tradução.

Compreendemos que o português antigo pode trazer alguma complexidade no entendimento da obra, mas recomendamos que aproveitem dos recursos tecnológicos modernos dos e-readers ou aplicativos de leitura de e-books, que já possuem dicionários embutidos, assim geralmente basta clicar na palavra desconhecida para aprender o que significa. Se tudo correr bem, além da leitura de uma obra grandiosa, ainda sairão desta aventura sabendo um pouco mais acerca do seu próprio idioma.

Nalguns casos, onde a gramática pode ser aplicada tanto no português de Portugal quanto no do Brasil, preferimos manter o original – por exemplo, entre “génio” e “gênio”, optamos por manter a grafia original, isto é, “génio”.

E agora, fiquem com mais um clássico da literatura humana...

O editor.

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13.5.16

Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte final)

« continuando da parte 5 (ler do início)

Por Alan Moore. Tradução de Luciano Prado e Rafael Arrais.

O poder da arte é imediato e irrefutável, imenso. Ela altera a consciência, consideravelmente, tanto do artista quanto da sua audiência. Ela pode mudar a vida dos homens e, dessa forma, mudar a história e a própria sociedade. Ela pode nos inspirar a maravilhas ou horrores. Ela pode oferecer as mentes jovens, maleáveis e expansíveis, novos espaços de habitação, ou oferecer conforto aqueles que se encontram perto da morte. Ela pode lhe fazer se apaixonar, ou fatiar a reputação de algum ídolo num piscar de olhos, e o manter mutilado frente aos seus adoradores, morto para a posteridade. Ela conjura demônios de Goya e anjos de Rosetti até a aparência visível. É ao mesmo tempo a perdição e o instrumento mais amado dos tiranos. Ela transforma o mundo em que vivemos, altera nossa visão do universo, altera a nossa visão daqueles a nossa volta e até de nós mesmos. Qual a conquista da feitiçaria que já não foi alcançada pela arte? Ela conduziu um bilhão para a luz e assassinou outro bilhão. Se o nosso objetivo é o desenvolvimento do poder e das habilidades ocultas, não poderíamos ter um meio mais produtivo e poderoso do que a arte para chegarmos lá. A arte pode não fazer sua vassoura ter vida própria e fazer uma faxina para você... mas tampouco poderia a magia, em todo caso... no entanto, simplesmente por haver imaginado a cena, Walt Disney ganhou dinheiro mais do que suficiente para pagar alguém para que cuidasse disso em seu lugar. E ainda sobrou o suficiente para guardar sua cabeça neste enorme cubo de gelo marcado por hieróglifos nalgum lugar abaixo do Magic Kingdom. Isso, certamente, é toda a implacável influência satânica que qualquer um, são ou louco, poderia pedir [Moore se refere a uma provável lenda urbana, difícil dizer se está sendo irônico ou não].

Ao reclamar a magia como A Arte, nua e furiosa numa selva de Rousseau sem nenhuma cabana, é provável que os apreensivos pela preposição sejam aqueles que se sintam desprivilegiados pela ideia, aqueles que suspeitam que a sua oferta artística está aquém da tarefa dada. Tais temores, embora compreensíveis, não podem estar ao lado da imagem heroica, destemida, que muitos ocultistas têm de si mesmo. Será que não há realmente nada, nenhum artesanato ou ofício, que eles não possam usar para implementar sua magia? Eles não têm nenhum talento que possa ser usado de forma criativa e mágica, seja para a matemática, a dança, os sonhos, o toque de tambor, a comédia stand-up, o strip-tease, o grafite, o encantamento de cobras, as demonstrações científicas, ou mesmo para serrar vacas perfeitamente ao meio, ou esculpir bustos assustadoramente realistas dos monarcas europeus a partir de suas próprias fezes? Ou, tipo, qualquer coisa? Mesmo que tais habilidades não sejam hoje abundantes ou evidentes, tais almas tímidas não poderiam imaginar que a capacidade para algum trabalho honesto precisa ser primeiro desenvolvida para depois ser aplicada para algo de útil? O trabalho duro não deveria ser um conceito totalmente estrangeiro para o Mago. E não é nem mesmo A Grande Obra que nós estamos necessariamente discutindo aqui, é apenas a Obra Boa-Mas-Nem-Tanto-Assim. Algo muito mais atingível. Se até mesmo isso soa muito difícil e trabalhoso, você pode sempre tornar a aquisição de talento artístico profundo e a conquista do sucesso o desejo mais íntimo do seu coração e então simplesmente bater uma para um sigilo. Aparentemente, nunca falha. Então, qual a desculpa que alguém teria para não abraçar a arte como magia, e a magia como A Arte? Se você é, por qualquer razão, realmente incapaz de ter alguma criatividade, hoje ou sempre, então você tem realmente certeza que a magia é o campo certo para você? Apesar de tudo, as redes de fast-food estão sempre contratando. Em dez anos você poderia se tornar um gerente.

Ao compreender a arte como magia, ao conceber caneta ou pincel como varinha mágica, nós então devolvemos ao mago seus poderes xamânicos originais e a sua importância social, damos de volta ao ocultismo tanto um produto quanto um sentido. Quem sabe? Pode ser que ao implementarmos tal mudança terminemos por remover toda a nossa necessidade egóica de encantos e maldições , nossa magia superficial. Se formos realizados e prolíficos em nossa arte, talvez os deuses se preparem para nos enviar vales postais substanciais a cada semana, sem que nós sequer peçamos. Nos assuntos sexuais e românticos, como artistas nós nos sairíamos tão bem quanto Picasso. Mulheres e homens e animais se ofereceriam nus aos nossos pés. Já acerca da destruição de nossos inimigos, nós simplesmente não nos incomodaríamos de chamá-los para nossas celebrações e inaugurações, e eles simplesmente morreriam, com o tempo.

Este re-imaginar da magia como A Arte poderia beneficiar claramente o mundo ocultista em geral e o mago individual em particular, mas não esqueçamos o fato de que ele também poderia beneficiar as artes. É preciso ser dito que a cultura de massa [mainstream]  moderna, em grande parte e sob a maioria das perspectivas civilizadas, é um balde plástico cheio de doença. Os artistas de nosso tempo (admitidamente, com algumas notáveis exceções) parecem ter a única intenção de refletir adiante o vazio e a consequente obsessão com a mera superficialidade que nós também achamos nos líderes e governantes de nossa era. Apenas um ou dois anos atrás, a retrospectiva de Blake na antiga Tate Gallery despertou nos críticos mordazes comparações com os artistas britânicos habitando atualmente um bairro descolado, destacando que a geração moderna de visionários se torna um tanto pálida quanto comparada com a sua luz. A “loucura” estudada e autoconsciente de Tracey Emin [artista multimídia britânica; Moore continua citando outros artistas contemporâneos a seguir] se torna domesticada ao lado da loucura santificada de Blake. Damien Hirst é chocante numa maneira superficial, mas não chocante ao ponto de ter prestado juramentos de lealdade, ou de ter de lidar com turbas de inquisidores ou julgamentos de sedição. As contribuições dos irmãos Chapman [Jake e Dinos] para o Apocalipse (a exposição, não a situação no Iraque) não são de forma alguma uma revelação. William Blake poderia tirar um apocalipse muito superior da bunda de uma escultura de um dragão vermelho sem nem pensar muito no assunto. O mundo da arte moderna hoje lida com itens de conceito sofisticado, como os campos da publicidade. Ele parece sofrer de certo problema de visão, se é que pode ainda ver alguma coisa, e oferece muito pouco para o caminho de sustentação da cultura em sua volta, que tem fome o suficiente para uma refeição decente, agora mesmo. A reafirmação da magia como arte não poderia prover a inspiração, emprestar a visão e a substância que estão tão claramente em falta no mundo da arte nos dias atuais? Tal infusão de alma não permitiria que a arte vivesse para o seu propósito, a sua missão, de insistir para que a voz humana interior e subjetiva seja efetivamente ouvida na cultura, no governo, e em todos os grandes palcos do mundo? Ou deveríamos nos sentar e esperar que os intelectos super-humanos de Sirius ou a vassoura mágica de Disney ou o próprio Aeon de Horus finalmente cheguem e resolvam toda essa confusão para nós?

Uma união produtiva, uma síntese da arte e da magia propagadas numa cultura, um meio ambiente, uma paisagem mágica sem os muros dos templos e os móveis antigos que todos ignoravam em todo caso. Encenado entre as samambaias ornamentais e o vapor púrpura de uma reestabelecida biosfera ocultista, essa conjunção apaixonada de duas faculdades humanas certamente constituiria um Casamento Alquímico em que, se formos sortudos e as coisas saírem completamente de controle na Recepção Alquímica, poderá precipitar uma Orgia Alquímica, um incidente, uma explosão turbulenta de impulsos criativos, uma copulação astral de ideias resultando em múltiplos nascimentos de quimeras e monstros radiantes. Ferozes centauros conceituais com suas patas de perfume e cabeças de música. Noções sereiantes, oscilantes filmes mudos que são arquitetura da cintura para baixo. Esfinges de gênero e mantícoras de estilo. Mutações desconhecidas e jamais sonhadas, formas de novelas copulando e se adaptando rápido o suficiente para acompanhar o mundo atual, agindo mais como formas de vida, como fauna e flora, proliferando em nossa projetada selva mágica. Esta possível liberação de energia de fusão tornada possível quando esses dois massivos elementos de nossa cultura, a magia e a arte, são levados a uma proximidade dinâmica o suficiente, poderá inundar nossa selva de luz faérica, e até mesmo ajudar a iluminar este pântano de cultura de massa [mainstream] em que estamos todos atolados.

Nada nos impede de nos livramos dos compassos e dos freios, das rodas de treinamento que têm retardado o progresso da magia por tanto tempo que o musgo já cobriu tanto as linhas férreas quando os sinalizadores de desvios. Nada pode nos impedir, caso tenhamos vontade, de redefinir a magia como uma forma de arte, como algo vital e progressivo. Algo que, em sua habilidade de lidar com o nosso mundo interior em vias de utilidade realmente demonstráveis, pode efetivamente ajudar as pessoas comuns, com seus mundos internos sendo usurpados cada vez mais por um exterior tirânico, colonialista, cujo objetivo é extrair até a última gota dos seus sonhos, da sua alegria ou automotivação. Se assim nos decidirmos, poderíamos restaurar a magia a sua potência, um propósito que mal foi tocado nos últimos quatrocentos anos. Caso estivermos preparados para assumir a responsabilidade desse empreendimento então o mundo poderá assistir novamente aos grandiosos e terríveis magos que, fora dos meigos e inofensivos livros para crianças ou dos filmes com orçamentos obscenos e extravagantes, ele tão somente se direcionou a esquecer. Pode ser arguido que neste momento angustiante de nossa situação humana as perspectivas mágicas não são apenas relevantes, mas necessárias e indispensáveis caso desejemos sobreviver com nossas mentes e personalidades intactas. Ao redefinir o termo “magia” poderíamos uma vez mais confrontar as perversidades e trevas mundanas com o nosso método preferido, honrado por sua ancestralidade: com uma palavra.

Faça com que a palavra “magia” signifique algo novamente, algo digno do nome, algo que, como uma definição de tudo o que é mágico, o deixaria encantado quando você tinha seis anos; ou quando tiver setenta. Caso alcancemos tal conquista, caso consigamos reinventar nossa arte assustadora, selvagem e fabulosa para estes novos tempos assustadores, selvagens e fabulosos pelo qual caminhamos, então poderemos oferecer ao ocultismo um futuro muito mais glorioso, transbordante de aventura, do que jamais pensamos ou desejamos que o seu passado fabuloso pudesse ter sido. A humanidade, trancada nesta penitenciária de um mundo material que temos construído para nós mesmos por séculos, talvez nunca tenha necessitado mais da chave, do bolo com uma serra oculta, do perdão de última hora do governo que a magia representa. Com suas religiões de pedófilos e os seus fundamentalistas dementes, com suas eminências farsantes e seus demagogos mais desavergonhados em atingir suas vis ambições do que jamais foi visto, a sociedade contemporânea, seja no leste ou oeste, parece ter imensa carência de um centro moral e espiritual, parece ter carência até mesmo da mais ínfima pretensão de algo parecido. A ciência que sustenta a sociedade, cada vez mais, em suas mais remotas fronteiras quânticas, descobre que precisa recorrer à terminologia da cabala ou da literatura sufi para afirmar adequadamente o que agora sabe sobre nossas origens cósmicas. Em todas as suas muitas áreas e compartimentos, todos os seus campos dispersos, o mundo parece estar praticamente gritando para que o numinoso venha e o resgate dessa frenética cultura material que nada mais fez do que comê-lo inteiro e cagá-lo através de uma peneira. E onde está a magia, enquanto tudo isso vem acontecendo?

Está tentando forçar nosso namorado a voltar para nós. Está esfregando dinheiro para afastar nossa dívida no cartão de crédito, tentando dar àquele babaca que fugiu com nossa ex-mulher algo terminal. Está garantindo que festas do pijama com o tema Teen Witch corram bem. Está colocando insignificantes pessoas New Age em contato com seus insignificantes anjos New Age, e elas estão todas dizendo, tipo, “De jeito nenhum”, e os anjos estão dizendo, tipo, “Tanto faz”. Está atendendo a todos os nossos repetidos rituais com o entusiasmo que um patrocinador vem assistir à peça The Mouse Trap pela centésima sétima vez. Ela gasta os finais de semana tentando ler nossos péssimos sigilos debaixo da obscurecedora camada de giz, e em retaliação somente nos coloca em contato com entidades capengas, Elohim do serviço comunitário que tagarelam como cientologistas bebuns e nunca fazem um tiquinho de senso. Está no escritório de marcas registradas, registrando selos mágicos. Está lidando com uma agência de encontros que representa nossa única chance de alguma vez conhecer uma estranha buceta gótica. Está conseguindo pra nós uma oferta melhor naquele Renault novo, ajudando a prolongar a miserável vida de nosso cego e incontinente cachorrinho Gandalf, fazendo networking como louco pra garantir os diretos daquele Tarot de Hogwarts do Harry Potter. Ainda está tentando resolver o congestionamento resultante do Aeon de Horus ter furado através do canteiro central e invadido a pista sentido sul, sendo atingido de frente pelo Aeon de Maat, que derramou sua carga de penas pretas no acostamento. Não tem certeza se a ketamina foi realmente uma boa ideia. Está sentada olhando nervosa para mil estantes de livros desde entrevistas com necrófilos sobre estilo de vida e retrospectivas de moda na família Manson. Está aparecendo em celebrações neo-nazistas perto de Dusseldorf. Está se perguntando se deve introduzir uma política de “não pergunte, não conte” com relação ao 11º Grau. Está aconselhando Cherie Blair sobre tachinhas de acupuntura, e Islington inteira sobre Feng Sui. Colocou piercing no pênis numa tentativa de chocar seus pais classe média dos Home Counties, que estão mortos há dez anos, de qualquer maneira. Ela queria ser David Blaine. Ela queria ser Buffy. Ou, bem francamente, qualquer um.

Poderíamos, se desejássemos, ter as coisas de outra maneira. Ao invés de uma magia que está em servidão com um passado de ouro ingenuamente imaginado, ou ainda em romance com um futuro lugubremente fantasiado de parque temático do Deus Ancião, poderíamos tentar ao invés disso uma magia adequada e relevante à sua própria e extraordinária época. Poderíamos, se assim decidíssemos, garantir que o atual ocultismo seja lembrado como o auge de uma fanfarra ao invés de um suspiro decadente; um balbuciar moribundo e envergonhado; nem mesmo uma lamúria. Poderíamos transformar este terreno árido em um abundante paraíso, um trópico onde cada pensamento poderia florescer como arte. Sob o altar está o estúdio, a praia. Poderíamos insistir nisso, fôssemos verdadeiramente quem dizemos que somos. Poderíamos atingir isso não rabiscando sigilos, mas compondo histórias, pinturas, sinfonias. Poderíamos permitir que nossa arte espalhasse suas asas de escaravelho psicodélico em toda sociedade mais uma vez, e talvez ao fazê-lo, deixar que alguma luz ou graça caia sobre aquele dolorido e obscuro organismo. Poderíamos ser refeitos em nosso ninho fresco, permanecer reinventados num verdadeiro alvorecer de nossa Arte dentro de um mundo matinal, com nossa tinta ainda fresca, recém saídos do ovo e com nossos olhos ainda avermelhados no Éden. Recém-nascidos na Criação.

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Crédito da imagem: Google Image Search/lexprojects.com (Alan Moore, The Great I Am)

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10.5.16

Ainda tem jeito

Num mundo atribulado por notícias de guerra, de refugiados, de intolerância e crises políticas e econômicas, certamente há motivo para encarar o amanhã sem lá muita esperança. Mas é aí que entram os grandes mitos, as grandes histórias: elas nos ajudam a nos elevar, um pensamento por vez, um dia após outro...

E se engana quem pensa que tal mitologia se perdeu no passado longínquo, numa terra de deuses e anjos e demônios. Ela ainda está sendo escrita e reescrita, até mesmo no futebol.

O Leicester City é um time inglês com mais de um século que, não obstante, nunca havia sido campeão inglês. Na última temporada ele havia conseguido chegar na Primeira Divisão, e quase foi rebaixado novamente, como ocorre com os chamados “times pequenos”, isto é, que não pertencem as cidades ricas e não podem arcar com fortunas para contratar seus jogadores.

Mesmo assim, contra todos os prognósticos (quem apostou nele no início da temporada ficou milionário), o centenário Leicester finalmente conquistou seu troféu de campeão inglês nesta temporada. Recentemente, no primeiro jogo em casa após haver se consagrado, o técnico do time chamou um amigo, o tenor Andrea Bocelli, para cantar Nessun Dorma (“Ninguém durma”) em pleno estádio, para mais de 30 mil pessoas que na altura já pulavam e cantavam as típicas músicas de torcida.

Penso que o que se seguiu está além da descrição, cai na categoria dos mitos. Cai naquilo que chamamos de grande arte, ou magia, ou simplesmente aquilo que nos toca a alma, e nos conecta e nos faz enxergar: a humanidade ainda tem jeito.

A ária refere-se à proclamação da princesa Turandot, determinando que ninguém deve dormir: todos passarão a noite tentando descobrir o nome do príncipe desconhecido, Caláf, que aceitou o desafio:

[Caláf]
Que ninguém durma!
Que ninguém durma!
Você também, ó Princesa
Em seu quarto frio, olhe as estrelas
Tremendo de amor e de esperança
Mas meu segredo permanece guardado dentro de mim
O meu nome ninguém saberá
Não, não, sobre tua boca o direi
Quando a luz brilhar
E o meu beijo se desfaz
Em silêncio, que te faz minha.

[Coro feminino]
O seu nome ninguém saberá
E nós teremos, oh!, que morrer, morrer...

[Caláf]
Parta, oh noite
Esvaneçam, estrelas
Esvaneçam, estrelas
Ao amanhecer eu vencerei!
Vencerei! Vencerei!

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Crédito da imagem: Google Image Search/Premier League

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3.5.16

Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 5)

« continuando da parte 4 (ler do início)

Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.

Se a magia fosse considerada como uma arte ela teria acesso culturalmente válido à paisagem interior [Infrascape], os territórios imateriais intermináveis que são ignorados e invisíveis à ciência, que são inacessíveis à razão científica, e, portanto, compreendem o terreno mais natural da magia. Voltar esforços para a exploração criativa do espaço interior da humanidade pode não só ser de utilidade humana massiva, como pode eventualmente restaurar à magia todo o propósito e relevância, a utilidade demonstrável que lhe foi tão lamentavelmente privada, e por tanto tempo. Visto como arte, o campo ainda poderia produzir as resmas de teorias especulativas de que tanto gosta (afinal, filosofia e retórica podem ser vistas mais facilmente como arte que como ciência), contanto que fossem escritas de maneira bela e interessante. Enquanto, por exemplo, o Livro da Lei poderia ser questionado em valor quando considerado puramente como texto profético descrevendo definitivas ocorrências de estados de consciência porvir, não se pode negar que seja um exemplo de escrita da porra, que merece ser reverenciado como tal. O ponto é que se a magia abandonasse suas vazias pretensões enquanto ciência e saísse do armário como arte, obteria ironicamente a liberdade para seguir em suas aspirações científicas, talvez até mesmo se valendo de um teorema do campo unificado do sobrenatural, tudo isso em termos aceitáveis para a cultura moderna. A obra prima de Marcel Duchamp, A Noiva Despida Por Seus Celibatários, é mais possível que seja pensada como alquimia genuína, que como descrita em um trabalho de um pobre coitado que sugere que tenha algo a ver com fusão a frio. A arte é claramente um ambiente muito mais confortável para o pensamento mágico do que a ciência, com uma decoração muito mais relaxante e mobília muito mais bonita.

Mesmo aquelas almas danadas tão institucionalizadas como os membros de ordens mágicas que nem conseguem imaginar algum estilo de vida que não envolva pertencer a uma elite secreta e cabal não tem razão para se desesperar ao encontrar a si próprios sem teto e solitários em nossa nova proposta selvagem. Arte não tem ordens, porém têm movimentos, escolas e panelinhas com toda a dissimulação, narizes empinados e elitismo que qualquer um poderia desejar. Melhor ainda, uma vez que movimentos artísticos não ficam competindo uns com os outros pelo mesmo território como as ordens mágicas (como podemos dizer, por exemplo, que William Holman Hunt compete com Miró, ou Vermeer?), isso deve evitar a necessidade que as diferentes escolas de pensamento ocultista têm de criar rixas, ou ataques, ou como geralmente acontece fazer a egípcia tal qual meras imitações de dar pena de Criswell-do-plano-9-do-espaço-sideral.

Assim como não há necessidade de descartar inteiramente as fraternidades, do mesmo modo não há necessidade para os que cresceram ligados a essas coisas de descartarem suas armadilhas rituais, quer dizer, seus rituais. A única coisa que pedimos é que eles abordem estes assuntos com mais criatividade e com um olhar mais criterioso e ouvidos para o que é profundo; o que é belo, original e poderoso. Que façam varinhas, selos e lamens aptos a estarem em exposições de arte marginal (quão difícil isso pode ser? Mesmo pacientes mentais são qualificados), façam de todo ritual uma peça de teatro impressionante e intensa. Quer consideremos magia arte ou não, essas coisas precisam ser minimamente ditas. A quem nossos rituais privados e adornos feitos visam agradar, se não os deuses? E quando sequer foi que eles nos deram a impressão de que estariam satisfeitos com algo que não fosse minimamente requintado ou original? Deuses, ou seja lá o que forem, são conhecidos por serem notoriamente parciais à criação, e portanto podemos presumir que sejam capazes de apreciar a criatividade humana, a coisa mais próxima que desenvolvemos de uma brincadeira divina e nossa mais sublime realização. Pensar a magia uma vez mais como arte permitiria que a ela conservasse tudo o que tem de melhor do que um dia já foi, ao mesmo tempo em que ofereceria a oportunidade para que ela floresça e progrida rumo a um futuro onde possa realizar muito mais.

Como é que esta mudança de premissa tem impacto, então, sobre nossa metodologia? Que mudanças de ênfase podem ser vinculadas, e poderiam tais alterações serem vantajosas tanto à magia enquanto campo como para nós enquanto indivíduos? Se tivermos uma intenção séria de reinventar o oculto como A Arte, uma alteração básica em nossos métodos de trabalho que poderia produzir benefícios consideráveis seria se nós nos determinássemos a cristalizar qualquer ideia, verdades ou visões que nossas viagens mágicas tenham nos proporcionado em algum artefato, algo que todo mundo pudesse ver também, só pra variar. A natureza do artefato, seja um filme ou Haikai, um expressivo desenho a lápis ou um exuberante espetáculo teatral, é completamente sem importância. Tudo o que importa é que seja arte e que permaneça fiel à sua inspiração. Uma vez que tenha sido adotado, em um único golpe, um ajuste tão pequeno de processo quanto esse poderia verdadeiramente transformar o mundo em magia. Em vez de ser por uma motivação pessoal, de funcionamento toscamente causal tanto de intenção duvidosa e resultado duvidoso, magia de punheta que termina geralmente em satisfação limitada, nossas transações com o mundo oculto seriam produtivas, gerando questões em resultados tangíveis onde todos possam julgar seus valores por si próprios. Em termos puramente evangélicos, como propaganda de uma visão de mundo mágica mais iluminada, a arte com certeza representa a nossa “evidência” mais convincente de outros estados e planos de existência. Enquanto os pensamentos de Austin Spare são inegavelmente interessantes quando expressados na forma de escrita como teoria, é sem dúvida seu talento como artista que proporciona a percepção de entidades e outros mundos realmente testemunhados e registrados, a autenticidade imediata que conferiu a Spare muito de sua reputação como um grande mago. Ainda mais importante, um trabalho como o de Spare fornece uma janela para o mundo oculto, permitindo aqueles que estão fora uma expressão mais eloquente acerca do que é a magia do que qualquer trato arcano, oferecendo-lhes uma razão legítima para se aproximar do oculto pra começo de conversa.

Em nosso cenário selvagem para a magia, com a competição Darwiniana feroz e justa entre as ideias implícita, tratar o oculto como uma arte também poderia emprestar um meio de lidar com (ou fomentar) quaisquer disputas que possam surgir. A arte tem uma maneira de resolver tais disputas por si, indiscutivelmente, sem recorrer a processos capengas como, por exemplo, resolução violenta de conflitos, litígios, ou ainda pior, democracia de patricinha. Com a arte, a visão mais forte vai prevalecer, mesmo que demore décadas, séculos para que aconteça, como William Blake. Não há necessidade de sequer fazer uma votação sobre qual é a visão mais forte: esta seria aquela sentada quietinha em seu canto indisputável da nossa cultura, indiferente palitando os dentes com os esternos de seus rivais. Mozart abate um Salieri, dorme durante dois dias após o banquete, período no qual a savana pode relaxar. Dando o bote de repente por entre as sombras das torres de concreto, J. G. Ballard corta fora Kingsley Amis, enquanto Jean Cocteau não sai da cola da ossuda bunda Imperial-Ciclópica [possível referência ao Ku Klux Klan] de D. W. Griffith como um filho da puta. Uma seleção natural artística, sanguinária, mas equilibrada, parece uma forma muito mais razoável de resolver assuntos que decisões arbitrárias e sem resposta, proferidas pelos chefes de ordens, como Moina Mathers dizendo a Violet Firth que sua aura não tinha os símbolos adequados.

Além disso, se a viciosa luta por sobrevivência é promulgada decretada nos termos daquele cuja a ideia é mais potente e mais bela em sua expressão, então os espectadores da briga-de-galos estão mais propensos a acabar sujos de metáforas magníficas do que com respingos frescos de entranhas. Mesmo nossas brigas mais incestuosas e sem sentido podem, assim, ter um produto que enriquece o mundo em alguma pequena parcela, em vez de nenhum resultado, salvo de que a magia pareça uma briga de parquinho ainda mais infantil e inane do que todos pensavam que era. Ao julgar por seus méritos, tal atitude de lógica selvagem para com a magia, com sua estética predatória e ideias competindo em uma mata fertilizada por seus requintados excrementos culturais, parece oferecer ao ocultismo uma situação em que todos ganham. Como poderia alguém ser contra, exceto no caso daqueles cujas ideias podem ser vistas como gordas, lentas, incapazes de voar, e fonte acessível de proteína; aqueles bem qualificados como presa primária que talvez estejam começando a suspeitar que isso tudo seja um argumento de um tigre para safáris em campo aberto?

Após análise, estas últimas dúvidas e medos mencionados, ainda que certamente triviais dentro de um contexto de bem estar da magia enquanto campo, é provável que sejam obstáculos mais graves para qualquer grande aceitação de uma ética-pantanal primal, como é proposta. No entanto, se aceitarmos que as únicas alternativas para a selva sejam um circo ou um jardim zoológico, a ideia talvez seja mais considerável. E se nossas preciosas ideias devam ser rasgadas em pedaços no momento em que mal estão saindo do ninho, mesmo que isso seja, é claro, angustiante, não é mais que uma prova da qual suportou qualquer poeta estudante ocasional ou pintor de domingo que expõe seu desajeitado esforço ao julgamento de outro. Por que deveria o medo do ridículo ou da crítica, medo do qual o mais baixo bêbado de karaokê está aparentemente bem capaz de superar, causar problemas para ocultistas que juraram manterem-se firmes frente às próprias portas do inferno? Na verdade, a superação de tais fobias simples não deveria ser pré-requisito pra quem quer trajar a si como um mago? Se considerar magia como arte e arte como magia, se como os antigos xamãs percebêssemos um dom para a poesia como um poder mágico, magicamente concedido, não teríamos finalmente uma resposta quando uma pessoa qualquer na rua nos pede, de forma razoável, para demonstrar um pouco de magia, então, já que somos tão taumatúrgicos?

O quão empoderador seria para ocultistas acumular constantemente, através de um trabalho árduo, genuínas habilidades mágicas que podem ser comprovadamente exibidas. Talentos que gente comum, inteligente e racional pode muito facilmente aceitar como sendo verdadeiramente mágicos em sua origem; prontamente se envolver de uma forma que o ocultismo atual, com o seu obscurantismo muitas vezes deliberado e desnecessário, não pode gerir. Apesar da magia ser mais seguramente expressa e sentida na maioria dos grimórios modernos, um mero folhear das Ficções de Borges, ou um vislumbre de Escher ou de um lado ou dois de Capitão Beefheart seria muito mais provável de persuadir o leitor comum para um ponto de vista magicamente receptivo. Se a própria consciência, com sua existência no mundo natural, está além da capacidade de comprovação da ciência, sendo, portanto, sobrenatural e oculta, certamente a arte é um dos meios mais óbvios e espetaculares pelo qual o reino sobrenatural da mente e da alma se revela, se manifesta sobre um plano material bruto.

» Conclui na parte 6

***

Aqui se encerra a participação do Daniel Lopes como tradutor deste ensaio. Como além de tradutor ele é artista e ilustrador, não poderia deixar de incluir aqui esta tirinha que ele diz ter criado inspirado diretamente pelas palavras de Moore. De fato, talvez ele tenha resumido todo o Fossil Angels em três quadrinhos. Valeu Daniel!

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search/thehorsehospital.com (Alan Moore); [logo acima] Daniel Lopes

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