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30.4.12

Um efeito estranho, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Mario Beauregard (Ph.D.) e Denyse O’Leary em "O cérebro espiritual” (Ed. Best Seller) – trechos das pgs. 184 a 187. Tradução de Alda Porto. As notas ao final são minhas.

Como vimos, várias linhas de comprovação demonstram que os fenômenos mentais alteram significativamente a atividade cerebral. Essas linhas incluem nossos estudos de IRMf (Imagem por Ressonância Magnética Funcional) sobre observação emocional objetiva e o impacto da terapia comportamental cognitiva na fobia de aranha [1], além dos estudos de neuroimagens funcionais do efeito placebo. Os resultados dessa última série de estudos deixam bem claro que a atividade cerebral pode ser motivada pela crença e pela expectativa mental do paciente em relação a um tratamento médico proposto [2].

Para interpretar os resultados desses estudos, precisamos de uma hipótese que explique a relação entre atividade mental e atividade cerebral. A hipótese da tradução psiconeural [HTP] é uma delas. Postula que a mente (o mundo psicológico, a perspectiva da primeira pessoa) e o cérebro (que faz parte do chamado mundo “material”, a perspectiva da terceira pessoa) representam dois domínios diferentes em termos epistemológicos que podem interagir porque são aspectos complementares da mesma realidade transcendental.

A HTP reconhece que os processos mentais (tais como vontades, metas, emoções, desejos e crenças) são naturalmente demonstrados por exemplos no cérebro, mas afirma que não são idênticos nem podem ser reduzidos a processos neuroelétricos e neuroquímicos [3]. Na verdade, os processos mentais – que não são passíveis de localização no cérebro – não podem ser eliminados.

O motivo de não ser possível localizar os processos mentais dentro do cérebro é o fato de não haver nenhuma maneira de apreender os pensamentos apenas pelo estudo da atividade dos neurônios. O problema é semelhante ao de tentar determinar o sentido de mensagens em uma língua desconhecida (pensamentos) apenas pelo exame de seu sistema de escrita (neurônios). Seria necessária uma Pedra de Roseta para compará-las com o sistema de escrita de uma língua conhecida. Mas não existe tal pedra e, portanto, é impossível qualquer comparação [4].

Em consequência, a terminologia mentalista que descreve esses processos permanece absolutamente essencial para uma explicação satisfatória da relação entre a dinâmica cerebral e o comportamento humano. Ninguém jamais viu um pensamento ou um sentimento, mas eles exercem tremendo impacto em nossa vida. Além disso, segundo a HTP, os processos conscientes e inconscientes são automaticamente traduzidos em processos neurais nos vários níveis da organização cerebral (redes biofísicas, moleculares, químicas). Por sua vez, os processos neurais resultantes são depois traduzidos para processos e eventos em outros sistemas fisiológicos, como o sistema imunológico ou endócrino.

[...] Em termos metafóricos, podemos dizer que o mentalês (a língua da mente) é traduzido para o neuronês (a língua do cérebro). Por exemplo, pensamentos aflitivos aumentam a secreção de adrenalina, mas os felizes aumentam a secreção de endorfina [5]. Esse mecanismo de transdução informacional representa destacada realização da evolução que permite que os processos mentais influenciem causalmente o funcionamento e a plasticidade do cérebro. De certo modo, é como escrever nossas palavras faladas num sistema de símbolos que pode ser lido por outros a distância.

[...] Uma evolução biológica teleologicamente orientada (isto é, intencional, em vez de aleatória) permitiu aos seres humanos moldar, de maneira consciente e voluntária, o funcionamento de nosso cérebro. Em consequência dessa poderosa capacidade, não somos robôs biológicos governados por genes e neurônios “egoístas”. Um dos resultados é podermos, de forma intencional, criar novos ambientes sociais e culturais. Por meio de nós, a evolução se torna consciente, isto é, impulsionada não apenas por instintos de sobrevivência e reprodução, mas também por complexos conjuntos de percepções, metas, desejos e crenças [6].

Em minha opinião, as realizações éticas resultam do contato com uma realidade transcendental por trás do universo [7], e não apenas da multiplicação de neurônios no córtex pré-frontal do cérebro humano. Não se sabe com clareza se, por si mesmos, os neurônios desenvolveriam algum sistema ético.

Graças ao mecanismo da tradução psiconeural, os valores associados a determinada visão do mundo espiritual podem ajudar-nos a governar nossos impulsos emocionais e a agir de maneira genuinamente altruística [8]. Nesses casos, a consciência moral substitui a programação inata como reguladora de comportamentos. Por sua vez, a capacidade de comportamentos racionais e éticos liberta-nos dos primitivos mandatos do cérebro da classe dos mamíferos [9]. Tal liberdade é responsável pelo fato de que, embora o genoma seja o mesmo em todas as sociedades humanas, algumas culturas valorizam e fomentam a violência e a agressão, enquanto outras as julgam negativas e jamais as empregam.

Por sorte, muitas culturas também começaram a incentivar as pessoas a se mover além do senso de obrigação com os familiares ou grupo social para uma apreciação e compaixão por toda vida, sobretudo por outros seres humanos, porque podemos com muita facilidade identificar-nos com eles.

***

[1] Citado em outro trecho do livro. Basicamente se trata de uma técnica para ensinar uma mente a, lentamente, abandonar sua fobia de aranhas. Sim, a terapia envolve muitos contatos diretos com aranhas, só que em condições estritamente controladas.

[2] Por muito tempo nada poderia ser feito objetivamente ante a alegação cética de que os espiritualistas “simplesmente fingiam experiências místicas”... Hoje, entretanto, as tecnologias de scanning cerebral têm comprovado, objetivamente, que gente como budistas e freiras carmelitas (neste último caso, incluindo um estudo do próprio Dr. Beauregard) não somente têm efetivamente tais experiências, como muitas das “redes de luzes” que se acendem em seus cérebros parecem fazer parte de um “reino místico”, reservado somente a certos tipos de experiências contemplativas.

[3] Ou seja, não se pode, ao observar a luz passando por um poste de luz, afirmar que aquele poste a gerou. Sabe-se que, num blecaute, nenhuma luz passaria por ali... Então, talvez, no caso do cérebro (e dos bilhões de postes de luz neuronais), esta usina oculta do pensamento também exista em algum território por ser descoberto.

[4] Segundo o filósofo americano John Searle, a consciência poderia ser imaginada como um “quarto chinês”: neste quarto estariam armazenados todos os dicionários e regras de gramática associados ao idioma chinês. Dentro dele haveria um homem capaz de traduzir e responder às questões escritas em chinês manipulando esses recursos, apesar de não saber falar uma única palavra nessa língua. Então, alguém que enviasse a frase “Como está o dia hoje para você?” poderia receber a resposta “Horrível!”, no mesmo idioma. Visto de fora, poderia parecer que o homem no interior “entendeu” a questão, mas Searle argumenta que esse comportamento não é suficiente para a compreensão. Da mesma forma, um computador nunca poderia ser descrito como “tendo uma mente” ou “compreendendo”. Já o cérebro poderia ser tão somente “um supercomputador pilotado pela mente”. Outros filósofos argumentam que a compreensão consciente seja tão somente o processo de “se comportar como se entendesse”.

[5] É impressionante como este fato extraordinário passa desapercebido pela grande maioria de nós, inclusive dos neurocientistas: pensamentos causam alterações fisiológicas que podem ser efetivamente medidas – logo, eles existem (objetivamente), e eles podem alterar nossa realidade corporal. Isto é um fato.

[6] A Natureza nos guiou na guerra da fome e da morte por bilhões de anos, mas a partir do momento em que nasce a consciência, em que o ser “desperta para si mesmo”, aparentemente a ascensão é repentina. Em apenas algumas dezenas de milhares de anos, estamos nós aqui, com o conhecimento e a tecnologia para efetivamente intervir na evolução de nossa própria espécieesperemos que para melhor.

[7] Algo que pode ter ocorrido mais cedo em nossa história do que muitos imaginam.

[8] Isso não é exclusividade de espiritualistas e religiosos, mesmo os céticos, os cientistas materialistas e os ateus podem ser altruístas. A ironia é que, mesmo em alguns casos não crendo que sequer possuem uma mente, é através dela que elaboram suas próprias ações altruístas.

[9] Embora obviamente seja uma liberdade parcial; Ainda que nossa vontade muitas vezes não subjugue o puro instinto animal, fato é que pelo menos em algumas vezes a vontade vence – e a liberdade de escolha, de fato, existe!

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Crédito da foto: learnpure.com

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27.4.12

Patch Adams Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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Uma festa no Céu

Nem todos seguiam com o rabi da Galiléia, e naquele dia um pobre homem foi se desculpar, pois não poderia abandonar sua vila. E assim ele, com extenso sorriso no rosto, lhe respondeu: "Foi dito que o Pai quer amor, e não um sacrifício, e assim é que só me seguem os que entenderam que o amor é sua própria recompensa... Vai, volta para sua vida e não se sacrifique; Um dia você vai amar naturalmente, como quem respira, e nesse dia farão para ti uma festa no Céu".

raph'12

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Crédito da imagem: Aeon Byte Gnostic Radio

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26.4.12

Um efeito estranho, parte 1

Texto de Mario Beauregard (Ph.D.) e Denyse O’Leary em "O cérebro espiritual” (Ed. Best Seller) – trechos das pgs. 181 a 184. Tradução de Alda Porto. As notas ao final são minhas.

Alguns afirmam que o efeito placebo é mítico, que só se aplica a crédulos, ou até que usá-lo é antiético [1]. Que tal isso? Os mitos populares sobre placebos incluem as ideias de que funcionam apenas durante três meses, ou que só determinado tipo de personalidade reage a eles. Não há limite específico algum para a maioria dos efeitos placebo, nem de “paciente que reage a placebo”.

Mas, acima de tudo, o efeito placebo tem sido uma dificuldade e um problema para estudos sobre [novas] drogas [...]. O jornalista científico Alun Anderson sugere: “Confiança e crença são muitas vezes vistas como negativas na ciência, e descarta-se o efeito placebo como uma espécie de ‘fraude’, porque depende da crença do paciente. Mas a verdadeira maravilha é que a fé pode funcionar”. Anderson identificou uma questão chave. Uma materialista talvez ache que o efeito placebo é uma espécie de fraude exatamente porque indica que a mente pode mudar o corpo [2].

Em consequência, as explicações materialistas do efeito placebo muitas vezes são incoerentes. Por exemplo, quando descrito como a maneira pela qual “o cérebro manipula a si mesmo” [3]. Como vimos, o efeito placebo é de fato disparado pelo estado mental do paciente. Em outras palavras, depende inteiramente do estado de crença dele. Um processo inconsciente iniciado pelo cérebro para manipular a si mesmo (ou qualquer outra parte do corpo) é um processo de cura natural, não o efeito placebo. Por exemplo, houvesse o cérebro dos pacientes que sofrem de doença de Parkinson conseguido manipular a si mesmo e assim curar-se, não se exigiria tratamento algum, placebo, farmacêutico, cirurgia simulada ou real [4].

[...] Desde que começaram os estudos controlados do placebo, uma questão econômica fundamental confundiu o estudo do verdadeiro papel de seu efeito na manutenção da saúde. Não se pode patentear a marca esperança. Se um dado remédio “não age melhor que o placebo”, é uma má notícia para os fabricantes desse medicamente, mesmo que 85% do grupo de controle e 85% do grupo experimental melhorem [5]. A opinião atual de que os estudos mentais são importantes, mas as drogas são poderosas, obstruiu o estudo correto do efeito placebo.

Grande parte de medicina pré-científica dependia do efeito placebo. O fato de esse efeito tantas vezes funcionar ajuda a entender porque muitas pessoas mais tradicionais relutam em abandonar a medicação pré-científica, apesar de suas doutrinas questionáveis e, muitas vezes, perigosas. Lamentavelmente, os clínicos pré-científicos com frequência atribuem seu poder às doutrinas que abraçaram, quando, na verdade, deveriam atribuí-lo aos efeitos que aprenderam por experiência e erro [6]. A pesquisa médica científica começa a ajudar a resolver o dilema aceitando a natureza mental do efeito placebo. Pode-se estudá-lo como um efeito autêntico e, com o poder direcionado, talvez até aumentado, o que é muito mais produtivo do que se continuássemos a tratá-lo apenas como uma chateação.

O perfeito entendimento do efeito placebo também pode evitar algumas óbvias polêmicas atuais. Por exemplo, talvez fosse mais fácil resolver as questões éticas que cercam o uso de células-tronco embrionárias no tratamento da doença de Parkinson se os efeitos placebos explicassem a maior parte do seu valor atribuído. De modo semelhante, tratamentos polêmicos em algumas partes do mundo envolvem as partes do corpo de espécies em risco de extinção. Esses tratamentos devem quase todo seu efeito à crença do paciente na eficácia do tratamento exótico. Uma clara demonstração desse fato pode ajudar nos esforços de conservação [7].

Como vimos, muitas aplicações clínicas fluem de uma visão não materialista da neurociência. Quando tratamos a mente como capaz de mudar o cérebro, podemos tratar doenças cujo tratamento antes era difícil ou impossível. Mas também precisamos de um modelo de como a mente age no cérebro.

» A seguir, o que se especula sobre a interação da mente com o cérebro...

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[1] Este post é centrado no efeito placebo, um fenômeno muito conhecido e descrito pela medicina (inclusive a medicina dita convencional), mas que na prática é tão pouco compreendido quanto a própria mente humana, a grande catalisadora desse tipo de efeito (pelo que se acredita). Para saber mais, consulte este meu artigo: Placebo-nocebo.

[2] Para os materialistas eliminativos é consideravelmente mais complexo: se, como eles sugerem, a mente é apenas uma ilusão persistente, como exatamente ela muda o corpo?

[3] Jon-Kar Jubieta disse assim numa reunião sobre o efeito placebo, realizada pela Sociedade de Neurociência americana, em 2005: “Essas descobertas podem ter tremendo impacto na medicina, além de ajudar-nos a entender como o cérebro manipula a si mesmo”.

[4] O que ele está querendo dizer, e muitas vezes é mal compreendido, é que o efeito placebo não ocorre naturalmente, e sim como parte de um tratamento. É óbvio que, tal qual já dizia Hipócrates, “são nossas forças naturais que curam nossas doenças”, e nesse sentido a saúde sempre surgirá onde a doença não mais se faz presente. Mas, por outro lado, existe uma série de tratamentos não convencionais, associados pela medicina tradicional ao efeito placebo (ex: acupuntura, cirurgias espirituais, florais, reiki, etc.), que parecem efetivamente auxiliar na catalisação do efeito, de modo que, sem eles, o efeito não ocorreria, ou não ocorreria com a mesma eficiência.

[5] Ultimamente não é mais nenhuma novidade no ramo dos remédios para depressão que, conforme inúmeras pesquisas vêm demonstrando, na grande maioria dos casos eles não tenham nenhum efeito consideravelmente maior do que o “puro” efeito placebo, excluindo-se os casos de depressão severa, que têm medicamentos bastante específicos (e, nesses casos, sim, funcionam melhor do que placebos). A despeito disso, existem muitas pessoas no mundo desenvolvido que sofrem de depressão não severa, e compram mensalmente remédios caros que, na realidade, efetivamente funcionam tanto quanto pílulas de farinha.
Sobre o assunto, ver, por exemplo: revista Mente e cérebro (Scientific American/Duetto) nº226 – Antidepressivos são mesmo eficazes? (que foi matéria de capa); e revista Galileu (Globo) nº247 – Antidepressivos funcionam? Veja também esta entrevista com o psicólogo Irving Kirsch.

[6] Em outras palavras, o Dr. Beauregard não está nem um pouco interessado em explicações vagas para curas espirituais, como “Deus te curou” ou “o espírito da Senhora de Branco veio e te abençoou” – para ele, tais explicações são tão inúteis quanto a materialista (ver nota nº3 acima).

[7] Vamos citar um exemplo bem claro: chifres de rinoceronte são apreciados no Oriente como afrodisíacos, causando sua caça e risco de extinção (pois a carne não é sequer aproveitada). Ora, o chifre em pó conterá grandes quantidades de cálcio e fósforo, o que pode realmente aumentar o vigor de pessoas com deficiência desses minerais. Na posse desse conhecimento, algum antigo consumidor de chifres de rinoceronte em pó poderá, portanto, comprar vitaminas com cálcio e fósforo no lugar, auxiliando na preservação da espécie. Este é um caso onde já se tem uma boa ideia do que ocorre, mas muitos outros ainda caem na zona “nebulosa” do efeito placebo, e ainda não são compreendidos.

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Crédito da foto: Jed Share and Kaoru/Corbis (banca com venda de ervas e afrodisíacos em geral, no Marrocos)

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Uma imagem, uma reflexão (12)

Os 10 grandes deuses do Supermercado. Você provavelmente reza ou rezará* para alguns de seus santos, mesmo sem que o saiba...

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(*) Claro que não é estritamente uma reza, mas grandes conglomerados empresariais tampouco são realmente deuses, eu usei esses termos para provocar uma reflexão mesmo... A origem dessa minha associação da sedução do consumo com um "deus do consumo" está melhor explicada neste artigo.

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(clique na imagem para abrir em tamanho maior)

Crédito da imagem: Exposing the truth (página do Facebook)

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25.4.12

Imaginando dragões

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

Outro dia estava vendo na TV a cabo um programa sobre novas empresas no ramo da tecnologia e inovação, e conheci a Quirky, que é basicamente uma comunidade online de gente criativa, com ideias para novos produtos. Você envia uma ideia por 10 dólares e, duas vezes por mês, as ideias mais votadas pela comunidade passam a ser desenvolvidas pela Quirky, até que virem produtos reais, físicos, e 30% das vendas vão para o criador.

Mas o que me chamou a atenção foi o depoimento do sujeito que criou o Click and Cook [1]. Há certa altura ele disse mais ou menos assim: “Sim o dinheiro é legal, mas o que mais me emociona é o fato desse produto, que agora está aqui na minha frente, e que posso pegar com a mão, ter saído da minha cabeça”... Nós realmente temos essa estranha dificuldade em notar que tudo o que há por aí, construído pelos homo sapiens – arranha-céus, trens bala, semáforos, espátulas, etc. –, saiu nalgum dia da cabeça de um, ou vários, de nós. Ainda assim, é sempre emocionante ver quando alguém percebe isso: “pensei alguma coisa, e agora é real!” Há que se perguntar: e quando, afinal, um pensamento não foi real?

Por exemplo, na era da informática, muitas e muitas coisas foram criadas, mas não passam de bits trafegando por hard disks. Na verdade, toda a internet é algo que não se pega com a mão: mas existe, e foi criado por nós. Alguns homens criam coisas “físicas”, hardwares; Outros criam coisas “virtuais”, softwares. Um programa de computador, por exemplo, é uma série de comandos e algoritmos que lidam com a interação do usuário para lhe trazer novos comandos e algoritmos de acordo com o que ele deseja: apenas um clique no botão de “buscar” do Google, e quantos e quantos anos de inovação e criatividade não se escondem por detrás do processo que retorna milhões de resultados [2], quantos e quantos pensamentos que saíram nalgum dia da cabeça dos homo sapiens.

Mas você deve estar se perguntando o que isso tudo tem de estranho. A princípio nada de aparente, mas eu achei por bem lhe trazer essa pequena introdução para falar sobre dragões imaginários, que é o que farei a partir de agora...

Como já havia dito nesta série, minha primeira festa estranha ocorreu provavelmente enquanto rolava poliedros regulares sobre uma mesa e decidia o resultado do que meu herói havia realizado no jogo de RPG [3]. Aquela altura os mitos e toda a simbologia diluída não me diziam nada de muito profundo, embora certamente fosse divertido jogar e, de todos os personagens a disposição, eu sempre tenha me interessado um pouco mais pelo Mago. Assim foi que, nalgum jogo da adolescência que já não me lembro mais, criei um novo mago que, por acaso, tinha um familiar, uma espécie de animal de estimação mágico que o auxiliava de vez em quando.

Eu nem gostava de ter de controlar mais de um personagem além do meu próprio (o Mago), mas estava na regra, e além do mais era algo que os magos ganhavam de graça, sem gastar pontos de personagem ou de experiência no jogo. Então rolei os dados e consultei a tabela do livro de regras e – minha nossa! – caiu na linha do faerie dragon, o que é mais ou menos um dragão fada pequenino, do tamanho de um lagarto de estimação (daqueles que sobem no nosso ombro), mas com belíssimas asas de fadas. Eu resolvi que seria melhor assumir aquele familiar com convicção, e tentar torná-lo algo mais assustador – assim sofreria menos gozações dos amigos que jogavam comigo.

Foi chamado de Amigo de Mago, e logo nas primeiras aventuras (jogos narrados pelo mestre do jogo, onde eu era um dos personagens com o meu mago) se mostrou bem mais útil do que havia imaginado a princípio, principalmente enquanto meu mago era alguém ainda inexperiente, e sem muitas possibilidades de torrar inimigos com bolas de fogo. Pode-se dizer que o Amigo de Mago era, no mínimo, uma distração muito útil para desviar a atenção dos inimigos. Acabei gostando e, ao longo de todos os magos que interpretei na minha vida de jogador de RPG, sempre que as regras permitiam eu trazia aquele dragão fada de volta a vida...

Mas os anos se passaram, eu me casei e mudei de cidade, e os jogos de RPG tradicionais ficaram cada vez mais raros, e minha vida no RPG foi se tornando cada vez mais eletrônica, e menos pessoal. Meus magos e seus dragões de estimação foram se tornando, cada vez mais, apenas memórias alegres da adolescência e dos meus vinte e poucos anos.

Foi então que comecei a desenvolver minha mediunidade em um centro espírita ecumênico [4] da cidade onde hoje resido, e aproveitei a oportunidade para colocar em prática (mental) alguns exercícios descritos de forma bastante didática por Franz Bardon em seu Magia Pratica. Quando estamos “preparando o ambiente (mental)” para que possamos entrar em contato com espíritos, costumeiramente tentamos “limpar a mente” de pensamentos ruins, estressantes, e imaginamos cenários naturais, como planícies ensolaradas de grama verdejante, algumas árvores e flores, uma cachoeira ao longe que deságua num rio que passa próximo, pássaros planando com a brisa no céu, etc. [5]

Isso tudo é imaginado em meditação, com os olhos fechados e a luz do ambiente bastante fraca. Muitas vezes, com a prática, tais imagens já surgem sem muito esforço, como se a mente já estivesse acostumada a tal programação... Na medida em que fui prosseguindo em meu desenvolvimento, pude notar que, efetivamente, a minha planície era cada vez mais verde e ensolarada, cada vez mais “real”. O que isso significa, na prática, é que estava ficando cada vez mais simples para mim entrar em estados de consciência compatíveis com aqueles adequados para a boa prática da mediunidade. Até que um dia, me deparei com um ambiente “carregado” de alguma influência negativa – era como se alguns espíritos desgostosos estivessem querendo invadir (mentalmente) o meu jardim, e me desconcentrar. Foi precisamente nesse momento que ele apareceu, o Amigo de Mago!

Como um pensamento, uma programação mental antiga e quase esquecida, mas que nunca deixou de ser querida para mim, o pequeno dragão fada, com suas asas cintilantes a refletir o brilho do sol, passou por mim como um zangão e, rodopiando a minha volta, afastou aqueles espíritos desgostosos, ou pensamentos ruins, como num “passe de mágica”. E, depois, ele se foi, voou para longe, como se jamais tivesse estado ali...

Era exatamente como nos antigos jogos de RPG: quando era necessário sua ajuda, o Amigo de Mago aparecia. Mas, na maior parte do tempo, ele ficava em segundo plano nas histórias... Foi então que me toquei: aquilo era real, pois todo pensamento é real. Afinal, como postulam alguns físicos modernos, tudo é informação, até mesmo um pensamento.

O pequeno dragão fada nada mais era do que uma programação mental antiga que, surpreendentemente, havia “ficado lá”, no terreno fértil da imaginação e, até mesmo devido a isso, ressurgiu em toda a sua glória exatamente quando este terreno estava novamente a ser remexido, em minha meditação com a construção de elaboradas imagens mentais.

Seria o Amigo de Mago um ser sentiente? Infelizmente, acredito que não. Por minha própria experiência com tal pensamento, se trata mais de uma programação mental que foi alimentada ao longo do tempo (mesmo sem que eu tivesse a plena consciência disso) para realizar tarefas (mentais) específicas, mas não seria como o meu gato que, apesar de não poder falar comigo, tem seu próprio ânimo felino.

Seria isso tudo “apenas coisa da minha cabeça”? Sem dúvida. Mas, se me permite dizer: eu sei muito bem a diferença entre a realidade e a fantasia, ou entre a realidade física, hardware, e a realidade psicológica, imaginativa, software. Porém, do mesmo modo, eu também desconfio que muitos pensamentos heroicos da imaginação humana já desbravaram a aventura mítica que separa essas duas dimensões da realidade, e há muitas e muitas ideias que hoje estão bem aqui, neste mundo que reflete a luz, e que percebemos com os olhos. Sejam sistemas de espátulas ou miniaturas de dragões fada, eles venceram, eles se materializaram bem diante de nós.

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[1] Um engenhoso sistema de espátulas onde você pode trocar de espátula rapidamente, mantendo o mesmo cabo. Bem talvez fique mais simples de entender vendo no site.

[2] A busca por “pensamento”, por exemplo, traz mais de 33 milhões de resultados em menos de meio segundo (na banda larga).

[3] Role Playing Game, ou Jogo de Interpretação de Personagens. Este que se joga com dados e fichas de papel e um mestre do jogo, coisa do século passado... (brincadeira, ainda se joga assim neste século também).

[4] Quero dizer: um centro espírita que não é estritamente “kardecista”, e também tem práticas de umbanda sagrada, assim como de doutrinas espiritualistas orientais. Alguns médiuns chegam a incorporar com perda total ou parcial da consciência, mas não é o meu caso.

[5] Claro que, a nível de magia, essas imagens mentais também evocam os 4 elementos e também por isso são importantes – embora provavelmente boa parte dos espíritas não se dê conta disso.

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Crédito das imagens: [topo] Samwise; [ao longo] Google Images (draco lizard – prova que a imaginação da Natureza ainda é muito superior a nossa)

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23.4.12

Jorge Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Muitos podem se questionar se um guerreiro pode falar em nome do amor, se pode efetivamente ser santo... Acredito que antes de mais nada nos vale a reflexão acerca da santidade ser real ou mitológica, neste sentido: existiram mesmo homens totalmente santos, ou foi a grandiosidade de sua vida que os tornou mitos? É óbvio que o mito de São Jorge não corresponde exatamente a vida do conde da Capadócia, soldado romano, a despeito dos atos de caridade e de sua resiliência ante as torturas - fica óbvio que Jorge nunca matou nenhuma dragão de verdade... Porém, se o consideramos simbolicamente como a força da coragem contra a ignorância, representada pelo dragão, temos uma poderosa lição espiritual, lição esta que resistiu aos séculos, e ainda hoje é muito mais do que um feriado em algumas regiões do Brasil.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + logIcon

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20.4.12

Antes que se apague a chama

Eu queria lhes apresentar um amigo...

Foi um dos maiores educadores que já se viu e, no entanto, diz-se que seu primeiro trabalho foi de auxiliar da mãe, Phaenarete, que era parteira. Ainda assim, ao observar um parto complicado da mãe, já demonstrou a extensão de seu pensamento: “Minha mãe não irá criar o bebê, apenas auxiliá-lo a nascer, e tentar diminuir a dor do parto. Porém, se ela não realizar o parto, talvez ambos, a mulher e seu filho, morram... Eu também serei um parteiro, um parteiro do conhecimento que jaz na alma das pessoas, mas, por ignorância dele, elas não se dedicam devidamente ao seu nascimento. Eu os ajudarei fazer nascer sua sabedoria.”

Este era Sócrates, o maior dos filósofos, a luz perene de Atenas. Ele que serviu sua cidade-estado como quem serve a um ideal maior do que ele próprio, uma paideia, uma cultura universal condensada e absorvida pela cultura de um só povo, uns 70 mil que, não obstante, influenciaram a linguagem e as ideias de todo o Ocidente. E, servindo a tal pátria, lutou em diversas guerras como soldado, felizmente escapando ileso de todas elas. Ao fim da carreira de soldado, poderia haver se aposentado da vida, mas foi aí, pelo contrário, que sua vida de sábio e educador começou.

Tendo consultado o oráculo em Delfos e recebido a inquietante resposta de que era “o homem mais sábio de toda Grécia”, prontamente dedicou-se a abordar outros homens ditos sábios, na esperança de provar que o oráculo estava errado. Como, para sua surpresa, descobriu que todos aqueles que se julgavam sábios, em realidade não o eram, passou a perseguir a sabedoria – que ele mesmo julgava não possuir – noutro mundo.

Sócrates buscou aos jovens, e os jovens buscaram a Sócrates, como as abelhas buscam as flores, e as flores as abelhas. Sabiam, de alguma forma oculta, que necessitavam uns dos outros: os jovens precisavam de um parteiro para que sua própria sabedoria florescesse, e o filósofo, em seu papel de parteiro do conhecimento, necessitava do contato direto com o fogo das almas recém-chegadas ao mundo, antes que sua chama houvesse sido apagada pelos hábitos moribundos da estagnação dos homens ignorantes.

Precisamente por isso, mais do que por ter professado servir a um Deus desconhecido, foi Sócrates acusado e sentenciado a morte por seu próprio povo: corromper aos jovens. Ora, mas não poderia ter sido diferente – aqueles que haviam se acostumado com o musgo e o breu das cavernas, jamais poderiam suportar aqueles jovens falando sobre uma luz, uma divina luz, a irradiar sob os campos da superfície das mentes libertas do claustro.

Sócrates demarcou a alternância do entendimento da justiça, da ética e da política como elementos de um conjunto de regras de convívio social, para a era da justiça, da ética e da política a serem realizadas primeiramente na própria alma, a juíza de si própria, num conflito perene para que deixasse de ser escrava de seus próprios instintos inferiores, de sua ignorância, e se reacendesse em chamas, no fogo que veio do Alto, e do qual ainda poderiam se lembrar – como ideias inatas de um Grande Bem.

Não é culpa do velho atarracado com seus olhos de touro que a Igreja tenha, muitos séculos depois, se apropriado deste conceito e determinado que ele seria deste ou daquele jeito: um Céu Eterno, contrapondo um Inferno Eterno. O Céu de Sócrates era, antes de tudo, o Céu da liberdade, da amizade, da fraternidade, do amor ao saber. Não poderia jamais ser delimitado por dogmas ou manuais de como seria exatamente tal região, até mesmo porque, para o filósofo, tal Céu estava por ser erigido em alguma época futura, onde todos os jovens houvessem feito o parto de sua própria sabedoria, sua própria potencialidade, com a ajuda do grande parteiro, ou de outros que viriam após ele... O Deus de Sócrates estava no futuro, mas sua chama atingia o passado.

Ao ser condenado por ingestão de cicuta, seus amigos mais próximos lhe imploraram que fugisse da cidade para viver no exílio. Sócrates, porém, os fez tentar compreender: não havia cidade para onde fugir, Atenas era sua paideia, e sua paideia era todo o mundo. Havia ali permanecido desde o nascimento, e por 70 longos anos, não somente porque pensava estar no centro físico do mundo conhecido, mas principalmente porque acreditava ser ali o centro espiritual de todo o horizonte. Foi em Atenas, e com ideias, que Sócrates lutou toda sua guerra... Fugir, naquele momento, seria o mesmo que debandar de uma batalha enquanto soldado, somente por medo de perecer em combate. Sócrates não tinha medo da morte, mas antes da desonra, algo que poderia fazer com que todo o seu pensamento, e tantos e tantos partos, houvessem sido em vão.

Mas, ainda mais do que isso, Sócrates sabia de um outro mundo, aquele mundo onde a chama que observara na memória dos jovens ardia em puro esplendor e essência. Por boa parte da vida procurou fazer com que os jovens enxergassem tal mundo antes que a chama se apagasse por completo... Agora, era a sua vez de chegar, uma vez mais, ao mundo das essências. Se estaria em melhor posição que aqueles que permaneceriam no mundo das sombras, deixou que cada um decidisse por si só.

“Levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota.

Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber, e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.

- Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair às mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens!

Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem [que lhe deu] o veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras:

- Critão (exclamou ele), devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida!

"Assim farei!", respondeu Critão. Vê se queres dizer mais alguma coisa. A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e a boca.

Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.” (Fédon – Platão)

Feliz foi Sócrates, o filósofo que viveu entre amigos, e não entre discípulos.

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Crédito da imagem: Sven Hagolani/Corbis

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19.4.12

Um mundo silencioso

Qualquer um que mora na cidade grande, mais dia menos dia desejará vê-la assim...
(clique nas imagens para vê-las em tamanho maior)

“Silent World” é um série fotográfica criada por Lucie e Simon, dois fotógrafos franceses que imaginaram o mundo sem aglomerações. Em sua obra, as principais avenidas e centros das cidades mais populosas do mundo ganham uma calma majestosa.

Mas, e qual seria a estranha inquietação, o desassossego que nos toma conta ao refletirmos sobre tais imagens? É que, somos animais sociais... E, tanto na aglomeração, quanto na cidade vazia, sentimos falta deste contato tão essencial. Isto que nos faz genuinamente humanos, e sem o qual estaremos cada vez mais sós, não importa onde for... Sem o amor, mesmo os maiores arranha-céus pouco nos dizem acerca da potencialidade humana.

Vídeo de cerca de 8 min. sobre o trabalho dos fotógrafos, com músicas de Philip Glass e Daft Punk.

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18.4.12

Comentário: os memes existem?

Comentário das respostas da pergunta “os memes existem?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] Muito já foi dito em meu blog sobre os memes de Dawkins (ver, por exemplo, a série Onde estarão os memes?), e, do ponto de vista espiritualista, eu tenho sempre me indagado se os memes diferem tanto assim dos muwakkals dos sufis, ou das teorias ocultistas acerca do “nascimento, vida e morte dos pensamentos”, ou seja: seriam os memes os genes místicos ou metafísicos?

Para não me repetir sobre assuntos já abordados no blog, eu gostaria aqui de falar exatamente sobre a natureza do pensamento. Sabemos que o pensamento sem dúvida passa pela mente, independentemente de ter se originado apenas no cérebro, ou de ter vindo de algum outro centro oculto, de alguma usina espiritual. Isto pois, com os eletroencéfalogramas (EEGs) e outras tecnologias de observação objetiva das fagulhas elétricas a navegar pelo espaço neuronal do cérebro, tudo o que vemos é o resultado da vontade de agir, dos comandos cerebrais; Ou pelo menos nada que temos visto na neurociência de ponta indica que tal fagulha se originou apenas no cérebro, e não está somente trafegando por ele, ativando as teclas do piano que controla nosso corpo. Observamos, portanto, luzes a passar por extensos e intrincados postes de luz, que iluminam toda a metrópole cerebral, e fazem a cidade funcionar – porém, jamais encontramos algo no cérebro que possamos indicar, com boa convicção, como sendo a usina elétrica dessas luzes, o centro da vontade.

Portanto, ainda que hoje saibamos que a consciência é um processo que simula e elabora realidades para que nosso eu possa decidir o que fazer a seguir; E ainda que a atividade consciente na verdade seja apenas reflexo de inputs de informação sensorial e decisões muitas vezes inconscientes que ocorreram a até meio segundo atrás, antes de terem sido percebidas conscientemente [1]; Ainda assim, a despeito de todo o ceticismo envolvido com as questões espirituais, podemos dizer pelo menos isto aqui: enquanto vivos, encarnados, todos nós concordamos que somos um ser que tem uma mente e é capaz de elaborar e interagir com pensamentos, ainda que tão somente dentro de nossa própria mente [2].

Ora, se postulamos que memes são as unidades fundamentais do registro de informações de nossas ideias e pensamentos, e que da interação entre pensamentos, eles podem se desenvolver e replicar, conforme os mecanismos de evolução e seleção natural da teoria da Darwin-Wallace, ainda que eles jamais tenham sido detectados em experimentos, podemos os considerar também como uma teoria puramente lógica e filosófica de eventos observados na natureza. Dessa forma, conforme os antigos filósofos naturalistas, que não estavam tão distantes dos sufis (que conceberam os muwakkals), poderemos examinar de que forma, exatamente, tais memes adentram em nossa mente, e se desenvolvem, até que se repliquem para outras mentes, geralmente através da linguagem [3].

Conforme vínhamos dizendo no comentário da segunda pergunta (que é, afinal, a vida?), John Wheeler e outras físicos postulam que as unidades fundamentais da realidade, tanto quanto ocorre com os memes, também são puramente informação. Bits de informação: “0s” ou “1s” que, repetidos ad infinitum, estruturam tudo o que há no Cosmos, do neutrino aos maiores agrupamentos de galáxias. Crendo ou não nessa teoria científica, muitos neurocientistas, ainda assim, creem que o registro de informações no cérebro é computacional e que, em essência, somos mais como uma máquina celular. Ainda que fosse este o caso, não sabemos exatamente como o cérebro gera a subjetividade, como nos permite interpretar – e não apenas computar – informações, de modo que falamos em “vermelhidão” do vermelho, e podemos apreciar as mais belas metáforas poéticas.

Sir Charles Scott Sherrington, neurofisiologista britânico, talvez tenha sido um dos pensadores que mais profundamente adentrou neste problema do registro de informações subjetivas em nossa mente, ao compará-la, metaforicamente [4], a um tear encantado, sempre tecendo padrões de sentido, através da simbologia: “Esses padrões de sentido transcenderiam programas ou padrões puramente formais ou computistas e dariam margem à qualidade essencialmente pessoal que é inerente a reminiscência, inerente a toda mnesis, gnosis e práxis. [...] Padrões pessoais, padrões para o indivíduo, teriam de possuir a forma de scripts ou partituras – assim como padrões abstratos, padrões para computador, têm de estar na forma de esquemas ou programas. Portanto, acima do nível de programas cerebrais, precisamos conceber um nível de scripts e partituras cerebrais. [...] A experiência não é possível antes de ser organizada iconicamente; a ação não é possível se não for organizada iconicamente. ‘O registro cerebral’ de tudo – tudo o que é vivo tem de ser icônico. Essa é a forma final do registro cerebral, muito embora o feitio preliminar possa ser moldado como cômputo ou programa. A forma final de representação cerebral tem de ser, ou admitir, a ‘arte’ – o cenário e a melodia artística da experiência e da ação [5]”.

Dessa forma, surpreendentemente, quando falamos em pensamento, embora o conceito de “informação” ainda faça sentido (pois no fundo tudo é informação, até mesmo o próprio pensamento [4]), provavelmente o conceito de “símbolo” traga um sentido mais prático se queremos abordar a questão de forma lógica. Ora, apesar de mesmo os símbolos não serem de todo capazes de encerrar o que se dá na experiência subjetiva, na sensação, na intuição, no sentimento, eles pelo menos são as melhores cascas de sentimento que encontramos até hoje, as melhores palavras e imagens capazes de indicar o que é exatamente um pensamento: não somente um conjunto “frio” de “0s” e “1s”, mas toda uma rede intrincada de sentidos que, efetivamente, podem ter seu nascimento, sua vida, e sua morte. E, mais do que isso: podem se replicar, se desenvolver, tal qual a teia da vida.

Portanto, se pensamentos nada mais são do que informações vivas a trafegar pelas mentes, ainda que antigamente fosse difícil crer que alguém poderia influenciar o pensamento de outro alguém a distância, através de algum plano mental, hoje nem é preciso considerarmos se isto é ou não uma possibilidade real. Pois que hoje a transmissão de pensamentos se dá também quase a velocidade da luz, através do hipertexto da internet, das redes sociais, e de um mundo cada vez mais globalizado. Estamos sim, cada vez mais, formando uma teia de pensamento através do mundo todo. Cuidado, portanto, como a informação, com os símbolos que saem, e também com os que entram: eles serão a sua realidade.

***

[1] Exceto em ações puramente reflexivas, como proteger os olhos com as mãos de algum objeto arremessado em sua direção, que não passam por esse intervalo de meio segundo, e são efetivamente “automáticas”, ou pelo menos na grande maioria dos casos não teremos escolha entre proteger os olhos ou não: nós os protegeremos.

[2] Bem, os materialistas eliminativos (dentre os quais, ironicamente talvez pudéssemos incluir o próprio Dawkins) não creem que exista uma mente, pois eles tampouco creem que exista uma subjetividade, ou a liberdade, mesmo uma liberdade parcial e limitada, da vontade. A subjetividade seria uma ilusão persistente do cérebro, e todas as nossas escolhas (veja bem: todas) na verdade se reduziriam ao tilintar neuronal de partículas já descobertas pela ciência (veja bem: apenas 4% da matéria e energia do universo, segundo a teoria da Matéria Escura).

[3] Ou seja, da interação humana, também conhecida como fofoca, notícia, moda, etc. Muitos espiritualistas postulam que o pensamento pode, por si só, se projetar e habitar um plano mental, um inconsciente coletivo, etc., mas nem será preciso considerarmos esta hipótese aqui.

[4] Ah, a ironia...

[5] Trecho de Man on his nature, conforme citado num dos livros de Oliver Sacks.


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Crédito das imagens: [topo] Mario Martinez (representando uma tulpa, a forma-pensamento para os budistas tibetanos); [ao longo] neurosupply.com (na verdade isto é apenas um EEG, apesar de trazer o mesmo título que o neurocientista Miguel Nicolelis deu para o que ele acredita ser a internet do futuro, onde os cérebros estarão conectados entre si: a Brainet)

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16.4.12

Joana d'Arc Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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» Saiba mais sobre Joana d'Arc

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Boris Vallejo (capa para Blood Red, Sister Rose, livro sobre Joana d'Arc)

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15.4.12

A inefável definição

Porque sabemos que o ser decidiu ser,
Igualmente, sabemos que o não ser não há,
Ou jamais foi, ou será.
Que haja algo, e não nada:
Eis o primeiro e único milagre;
E que torna todos os outros, tão somente
Algo perfeitamente natural.

E, sendo o Uno, ao mesmo tempo
E necessariamente: parte e todo de si,
Eis que o Uno é uno somente em si mesmo,
No repouso perfeito que não admite movimento.
Pois que todo movimento é alguma divisão,
Alguma irradiação do Uno em partes de si,
Quando o Uno se torna o inverso de si mesmo:
O Universo.

Porque sabemos que existem partes,
Igualmente, sabemos que há movimento.
Por outro lado, porque sabemos que existem essências
– As ideias elas mesmas de si mesmas –
Sabemos que em meio ao movimento, existe o repouso,
E é exatamente neste breve repouso
Que capturamos as partes em movimento
E as admiramos brevemente em toda sua glória;
E finalmente, dizemos:
Eis uma genuína parte do Infinito, em repouso.

Porém, como tudo está para nós em movimento,
Até mesmo o espaço e o tempo, entrelaçados,
A bailar com os ventos do Infinito,
Quando vemos algo repousar, e dizemos:
Eis algo!
Tal algo já não é mais o que fora,
Nem jamais o será outra vez...
E tal paradoxo dos paradoxos, filho do primeiro,
Só pode ser mesmo reconciliado com este precioso
Momento em nossa mente:
O momento em que fotografamos o Uno,
Em toda sua inefável definição...

Nós: os fotógrafos do Infinito.


raph’12

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» Parte da série "Mito da criação"

Bibliografia recomendada: O Caibalion (3 iniciados, ed. Cultrix/Pensamento); Ética (Espinosa; ed. Autêntica); Da Natureza e sua permanência (Parmênides, Edições Loyola, também transcrito neste blog); Parmênides (Platão; Edições Loyola); O universo elegante (Brian Greene; ed. Cia. das Letras).

Crédito da foto: Stock4B/Corbis

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13.4.12

Comentário: o que a ciência tem a ganhar com a espiritualidade?

Comentário das respostas da pergunta “o que a ciência tem a ganhar com a espiritualidade?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] Primeiramente, é oportuno deixar claro: a pergunta “curta”, que serviu como título do post original (e deste comentário) deve ser analisada dentro do contexto em que foi colocada, considerando-se todos os 4 parágrafos – ou seja, a pergunta completa (“longa”). Estritamente falando, a ciência não têm absolutamente nada a ganhar, nem a perder, com a espiritualidade. Isto porque a ciência é tão somente o conhecimento da realidade detectável, um instrumento do pensar, com o qual analisamos os mecanismos da natureza. Embora possamos debater o que significou a palavra “ciência” em seus primórdios, acredito que hoje não há como fugir desse conceito moderno. A ciência não é, portanto, ideologia: não é teísta nem ateísta, materialista ou espiritualista, monista ou dualista, a ciência não é nem mesmo moral ou imoral. No entanto, os cientistas, eles sim, podem ser tudo isso... E é exatamente nesse contexto que eu coloquei a pergunta final, que talvez tivesse ficado melhor como “o que os cientistas têm a ganhar com a espiritualidade”, mas eu não queria separar os dois conceitos. Isto, pois, realmente existiram, e existem, grandes cientistas plenos de espiritualidade:

“O Cosmos é tudo o que é, ou foi, ou nalgum dia será. A nossa contemplação do Cosmos mexe conosco. Dá um calafrio na espinha, um bolo na voz. Uma sensação de desmaio, como uma lembrança distante de cair de uma grande altura. Sabemos que estamos abordando o maior de todos os mistérios... O tamanho e a idade do Cosmos estão além do entendimento humano comum. Perdido em algum lugar entre a imensidão e a eternidade está nosso minúsculo lar planetário, a Terra. Pela primeira vez temos o poder de decidir o destino de nosso planeta, e de nós mesmos. É um momento de grande perigo, mas a nossa espécie é jovem, curiosa e corajosa, e demonstra muito potencial... Nos últimos milênios nós fizemos as descobertas mais surpreendentes e inesperadas sobre o Cosmos e sobre o nosso lugar nele. Eu acredito que nosso futuro depende, e muito, de nós entendermos bem esse Cosmos, no qual flutuamos como um grão de poeira no céu matinal.

[...] Nós queremos perseguir a verdade, não importa onde ela nos leve. Mas, para achar a verdade, precisamos tanto de imaginação quanto de ceticismo. Não vamos ter medo de especular, mas vamos ter cuidado para distinguir a especulação do fato. O Cosmos é ilimitado de verdades elegantes, de inter-relacionamentos delicados do incrível mecanismo da natureza. A superfície da Terra é o litoral do oceano cósmico... Neste litoral, nós aprendemos a maior parte do que sabemos. Recentemente, aventuramo-nos um pouco pelo raso, talvez com água a cobrir-nos o tornozelo, e essa água nos pareceu convidativa. Alguma parte de nosso ser nos diz que essa é a nossa origem. Desejamos muito retornar, e podemos fazê-lo, pois o Cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar, somos uma forma do próprio Cosmos conhecer a si mesmo”.

Assim, com esses dois parágrafos (eu pulei uma parte não tão importante), Carl Sagan, grande cientista e astrônomo americano, celebrado tanto por seu ceticismo quanto por seu humanismo, iniciou o primeiro capítulo da já lendária série de TV Cosmos, provavelmente o mais grandioso material em vídeo de divulgação científica, assim como um grande documentário acerca da história, da mitologia e das religiões humanas. Apesar de ter sido cético, agnóstico, e avesso às teorias espiritualistas em geral, Sagan jamais se absteve de estudar profundamente as religiões, a espiritualidade humana... E, em as tendo conhecido tão profundamente (ao menos na teoria, embora obviamente não na experiência religiosa em si), Sagan não somente as criticava com propriedade, onde era devido, como se abstinha de condenar a priori aos próprios religiosos. Sagan não era um simpatizante de religiosos por medo de sua ira (ou da “ira divina”), mas porque efetivamente os respeitava, apesar de discordar deles em inúmeros pontos.

***

Recentemente o Superior Tribunal Federal (STF) no Brasil votou publicamente acerca da proposta de lei que legaliza o aborto de fetos anencéfalos. O que era para ser um debate estritamente jurídico, e de interpretação da Constituição Federal, acabou ganhando as manchetes, como era de se esperar, como uma espécie de “embate feroz” entre eclesiásticos e antieclesiásticos, como se a decisão final fosse uma espécie de “vitória” para um ou ouro lado.

Uma rápida pesquisa online nos traz alguns pontos fundamentais da questão: anencéfalo não é um feto que nascerá sem cérebro, mas com a má formação do mesmo, muitas vezes decorrente de acrania, que é a má formação do crânio. Em muitos casos o anencéfalo nasce realmente sem cérebro algum, mas em tantos outros há um cérebro presente, embora mal formado. Em todo caso, a imensa maioria dos anencéfalos têm vida curta, de algumas horas ou minutos, isto quando já não nascem mortos. Apesar disso, em alguns casos raríssimos, alguns no Brasil, anencéfalos sobreviveram por 20 meses e até mais.

Esse tipo de debate é polêmico, mas necessário. Não há “saídas simples” para ele. O aborto de um anencéfalo é assassinato? Sim, sem dúvida. O risco de saúde que a gestação de um anencéfalo gera para a mãe vale o prolongamento da gestação natural, sem aborto? Se a mãe se sente ameaçada, e se não quer seguir com a gestação, provavelmente não. As mães que se comprometem a arriscar-se para parir um bebê que irá requerer cuidados especiais, e que provavelmente não irá sobreviver por muito tempo, são “loucas”? Claro que não, são dignas de palmas, na realidade. Porém, será que tais “mães santas” são a maioria, ou a esmagadora minoria?

Todas essas questões entraram na pauta, e não eram propriamente questões religiosas ou científicas, mas questões morais, questões que tangem a ética de toda uma sociedade. Por isso o debate é importante, para que tais decisões polêmicas não se restrinjam a dados técnicos de um cientista, mas que tampouco se restrinjam ao dogma de uma doutrina religiosa em vigor. Isso, pois o Estado pode até ser laico, mas nós não somos. A ciência pode ser amoral, mas os cientistas, e os não cientistas, jamais. Mesmo aqueles que não gostam de admitir sempre tomarão algum partido, mesmo que guardem para si, mesmo que se abstenham de opinar. Ou ainda mesmo que optem por simplesmente ignorar a questão – isso não seria amoralidade, mas talvez pura ignorância, pois queiramos ou não, somos animais sociais, e essas questões devem sim entrar em pauta, na nossa pauta.

Mas é então que a educação entra em questão. Um povo sem educação, sem conhecimento, terá enormes dificuldades em debater, em opinar, sobre o que ignoram e não sabem o mínimo (nem uma pesquisa online de 15 minutos). E, ao contrário do que muitos antieclesiásticos defendem, nem sempre a ignorância cabe apenas aos eclesiásticos, teoricamente os “pobres e de educação inferior”. É exatamente por isso que o radical eclesiástico que acusa um ministro do STF, que votou a favor da legalização, de ser “um assassino maldito”, não está muito distante da radical “feminista” e antieclesiástica que acusa os críticos da legalização de serem “ovelhas de uma doutrina religiosa machista que impede a mulher de ter liberdade total sobre o que faz ou deixa de fazer com seu próprio corpo”... Ora, ambos são ignorantes não somente das leis, da vida em sociedade, como da própria ciência, e da própria espiritualidade.

Pois uma das coisas que a ciência nos ensina é que devemos conhecer ao máximo o mecanismo da natureza, antes que possamos elaborar teorias acerca de como devemos ou não lidar com ela. E a espiritualidade, talvez acima de tudo, nos ensina a respeitar e considerar a opinião dos outros. Nesse caso, a opinião dos outros é o que ajuda a formar as próprias leis de nossa sociedade, pois não moramos sós neste país ou neste globo, e nem está escrito em lugar algum na natureza que uns são “mais especiais” do que outros. E, se algum Manual de Verdades Absolutas disse isso, há que se perguntar se não fomos nós que o interpretamos da maneira errada.

Muitas vezes, o eclesiástico radical que luta contra a legalização do aborto de anencéfalos é o mesmo que, muito naturalmente, recomenda um “bombardeio as cracolândias” para que nos livremos de uma vez dos “malditos viciados”. É preciso ter muito cuidado quando verificamos que, para alguém, uma alma têm um certo valor numa ocasião, e outro valor completamente diverso, noutra... Enfim, esperemos com fé que os moderados, os de bom senso, os amistosos, os amigáveis e amorosos, herdem esta terra.

***

Como vários autores relatam benefícios com os tratamentos espirituais, é fundamental um melhor conhecimento dos mecanismos e eficácia das curas espirituais. Isso possibilitaria a adaptação das formas úteis como terapias complementares à medicina ocidental, bem como desencorajaria os procedimentos danosos ou inúteis. A discussão séria de um tema não requer que compartilhemos as crenças envolvidas, mas que tomemos suas implicações seriamente e não subestimemos as razões pelas quais tantas pessoas se envolvem. Nem a crença entusiasmada ou a descrença renitente ajudarão os pacientes ou o desenvolvimento da medicina. (Trecho do relatório final do estudo da Associação Médica Brasileira sobre as cirurgias espirituais do médium João de Deus)

“Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra. A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas. (Carl Sagan, em O mundo assombrado pelos demônios)


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Crédito da imagem: Martin Puddy/Corbis

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Gandhi Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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12.4.12

Obituário

Era noite nos arredores do jardim da cidade, e o neófilo, curioso como sempre, sentiu-se atraído por aquele grupo de pessoas em volta de uma fogueira. O clima era úmido. Gotículas d’água pairavam como diminutos duendes pelo ar, cavalgando aleatoriamente as brisas, juntamente com pequeninos pedaços de madeira ainda chamuscada pelo fogo, que mais pareciam fantasmagóricas estrelas, ou vagalumes... Assim que chegou mais próximo, perguntou ao primeiro que o observou:

“Que é essa reunião na calada da noite?”

“Um velório.”

“Velório? Mas não vejo ninguém de preto, nenhum pranto, nenhum caixão...”

“Exato, é um velório sem cores de roupa pré-estabelecidas, sem caixão, e onde a tristeza se mistura com a felicidade e, dessa forma, não há pranto, apenas um doloroso lamento.”

“E vocês estão felizes pelo morto?”

“Claro, como já lhe disse: felizes e tristes, ao mesmo tempo...”

“Quem era, se me permite indagar?”

“Ninguém em especial, pelo menos para os desconhecidos. Para os amigos, no entanto, era um filho do Sol e das estrelas. Uma luz que se precipitou no mundo, tal qual estrela cadente, e pôde aquecer aos corações daqueles que a enxergaram de longe, e se dirigiram até ela.”

“Era algum santo, portanto?”

“Muito pelo contrário. Na verdade, um dia ele me disse – ‘Meu amigo, a maior armadilha que se ergue para esse caminho que escolhemos é nalgum dia crermos que somos alguma espécie de santo, e pior: nalgum dia algum louco acreditar nisso!’”

“E qual era esse tal caminho de vocês?”

Era não: foi, é, e sempre será. O caminho do autoconhecimento.”

“Interessante. Então vocês todos aqui são sábios?”

Sábio é aquele que conhece sua própria essência... Acho que ainda estamos no caminho, e não me parece ser tão curto, nem tão simples. Mas, pé ante pé, espero um dia chegar nalgum lugar um pouco mais distante de onde iniciei quando nasci para o mundo...”

“E como se caminha neste tal caminho?”

“Ah, existem muitas formas, meu caro... Podemos escalar as estátuas dos gigantes de outrora e, escorados em seus largos ombros, fazer com que a larga pedra uma vez mais caminhe à frente. Podemos sair pelo mundo, sem destino estabelecido, mas sabendo que ao fim de cada dia seremos obrigados a ter conhecido pelo menos um único novo amigo. Podemos montar um telescópio e com ele observar a luz mais antiga ao nosso alcance na imensidão da noite, mas contanto que o usemos para catalogar também as constelações de nossa própria alma. Podemos também aprender a escalar algumas montanhas ao nosso alcance, não somente para admirar a vista, mas principalmente para observar as carroças que seguem pelo vale do horizonte, e memorizar os sulcos que suas antigas rodas criam pela estrada... Enfim, são muitas formas de caminhar, mas no fundo há um só caminho.”

“Mas, e o morto, ele conseguiu chegar a algum lugar importante do caminho?”

“Bem, isso eu não sei, pois somente o ser pode realmente saber. Mas um dia soube através dele que ele tinha chegado a um descomunal precipício que demarcava a fronteira de dois grandes países, e que desde então vinha construindo uma ponte – um tanto quanto precária, já que ele nunca foi exatamente um engenheiro no assunto – de cordas desgastadas e tábuas de madeira velha, com a qual pretendia atravessar para o outro lado...”

“Nossa, que arriscado... Mas, e quais eram tais países separados por fenda tão imensa?”

“Ah, disso eu sei muito bem: um é o País da Morte, onde tudo é estritamente reduzido a pequenos pedaços do saber, tudo racional, programado, frio e robótico; já o outro, onde ele procurava chegar ao atravessar a ponte, é o País do Amor, onde tudo é conectado por belos fios de uma imensa teia de luz, tudo sensação, desprogramado, quente e vivo.”

“E ele queria atravessar do país frio para o quente, da morte para a vida?”

“Não sei ao certo. Era isso que pensava a princípio, mas um dia, já perto do dia de sua partida derradeira, ele me disse que havia finalmente fincado a outra extremidade da ponte no País do Amor, e pôde visitar brevemente alguns de seus vilarejos...”

“E o que ele lhe disse que viu por lá?”

“Não viu nada. Disse que não havia nada o que se ver, apenas o que sentir... E disse ainda mais: que assim que pensou os mesmos pensamentos dos seres que lá viviam, percebeu que não era propriamente uma ponte que ele esteve todo aquele tempo a construir... Não uma ponte, mas um fio de ligação entre os dois países.”

“Ora, mas então ele queria aproximar um país do outro?”

“Sim, parece estranho não? Mas é que no fundo, acho que ele descobriu: não é que existam dois países separados, mas é que alguns de nós pensam num país, e outros pensam noutro. E, dessa forma, ambos os países são habitados... Provavelmente o País da Morte esteja já lotado de gente, e a intenção dele era atrair mais gente para o País do Amor. Era como se ele fosse um turista que voltou de uma ilha paradisíaca e agora a estava anunciando para os outros.”

“Mas, e o que ele ganhava com isso?”

“Ele? Acho que nada... Ganhava o mundo todo. Ele costumava dizer assim: ‘O meu trabalho é melhorar a vizinhança. Se a vizinhança melhora, talvez um dia nem precisemos buscar ao Céu em algum outro lugar, que ele já estará instaurado no próprio mundo”.

“Que bonito. Mas que pena ele ter morrido, gostaria de conversar com ele sobre o assunto...”

“Aí é que está, por isso estamos todos aqui. Ainda podemos conversar com ele.”

“Mas como?”

“Ora, eu não disse que ele era um filho do Sol e das estrelas?”

“Disse. Mas disse também que ele não era um santo, nem ninguém em especial...”

“Exato. Mas eis que, agora também sabemos: todos nós somos filhos das estrelas. De fato, somos formados por pedaços de matéria forjados no núcleo das estrelas, no núcleo do Sol. O que meu amigo fez foi, então, engolir o próprio Sol... Foi assim que ele explodiu em milhões de pedaços de luz, que até hoje pairam pelo ar, como pequenas estrelas ou vagalumes. Assim, ele me disse: ‘Se nada mais der certo, pelo menos a luminosidade do que fui ficará ainda guardada no coração e na mente dos meus amigos, daqueles que tive a felicidade de compartilhar o amor. E, dessa forma, eu também serei imortal, eu também serei mais um da raça dos deuses’”.


raph’12’A.’.A.’.

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Crédito da foto: Ron Nickel/Design Pics/Corbis

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11.4.12

Agostinho Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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» Saiba mais sobre Agostinho, o santo boêmio, neste belo depoimento de uma filósofa que o detestava

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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