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28.12.17

O Tudo e o Nada

Após ter acompanhado seu nascimento e crescimento desde o início, é com muita honra que hoje prosseguimos com a parceria deste blog com o canal Conhecimentos da Humanidade no YouTube, apresentado por Bruno Lanaro e Leo Lousada.

E desta vez, surpresa!, sou eu mesmo que apareço no vídeo. Logo após o Simpósio de Hermetismo deste ano (Novembro de 2017), tive o prazer de visitar a casa do Bruno e, ao ver o "set de filmagens" do canal, decidimos simplesmente ligar a câmera e falar sobre "alguma coisa". Claro que achei que a oportunidade era ideal para falar sobre o Tudo e o Nada, que os leitores do meu blog (e, principalmente, do meu livro Ad infinitum) sabem bem que se trata de um tema recorrente das minhas reflexões.

O meu objetivo, portanto, é mais estabelecer uma base de questionamentos filosóficos a partir da premissa inicial de que "existe algo e não nada" do que propriamente "evangelizar" alguma crença ou filosofia particular adiante. Assim sendo, o ideal é que vocês mesmos se questionem e busquem pelas próprias respostas, pois eu não tenho pretensão alguma de ditar regras de pensamento.

Feliz Ano Novo! (tudo vibra e nada está parado, inclusive este nosso planetinha)

» Saiba mais sobre o andamento da minha tradução do Caibalion

» Saiba mais sobre o meu livro: Ad infinitum

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26.12.17

Como me tornei terapeuta

Sendo um psicanalista, as pessoas costumam me perguntar o que é necessário para se tornar um também. Neste texto pretendo responder a essa pergunta, compartilhar um pouco do meu próprio trajeto, e dizer por que a psicanálise pode ser interessante para você caso também queira ser um terapeuta.

Primeiramente, a profissão de psicanalista não é regulamentada pelo governo. Não há um diploma ou uma instituição que possa garantir este título, embora existam cursos e sociedades que ofereçam uma formação profissional ao aspirante a terapeuta. Eu diria que, para ser um bom psicanalista, cursos e diplomas são tão necessários quanto para um bom jardineiro. Obviamente, seu aprimoramento técnico e criativo irá lhe auxiliar na arte da jardinagem, mas o que lhe faz um verdadeiro jardineiro é o quão belo você consegue manter o seu jardim. Na psicanálise não é diferente.

Sigmund Freud propôs a formação do psicanalista baseada no tripé análise pessoal, supervisão e estudo teórico. Como vocês podem perceber, não há uma grade curricular obrigatória, estipulação de carga horária mínima ou qual instituição está apta a conceder o título. Pelo contrário, como Jacques Lacan dizia, “o analista só se autoriza por si mesmo”. O caráter – digamos – anárquico de nossa formação nos confere um interessante diferencial.

Considerando que um percurso é sempre singular a cada sujeito, a psicanálise entende que não há normativas quanto ao que seria um “verdadeiro percurso analítico”. Cada analista deve inventar o seu próprio caminho, a sua própria formação, respeitando apenas os critérios básicos de legitimidade do tripé proposto por Freud.

Certamente esse modelo mais liberal de formação, em que cada um deve buscar por si próprio construir uma trajetória de vida que lhe torne apto a ser um bom analista, parece à primeira vista propício aos charlatães. É por isso que o analista deve se colocar à prova na sociedade. Se sua autorização é uma auto-rização, o reconhecimento do psicanalista não deve se resumir às quatro paredes do seu consultório, mas ele deve estar na pólis.

Se você procura um terapeuta, não vá a qualquer um apenas porque você recebeu seu cartãozinho. Procure profissionais que você já tem algum nível de conhecimento para confiar o importante trabalho que vocês irão desenvolver. Afinal, é de sua vida que estamos tratando. Mesmo quando for uma indicação, procure conhecer esse profissional através de artigos ou vídeos que ele produziu, qual sua formação acadêmica, o que ele tem feito. Ou seja, o que seu terapeuta pode transmitir de sua trajetória pessoal.

E como funciona o tripé psicanalítico?

1. Estudo teórico: Todo analista deve estudar a psicanálise. Obviamente. A partir de Lacan surgiram as escolas de psicanálise. Uma escola não oferece um curso ou um diploma de psicanalista. Estar numa escola não autoriza ninguém a ser analista. A escola é uma instituição em que analistas e estudantes de psicanálise podem se reunir para discutir o seu campo, trocar ensinamentos e avançar as investigações psicanalíticas.

Porém, a formação teórica não se resume ao estudo realizado na escola. Um analista não deve conhecer apenas a psicanálise, mas também a sua interlocução com outros campos. Contam aqui graduações acadêmicas, seminários de filosofia, conhecimentos de religião, atividade política, e por aí vai. Não são propriamente os diplomas que contam, mas a maestria particular que cada um desenvolve a partir de seus variados estudos. Não há uma receita universal, mas cada analista terá suas próprias particularidades e afeições.

Podemos apenas universalizar que o analista tem uma formação contínua: ele jamais deve parar seus estudos, como se os tivesse concluído, mas deve estar sempre avançando em suas investigações, mantendo-se atualizado quanto às transformações do mundo, esteja filiado a uma instituição ou de maneira independente.

2. Supervisão: Durante os primeiros anos da formação, é importante que o aspirante a analista esteja amparado por outro analista mais experiente. Pode-se encontrar um supervisor numa escola, mas não necessariamente. Com seu supervisor, o estudante poderá discutir seus primeiros casos clínicos, esclarecer dúvidas, tornar-se ciente de suas dificuldades pessoais, até que com o passar do tempo possa prescindir dele. Porém, mesmo analistas mais antigos e experientes jamais prescindem de eventualmente reunirem-se com outros analistas para discutir as questões clínicas, ainda que com menor frequência por terem adquirido maior autonomia.

3. Análise pessoal: Chegamos finalmente ao mais importante do tripé. Estudo contínuo e supervisão são fundamentais, mas é a análise pessoal que torna alguém propriamente um analista. Um terapeuta jamais se resumirá a uma função técnica, alguém que coleciona métodos para simplesmente aplicá-los. Trata-se de uma arte. De uma maestria adquirida com o tempo. O analista é, antes de qualquer coisa, analista de si mesmo.

É preciso que se atravesse a própria análise, que seja capaz de mergulhar em sua própria intimidade com sinceridade, para poder se tornar analista de outra pessoa. Só assim nos tornamos capazes de suportar as angústias de um outro ser humano, quando conhecemos suficientemente as nossas próprias. Como eu disse antes, não importam os diplomas e conhecimentos de um jardineiro se ele não é capaz de cuidar de um belo jardim. Quem não enfrentou a própria análise ainda não está apto a analisar outras pessoas.

Não existe autoanálise. Esse é o fracasso da autoajuda. Sozinho consigo mesmo, o sujeito é capaz de criar as mais diferentes racionalizações, fugas, mentiras para não se haver com aquilo que lhe é mais verdadeiro. Pois a verdade geralmente é incômoda demais ao ego. É preciso que a análise seja um discurso dirigido a um outro, e que esse outro esteja ali para pontuar o que não se deve ignorar. Só existe análise com um psicanalista. Terapia com um terapeuta.

***

Existem muitos caminhos terapêuticos. Dentro da psicologia mesmo existem diferentes abordagens. Por que então a psicanálise?

Não há uma resposta absoluta para essa pergunta. Cada pessoa terá suas diferentes preferências e filiações teórico-políticas. Posso responder apenas porque a psicanálise fez mais sentido para mim. Talvez outro caminho possa fazer mais sentido para a sua história.

Meu primeiro contato com a psicanálise foi ainda criança, por volta dos 10 anos, quando fui levado a um analista por meus pais. Anos depois, quando entrei na faculdade de psicologia, eu já sabia que a psicanálise, embora também ensinada nos cursos de psicologia, não se reduz a última. Psicologia e psicanálise são campos diferentes, com profissionalidades diferentes, ambas aptas ao exercício terapêutico.

O psicólogo é uma profissão regulamentada, adquirida apenas através de um curso de graduação. Existem muitas atuações para um psicólogo, a depender de suas variadas especializações. O psicanalista, por sua vez, é uma função a qual exercemos. Particularmente, eu adquiri as duas formações. Mas nem todo psicanalista vem da psicologia. Alguns se tornam psicanalistas após um curso de medicina, filosofia ou, comumente, outras ciências humanas.

Minha escolha pela psicologia se deu por considerá-la uma ciência abrangente para conhecer as diferentes interseccionalidades que lidam com o ser humano, tema que sempre me intrigou bastante. Mas desde o primeiro período da graduação jamais abandonei outros estudos. Para falar a verdade, muitas vezes passava mais tempo na seção de filosofia das livrarias que propriamente na seção de psicologia.

Foi por volta da metade da graduação que comecei a estagiar com um professor que era psicólogo e psicanalista. Com ele iniciei na clínica, recebendo pacientes, e desde então nunca mais parei. Quanto ao estudo teórico, dediquei-me a uma intensa atividade acadêmica durante e após a graduação. Mas minha formação analítica ocorreu, como era de se esperar, em minha própria análise.

Foi durante a faculdade que retomei também a minha análise pessoal, pausada após uma significativa melhora daquelas questões que me levaram a um analista quando ainda era criança. Dando prosseguimento quando mais velho, foi ouvindo a mim mesmo, minhas incongruências, divisões, conflitos, paradoxos, angústias, que comecei a desenvolver um saber que não está nos livros ou nas teorias. Trata-se de um saber de si, um saber da vida, algo que os franceses chamam de savoir-faire, um saber-fazer. Isto é, saber fazer com a própria vida.

Porque não existem regras prontas para a vida. Há muitas teorias, técnicas e filosofias que podemos tomar conhecimento por livros, por aulas ou pela internet. Mas nenhum saber externo pode dizer a verdade sobre nós. É preciso conhecê-la aos poucos, ouvir a si próprio numa escuta aberta, numa paixão pela verdade, ainda que muitas vezes ela possa ser dolorosa ao ego. Se você tem essa coragem, a psicanálise é para você.

Entrar numa análise é desejar conhecer as profundezas daquilo que a maioria decide apenas ignorar. As saídas superficiais podem parecer mais simples. Antidepressivos, ansiolíticos e toda uma gama de drogas que, ainda que em muitos casos sejam necessárias, estão longe do uso banalizado que se adquiriu atualmente. Ou prazeres superficiais, fugazes, que, mesmo com eles, ainda sentimos a vida vazia de sentido, valor ou desejo.

Imagine que você possa ter uma vida satisfeita que independa do uso de drogas psiquiátricas, que sabemos trazer restrições à vida e efeitos colaterais. Que você possa encontrar algo que lhe faça vibrar. Valorizar o que é importante para você e desprender-se do que lhe faz mal. Viver sem estar limitado por medos incompreensíveis ou restrições absurdas.

Eu diria que os ganhos de uma análise são incomparáveis. Não por propaganda, mas por minha própria experiência. Se eu não tivesse feito análise, certamente teria uma vida muito diferente da que tenho hoje. Talvez precisasse de drogas psiquiátricas para viver e funcionar socialmente, estaria atormentado por fantasmas familiares, medos e inseguranças quanto a vida, diante de questões que pude trabalhar de um outro modo na análise.

Estamos acostumados a esperar soluções muito fantásticas para nossos problemas. Encontramos por aí propagandas de mudanças radicais para a vida: largar o emprego e viajar o mundo, ter uma experiência sexual muito perigosa, encontrar o amor da sua vida e tudo se tornar perfeito a partir de então, iniciar uma nova dieta revolucionária que mudará o seu corpo. Tudo muito espetacular. Também muito ideológico.

Mas às vezes você não precisa de muita coisa. E a psicanálise está aí para demonstrar isso. Só colocar umas palavras no lugar que fica tudo bem. É falar, escutar-se e também se calar. Porque a vida é muitas vezes inconsistente, absurda, frustrante. Mas acompanhada por amores, sonhos, realizações e alegrias. Basta encontrar a sua medida.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Gerome Viavant/unsplash (arte de Alexander Milov para o Burning Man)

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20.12.17

Traduzindo o hermetismo, parte 2

Continuamos trazendo os trechos iniciais da tradução de Rafael Arrais do Caibalion, que em breve será publicado em e-book e livro impresso.

« continuando da parte 1

De lábio a ouvido as verdades foram sendo passadas através dos séculos para os poucos caminhantes em condições de recebê-las. Sempre houve poucos iniciados em cada geração, nos mais variados territórios do planeta, que mantiveram vivo o fogo sagrado dos Ensinamentos Herméticos, e eles sempre estiveram a postos para se valer de suas reluzentes lamparinas para reacender as lamparinas acanhadas do mundo profano, sempre que a chama da verdade ameaçava esmaecer por conta da negligência de seus cuidadores, ou quando os pavios ficavam embebidos em estranhas substâncias. Sempre houve um punhado de seres dispostos a cuidar fielmente do altar da Verdade, sobre o qual foi posta a Lamparina Perpétua da Sabedoria. Tais seres devotaram suas vidas para a obra de amor que o poeta soube definir tão bem nestas linhas [Nota do Tradutor: trechos do poema de Edward Carpenter em Towards Democracy]:

Ó, não deixes a chama morrer!
Mantida era após era em sua escura caverna,
e tão bem cuidada nos templos sagrados
pelos puros ministros do amor...
Não, não deixes a chama morrer!

Tais seres jamais buscaram a aprovação popular, tampouco numerosos seguidores. Eles são indiferentes a tais coisas, pois que bem sabem como são tão poucos aqueles que, em cada geração, estão preparados para a verdade, ou que pelo menos são capazes de reconhecê-la quando esta lhes é apresentada. Eles guardam “a carne para os adultos”, enquanto outros dão “o leite às crianças”. Eles reservam suas pérolas de sabedoria para os poucos eleitos que são capazes de reconhecê-las, e assim as utilizam no adorno de suas coroas, ao invés de jogá-las aos porcos vulgares e materiais, que iriam tão somente chafurdar na lama com elas, e as misturar com o seu desagradável alimento mental.

Mas tais iniciados no caminho nunca menosprezaram ou se esqueceram dos preceitos originais de Hermes, que tratam da transmissão da verdade para aqueles em condições de recebê-la, conforme nos diz o Caibalion: “Onde se encontram as pegadas do Mestre, os ouvidos daqueles preparados para os seus Ensinamentos se abrem completamente”; e, noutra parte: “Quando os ouvidos do estudante estão preparados para ouvir, logo vêm os lábios para preenchê-los de sabedoria”. Mas sua atitude costumeira sempre esteve em estrito acordo com outro aforismo hermético, também presente no Caibalion: “Os lábios da Sabedoria se encontram fechados, exceto aos ouvidos do Entendimento”.

Há aqueles que criticaram tal atitude por parte dos hermetistas, e que afirmaram que eles não manifestavam o verdadeiro espírito dos seus ensinamentos por conta de suas políticas de reclusão e reticência. Porém um rápido olhar pelo que se passou nas páginas da história irá revelar a devida sabedoria dos Mestres, que bem sabiam o quão inútil seria tentar ensinar abertamente num mundo que não estava preparado e tampouco desejoso de receber tais ensinamentos. Os hermetistas jamais buscaram se tornar mártires, tanto pelo contrário, somente se sentaram silenciosamente ao largo dos grandes acontecimentos profanos, com seus lábios fechados, esboçando um leve sorriso de piedade.

Enquanto isso, “os ignorantes se enfureciam contra eles”, se valendo de sua diversão costumeira de encaminhar para a morte e a tortura os honestos porém desencaminhados entusiastas que um dia imaginaram ser possível evangelizar a verdade para uma raça de bárbaros; a verdade que só poderia ser compreendida, é claro, por aqueles já avançados no caminho.

E este espírito de perseguição ainda vive até os dias atuais. Ainda há certos Ensinamentos Herméticos que, se forem divulgados abertamente, possivelmente farão com que caia sobre os seus instrutores um clamor de ódio e desprezo vindo da multidão: “Crucificai-os! Crucificai-os!”.

Nesta pequena obra nós buscamos lhes dar uma ideia dos ensinamentos fundamentais do Caibalion, nos esforçando para lhes trazer os Princípios que de fato funcionam, mas deixando que vocês mesmos os estudem e pratiquem com maior profundidade, ao invés de tentar detalhá-los apenas com palavras. Se você acaso é um estudante verdadeiro, certamente poderá compreender e aplicar tais Princípios no seu dia a dia – porém, se ainda não se tornou um, você deve buscar primeiramente desenvolver a si mesmo, do contrário os Ensinamentos Herméticos nada mais serão que “palavras, palavras, palavras” para você.

Os Três Iniciados

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Crédito da imagem: Marko Horvat/unsplash

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13.12.17

Traduzindo o hermetismo, parte 1

Sempre soube que ao longo do meu projeto de traduções de grandes obras em domínio público eu eventualmente chegaria ao Caibalion, mas confesso que me surpreendeu que um livro tão essencial para o estudo do ocultismo e do espiritualismo em geral tenha até hoje basicamente só uma única tradução para o português [1], a de Rosabis Camaysar para a Editora Pensamento, que provavelmente foi a versão lida pela grande maioria daqueles que já conhecem a obra, inclusive eu. Mas, não somente isso, como até hoje não temos uma única versão em e-book do livro, nem mesmo da própria Pensamento.

Parece que estavam todos esperando pela minha tradução, e se for o caso, informo que ela já está a caminho, e deve ser lançada no início de 2018 tanto em e-book (na Amazon) quanto na versão impressa (pelo Clube de Autores, e quiçá também pela própria Amazon, aguardem novidades!).

Como eu tenho estado, justamente, bem ocupado com o trabalho de tradução, pensei em usar o início dela para preencher alguns posts do blog, mais ou menos como fiz quando estive traduzindo o Bhagavad Gita. Portanto, segue abaixo, e nos próximos posts desta pequena série, os trechos iniciais da minha tradução do Caibalion, a obra essencial para quem quer conhecer o hermetismo.

Rafael Arrais

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Introdução

Nós temos grande prazer em trazer à atenção dos estudantes e investigadores das Doutrinas Secretas esta pequena obra baseada nos Ensinamentos Herméticos do mundo antigo. Há tão poucos escritos acerca de tal assunto, apesar das inúmeras referências aos Ensinamentos em diversas obras do ocultismo, que muitos sinceros buscadores das Verdades Arcanas irão, sem dúvida, apreciar com carinho este volume.

O propósito desta obra não é a enunciação de nenhuma filosofia ou doutrina em especial, mas sim o de ofertar aos estudantes uma exposição da Verdade que servirá de reconciliação para muitos dos pedaços separados do conhecimento oculto que eles podem ter adquirido, mas que por vezes se parecem como que opostos uns dos outros, e terminam por desencorajar e desanimar aqueles que estão no início do caminho. Nossa intenção não é erguer um novo Templo do Conhecimento, mas deixar nas mãos do estudante a Chave-Mestra com a qual ele mesmo poderá abrir muitas portas internas no Templo do Mistério cujos portais ele já adentrou.

Não há porção dos ensinamentos ocultos existentes no mundo que foi tão bem guardada quanto os fragmentos dos Ensinamentos Herméticos que chegaram até nós através das dezenas de séculos que se passaram desde que viveu entre nós o seu grande fundador, Hermes Trimegisto, o “escriba dos deuses”, que residiu no antigo Egito nos dias em que a atual raça humana estava ainda em sua infância. Contemporâneo de Abraão e, se forem verdadeiras as lendas, um instrutor deste venerável sábio, Hermes foi, e ainda é, o Grande Sol Central do Ocultismo, cujos raios serviram de iluminação para incontáveis ensinamentos que foram disseminados desde o seu tempo. Todos os ensinamentos mais básicos e fundamentais embutidos nos conhecimentos esotéricos de cada etnia humana podem ser traçados de volta a Hermes. Mesmo os preceitos ancestrais da Índia sem dúvida têm suas raízes firmes nos Ensinamentos Herméticos originais.

Saindo da terra do rio Ganges, muitos ocultistas de grande conhecimento peregrinaram até alcançar o Egito, e se prostraram aos pés do Mestre. Foi dele que eles obtiveram a Chave-Mestra que explicou e reconciliou suas visões divergentes, e assim a Doutrina Secreta foi estabelecida em bases sólidas. De outros territórios também vieram os avançados no caminho, que da mesma forma reconheceram Hermes como o Mestre dos Mestres, e a sua influência era tamanha que apesar dos desvios do caminho pela parte das centúrias de instrutores de terras tão diversas, ainda há como se rastrear uma certa semelhança e correspondência por detrás das diversas e por vezes divergentes teorias aceitas e ensinadas pelos ocultistas de diferentes culturas e países até os dias atuais. O estudante de Religiões Comparadas terá condições de perceber a influência dos Ensinamentos Herméticos em cada religião digna do nome hoje conhecida entre os seres humanos, seja ela uma religião já morta ou ainda em pleno vigor no transcorrer de nosso próprio tempo. Há sempre uma certa Correspondência entre elas, apesar das aparências contraditórias, e os Ensinamentos Herméticos atuam como o Grande Reconciliador.

A grande obra da vida de Hermes parece ter se inclinado na direção de plantar uma grandiosa Semente da Verdade que desde então brotou e floresceu em inúmeras formas as mais estranhas, pois que ele não quis estabelecer uma mera escola de filosofia destinada a enredar o pensamento humano. No entanto, de qualquer forma, as verdades originais que ele ensinou foram mantidas intactas em toda a sua antiga pureza pelos poucos seres que, em cada época, ao recusarem um grande número de estudantes e discípulos pouco desenvolvidos, seguiram os preceitos herméticos e guardaram tais verdades para aqueles poucos realmente preparados para as compreender e dominar.

» Continua com a parte final da Introdução

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[1] Ao menos entre as versões de editoras brasileiras não esgotadas ou fora de tiragem, que eu saiba há somente esta mesmo.

Crédito da imagem: Aarón Blanco Tejedor/unsplash

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7.12.17

Maledicência

Peçonha .:.

"Se você dirige ou conhece o trânsito de nossas grandes cidades deve ter notado que, por ocasião d'algum acidente, o nó que se forma nas estradas deve-se muito mais a curiosidade mórbida em ver o sangue fresco do infortúnio do que propriamente a razões técnicas.

Se você tem um aparelho de TV dentro de casa talvez tenha notado que um dos gêneros de maior audiência e destaque - por vezes dominical - são aqueles que mostram a queda, o deslize, o desastre e a vergonha do outro. Famílias inteiras se reúnem sob o silencioso prazer de ver e rir (!) do tombo de outros seres humanos.

Questões filosóficas a parte, a maledicência apresenta fundamentalmente as mesmas bases: o indivíduo encontra nesta uma oportunidade de ¹criar um laço de confidencialidade com seus ouvintes, ²ver-se como superior por não ter caído nas mesmas falhas e ³comprazer-se na referida infelicidade.

No geral o hábito de falar mal dos outros expressa não uma real vontade de ajudar o ouvinte, alertá-lo quanto a possíveis problemas ou mesmo retificar quaisquer erros mas, em realidade, o desejo secreto de espalhar o veneno, disseminar a discórdia, empreender pequenas vinganças e crescer as custas da desgraça alheia.

Quem tem o sombroso costume da 'fofoca', quem toma parte em círculos de 'linchamentos' (físicos, sociais ou virtuais) e se apressa em atirar as primeiras pedras, pode até ser que tenha de fato razão mas não é confiável pela simples razão de que se o fez ontem e o faz hoje, certamente o fará amanhã.

Aquele que fala mal de 'X' para 'Y' agora e dança sobre o caixão de suas imperfeições, não resistirá a tentação de fazer isto com o próprio 'Y' quando a oportunidade se apresentar...

Sim, claro, tem-se todo o direito - e até o dever - de lutar por justiça, equiparações e esclarecimentos; mas se os atos e palavras reverberadas não possuem qualquer outro efeito além do tripúdio vazio, a chacota infértil e a retaliação dissimulada, corre-se sim o perigo de, no mínimo, engasgar-se com a própria peçonha!"

Caciano Camilo Compostela, Monge Rosacruz – Contato: facebook.com/ mongerosacruzcacianocompostela

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Crédito da imagem: Priscilla Du Preez/unspalsh

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5.12.17

Milan Kundera e a Astrologia

Trecho de A Imortalidade, romance de Milan Kundera. Os comentários ao final são meus.


Sobre o mostrador de um relógio, os ponteiros giram em círculo. O zodíaco também, como é desenhado pelos astrólogos, tem o aspecto de um mostrador. O horóscopo é um relógio. Quer se acredite ou não nas previsões astrológicas, o horóscopo é uma metáfora da vida, e assim sendo, encerra uma grande sabedoria.

Como é que um astrólogo desenha seu horóscopo? Traça um círculo, a imagem da esfera celeste, e o divide em doze setores cada um representando um signo: Carneiro, Touro, Gêmeos, etc. Em seguida, no círculo zodiacal, ele inscreve os símbolos gráficos do Sol, da Lua e dos sete planetas nos lugares precisos onde estavam esses astros no momento em que você nasceu. Como se, sobre um mostrador de relógio normalmente dividido em doze horas, inscrevesse anormalmente nove números suplementares. Nove ponteiros percorrem esse mostrador: são também o Sol, a Lua e os planetas, mas da maneira como giram no céu durante toda a sua vida. Cada planeta-ponteiro está assim incessantemente numa nova relação com os planetas-números, esses pontos imóveis do seu horóscopo.

A configuração singular que tinham esses planetas no momento em que você nasceu é o tema permanente de sua vida, sua definição algébrica, a impressão digital de sua personalidade; os astros imobilizados sobre seu horóscopo formam entre si ângulos cujo valor em graus tem um significado preciso (positivo, negativo, neutro): imagine, por exemplo, que seu Vênus amoroso se ache em conflito com seu Marte agressivo; que o Sol de sua personalidade seja fortificado por sua conjunção com o enérgico e aventureiro Urano; que a sexualidade simbolizada pela Lua seja sustentada pelo astro delirante que é Netuno, e assim por diante. Porém, durante seu trajeto, os ponteiros dos astros vão tocar cada um dos pontos imóveis do horóscopo, pondo assim em jogo (debilitante, energizante, ameaçador) diversos componentes de seu tema vital. A vida é bem assim: não se parece com o romance picaresco onde o herói, de capítulo em capítulo, é surpreendido por acontecimentos sempre novos, sem nenhum denominador comum; é parecida com essa composição que os músicos chamam tema com variações.

Urano move-se no céu num passo relativamente lento. Leva sete anos para percorrer um signo. Suponhamos que hoje esteja numa relação dramática com o Sol imóvel no seu horóscopo (digamos que estejam a noventa graus de distância): você terá um ano difícil; em vinte e um anos a situação se repetirá (Urano estando então a cento e oitenta graus do seu Sol, o que tem o mesmo significado nefasto), mas a repetição será apenas aparente, porque nesse ano, no mesmo momento em que Urano ataca o seu Sol, Saturno no céu se encontrará com Vênus no seu horóscopo num relacionamento tão harmonioso que a tempestade passará por você na ponta dos pés. Como se você fosse atingido por uma mesma doença, mas desta vez sendo tratado num hospital fabuloso, onde, em vez de enfermeiras impacientes, estariam anjos.

A astrologia, parece, nos ensina o fatalismo: você não escapará do seu destino! A meu ver, a astrologia (preste atenção, a astrologia como metáfora da vida) diz uma coisa mais sutil: você não escapará ao tema de sua vida! Isso quer dizer que será uma quimera tentar implantar no meio de sua vida uma ‘vida nova’, sem nenhum relacionamento com sua vida precedente, partindo do zero, como se diz. Sua vida será sempre construída com os mesmos materiais, os mesmos tijolos, os mesmos problemas, e o que você poderia considerar no princípio como uma ‘vida nova’ logo aparecerá como uma simples variação do já vivido.

O horóscopo parece com um relógio, e o relógio é a escola da finitude: assim que um ponteiro completou um círculo para voltar ao lugar de onde partiu, uma fase termina. No mostrador do horóscopo, nove ponteiros giram em velocidades diferentes, marcando a todo instante o fim de uma fase e o começo de outra. Em sua juventude, o homem não está em condições de perceber o tempo como um círculo, mas apenas como um caminho que o conduz direto para horizontes sempre diversos; não percebe ainda que sua vida contém apenas um tema; perceberá isso mais tarde, quando a vida compuser suas primeiras variações.


Comentários
Mesmo que permaneça para mim essencialmente como um idioma alienígena, a Astrologia ainda é um enigma que, creio eu, alguns estudiosos de fato adentraram, mesmo que apenas com os tornozelos na água rasa. A primeira vez que ouvi falar no Zodíaco como uma espécie de marcador dos ponteiros do relógio celeste, foi através dos textos do meu amigo Marcelo Del Debbio. Neste sentido, muito mais de fotografia do estado atual da mente universal, do que de "previsões do futuro e influência dos astros", creio que a Astrologia possa de fato servir como um poderoso instrumento de autoconhecimento. Quisera eu ter a fluência em tal língua. Como não tenho, ao menos posso me dar por satisfeito em admirar a elouqência daqueles que estão no beabá deste Alfabeto da Alma. Milan Kundera demontra ser mais um deles.

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Crédito da imagem: Google Image Search (Relógio Astronômico de Praga)

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