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26.2.15

A educação de Casanova, parte 9

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 8


9.

O crepúsculo tomava rapidamente o céu do Campo do Leblon, mas meus olhos estavam perdidos, enfeitiçados pela pele sideral de Janaína. Seu corpo era tão negro quanto a noite, tão escultural quanto a arte renascentista de meu tempo, e tão excitante quanto o florescimento da primavera. As gotas salgadas que escorriam por entre seus volumosos seios nus, no entanto, disputavam minha atenção com a estranha máscara que cobria seu rosto: uma espécie de rede de onde pendiam inúmeras joias iluminadas, ou talvez fossem estrelas...

O mar estava calmo e soturno, de modo que ela nem precisou sair inteiramente dele. Como uma sereia, manteve somente metade do corpo na superfície, e acenou para mim. Em uma de suas mãos, havia um pequeno espelho, que ela parecia querer me entregar.

Retirei meus sapatos e larguei na areia, dobrei ainda mais a bainha da minha calça, e me encaminhei lentamente, pé ante pé, para aquele mar morno, que guardava lembranças do sol recém-saído de cena. A essa altura a beleza de Janaína era quase insuportável aos olhos. Eu gostaria de poder fazer um elogio digno dela, mas aparentemente ela não entendia a minha língua – quem sabe não entendesse língua alguma, quem sabe a própria linguagem lhe fosse inteiramente inútil.

Finalmente estava ao seu lado, sentindo a sua fragrância marinha, um cheiro qualquer de vida abundante, de fecundidade infinita... Meu coração batia aos solavancos; eu tinha minha cota de amores mortais, mas jamais havia me apaixonado assim por algo divino.

Mesmo por entre a rede estelar que cobria sua face, eu podia sentir que ela sorria. Mas o seu sorriso era ao mesmo tempo algo doce e assustador. Não parecia significar somente uma simpatia pela vida, mas antes um desejo de que a vida caminhasse a frente, sempre a frente... Janaína me estendeu seu espelho, e eu compreendi que ela me convidava para uma grande aventura, talvez a maior delas – uma jornada da qual ninguém poderia retornar igual a como partiu, ocorreria necessariamente uma espécie de “modificação”...

As palavras do velho pescador ressoavam na minha mente, “Para um sujeito qualquer, o encanto dessa moça é muito, muito perigoso!”

Mas retomei minha coragem ao lembrar de que não estava naquela praia à toa, aquilo tudo também fazia parte da reeducação conduzida por meu amigo Asik, ou quem sabe fosse uma ideia exclusiva de sua amada Dunia, mas não importava, em todo caso eu estava no caminho certo, o caminho para a alma...

Tomei o espelho de suas mãos e olhei para o meu próprio reflexo nele. A princípio não pude ver muita coisa, pois o vidro estava muito enferrujado, mas logo Janaína tomou um pouco da água do mar em suas mãos e jogou sobre ele, e pude ver claramente a mim mesmo, naquela bela noite quente, ao mesmo tempo cheio de curiosidade e de angústia... A curiosidade falou mais alto, a curiosidade sempre fala mais alto...

Mergulhei em meus próprios olhos, e era como se houvesse mergulhado no próprio mar, no próprio oceano que separava o Campo do Leblon da terra natal de Janaína – tão distante, e tão próxima!

Lá no fundo submarino, a primeira coisa que vi foi a mim mesmo nos bordéis italianos, há muito tempo, exercendo com maestria minha arte de sedução. Então eu pude rever toda a minha glória sexual, e subitamente pude compreender que aquilo tudo havia sido tão somente um primeiro passo na via do amor. Era verdade que Casanova havia desejado e amado, a sua maneira, cada uma das mulheres que penetrou, mas também me era claro e cristalino, naquele momento no fundo do mar, como minhas penetrações haviam sido superficiais, como havia me dado por satisfeito em me manter somente nas margens da alma, sem jamais mergulhar no fundo do coração de mulher alguma, tampouco no subterrâneo de mim mesmo...

Mas eu não sabia, eu não tinha como saber... Ó Asik, ó Dunia, ó Janaína, me desculpem, eu não tinha como saber! Se soubesse, por um momento, o quão vasto era este oceano dentro de meus olhos, teria contemplado tal espelho há muitos séculos atrás. Enfim, vivemos decerto um dia de cada vez.

Olhei para a superfície das águas, e vi a beleza de minha amada em todo o seu esplendor. Mesmo do alto do céu, a própria lua conseguia trazer o reflexo do sol a escuridão submarina. Então eu pude me reconfortar inteiramente: não havia nada a temer, nem nada a duvidar, não havia por onde pudesse realmente mergulhar para fora dos deuses...


***

Esta foi a nona parte de A educação de Casanova, por raph em 2015.
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22.2.15

É viável tornar o capitalismo sustentável?

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

[Raph] O capitalismo é o sistema econômico com hegemonia mundial. A despeito dos seus defensores e críticos, fato é que ele não irá embora tão cedo. Entretanto, já seria de grande ajuda se as multinacionais seguissem as regulamentações do próprio mercado. O monopólio, por exemplo, deveria ser algo a ser combatido, evitado ao máximo, e nas últimas décadas o que vem ocorrendo é exatamente o oposto: no Brasil, dez grandes companhias (entre elas Unilever, Nestlé e Coca-Cola) abocanham até 70% das compras de uma família nos supermercados, o que sobra é disputado por cerca de 500 empresas menores, regionais. Tal cenário parece ser muito mais benéfico para as multinacionais do que para a população em geral.
O grande mal do capitalismo moderno, no entanto, me parece ser o consumismo desenfreado. Se todos os africanos e indianos tivessem os mesmos padrões de consumo de um cidadão norte-americano, seria necessário mais de um planeta Terra para dar conta dos recursos naturais necessários para a produção de bens. Mesmo a China, teoricamente um sistema comunista, abraçou tal sistema com grande voracidade. Mas já sabemos que a conta não fecha, e a agenda da sustentabilidade se torna cada vez mais urgente. Diante disso, é viável tornar o capitalismo sustentável?

[Carvalho] Os grandes sistemas econômicos não possuem um conjunto exato e monolítico de regras. Semelhantemente ao que ocorre com as espécies biológicas, eles variam no tempo e no espaço, adaptando-se às circunstâncias – e também aos hábitos políticos, econômicos, sociais e culturais de cada época e de cada povo. O feudalismo europeu do século V, por exemplo, era muito diferente daquele que perdurou na Rússia até o século XX. Da mesma forma, o socialismo soviético não era idêntico ao chinês, nem ao cubano, e muito menos ao Venezuelano. E se mesmo tais sistemas, um sustentado por valores fortemente hierarquizantes, como a noção de direito divino dos reis, e o outro pela persistente obsessão de impor a igualdade material a qualquer custo, adaptaram-se às condições circundantes, porque não se adaptaria o capitalismo, fundado em valores que enfatizam a liberdade individual?

Portanto, sim, é possível transformar o capitalismo e torná-lo mais sustentável. Na verdade, se mais nações capitalistas realmente adotassem políticas econômicas liberais – em vez de políticas desenvolvimentistas, keynesianas, etc. – não haveria muito que se falar em tornar o capitalismo sustentável, pois, em tais condições, ele simplesmente tende a tornar-se sustentável, por meio de processos adaptativos mais ou menos espontâneos resultantes, não de intervenções e regulações estatais, mas dos comportamentos dos próprios indivíduos. E não digo isso com base em uma crença quase dogmática nos conceitos abstratos de “livre mercado” ou “mão invisível”, que os liberais e libertários frequentemente são acusados de possuir. Apenas me respaldo em evidências razoavelmente convincentes de que o liberalismo costuma ser mesmo mais eficiente e funcional que outras filosofias políticas quando se trata de questões econômicas, incluindo aí seus aspectos social e ecológico.

Na obra Free Market Environmentalism, por exemplo, os economistas Terry Anderson e Donald Leal apresentam uma série de exemplos em que soluções de mercado foram muito mais eficazes ao lidar com problemas ambientais do que as regulações estatais, e fazem uma brilhante análise das condições institucionais e políticas que permitiram que isso acontecesse. O ponto principal, inspirado em um famoso teorema do economista Ronald Coase, é que quando os direitos de propriedade são claramente definidos, as disputas sobre a justa utilização dos recursos naturais geralmente podem ser resolvidas nos âmbitos locais e de forma cooperativa.

São vários os estudos de caso apresentados no livro, envolvendo temas como: gestão de reservas minerais, parques naturais, mananciais de água e disposição do lixo, dentre outros. E em todos eles a lógica se repetiu: contanto que os direitos de propriedade fossem bem definidos e protegidos, as soluções de preservação ambiental emergiam naturalmente a partir dos conflitos entre os cidadãos. “A primeira premissa do Ambientalismo de Livre Mercado”, disse Terry Anderson em uma entrevista, “é de que ‘quanto maior a riqueza, maior a preservação’, no sentido que os mercados geram a riqueza que nos fornece meios de lidar com os problemas ambientais. Embora muitas pessoas pensem, de forma equivocada, que os mercados só geram consumismo e outras porcarias, são os mercados que produzem riqueza e, desse modo, ajudam o meio ambiente”.

De fato, apesar do ambientalismo anticapitalista dominante tentar sempre passar uma impressão contrária, países que decidem adotar políticas econômicas mais liberais tendem a melhorar seus indicadores ambientais de forma proporcional aos indicadores econômicos e sociais. Uma forma interessante de verificar isso é comparando a colocação dos países nos rankings dos índices de Liberdade Econômica, Performance Ambiental e Desenvolvimento Humano. A correlação entre eles é gritante. Se um país está entre os primeiros em um dos rankings, é muito provável, com raras exceções, que também esteja entre os primeiros nos outros dois, e vice-versa. Mesmo países com histórico de pobreza e dominação colonial – como Singapura, Lituânia, Hong Kong e Ruanda – conseguiram melhorias significativas depois de abraçarem o livre mercado.

Uma breve apreciação dos subcomponentes do índice de liberdade econômica, a propósito, nos permite compreender que em países como Brasil, México e China, com forte presença de multinacionais monopolistas, as instituições que poderiam garantir o verdadeiro livre mercado são muito enfraquecidas, ao passo que países como Noruega e Dinamarca – que fascinam os anticapitalistas de todas as estirpes – devem sua sustentabilidade econômica e ambiental a um capitalismo vigoroso e livre, apesar de seus estados inflados e não por causa deles.

É claro que não podemos tomar índices como referências definitivas do que quer que seja. As composições de todos eles sempre envolverão ao menos algum tipo de deficiência metodológica, assim como quaisquer outras tentativas de traduzir aspectos da realidade em números. Da mesma forma, não podemos crer que o livre mercado seja uma entidade miraculosa, capaz de resolver todos os problemas. O capitalismo possui mesmo contradições internas, de modo que ele tende a corromper a ordem moral e institucional que o gerou e o sustenta. Entretanto, o livre mercado ainda é a nossa melhor opção disponível, capaz de levar prosperidade econômica, social e, sim, ambiental, a um número de pessoas jamais imaginado em outras épocas. Por isso, antes de nos metermos a elogia-lo, criticá-lo, aprimorá-lo ou mesmo tentar substituí-lo, o primeiro passo talvez seja aprendermos a diferenciar bem o que ele realmente é do que ele não é, nem nunca foi.

[Teo] Como demonstrou o economista francês Thomas Piketty na sua obra O Capital no Século XXI, o capital tende a concentrar-se com o passar do tempo, isto é, produzir uma desigualdade cada vez maior em que poucos possuem grande parte da riqueza, enquanto a maior parte da população se encontra socialmente marginalizada. Isto aponta para a primeira parte da pergunta do Raph: antes de ser um mero mal ocasional do capitalismo, a acumulação de capital é estrutural a sua própria forma de organização. No entanto, a produção da desigualdade não é a única característica estrutural ao capitalismo, mas também o consumismo e a exploração dos recursos humanos e naturais. Isto faz com que toda tentativa de tornar o capitalismo sustentável tenha como destino o fracasso.

A subjetividade ocidental moderna, atravessada pela ideologia do capitalismo, marca-se pelo sempre mais (mais consumir, mais explorar, mais ganhar, mais prazer etc). Produz-se e consome-se cada vez mais novos produtos tecnológicos, roupas da nova tendência da moda, entre outros, de forma que nosso consumo e produção ultrapassa em muito o que é estimado como o suficiente. Na mesma medida em que cada vez mais exploramos os recursos naturais de forma a produzir nossos bens de consumo, o que consumimos, devido à condição intensa e fugaz da modernidade, rapidamente se torna lixo. Como não é a totalidade do nosso lixo que pode ser reciclado, consequentemente acumula-se um excedente cada vez maior de poluentes que não possuem um destino seguro. Afinal, por que consumimos tanto?

O espaço é curto para adentrar em todas as questões biológicas, psicológicas, sociológicas e filosóficas envolvidas. Pode-se dizer por alto que o ser humano, como um ser cultural, é essencialmente faltoso. Diferente do animal que tem a sua vida regulada por instintos pré-definidos biologicamente, a vida humana não tem nenhum destino a priori que não seja atravessado pela cultura, isto é, a subjetividade e o desenvolvimento histórico-social. Se essa falta em outros tempos pode ter sido preenchida pelos mais diversos significantes, em nossa sociedade pós-industrial capitalista é a ideologia do consumo que surge como discurso-mestre. Como afirma o psicanalista Antonio Quinet, o discurso capitalista produziu um sujeito animado pelo desejo capitalista, onde sua falta estrutural (falta-a-ser) é interpretada como falta-a-ter. Deste modo, acreditamos que no consumo poderemos adquirir aquele objeto imaginário que nos tornará mais felizes, belos, amados e desejados. Seja o novo iphone que todo mundo legal tem, a confortável casa de campo que sempre foi sonhada, o carro do ano para passear com a família no final de semana etc. O problema é que, ainda quando se adquire o objeto desejado, a falta permanece.

Consumir é mais do que simplesmente comprar um produto. Antes disto, deveríamos nos perguntar o que nos faz desejar o que desejamos. Por trás do nosso desejo pelos bens de consumo que nos são apresentados reside um horizonte histórico-cultural que sustenta que possuir um determinado objeto é importante, valorizado e que todos nós deveríamos desejá-lo. Não há nenhum tipo de crítica moral nisso, pois todos nós, devidos à nossa característica social, estamos sempre desejando objetos mediados socialmente. Ainda quando desejamos um objeto diferente do padrão hegemônico – digamos assim, alternativo – estamos visando atender certo padrão imaginário estabelecido num coletivo. Quero dizer, “não estar na moda” também é uma moda.

Consumir, neste sentido, é afirmar um estilo de vida. A publicidade sabe muito bem disto. Por este motivo, os comerciais costumam associar beber a “cerveja x” a conquistar a mulher do corpo socialmente valorizado, possuir o “carro y” a alcançar um determinado patamar social, geralmente um emprego, e por aí vai. Karl Marx já tinha percebido isto ao falar do fetiche da mercadoria: quando compramos um produto, estamos comprando muito mais que a materialidade daquela mercadoria. Estamos comprando a nossa própria fantasia de que ao adquirir determinado produto alcançaremos determinado status, certo grau da felicidade prometida, que não está propriamente nas qualidades materiais, mas no imaginário.

Com o fracasso da mercadoria desejada em oferecer a completude esperada, o sujeito se vê acreditando que no próximo produto que adquirir aí sim vai estar realmente sua felicidade. Não no iphone 5, mas no iphone 6, 7, 8... e assim pessoas vivem vidas inteiras. Isto deveria ser alvo de nossa crítica não por uma suposta moralidade espiritualizada, mas pelo fato de que esse modo de existência é causa de grande sofrimento mental para muita gente, e, além disso, vivemos num planeta de recursos finitos. Assim como a água de alguns estados brasileiros, outros recursos indispensáveis a nossa sobrevivência estão comprometidos devido a nossa exploração insaciável.

Para que o capitalismo funcione é necessário o constante consumo. Para que as indústrias operem, para que produtos sejam comercializados, e assim o capital continue rodando, girando a grande máquina do capital, as empresas possuem as mais distintas estratégias para que o consumo não reduza, desde a obsolescência perceptiva (a ideia de que seu iphone 5, ainda que perfeitamente funcional, será eventualmente para você indesejável visto que há produtos com aparência inovadora no mercado, mesmo que eles na verdade tenham apenas pequenas mudanças funcionais), à obsolescência programada (o fato de que as indústrias constroem produtos com vida útil cada vez menor, para darem defeito mais rápido, e que você tenha que comprar um novo produto delas: você deve lembrar que a geladeira da sua avó durou mais de 50 anos enquanto a sua não dura nem 5, né?).

Com a ascensão da consciência ecológica de que nosso planeta e nossa existência estão sendo destruídos pelas nossas próprias mãos, surgiu uma nova onda no pensamento ocidental: o ecocapitalismo. Sob a roupagem da sustentabilidade, esta visão propõe um modelo de desenvolvimento sustentável, em que a produção capitalista deveria se pautar idealmente por “soluções verdes”, equilibrando a busca por lucros com o investimento na natureza. Este talvez tenha sido o maior engodo que o capitalismo propôs nas últimas décadas.

A conscientização ocidental, não apenas em relação à ecologia, mas também em relação à pobreza, tem causado nas pessoas a sensação de que “algo deve ser feito”. Entretanto, antes desta sensação se situar como uma crítica ao capitalismo enquanto sistema intimamente implicado em tais males, o marketing corporativo tem se servido muito bem desta comoção. Por exemplo, empresas como Starbucks e McDonald’s afirmam destinar porcentagem das suas vendas para uma reconhecida instituição de caridade mundial. De acordo com o marketing das empresas, quando você está comprando um café ou um hambúrguer, você está fazendo algo mais que isso: você está comprando a experiência de ajudar alguém. Tal é a armadilha do capitalismo e das empresas que visam aumentar suas vendas ao se apoiarem na necessidade de redenção do consumidor, culpado diante do fato de que o sistema capitalista que ele alimenta é a causa de tantos males sociais.

Se as empresas têm publicamente afirmado nas últimas décadas seu interesse e comprometimento com o desenvolvimento sustentável, sabe-se que no capitalismo competitivo as empresas dependem da vantagem comparativa que consigam obter em relação a seus concorrentes, onde a legitimidade, a boa imagem corporativa e a maior visibilidade no mercado decorrente da adoção de programas de responsabilidade social são essenciais. Ser uma “empresa verde” é uma forma de angariar mais consumidores e, consequentemente, ganhar vantagem na competição do mercado. Aumentando a produção e venda, caímos no ponto contraditório: defendemos a tal “sustentabilidade” na mesma medida em que cada vez consumimos mais.

Ideias como “consumo consciente”, mesmo que bem intencionadas, são utópicas por diversos fatores, tais quais: 1) o consumidor nunca dispõe de informações suficientes sobre a procedência do que consome, ainda mais quando sabemos que a divulgação de informações é determinada pelo capital, que serve a interesses privados; 2) ainda quando dispõe de informação, o consumidor individualmente não tem poder de intervir na produção (este é o papel de entidades reguladoras para intervir em nome de interesses coletivos); 3) mesmo no ecocapitalismo, não é seguro contar com consumidores animados pelo desejo capitalista. Por exemplo, notícias como a de que a Apple tem condições de trabalho degradantes em suas fábricas não causam mudanças significativas em suas vendas.

Neste sentido, não há engano: o ecocapitalismo é o mesmo capitalismo, com todos seus males estruturais, mas transvestido com uma sustentabilidade de fechada apenas para aliviar nossa sensação de culpa. Se analisarmos seu funcionamento, veremos que sob uma roupagem de preocupação social, que raramente o consumidor pode fiscalizar (ou está interessado em fiscalizar), reside a exploração dos recursos naturais e humanos em função do potencial de lucro.

É neste sentido que o filósofo Slavoj Žižek concentra sua crítica social: na crença atual de que o capitalismo é um mal irremediável, que deveríamos aceitá-lo em seus termos, e que nos restaria apenas tentar torná-lo menos trágico, tentando conciliá-lo com vagas ideias como sustentabilidade. Se quisermos pensar num desenvolvimento verdadeiramente sustentável, precisamos estar dispostos a repensar o próprio capitalismo, encarar seus problemas estruturais. Isto é especialmente importante num tempo em que se critica muito a política e o Estado, mas não se percebe que existem empresas maiores que os países em que operam.

O governo é apenas um boneco de Judas, e os grandes empresários e banqueiros capitalistas, por terem a política em suas mãos, decidem muito mais o destino das coisas que aquele político que tanto se fala mal. A macropolítica apenas herda um viciado jogo de interesses estrutural ao próprio capitalismo. Neste sentido que se tornam vazios discursos como sustentabilidade ecológica no mercado, marcha contra a corrupção etc. Acontece que estamos lidando com problemas estruturais a nossa organização social, política e ideológica como se fosse questão de moralidade. Cabe questionar antes disso o que engendra essa moralidade duvidosa, pois culpamos pessoas e partidos, mas seguimos ufanistas das marcas de nossos carros ou gadgets, ingerindo substâncias duvidosas processadas com aparência de comida, vestindo e exibindo nossa vaidade ideológica.

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Crédito da imagem: Convergence Alimentaire (pode-se considerar a Kraft Foods e a Mondelez International como sendo a mesma empresa...)

O debate continua nos comentários, não deixem de acompanhar.

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20.2.15

Minha vida, por Oliver Sacks

Texto de Oliver Sacks para o New York Times. Tradução de Eduardo Pinheiro. Os comentários ao final são meus.

Um mês atrás, parecia que eu gozava de boa saúde, poderia se considerar até mesmo excelente. Aos 81 anos de idade, ainda nado 1500 metros por dia. Mas minha boa fortuna já havia se esgotado – algumas semanas atrás fiquei ciente de que tenho múltiplas metástases no fígado. Nove anos atrás descobrimos que eu tinha um raro tumor no olho, um melanoma ocular. Ainda que a radiação e o uso de lasers para remover o tumor me tenha deixado cego daquele olho, apenas em casos muito raros tumores deste tipo fazem metástase. Ainda assim, estou entre os 2% que não têm sorte.

Sinto gratidão pelos nove anos de boa saúde e produtividade desde o primeiro diagnóstico, mas agora me deparo com a morte. O câncer ocupa um terço de meu fígado, e embora seu avanço possa ser desacelerado, não há como parar esse tipo particular de câncer.

É só minha a decisão de como viver os meses que me restam. Tenho que viver da forma mais rica, profunda e produtiva que conseguir. E nisso me encorajo com as palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao descobrir aos 65 anos de idade que uma doença o levaria à morte, escreveu uma curta autobiografia num único dia de abril de 1776. A ela ele deu o título de Minha vida.

“Neste momento me deparo com uma dissolução muito rápida,” escreveu ele. “De minha condição, sofro muito pouco com dor, e o mais estranho é que, não obstante a grande derrocada de minha compleição, nunca cheguei a sofrer um momento sequer de esmorecimento do humor. Mantenho o mesmo ardor de sempre pelo estudo, e a mesma alegria na companhia dos outros.”

Tenho sorte de passar dos 80, e os 15 anos que superaram as seis décadas e cinco anos de Hume me foram igualmente plenos de trabalho e amor. Nesse período publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (um bocado maior do que as poucas páginas de Hume) a ser publicada nessa primavera; tenho vários outros livros quase prontos.

Hume continuou, “Sou ... um homem de disposições brandas, em comando do meu próprio temperamento, de humor aberto, social e alegre, dado ao apego, mas pouco suscetível à inimizade, e de grande moderação em todas minhas paixões.”

Nisso não sou como Hume. Embora eu tenha vivido relacionamentos amorosos e amizades, e não tenha inimigos verdadeiros, não posso dizer (nem ninguém que me conhece diria) que sou um homem de disposição branda. Pelo contrário, sou um homem de disposição veemente, de entusiasmos violentos, e extremamente desprovido de moderação com relação a todas as minhas paixões.

Ainda assim, uma frase do ensaio de Hume me é marcante como especialmente verdadeira no meu caso: “É difícil”, escreveu ele, “alguém ter mais desapego pela vida do que neste momento.”Ao longo dos últimos dias, tenho sido capaz de ver minha vida como se de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem distante, e com um sentido aprofundado da conexão entre todas as partes. E isso não significa que minha vida acabou.

Pelo contrário, me sinto intensamente vivo, e quero e espero que no tempo que me sobra que eu aprofunde minhas amizades, diga adeus para aqueles que amo, escreva mais, viaje se tiver a força, e alcance novos níveis de entendimento e discernimento.

Isso demandará audácia, clareza e conversas diretas; tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para alguma diversão (e até mesmo para alguma bobeira, sem dúvida).

Repentinamente me sinto possuidor de um foco muito claro, e de perspectiva. Não há mais tempo para nada que não seja essencial. Preciso focar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não vou mais assistir o jornal na TV todas as noites. Não vou mais prestar atenção para política ou para argumentos sobre aquecimento global.

Não se trata de indiferença, mas de desapego – ainda me importo muito com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com o crescimento da desigualdade, mas estas coisas não estão mais na minha alçada; pertencem ao futuro. Regozijo-me ao encontrar jovens capazes – até mesmo aqueles que fizeram minhas biópsias e diagnosticaram minhas metástases. Sinto que o futuro está em boas mãos.

Cada vez estou mais consciente, nos últimos 10 anos mais ou menos, das mortes de meus contemporâneos. A minha geração está de saída, e senti cada morte como uma ruptura, como se parte de mim se rasgasse. Não haverá ninguém como nós quando nos formos, mas na verdade não há ninguém que seja como outro alguém, nunca houve. Quando as pessoas morrem, são insubstituíveis. Deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois é o destino – o destino genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, encontrar seu próprio caminho, viver sua própria vida, e morrer sua própria morte.

Não posso fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado; ofereci muito, e recebi algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Comuniquei-me com o mundo com a comunicação especial dos escritores e leitores.

Acima de tudo, tenho sido um ser senciente, um animal pensante, nesse belo planeta, e isso por si só foi um enorme privilégio, e uma aventura.

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Comentário
O neurologista Oliver Sacks costuma referir-se a si mesmo como um “cientista romântico”, ele acredita que a mente não pode ser descrita de maneira mecanicista, e que a neurologia moderna só será completa quando considerar a forma icônica e sentimental com que experienciamos a consciência e armazenamos nossas memórias. Seus livros são verdadeiros dramas, descrevendo casos neurológicos sempre no contexto da vida e experiência pessoal de cada paciente. Muitos desses casos são devastadores, e somente a habilidade com a escrita (ele tem vários bestsellers no mundo todo) do autor faz com que a leitura seja pouco menos impactante do que um soco no estômago...

Sacks faz questão de destacar que cada doença é uma história, principalmente em se tratando de doenças da mente, algo ainda tão desconhecido, tão distante da visão mecanicista da ciência moderna. Em muitos casos as habilidades perdidas são compensadas por novas habilidades ganhas, o que fica muito bem explicado nos diversos casos de autistas savants descritos em seus livros – e principalmente no caso de Temple Grandin (tema principal do seu livro mais conhecido, Um antropólogo em Marte).

Com a súbita revelação de sua condição “terminal”, Sacks provavelmente ganhará muita audiência na fase final da vida, mas talvez pelos motivos errados... A morte não é, afinal, nada de novo em sua história, ou na história de qualquer um de nós. Sacks não se tornou um escritor querido no mundo todo pela forma como encarou a morte, mas pela forma como encarou e ainda encara a vida. Este estudioso do cérebro humano, mesmo sem se apoiar propriamente em nenhuma doutrina espiritualista, transcendeu as doenças e os distúrbios mais devastadores de que se tem notícia, com música, com afeto, com a tal “paixão desprovida de qualquer moderação”.

Sua partida será sentida por todos os seus leitores, amigos, pacientes e familiares, mas ele não será esquecido, pois viveu muito além das fronteiras de sua própria mente, e adentrou a vasta escuridão das mentes mais arruinadas, trazendo uma luz que vem muito mais do seu coração do que do seu conhecimento da medicina. Este sim, foi um curandeiro de almas, na acepção completa dos termos. Este sim, deixará imensa saudade. Este sim, cumpriu seu papel neste mundo.

E o que dizemos para seres assim? “Até a volta, Oliver, e obrigado por tudo!”

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Crédito da foto: Google Image Search/Divulgação

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17.2.15

A educação de Casanova, parte 8

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

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8.

Seguindo o conselho de Duniazade, me aproveitei de uma migração de pássaros peregrinos para atravessar, pelos céus, todo o longo caminho que um dia os primeiros desbravadores desta grande Atlântida tiveram de percorrer, por entre planícies, terras secas e rios caudalosos, imensas cordilheiras e verdejantes florestas, até chegar a uma distinta cidade cravejada entre belas praias e montanhas onduladas, guardada por um deus convidativo, sempre de braços abertos.

De fato, cheguei bem a tempo da grande festa, encenada e reencenada desde tempos imemoriais... Quem diria que os nossos bailes de máscaras tão contidos, tão hipócritas, um dia se tornariam este tilintar incessante de vida por dentre vielas e avenidas. Quem diria que ainda haveria deuses antigos dispostos a carregar seus carros navais em procissão, e deuses dos quais nunca tínhamos ouvido falar na própria Europa!

Finalmente libreto do meu grande tédio, e reeducado na Grande Arte do Amor por meu amigo Asik, eu tinha novamente olhos de enxergar, e assim enxergava com toda a clareza que não foram meus irmãos exploradores os responsáveis por tamanha algazarra – nem navegantes portugueses, nem espanhóis, franceses ou holandeses. Quem trouxe todo aquele ritmo, todos aqueles toques de tambor, todos aqueles sorrisos, foram exatamente os acorrentados à força, os que foram expulsos de suas terras, de suas famílias e seus deuses, os que foram humilhados e explorados, e depois liberados à sua própria sorte... Apesar de tanto sofrimento, foram eles quem riram no final, foi a sua alma e a sua cultura que prevaleceu!

Talvez isso explicasse porque aquele deus estava finalmente de braços abertos, livre de sua horrenda cruz: talvez os seres dessa terra tenham sido influenciados pelos deuses do outro lado do oceano, e compreendido enfim que não havia nem nunca houve um “pecado original” a ser pago, e que a cada um cabe cuidar de sua própria alma... Talvez isso explicasse porque, nos dias ligeiros desta grande festa, todos os deuses e todos os homens e mulheres, e todos os santos e crianças, dançavam e pulavam juntos no ritmo do coração do mundo...

Por debaixo de belos aquedutos e ao lado de frondosas linhas de palmeiras-reais, eu pude ver muitos deles mascarados, mas suas máscaras em nada lembravam as de meus tempos de jovem sedutor em Veneza. Lá, elas serviam tão somente para adornar ainda mais aos egos, enquanto que aqui nesta terra tropical elas serviam realmente para substituir ao ego inteiramente, como faziam os romanos e os gregos antigos. Por alguns dias, em meio a um calor escaldante, todos os mascarados e mascaradas que desciam às ruas eram como parte de uma mesma família... Por alguns dias, os seres todos desta bela cidade encenavam um verdadeiro céu na terra...

Que bom poder haver chegado exatamente nesta época. Era tudo novo, belo e quente, mas algo me dizia que não era somente para festejar a vida que Dunia havia me indicado esta direção migratória. Afinal, a mitologia desta história trata de deuses, mas sobretudo de homens e mulheres, e todo o amor possível entre os seres. E, de fato, foi quando finalmente cheguei próximo a praia, voltada para aquele grandioso oceano por onde passaram tantos escravos carregando seus deuses no fundo da alma, que a vi de relance, mergulhando próximo ao horizonte, quase junto ao sol que já ia se pondo. Ao meu lado, havia um velho pescador negro que já ia recolhendo a sua rede. Foi a primeira pessoa com quem falei no Campo do Leblon:

“Quem é ela?”

“Ora seu moço, e você a viu?”

“Vi. Como não ver uma pérola negra em meio a esse mar esverdeado?”

“Você não é um turista qualquer não né moço? Sabe que vou lhe falar: para um sujeito qualquer, o encanto dessa moça é muito, muito perigoso!”

“Não sei se eu sou ou não um turista qualquer... Não tenho dinheiro, mas não preciso mais dele. Há muito tempo que sou um turista da alma, e trafego por entre o coração dos homens, mas principalmente das mulheres...”

“Então seu moço, você é mais ou menos como ela. Eu nunca me meti a tratar com ela por medo de ser enfeitiçado e carregado para o fundo do mar. Mas você não parece ser do tipo que tem medo algum do fundo do mar... Talvez ela lhe dê alguma bola afinal.”

“Obrigado pelo conselho meu amigo. Eu acho que estou já apaixonado. Meu Deus, já faz tanto tempo que nem me lembrava como era... Mas, me diga, pois quero ter alguma chance de ser ao menos um amigo, por qual nome ela é conhecida nessas praias de cá?”

“Desde que me conheço por gente, ela sempre foi assim, negra e bela, e nós sempre a chamamos Janaína...”


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Esta foi a oitava parte de A educação de Casanova, por raph em 2015.
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10.2.15

É a minha metafísica, é a minha física

Trechos de Michel de Montaigne em Os Ensaios (Livro III, cap. XIII) (Cia. Das Letras/Penguin). Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. Os comentários ao final são meus.

Seja qual for o fruto que podemos tirar da experiência, o que tiramos dos exemplos estrangeiros mal servirá para nossas instituições se não tirarmos proveito da experiência que temos de nós mesmos, que nos é mais familiar: e decerto suficiente para nos instruir no que precisamos. Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física.

Por qual arte Deus governa a nossa morada, o mundo;
de onde vem a lua quando se levanta, onde ela desaparece;
e de onde, reunindo todo mês seus crescentes, torna a ser cheia;
de onde vêm os ventos que comandam o mar com o que o Eurus leva com seu sopro;
e de onde vem que, sem cessar, a água retorna às nuvens?
quando vier o dia que derrubar as alturas do mundo, procurai, vós que vos atormentais com os labores do mundo.
(Propécio, e Lucano no último verso)

Nesse universo, deixo-me manejar com ignorância e negligência pela lei geral do mundo. Hei de conhecê-la o suficiente quando a sentir. Minha ciência não pode fazê-la mudar de caminho.

[...] Os filósofos, com muita razão, remetem-nos às regras da natureza: mas elas pouco se importam com tão sublime conhecimento. Eles as falsificam e apresentam-nos da natureza um rosto pintado, colorido demais e sofisticado demais: donde nascem retratos tão diversos de um objeto tão uniforme.

Assim como a natureza nos forneceu pés para andar, assim tem sabedoria para guiar-nos na vida. Sabedoria não tão engenhosa, robusta e pomposa como a que os filósofos inventam: mas afável, fácil, sossegada e salutar. E a quem tem a felicidade de saber empregá-la simples e ordenadamente, isto é, naturalmente, ela faz muito bem o que outra diz que faz. Entregar-se o mais simplesmente à natureza é entregar-se o mais sabiamente.

Oh! como a ignorância e a desocupação são um suave, macio e saudável travesseiro para repousar uma cabeça bem formada. Eu preferiria compreender bem a mim mesmo a compreender a Cícero [filósofo romano]. Se eu fosse um bom aluno, na experiência que tenho de mim encontraria o suficiente para me tornar sábio.

Quem conserva na memória o excesso de sua cólera passada, e até onde essa febre o arrasou, vê a feiura dessa paixão melhor que em Aristóteles e nutre por ela um ódio mais justo. Quem se lembra dos males que sofreu, dos que o ameaçaram, das ocasiões irrelevantes que o fizeram passar de um estado a outro, prepara-se com isso para as mutações futuras e para o reconhecimento da sua condição.

A vida de César não é mais exemplo para nós do que a nossa. Tanto de um imperador como de um homem do povo, é sempre uma vida, à qual todos os acontecimentos humanos dizem respeito. Nós nos dizemos tudo de que mais precisamos: basta escutarmos.

Quem se lembra de ter se enganado tantas e tantas vezes sobre seu próprio julgamento não é um tolo se não adotar para sempre a desconfiança? Quando vejo que me convenci, pela razão de outro, de uma ideia falsa, o que aprendo não é tanto o que ela me disse de novo, nem é de grande proveito a minha ignorância especial, mas em geral aprendo a minha debilidade e a traição de meu entendimento, e com isso posso melhorar todo o conjunto.

Com todos os meus outros erros faço o mesmo: e sinto nessa regra grande utilidade para a vida. Não olho para a espécie de erro nem para o erro individual como uma pedra em que tropecei. Aprendo a temer meu comportamento em qualquer lugar e trato de melhorá-lo. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice é apenas isso; precisamos aprender que não passamos de um tolo, ensinamento bem mais amplo e importante.

[...] Se cada um de nós observasse de perto os efeitos e circunstâncias das paixões que o animam, como fiz com a que me coube como quinhão, ele as veria chegarem e lhes retardaria um pouco a impetuosidade e a corrida. Nem sempre elas nos saltam ao pescoço na primeira investida, há ameaças e graus.

O julgamento ocupa em mim uma cátedra magistral, pelo menos se esforça cuidadosamente para isso. Deixa meus sentimentos seguirem seu curso: tanto o ódio como a amizade, e até a que sinto por mim mesmo, sem se alterar nem se corromper. Se não consegue melhorar a seu jeito as outras partes, ao menos não se deixa deformar por elas: faz seu jogo à parte.

O preceito para que cada um conheça a si mesmo deve ser de grande importância, posto que aquele deus da ciência e da luz mandou colocá-lo no frontispício de seu tempo [Templo de Apolo, em Delfos], como que contendo tudo o que tinha para nos aconselhar. Platão diz também que a sabedoria não é outra coisa senão a execução dessa ordem: e Sócrates a verifica detalhadamente em Xenofonte.

Só os que tiveram acesso a cada ciência percebem suas dificuldades e sua obscuridade. Pois ainda é preciso certo grau de inteligência para poder observar o que ignoramos, e é preciso empurrar uma porta para saber que ela nos está fechada.

[...] Assim, nessa ciência de conhecer a si mesmo o fato de cada um se ver tão seguro de si e satisfeito, de cada um pensar ser entendido o suficiente no assunto significa que ninguém entende nada disso, como Sócrates ensina a Eutidemo. Eu, que não professo outra coisa, nisso encontro uma profundidade e uma variedade tão infinitas que meu aprendizado não tem outro fruto além de me fazer sentir tudo quanto me resta a aprender.

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Comentário
Herdeiro da fortuna do avô, um rico comerciante de peixes da região de Bordeaux (na França), Michel se recolhe à vida privada com cerca de 38 anos, o que naquela época já era considerado uma idade relativamente avançada. Nos pouco mais de 20 anos que o separavam da morte, Michel dedicou-se inteiramente a contemplação do mundo e do tempo na vizinhança do seu castelo em Montaigne, tendo produzido as cerca de mil páginas dos seus Ensaios, que inauguraram um novo formato literário.
Conforme discorreu sobre quase tudo, sem ser um especialista em nada, Michel é quase um Sócrates renascido que, na falta de um séquito de jovens questionadores, optou por se recolher a uma vida literária. Não que houvesse se tornado um ermitão, pelo contrário: foi exatamente da sua própria vida e das suas próprias amizades e experiências que retirou a matéria prima dos seus Ensaios.
De certa forma, Michel também foi o primeiro blogueiro da história. E, na medida em que procurou escrever antes para si mesmo, sem jamais imaginar a fama que seus escritos alcançariam, particularmente séculos após sua vida, Michel também nos dá uma lição profunda acerca dos reais motivos pelos quais os verdadeiros filósofos tingem as suas folhas em branco, ou os campos vazios das postagens dos seus blogs... Buscar compreender a si mesmo é a melhor forma, afinal, de compreender o pouco que seja deste mundo tão, tão vasto.

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Crédito da imagem: Google Image Search (Montaigne)

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6.2.15

Não há pressa

Eu sigo dentre pedras portuguesas
de calçadas em desalinho.
As pessoas passam, meio que presas,
meio que desnorteadas do caminho.

Há os que estudaram para passar
e os que buscam tão somente amar.
Um bom emprego é uma sorte,
mas não há como vencer a morte.

Alguns galgam uma vaga no céu,
e temem o olhar de Deus.
Outros dançam ao léo,
jamais julgam os seus.

Com as pedras que catei no caminho
construí castelos em desalinho.
Amar é tão somente uma sorte,
o amor vive muito além da morte.

Há santos que dançam com Deus,
os mais belos pensamentos do mundo são seus.
Há seres que abandonaram seus egos ao léo
e que caminham, com muito alinho, pela via do céu.

Não há pressa:
tudo o que há é este momento
que também desaguará no mar...


raph'15

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Crédito da foto: Marcos Issa/Argosfoto

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2.2.15

Um Café, Um Livro

Oi pessoal, estou viajando a trabalho e sem muito tempo para atualizar o blog, mas recentemente descobri que um de nossos leitores criou uma lista de e-mail onde são divulgados "uma variedade de eBooks custando menos que um cafezinho na padoca da esquina"... Como vocês devem ter imaginado, muitas das nossas Edições Textos para Reflexão vêm sendo divulgadas por lá também.

Dessa forma, para quem tiver interesse em participar, basta acessar o site Um Café, Um Livro (umcafeumlivro.com), digitar seu e-mail no campo e clicar no botão "eu quero!".

Boa leitura!


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