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31.7.12

Intervista, parte 3

Esta é uma "entrevista de mim mesmo" que escrevi em 1999 e agora trago para este blog. Continuando da parte 2:


Você se considera alguém esperançoso?

-Como assim? No sentido de ter esperança em que?

-Na vida, no mundo, nas coisas em geral...

-Ah sim... Pois bem, neste sentido posso dizer que não tenho esperança alguma, pelo menos não como as outras pessoas têm.

-Ora, mais uma resposta enigmática, como era de se esperar...

-(sorri) Você gostaria que eu explicasse melhor?
 
-Claro! E não se preocupe porque temos bastante tempo ainda.

-(sorri mais uma vez) Eu estava querendo dizer que as pessoas me parecem ter muita esperança, muito mais do que eu tenho por assim dizer... Elas têm, por exemplo, a esperança de serem amadas, bem sucedidas e felizes, mas para isso contam mesmo apenas com sua esperança. Elas querem ser amadas sem se preocupar em amar a elas mesmas, ou a sua vida e seus amigos, ou a quem quer que seja. Querem receber carinho, mas desde cedo aprendem que demonstrar carinho é uma coisa vulgar, que demonstra sua fraqueza, e as impede de serem bem vistas pelos homens que criaram tais regras. Elas na verdade não estão nem aí para tais regras, elas querem é ser amadas, mas como elas tem tanta esperança, seguem as regras porque acham que vão ser amadas de qualquer jeito.
Porque seguindo as regras elas tem a esperança de serem bem sucedidas, de terem um grande imóvel, os melhores carros, os companheiros mais bonitos ou famosos, e de poderem viajar para onde quiserem uma vez ao ano pelo menos... Elas acreditam que conseguirão isso apenas seguindo as regras, e que além de conseguir tudo isso, ainda serão amadas, muito amadas; e, portanto, felizes. Elas têm tanta esperança que acham que tudo isso irá verdadeiramente cair do céu em cima delas.
Não se preocupam em fazer o que gostam, nem em desenvolver um gosto pessoal, elas apenas seguem as regras, e fazem o que quer que vá transforma-las em pessoas bem sucedidas, gostam do que tem de gostar para serem tais pessoas; e, incrivelmente, elas têm a esperança de serem muito felizes, e ainda muito amadas, vivendo dessa maneira.

-Sim, sim, você está querendo dizer que os meios de comunicação, aliados a lei do consumismo capitalista e ao que é considerado politicamente correto, escravizam as pessoas em vidas sem rumo pessoal ou sentido próprio?

-Meu Deus, eu não quero dizer nada disso! Veja bem, eu não estou querendo ser irônico, e as pessoas não estão escravizadas! Ora, é muito fácil pensar assim, que alguma elite multimilionária simplesmente controla toda a forma ocidental de pensar. Não é nada disso... As pessoas vivem assim porque querem realmente, porque estão acomodadas e com medo de tentar algo novo, como sempre... Na realidade, esse algo novo é muito antigo, a verdade da vida sempre esteve oculta dentre o mundo, e são muito poucos os que conseguem desmascará-la.

-A verdade está atrás de uma máscara?

-Claro, não só a verdade do mundo, mas a nossa própria verdade. Quantos de nós não usam máscaras para se adequarem ao mundo que nos é apresentado, escondendo nosso amor, nossa criatividade, nossa vontade de dançar, para sermos considerados homens normais?
A verdade está mascarada porque as pessoas não se preocupam em retirar sua máscara, não porque tenham medo da verdade... Alguns até têm medo, mas acredito que a grande maioria esteja mesmo é acomodada. Sabe porque? Porque a grande maioria tem muita esperança! Esperança de que essa máscara caia sozinha, sem que eles tenham que se arriscar a desvendar a si mesmas, e ao mundo...
Quando andamos pelas ruas movimentadas das cidades grandes, queremos conversar com as pessoas, mesmo que não sejam tão bonitas; sempre encontramos alguém que nos chame a atenção, num bar, na praia ou no ônibus... Pensamos diversas coisas, como seria aquela pessoa? Será que não poderíamos ser bons amigos? Ao menos viajar juntos ou conversar por algumas horas...
Porque as cidades são mesmo um caos, mas somente porque nos sentimos sozinhos mesmo em meio a uma multidão. Nas escolas não aprendemos a nos comunicar, não nos foi ensinada uma boa maneira de conversar, trocar idéias e comentários. O que importa é defender nossa opinião, 99% do tempo fazemos isso... Se gostamos de um filme é bom que as pessoas também gostem, para termos certeza de que o filme é realmente bom. Se as pessoas não gostam, talvez o filme não seja tudo aquilo que imaginamos, afinal...
E, portanto, ficou entendido que não devemos nos comunicar com qualquer um, principalmente pelas ruas e caminhos da vida. Vai que a pessoa não concorda com nossa opinião?

-Você está dizendo que as pessoas não se comunicam porque têm medo de que discordem de sua opinião?

-Não exatamente, elas não têm medo de que discordem de sua opinião, elas têm medo do novo! Têm medo de que sua definição da vida seja falsa, e que alguém na rua lhes convença disso. Elas não têm medo dos que discordam de sua opinião, pois aí vão continuar se divertindo, defendendo sua própria opinião, muitas vezes sem nem ouvir ou dar crédito a opinião alheia... Elas dão valor às opiniões mais populares, mais bem aceitas na sociedade, nas regras do que é correto, e se mascaram atrás delas. Se as pessoas divergem de sua opinião, ela pode então discutir, brigar, guerrear com elas, até que sua opinião impere sobre as outras.
Mas elas não têm problema nenhum com isso, pois em verdade estão duelando protegidas por suas máscaras maravilhosas, que as mantém longe do desconhecido, do que é novo. Na realidade as pessoas têm mais problemas em se comunicar com aquele que aceita qualquer opinião, elas não entendem esse alguém, pois ele está olhando, e falando, com a pessoa verdadeira, aquela por detrás da máscara... E isso tudo é muito novo para elas, muito provocativo e original, e elas não querem entender isso, pois acham que já entendem de tudo.

-Então as pessoas têm mesmo é a esperança de que essas tais máscaras maravilhosas as protejam para sempre do novo, e, portanto, jamais terem de encarar desmascaradas ao desconhecido?

-Me parece que é isso... Elas não querem encarar a verdade. Talvez não seja nem culpa delas, mas de tantas outras que viveram antes de nós, e criaram tais regras brutais. Mas enfim, as pessoas parecem ter mesmo muita esperança, pois acham que vão conseguir enxergar ao mundo inteiro com sua visão tão curta, e ainda por cima encoberta por uma máscara!

-Interessante, interessante... (pensa por algum tempo) Mas agora eu tenho uma última pergunta: Se a esperança não serve de nada a essas pessoas, o que será do futuro?

-Não! Desculpe se não soube me explicar... (preocupado) Na verdade estava mais preocupado em não parecer irônico... Eu não quis dizer que a esperança não serve de nada, apenas que somos nós mesmos quem construímos a esperança.
Eu explico: A humanidade se tornou uma especialista em padronizar as coisas. Ela diz que esperança é ter fé em algo melhor, numa vida melhor. Daí ela inventa a palavra “esperança” e publica em seus dicionários monstruosos que esperança é isso que foi dito acima. Mas se esquece de que tem de ensinar as crianças sobre tais verdades, pois senão corre o risco de que elas interpretem tais definições de dicionário ao pé da letra, e então padronizem a coisa toda...
Por acaso as pessoas sabem o que é ter fé? Então como vão saber o que é ter esperança? Ora, a gente não nasce com fé, ou pelo menos se nascemos com ela, não vamos conseguir mais fé num shopping center ou comprando com cartão de crédito. Nós construímos essa fé, e consequentemente a nossa esperança, ao nos dedicarmos a achar a verdade pelo mundo... Porque a verdade foi massacrada por tanta ignorância através dos tempos, e sua única saída foi se esconder também, pois essa foi à única maneira de não ser totalmente arruinada pelos preconceitos e inquisições patrocinados pelos homens mascarados, distantes de si mesmos...
Mas a verdade não foi embora, e, portanto, ainda existem caminhos a serem seguidos, e decerto ainda existe esperança. Mas veja bem: Só se conquista a esperança ao desbravar o desconhecido, ao ter a coragem de seguir tais caminhos por onde tão poucos passaram, mais por onde todos um dia inevitavelmente terão de passar. A cada passo sua esperança irá aumentar, a cada recuo, ela irá se abalar, mas em realidade você nunca terá esperança! A esperança não é uma moeda que se perde ou ganha, ela é uma força poderosa destinada a nos levar daqui para mundos muito melhores. Você não ganha esperança, mas pode correr para ela, sem medo, sem máscaras, e abraça-la de coração!
Irá abraçar a si mesmo, e depois a todos aqueles que passam angustiados pelas ruas, e mostrar para eles que o homem pode sim jogar a máscara fora, e então se preparar para aceitar toda a verdade, todo o amor, e toda a felicidade decorrentes de tal ato.

***

Por algum motivo, na época eu não prossegui com esta entrevista... Talvez, quem sabe, por ter se tornado pessoal demais – afinal, seria hipócrita se dissesse a vocês que eu mesmo não carrego mais máscara alguma. Mas o que me interessa em retornar até 1999, revisitando esse texto, é tentar reconhecer quem eu era, e não sou mais...

Este é um belo exercício, que recomendo a todos. As máscaras são trocadas, e nem sequer percebemos, até que temos uma fantasia totalmente nova posta diante do espelho. Somente o folião por detrás da fantasia, o dançarino, o poeta, o espírito, é quem permanece – este grande ser oculto, para o qual tenho dedicado todas as minhas cascas de sentimento.

raph

***

Crédito da imagem: WIN-Images/Corbis

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30.7.12

O cristianismo na balança

Texto de Geoffrey Blainey em "Uma breve história do cristianismo” (Ed. Fundamento) – trechos das pgs. 328 a 332. Tradução de Capelo Traduções. As notas ao final são minhas.

No curso de 20 séculos, [o cristianismo] já entrou em declínio e se recuperou várias vezes. No ano 300, ele estava mais fraco na Europa e na Ásia Menor do que hoje. Em 1600, estava mais fraco no mundo como um todo. [...] O cristianismo se reinventou repetidas vezes. Todo renascimento religioso é o reflexo de um estado de declínio anterior [1]. Mas nenhum renascimento – e talvez nenhum declínio – é permanente.

Mesmo quando o cristianismo atravessava uma boa fase, muita gente permanecia indiferente ou pouco interessada, e sua influência em muitos setores da sociedade era fraca ou irregular. [...] Em essência, o mundo ocidental não deve ser comparado com muito rigor à supostamente mais cristã civilização que o precedeu. O cristianismo, mesmo no apogeu, para muita gente foi, em parte, só aparência [2].

No mundo ocidental, ao iniciar-se o século 21, a doutrina cristã frequentemente parece um tanto irrelevante. Pela primeira vez na história, várias doenças que tornavam a religião útil ou indispensável são tratáveis ou foram erradicadas. As enfermidades incuráveis, a morte de jovens, a fome e a pobreza extremas não são vistas tão frequentemente. Houve um tempo em que as pessoas morriam aos 50 anos, muito envelhecidas. Hoje, máquinas de várias espécies reduziram a necessidade do trabalho pesado que antes sustentava a economia. Por tudo isso, há menos incentivo para que se recorra à Bíblia nos momentos de dor ou desespero – embora o sucesso material traga novas preocupações [3].

[...] Há 300 anos, as pessoas se satisfaziam com explicações baseadas no sobrenatural; hoje, elas se deixam convencer mais facilmente por explicações que apelem – ou pareçam apelar – à ciência, à lógica e à razão. Ciência e tecnologia carregam uma mensagem simples e persuasiva: os problemas do mundo são solucionáveis com o emprego de engenhosidade e inovações materiais; os enigmas do mundo – as origens do universo, por exemplo – podem ser desvendados pela mente científica. No entanto, embora as realizações da ciência tenham sido notáveis, não se pode considerá-las revolucionárias no estudo da natureza humana. De certo modo, os problemas mensuráveis estudados pela ciência e pela tecnologia são mais facilmente analisados do que os problemas humanos. É mais fácil explorar a lua do que explorar o coração e a mente do ser humano [4].

O conhecimento ocupa um dos primeiros lugares na hierarquia das virtudes mentais. A palavra “sabedoria” é pouco empregada em um século que valoriza mais do que nunca o conhecimento. [...] Sabedoria se refere, em primeiro lugar, aos seres humanos e suas dificuldades. O indivíduo tem o direito de dizer que não acredita em Deus. Mas calar-se e fugir à discussão sobre a natureza humana que cerca todo o conceito de “Deus” é não perceber por que o cristianismo faz tanta gente pensar há tanto tempo [5].

[...] Não é fácil avaliar uma religião tão antiga e disseminada, cujos seguidores discordam entre si. O cristianismo moldou – e às vezes desmanchou – muita coisa no mundo moderno. Não somente a moral e a ética receberam influência, mas também o calendário, os feriados, a assistência social, os eventos esportivos, arquitetura, idioma e literatura, além das denominações do mapa-múndi. Talvez nenhuma outra instituição – a não ser os governos modernos – tenha cuidado tão diligentemente dos enfermos, dos pobres, dos órfãos e dos velhos. Por muito tempo a Igreja representou a predecessora da assistência oficial, além de assumir o papel na educação de boa parte da Europa e de fundar a maioria das primeiras universidades. O cristianismo influenciou o papel social da mulher, o status da família e – dizem alguns historiadores – a ascensão do socialismo e do capitalismo [6]. Além disso, tanto favoreceu como prejudicou o avanço da Ciência e das Ciências Sociais.

A moderna democracia, muito diferente da versão praticada na antiga Atenas, muito deve à declaração feita por Paulo, garantindo que todas as almas têm o mesmo valor aos olhos de Deus [7]. A democracia também deve muito àquela ala do protestantismo que, desobedecendo ao papa e ao bispo, conferiu poder à congregação reunida aos domingos.

Desde seu surgimento, o cristianismo participou de muitos eventos lamentáveis e cometeu muito mais erros do que os primeiros apóstolos poderiam imaginar. Boa parte desses erros foi praticada por quem falava em nome de Cristo, mas sem sinceridade. Trata-se de uma difícil e angustiante profissão de fé. Entre os bilhões de indivíduos, hoje mortos, que entenderam e tentaram seguir os preceitos de Cristo, a maioria provavelmente teria admitido falhas em algumas fases da vida – ou em todas.

[...] O cristianismo provavelmente foi a instituição mais importante do mundo nesses 2 mil anos. Muito do que nos parece admirável hoje resulta inteiramente ou em parte do cristianismo e de seus seguidores. Por outro lado, pode ser que, no ano 2200, estudiosos e analistas que tenham outros valores cheguem a uma conclusão diferente. A análise de importantes mudanças ocorridas no passado, para saber se foram benéficas ou não, raramente leva a um veredito unânime.

É notável que um homem que viveu há 2 mil anos, não ocupou cargo público nem era rico, e nunca visitou um lugar que ficasse a mais de dois dias a pé de distância do local onde nasceu, possa ter exercido tanta influência, com seus ensinamentos, profecias, conselhos e parábolas. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, ele declarou. “Pois onde dois ou três se reunirem em meu nome, lá estarei”.

***

[1] Se por um lado os conservadores, tradicionalistas e ortodoxos sempre lutaram para manter a doutrina cristã inalterada, foi precisamente graças aos heterodoxos, os reformadores, os questionadores, que o cristianismo conseguiu manter-se vivo, renovando-se sempre, ainda que lentamente. Mas talvez a era moderna exija uma rapidez de mudança que está além de suas capacidades. Claro que a tradição e o dogma foram também importantes para a doutrina cristã, mas amparada somente na estagnação das tradições antigas, qualquer doutrina estará com os dias contados.

[2] Mesmo nos dias atuais, quando ninguém mais é “obrigado” pela tradição a ser um cristão praticante, talvez a grande maioria apenas se intitule cristã para se conformar aos “padrões sociais”... Ou você acha que ir na missa alguns domingos do ano para ouvir e recitar orações decoradas, sentar e levantar quando solicitado, é “ser cristão”?

[3] Infelizmente este tipo de “barganha” sempre foi muito comum nos ditos religiosos, e não é diferente com os cristãos: “Eu sofro e por isso venho até Teu altar pedir benção”... Quão melhor seria o mundo se parte desses cristãos pudessem aprender com o Oriente, e reconhecer a Benção Divina como algo permanente, inclusive quando não passam por nenhum tipo de dificuldade – e oram somente para agradecer.

[4] É óbvio que a racionalidade e os avanços científicos nos ajudaram em muito a solucionar nossos problemas materiais, mas quanto mais tempo livre o homem moderno tem para desfrutar a vida, mais lhe falta a profundidade espiritual, a sabedoria, para lidar com a própria alma que (embora muitos cientistas gostariam que fosse) não é uma máquina cujo ânimo pode ser inteiramente regulado a base de comprimidos. No fundo, sabemos que a ciência não está aqui para substituir a espiritualidade, mas pode ser uma grande aliada.

[5] Há muitos anti-teístas que creem que todo o cristianismo é apenas uma “fantasia consoladora para seres infantis”, e que Deus é “somente um mito”. Mas se esquecem (ou, mais provavelmente, ignoram) que toda nossa cultura nasceu da mitologia, e que, como bem disse Schiller, “em deus algum faltava à humanidade inteira”.

[6] Devemos lembrar que nem todos os cristãos foram conservadores, e há muitos grandes reformadores cristãos que estabeleceram revoluções em nossa filosofia e espiritualidade. Há mesmo muitos grandes cientistas que foram cristãos.

[7] Infelizmente, no entanto, por muitos séculos tanto escravos quanto mulheres não eram reconhecidos como “tendo alma”.

***

Crédito da imagem: RF Pictures/Corbis

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26.7.12

Intervista, parte 2

Esta é uma "entrevista de mim mesmo" que escrevi em 1999 e agora trago para este blog. Continuando da parte 1:


Você ama?

-Claro que amo. Agradeço todos os dias por isso.

-(sorri) Eu adoraria pular para a próxima pergunta e poupar tempo, mas ainda preciso saber... O que você ama?

-Ora, se eu amo, amo o tudo. Amo tudo o que existe...

-Era o que eu temia...

-Tudo bem, eu também não estou habituado a encarar o amor dessa forma. Talvez por ser assustador, infinito. Mas se eu sinto que amo, e isso só mesmo eu posso dizer, posso apenas amar ao tudo, já que essa é a finalidade do amor.

-Então você não odeia ninguém, ou nada? Nem os políticos corruptos ou torturadores da guerra?

-Uma coisa não leva a outra... Mas eu posso dizer que não tenho nada contra eles, e até me dedico a gostar deles. Mas gostar de sua essência, que é a mesma presente em cada um de nós. Não posso amar o que eles fazem, naturalmente, pois seria extremamente contraditório.
Amar ao todo significa amar a essência que é o universo, cada um de nós. É amar a energia que molda e move a existência a cada segundo de nossas vidas. No que cada um de nós usa tal energia vai de acordo com nossa liberdade, mas não importa o que façamos, seremos sempre seres maravilhosos e dignos de amor... Uns estão sujos de tanta ignorância e brutalidade, mas outros são leves e cintilantes, da mais pura beleza.

-Tudo bem, o seu amor é uma espécie de amor religioso... Mas você não acha que precisamos de mais do que isso para compreender e aceitar as pessoas?

-(ri) É fácil para você enquadrar as coisas e classifica-las, afinal esse é o seu trabalho, não o culpo. Acontece que meu amor não é apenas religioso, pois eu não gosto só de um velhinho que mora no alto do céu e dita a existência... Esse arquétipo não existe, o que existe é a ignorância das pessoas para com essa energia que criou o tudo, e constantemente se mostra presente em nossas vidas, a cada segundo, como já disse.
O que eu amo é aquilo que criou e moldou nosso mundo, que rege as leis da natureza, que mantém nossos átomos unidos e não nos deixa simplesmente dispersar numa nuvem caótica de partículas... É o algo mais que estava aqui antes mesmo do aqui existir. É a inteligência máxima, que não quis que fôssemos robôs e nos deu o direito de escolher nosso próprio rumo. Que nos deu o direito de observar o mundo, amar, aprender e evoluir por nossos próprios passos... E, além disso tudo, é também a folha que cai anunciando o outono, a criança que brinca e nos faz recordar e sorrir, o criminoso que se regenera e nos faz ter esperança de dias melhores, ou mesmo o sábio, que no fim da vida ainda encontra forças e determinação para ensinar, e aliviar nosso medo do penoso fim. Isso tudo, mais ou menos, é o que eu amo.

-Bonito, bonito... Mas você disse a pouco que odiar não era uma consequência de não amar...

-Sim, claro... Odiar não é exatamente o oposto de amar, acho eu. Quero dizer, você pode odiar as ações de certo alguém, mas não o alguém em si, já que todos somos livres para errar e aprender, corrigindo a nós mesmos. Não poderemos cometer todos os erros possíveis, muito menos alcançar todos os acertos, por isso mesmo é tão vital que amemos não só as pessoas, mas nossa própria história, para que aprendamos com nossos acertos e erros, visando não repetir os últimos, e evoluir com os primeiros...

-(confuso) Hmm... O que seria o oposto de amar então?

-Veja bem, amando ao tudo, estaremos transportando energia, conhecimento, e muitas outras coisas que não podemos explicar ao certo ainda, para nossa memória, ou nosso ser. Quando você olha para uma árvore sob a luz da manhã, poderá se encantar com aquele cilindro de madeira que sustenta pequenas gotas de verde que se agitam para lá e para cá quando as brisas passam... Retornando a mesma árvore à noite, você perceberá que o brilho verde deu lugar a uma penumbra semiprateada, refletindo a lua, e que o tronco está tão escuro que mais parece um arauto negro de aspecto retorcido... Você pode preferir a árvore da manhã, ou a da noite, mas de qualquer jeito a árvore continuará sendo somente uma árvore. Você só poderá saber qual das duas prefere se observar com carinho e atenção, se gostar do que vê, se lhe interessar o que aprendeu da natureza visível da árvore. E quando você tiver observado o suficiente para entender isso tudo, e amar o que viu, ainda lhe restarão uma infinidade de outras coisas para aprender, pois que viu somente uma das faces da árvore...
Imagine quanta coisa não poderá descobrir mais de uma árvore? Quantos segredos não lhe reservam essa empreitada? Isso é amar uma árvore, amar todas as árvores, e consequentemente transporta-las para o seu próprio ser, para que quando você estiver numa cidade de puro concreto, ou sob o sol punitivo de um deserto, você possa recordar do ar puro e da sombra fresca, características das árvores... Se fizer direito, poderá se sentir realmente feliz na cidade ou no deserto, tal que saberá que existem coisas tão belas, coisas que ama, dentro de si próprio.
Melhor ainda seria amar a areia e a imensidão do deserto, ou os arabescos e muros cinzentos da cidade, já que daí se encontraria maravilhado em qualquer lugar. Agora, odiar a areia ou os muros não lhe fará deixar de lembrar das árvores... Portanto você pode ainda não entender que o tudo é produto da mesma energia e inteligência, e pode mesmo acreditar que ama uma parte e odeia outras, quando na verdade se ilude totalmente.
O oposto do tudo é o nada absoluto, o grande e abominável nada. O oposto do amor talvez seja melhor definido na indiferença ou mesmo na ignorância do mundo a volta, posto que quando não nos interessamos por nada, não nos sensibilizamos com as árvores nem gostamos de cidades ou desertos, somos poços de imenso vazio, angustiados e profundamente solitários, sem nada nem ninguém dentro de nós mesmos a nos confortar, a nos auxiliar em nossa evolução e aprendizado, que necessariamente irá nos colocar a prova no decurso de nossas vidas. Não amar é estar morto em vida, mas talvez mesmo no poço mais negro, mais profundo, ainda exista um pouco dessa energia que faz o mundo girar, e a civilização crescer.

» A entrevista concluí em breve...

***

Crédito da imagem: Anônimo

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25.7.12

A consciência animal

Reportagem original da VEJA, por Marco Túlio Pires. Os comentários ao final são meus.


O neurocientista canadense Philip Low ganhou destaque no noticiário científico depois de apresentar um projeto em parceria com o físico Stephen Hawking, de 70 anos. Low quer ajudar Hawking, que está completamente paralisado há 40 anos por causa de uma doença degenerativa, a se comunicar com a mente. Os resultados da pesquisa foram revelados numa conferência em Cambridge (7/7/12). Contudo, o principal objetivo do encontro era outro. Nele, neurocientistas de todo o mundo assinaram um manifesto afirmando que todos os mamíferos, aves e outras criaturas, incluindo polvos, têm consciência. Stephen Hawking estava presente no jantar de assinatura do manifesto como convidado de honra.

Low é pesquisador da Universidade Stanford e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), ambos nos Estados Unidos. Ele e mais 25 pesquisadores entendem que as estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos também existem nos animais. "As áreas do cérebro que nos distinguem de outros animais não são as que produzem a consciência", diz Low, que concedeu a seguinte entrevista ao site de VEJA:

Estudos sobre o comportamento animal já afirmam que vários animais possuem certo grau de consciência. O que a neurociência diz a respeito? Descobrimos que as estruturas que nos distinguem de outros animais, como o córtex cerebral, não são responsáveis pela manifestação da consciência. Resumidamente, se o restante do cérebro é responsável pela consciência e essas estruturas são semelhantes entre seres humanos e outros animais, como mamíferos e pássaros, concluímos que esses animais também possuem consciência.

Quais animais têm consciência? Sabemos que todos os mamíferos, todos os pássaros e muitas outras criaturas, como o polvo, possuem as estruturas nervosas que produzem a consciência. Isso quer dizer que esses animais sofrem. É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabíamos.

É possível medir a similaridade entre a consciência de mamíferos e pássaros e a dos seres humanos? Isso foi deixado em aberto pelo manifesto. Não temos uma métrica, dada a natureza da nossa abordagem. Sabemos que há tipos diferentes de consciência. Podemos dizer, contudo, que a habilidade de sentir dor e prazer em mamíferos e seres humanos é muito semelhante.

Que tipo de comportamento animal dá suporte à ideia de que eles têm consciência? Quando um cachorro está com medo, sentindo dor, ou feliz em ver seu dono, são ativadas em seu cérebro estruturas semelhantes às que são ativadas em humanos quando demonstramos medo, dor e prazer. Um comportamento muito importante é o autorreconhecimento no espelho. Dentre os animais que conseguem fazer isso, além dos seres humanos, estão os golfinhos, chimpanzés, bonobos, cães e uma espécie de pássaro chamada pica-pica.

Quais benefícios poderiam surgir a partir do entendimento da consciência em animais? Há um pouco de ironia nisso. Gastamos muito dinheiro tentando encontrar vida inteligente fora do planeta enquanto estamos cercados de inteligência consciente aqui no planeta. Se considerarmos que um polvo — que tem 500 milhões de neurônios (os humanos tem 100 bilhões) — consegue produzir consciência, estamos muito mais próximos de produzir uma consciência sintética do que pensávamos. É muito mais fácil produzir um modelo com 500 milhões de neurônios do que 100 bilhões. Ou seja, fazer esses modelos sintéticos poderá ser mais fácil agora.

Qual é a ambição do manifesto? Os neurocientistas se tornaram militantes do movimento sobre o direito dos animais? É uma questão delicada. Nosso papel como cientistas não é dizer o que a sociedade deve fazer, mas tornar público o que enxergamos. A sociedade agora terá uma discussão sobre o que está acontecendo e poderá decidir formular novas leis, realizar mais pesquisas para entender a consciência dos animais ou protegê-los de alguma forma. Nosso papel é reportar os dados.

As conclusões do manifesto tiveram algum impacto sobre o seu comportamento? Acho que vou virar vegetariano. É impossível não se sensibilizar com essa nova percepção sobre os animais, em especial sobre sua experiência do sofrimento. Será difícil, adoro queijo.

O que pode mudar com o impacto dessa descoberta? Os dados são perturbadores, mas muito importantes. No longo prazo, penso que a sociedade dependerá menos dos animais. Será melhor para todos. Deixe-me dar um exemplo. O mundo gasta 20 bilhões de dólares por ano matando 100 milhões de vertebrados em pesquisas médicas. A probabilidade de um remédio advindo desses estudos ser testado em humanos (apenas teste, pode ser que nem funcione) é de 6%. É uma péssima contabilidade. Um primeiro passo é desenvolver abordagens não invasivas. Não acho ser necessário tirar vidas para estudar a vida. Penso que precisamos apelar para nossa própria engenhosidade e desenvolver melhores tecnologias para respeitar a vida dos animais. Temos que colocar a tecnologia em uma posição em que ela serve nossos ideais, em vez de competir com eles.

***

Comentários
Para qualquer amante dos animais, parece difícil crer que as pessoas realmente acreditavam que eles eram como "coisas", incapazes, na teoria, de sentir dor, amor por seus donos, medo ante ameaças, etc. No entanto, num mundo onde a ciência é o novo "arauto da verdade", após o manifesto do qual Philip Low participou, realmente nenhum governo poderá dizer que não sabia da consciência animal (o máximo que poderá dizer é que "era ignorante"). Antigamente a Igreja dizia que animais não tinham alma, talvez agora eles estejam finalmente sendo elevados a categoria de "seres com alma", algo que sempre foi óbvio a qualquer espiritualista.
É claro que a consciência animal obedece uma "gradação", e que é muito mais evoluída num cão do que num peixe, por exemplo; Mas qualquer animal que possua "algum arremedo de cérebro" deve necessariamente possuir também "algum arremedo de consciência". E agora que sabemos disto ("oficialmente"), teremos responsabilidades ainda maiores, e decisões morais cada vez mais urgentes.


Tempos virão, para a humanidade terrestre, em que o estábulo, como o lar, será também sagrado. (Chico Xavier, Missionários da Luz)

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Crédito da imagem: Stuart Westmorland/Corbis

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23.7.12

A Reforma bem explicada

Texto de Geoffrey Blainey em "Uma breve história do cristianismo” (Ed. Fundamento) – trechos das pgs. 217 a 222. Tradução de Capelo Traduções. As notas ao final são minhas.

Como resumir um século e meio de turbulência religiosa que marcou a ascensão do protestantismo? Como tirar conclusões das incontáveis lutas, armadas ou não, da impressão de uma avalanche de textos inflamados, da morte de alguns rebeldes na fogueira ou da santificação de outros, e da reviravolta provocada na vida religiosa de milhões de pessoas, muitas das quais silenciosamente reprovavam as mudanças que eram obrigadas a aceitar? [1]

A distância entre a nossa era e aquela, entre as atitudes de então e de agora diante da morte, é enorme. A morte despertava forte interesse, pois frequentemente interrompia a juventude e chegava de repente, com sofrimento. Assim, as pessoas pareciam mentalmente mais preparadas para ela. Tal como custamos a entender aquele interesse pela morte e pela religião, os antigos provavelmente se espantariam com a nossa fascinação por dinheiro, por bens materiais e por viagens ao exterior com objetivos que não a peregrinação.

[...] A Reforma lançou algumas sementes da democracia moderna, embora sem saber como e quando iriam germinar. Enquanto a tradição católica se baseava na hierarquia – na autoridade dos papas, cardeais e bispos – os protestantes enfatizavam a leitura da Bíblia e o relacionamento do indivíduo com Deus. Os protestantes batizados podiam ser os sacerdotes de si mesmos; não precisavam de padres ou bispos como intermediários em seu contato com Deus [2].

Lutero se referia a isso como “o sacerdócio de todos os crentes”, e seu espírito democrático permeou as seitas protestantes que surgiram depois. Com a Bíblia em linguagem acessível, o protestantismo favorecia o debate e a discussão, que representam o cerne da democracia. Acima de tudo, calvinistas, luteranos, batistas, unitaristas, presbiterianos e outras congregações independentes administravam as próprias igrejas e selecionavam os sacerdotes.

[...] A abordagem democrática teria efeitos surpreendentes, em especial nos Estados Unidos. A Reforma desestimulava o uso do latim, na época o idioma internacional. Assim, proporcionou uma era gloriosa ao inglês, ao alemão e a outros idiomas nacionais. Nesse sentido, houve uma promoção mútua, entre nacionalismo e protestantismo. As mudanças religiosas promoveram também a educação. Lutero, Zuínglio e Calvino – saídos de três universidades diferentes – acreditavam que todos devem saber ler, e que a Bíblia é leitura obrigatória. “Estou profundamente comovido”, Lutero escreveu em 1530, ao saber que tantos alemães liam a Bíblia.

Os católicos reagiram, e começaram a promover com mais vigor a educação. No decorrer dos três séculos seguintes, porém, talvez nenhum país católico tenha alcançado o nível de alfabetização dos países protestantes. O surgimento da democracia popular, na segunda metade do século 19, dependia da disseminação do conhecimento [3].

[...] Os cerca de 125 anos seguintes ao surgimento da Reforma foram um período de graves conflitos em boa parte da Europa. “Guerras religiosas” é um rótulo bastante comum para o que aconteceu então. Na verdade, o sentimento religioso intensificou muitas batalhas, além de desestimular a ideia de qualquer acordo durante as negociações de paz, mas seria injusto apontar a Reforma como fator decisivo para as guerras. O período de violência começou com disputas entre monarcas católicos, não motivadas pela religião; eles estavam preocupados demais com as próprias guerras, para dedicar muita energia à anulação do movimento protestante [4].

O longo período de guerras intermitentes foi afetado também pelo surgimento de novas armas. O canhão e o mosquete tornaram as guerras ainda mais mortais e os monarcas, mais poderosos. Eles, e não os reformadores religiosos, planejavam, financiavam e orientavam a maior parte das guerras. Os estudiosos que hoje se dedicam ao assunto não consideram a hostilidade religiosa como a causa principal das guerras na Europa; segundo eles, a religião pode ter sido “um disfarce para outros motivos”. A ser mantido o rótulo “guerras religiosas”, seria apropriado chamar a Segunda Guerra Mundial, com sua base ateísta e o enorme número de vítimas, de “guerra da descrença”. A rotulagem simplista de grandes eventos mais complica do que explica.

Religião não era uma questão de escolha, mas de obrigação. [...] Em parte, os governantes [de países protestantes] exigiam unidade social e religiosa por acreditarem que o território ficaria mais seguro. Era crença geral um reino ou uma república tornarem-se alvos fáceis, se não tivessem coesão religiosa.

Um aspecto que nos intriga atualmente é o fato de a tolerância não figurar, naquela época, como objetivo no universo de cristãos, hindus, budistas, chineses, astecas ou incas. A ampla tolerância religiosa é quase uma invenção dos tempos modernos [5] – praticamente impensável, séculos atrás. O importante era sustentar a visão religiosa apropriada, e não a liberdade de rejeitá-la. O direito de desobedecer ao governo e à Igreja, o direito de ser livre em matéria de consciência, são preceitos que surgiram muito lentamente, depois das fortes tensões provocadas pela Reforma [6].

A mais ousada tentativa de liberdade religiosa foi feita na Holanda, [...] que era o país mais próspero da Europa, abrigando um notável cadeia de postos comerciais que se estendia de Nova York – então chamada Nova Amsterdã – a portos distantes, como Jacarta e Malaca, no sudeste da Ásia. [...] Em Amsterdã, então a cidade com o maior número de habitantes judeus da Europa ocidental – muitos expulsos de Portugal – as sinagogas se multiplicaram.

Por algum tempo, Maryland e Rhode Island talvez tenham sido os locais mais tolerantes de todas as regiões onde se falava inglês. Em 1634, os primeiros colonizadores britânicos aportaram em Maryland, e 15 anos depois uma lei local concedia liberdade religiosa a todas as denominações cristãs, embora os judeus não estivessem formalmente incluídos [7]. [...] Com ou sem intenção, os provocadores da Reforma lançaram a pedra fundamental da tolerância religiosa.

***

[1] Um dos motivos do sucesso de Blainey em sua série de livros sobre história (vários deles, best-sellers mundo afora), em minha opinião, é a sua humildade em expor a história de um ponto de vista de quem, como nós, já não vive mais nas épocas citadas – e não pretender expor a história “como foi”, mas sim “como a interpretamos atualmente”. O outro motivo é que ele simplesmente escreve muito bem.

[2] Quanta distância entre os protestantes originais e os de hoje em dia!

[3] A despeito do que são e do que foram os protestantes, dificilmente os seus críticos se lembram, atualmente, que a nossa educação secular deve, e muito, ao fogo iniciado por Lutero.

[4] Grosso modo, toda e qualquer guerra entre nações jamais foi iniciada propriamente por um “conflito religioso ou doutrinário”, e sim pela pura e simples disputa por riquezas e territórios. Mas muitos “historiadores” não gostariam que você pensasse dessa forma, e para eles (ao contrário de Blainey), o termo “guerra religiosa” pode fazer todo o sentido do mundo.

[5] Eu diria: uma conquista da evolução da consciência humana.

[6] E, mais uma vez, qual o ateu atual que lembra de que foi Lutero quem iniciou esta divina chama de liberdade?

[7] O próprio sonho americano partia desse pressuposto de liberdade. Nalgum dia distante, os Estados Unidos já foram vistos como a terra da tolerância e da liberdade de pensamento, e foi exatamente por isso que atraíram tantas grandes mentes, que colaboraram (e muito) para a construção da potência econômica que o país veio a se tornar no final do século XX.

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Crédito da imagem: F.W. Wehle/Corbis ("Lutero em seu estudo")

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18.7.12

O zelote

Na primeira vez que o olhou nos olhos, quando passava pelas aldeias de Ezron, Yehudhah sentiu como se estivesse na presença de um verdadeiro rei. Seu olhar exalava tanta confiança, tanta força e determinação, que teve a certeza de que aquele seria o homem quem uniria os judeus e os libertaria do jugo de Roma... Mas, quando Yeshua falou, tudo que saia de sua boca eram ensinamentos de amor, paz e sabedoria. "Isto será muito bom" - pensou, na época - "mas somente após termos conquistado nosso território de volta".

Não obstante, seu mestre parecia ver nele alguma espécie de sábio, e não um guerreiro. Apesar de ser conhecido por toda Judeia como um artista dos punhais, um exímio assassino de romanos, para Yeshua ele era um amigo próximo, um confidente, um dos poucos há quem ele levava para caminhar a sós pelo deserto, enquanto refletia sobre o que fazer a seguir... Yeshua iria libertar a Judeia, disso ele não tinha dúvidas, mas por vezes se perguntava se levariam décadas para reunir um bom exército, e não apenas alguns poucos anos, como ele ansiava.

Naquele final de tarde, afastados dos outros seguidores, observando os desertos ao longe, ele caminhava junto com seu mestre, que cantarolava em alguma língua ao mesmo tempo estranha e familiar, da qual ele conseguia compreender somente um trecho, algo como: "Vá, vá para o deserto, o vento esconderá a trilha, a noite está para chegar, vá agora, meu irmão, vá para o deserto"... Ele não compreendia, não suportava mais esperar, tomou coragem e o interrompeu no meio do canto:

Yehudhah - Me desculpe mestre, mas eu tenho uma pergunta.

Mestre - Diga, meu amigo.

Yehudhah - Quando me juntei a você, você me disse que estava juntando um exército para libertarmos a Judeia. E eu confiei em você, pois sei quando alguém mente para mim se posso ver seus olhos, e você não mentiu, você nunca mente para mim... Mas eu não entendo, que espécie de exército estamos formando? Até agora temos apenas alguns poucos que sabem manejar um punhal adequadamente, e todos os outros são fracos, e alguns até doentes. Poderiam até se tornar soldados, quem sabe, mas o treinamento deveria ter começado já. Você quer que eu os treine todos os dias ao nascer do sol? É a melhor hora, quando aprendem mais.

Mestre - Meu amigo, eu não preciso de soldados...

Yehudhah - Mas, como assim? E como diabos iremos nos libertar?

Mestre - Yehudhah, e acaso algum soldado poderá nos fazer livres?

Yehudhah - Você me disse que seria o zelote que nos libertaria! Você me prometeu...

Mestre - Meu amigo, eu falei a verdade: eu serei um zelote da alma.

Yehudhah - Da alma? Mas como cuidaremos de nossa alma se Roma nos domina? Primeiro precisamos expulsar os romanos, depois cuidamos da alma!

Mestre - Yehudhah, acaso o deserto não lhe ensinou há essa altura? Acaso o sangue dos inocentes que degolou não lhe fez enxergar? Primeiro a alma, meu amigo, primeiro a alma... Mesmo que reuníssemos o maior exército da Judeia, e ainda que degolássemos cada soldado romano, no fim teríamos apenas substituído César por algum outro imperador opressor, e nada terá realmente sido modificado no mundo.

Yehudhah - Mas você será o imperador da Judeia, o rei dos Judeus! E você não irá oprimir, e sim ensinar tudo isso que nos tem ensinado; E então não serão alguns poucos pobres coitados a lhe ouvir, mas todos os rabinos e sacerdotes, todos os grandes mercadores e generais, todos irão reconhecer sua majestade, como eu reconheci.

Mestre - Você me reconheceu pois, como você mesmo disse: sabe olhar fundo nos olhos da alma. Você sabe que eu falo a verdade, pois então confie em mim, meu amigo... Não haverá luta nem matança. Eu não estou convidando pescadores e marceneiros para serem transpassados pelas lanças romanas. Para vencer esta guerra, apenas uma morte será necessária, e eu conto com você para isso: você é parte essencial do plano.

Yehudhah - Mas como? E que plano é esse, mestre?

Mestre - Dia virá que nossa mensagem, embora pacífica, chegará aos ouvidos daqueles que não compreendem a paz, e temem a união do povo. Você sabe como eles resolvem isso: mandam seus soldados e suas lanças. Mas será mais simples entregar o líder dos agitadores, o zelote da alma...

Yehudhah - Não! Jamais, eu não deixarei que morra na mão dos romanos!

Mestre - Mas se o corpo morre, tampouco fará alguma diferença. O que importa é a guerra da alma, a modificação do pensamento dos homens. Se o pensamento não muda, o que está a volta continuará igual, enquanto alguns corpos caem mortos, e outros se erguem em seu lugar... Se eu morrer, terá sido apenas meu corpo, Yehudhah, pois minha alma e minha mensagem continuarão no mundo por ainda muito tempo, no pensamento daqueles que compreenderam parte do que vim dizer. Contemple, meu amigo, onde está situado o meu exército...

E Yeshua, colocando-se entre ele e o sol poente, pareceu se transfigurar em inúmeras figuras de luz, a carregar belíssimas espadas pontiagudas, e armaduras reluzentes. Eles não estavam ali, não eram homens como ele, disso tinha toda certeza, mas por um momento lhe pareceu que esteve a vida toda a lutar por um mísero pedaço de terra, por um canto da Judeia, enquanto que existiam tantas outras terras por serem exploradas e conquistadas, ali ao lado, do lado de dentro, no vasto reino da própria alma... Yehudhah então disse: "Eu farei o que me pedir" - porém, ao mesmo tempo, também pensou para consigo mesmo - "Mas jamais lhe condenarei a morte, e cuidarei para que ainda viva deste lado, e ainda cantarole no deserto, por longos anos...".


raph’12

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Este conto é uma continuação direta de "O traçador de círculos", e continua em "O filho da vida".

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Crédito da foto: John and Lisa Merrill/Corbis

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17.7.12

Intervista, parte 1

Esta é uma "entrevista de mim mesmo" que escrevi em 1999 e agora trago para este blog. Achei que seria mais interessante usar o título "Intervista", já que todos que olham para o espelho por algum tempo, acabam por encontrar uma vista de si mesmos:


-Muito bem, aproveitando este tempo que dispomos, vamos iniciar logo essa entrevista. Começarei com uma pergunta bem simples...

Quem é você?

-(arregala os olhos surpreso) Essa é a sua ideia de pergunta simples?

-Qual o problema com ela? Basta responder seu nome, o que faz, onde mora... Coisas assim...

-(sorri) Quer dizer que por saber tais coisas você poderá me dizer quem eu sou?

-Bem... Se quiser pular essa não tem problema. Eu já sei quem você é de qualquer jeito.

-Para você saber quem eu sou, antes teria de saber quem é você mesmo; E, por  consequência, quem são todos os outros.

-Tudo bem, eu não sei sobre os outros, mas seu nome é...

-(interrompe) Não, não é meu nome quem lhe dirá quem eu sou. Não é meu nome nem meu sobrenome, muito menos meu signo, tampouco minha data de nascimento, ou mesmo o lugar onde nasci. Não será minha casa, nem meus pais, nem meus amigos, nem meu gato, nem minha agenda ou plano de saúde. Minha carteira de identidade não lhe dará muitas pistas, e todos esses outros códigos que presumem nos resumir a uma reles sequência de números também não lhe serão de nenhuma utilidade...

-Entendi o que quer dizer, apenas seu interior me dirá quem você é. O coração, a alma, coisas desse tipo não?

-Talvez lhe dêem uma pequena pista. Talvez se você me ouvir por mais alguns anos, prestando atenção em tudo o que falo, faço e penso. No que gosto e no que não gosto, no que acredito e no que amo... Talvez depois de anos você tenha uma pista de quem eu sou de verdade. E então achará uma pista sobre quem é você da mesma forma.

-Depois de anos? Então só quem vive junto pode conhecer um ao outro?

-Claro, mas em realidade todos vivemos juntos, estamos juntos nesse planeta a milhares de anos, estamos muito próximos, o suficiente para podermos observar um ao outro e aprender com isso sobre nós mesmos... Quem somos, o que fazemos, ou ao menos o que deveríamos fazer. O que procuramos? Poderemos achar? E se acharmos, o que vem depois? Até onde, ou até quando, penetraremos no mistério da vida?

-(sorri com leve ironia) Você está começando a me convencer de que não era uma pergunta tão simples afinal...

-As perguntas nunca são simples como achamos que são, apenas as respostas o são; Mas, quando não sabemos as respostas, tendemos a complicar as perguntas também. Como saber o que somos, se não sabemos do que somos feitos exatamente, muito menos de onde viemos, ainda menos quanto tempo temos. Só se pode definir alguma coisa depois de se ter compreensão total sobre ela... Antigamente achávamos que os raios que caiam do céu nos dias chuvosos eram lançados por deuses raivosos, hoje usamos esses mesmos raios para ver TV, ligar lâmpadas, acessar a internet, e tantas outras coisas... Talvez ainda venhamos a utilizar esses raios para outras coisas mais, isso porque nós temos apenas uma pista do que vem a ser um raio, e não podemos prever até onde ele nos levará. Eu só tenho uma pista sobre mim.
Eu sei que eu acordo geralmente de manhã, e só às vezes me lembro do que aconteceu comigo enquanto dormia, e mesmo quando me lembro acho tão estranho que não consigo associar com a minha realidade desperta. Mas eu continuo tentando, sabendo que vou sentir fome algumas vezes ao dia, sabendo que vou desejar alguma coisa, que vou amar e até mesmo odiar, que vou sorrir e infelizmente chorar, que vou, sobretudo, aprender; Mas nunca será o bastante, e quando a lua vier e me obrigar a me distanciar da minha realidade de novo, ainda não farei à mínima ideia do que irá acontecer. Acredito, e estudo, muitas coisas, muitas formas de se pensar esse mundo, essa realidade que nos é apresentada, mas são muitos os caminhos, e nunca sabemos quantos são e para onde exatamente nos levam...
Portanto eu não posso mesmo lhe dizer quem sou, pois eu não sei para onde estou indo, apenas sei que tenho de caminhar, pois essa questão é exatamente o que me impele a seguir sempre em frente, e a tentar o melhor caminho. Eu não sei quem sou, mas daria tudo, aliás, estou dando o máximo de mim para saber. Porque se um dia eu finalmente descobrir, talvez não tenha mais de caminhar, e talvez possa ainda ajudar os outros em seus caminhos... Mas até lá provavelmente ainda falta muito, e o que me preocupa nesse momento não é chegar, mas saber caminhar da melhor maneira. Então quem serei eu? Rei ou mendigo? Santo ou devasso? Amado ou odiado? Como eu posso saber? Que diferença isso faz?

-Sim, concordo com o que diz... Mas você me deixa um tanto confuso quando afirma que se descobrir quem é, saberá quem eu sou, e quem são todos nós...

-Talvez não saiba, talvez saber não venha a ser a questão; Talvez ser seja o verbo mais indicado. Porque saber que estou vivo aqui nesse planeta, que sou um cidadão e devo me dedicar a auxiliar o progresso de meu país, não me diz muita coisa. Na verdade todos pensam da mesma forma, todos estão aqui para isso, e tentam viver suas vidas da melhor forma... Mas então, porque todos não somos iguais? Porque uns roubam e outros doam? Porque uns são chefes e outros subordinados? Porque uns querem ser artistas e outros médicos? Acho que apesar de tudo isso todos continuamos a ser profundamente iguais. Acho que nossa profissão ou sexo, ou cor da pele, ou o que quer que seja, não nos diferenciará nem um pouco. Talvez diferencie uma vírgula, mas todos somos livros extremamente iguais, extremamente bem escritos, o problema todo vem da nossa incompetência para a leitura de nós mesmos.
Nós vemos que alguns livros têm uma vírgula fora do lugar, ou uma frase com o predicado antes do sujeito, e nos convencemos de que somos histórias diferentes. Mas nossas histórias sempre se repetem, com os mesmos inícios e finais, os mesmos temas e elementos, às vezes até os mesmos personagens... No entanto poucos se dão conta disso, então cada um passa a viver isolado em sua própria história, em seu próprio mundo. Nós temos apenas um planeta, e mais ainda, temos apenas uma raça pensante nesse planeta. Somos só nós aqui, os seres humanos, e somos todos personagens do mesmíssimo livro, a mesma história, sempre...
Talvez uns sejam mais cômicos, outros mais poéticos, outros mais voltados para o terror, mas a história é a mesma, e quem a está escrevendo somos nós. Não podemos deixa-la chata e repetitiva, temos de descobrir novos caminhos, novas formas de narrativa, talvez até novos personagens para ela. E será mesmo muito difícil conhecer ela toda, porque quando chegamos aqui ela já estava no meio, então só nos resta ajudar a escrevê-la o melhor que pudermos.
Mas uma coisa é extremamente importante compreender: Nossa história tem muitos, muitos personagens, e estão errados aqueles que acreditam serem os únicos personagens de sua história... Uma história de um personagem só pode ser muito monótona, quando não algo pior; Mas a nossa história, a história do ser humano, é um conto maravilhoso, um livro que não me canso de folhear, e é exatamente para isso que estou aqui vivo, apesar de não fazer ideia exata do por que.

» A entrevista continua em breve...

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Crédito da imagem: Sung-IL Kim/Sung-Il Kim/Corbis

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12.7.12

Frases (11)

Mais frases que vieram com o vento, geralmente primeiro aparecem no meu twitter, depois aqui:

"Bela é a luz que reflete e nos traz de volta uma nova cor."

"Luto numa única guerra: de alma para alma, onde as palavras são como cápsulas de bombas de sentimentos atômicos... As vezes, elas explodem, e alguém, quem sabe, se dá conta de que possui uma alma para cuidar."

"A Natureza é frágil e vingadora."

"A pergunta mais perigosa da economia moderna: se todos os países estão em débito, quem emprestou o dinheiro?"

"Os caminhos sem saída ao menos nos trazem lições; Pior é andar em círculos: no fim, não se sai do lugar."


"Ainda acho que nalgum Céu entraremos todos de mãos dadas, e o Infinito continuará sendo o Infinito... Mas de alguma forma seremos também uma parte dele, um a refletir o outro."

"Se Deus for o nosso amor, não será preciso esperar a morte para chegar ao Céu, nem temer Inferno algum."

"O Infinito se torna uma ideia religiosa quando compreendemos que também fazemos parte dele."

"Palavras são apenas cascas de sentimento, ainda assim ficam muito mais belas quanto carregam apenas amor, e não alguma coisa disfarçada de amor."


"Há um deus adormecido em cada ideia de amor, por mais pequenina que seja."

"Sem o amor, mesmo os maiores arranha-céus pouco nos dizem acerca da potencialidade humana."

"Assim é o amor: sempre livre. Que raios de sol não foram feitos para se guardar, apenas para se admirar e, as vezes, se aquecer..."

"Talvez seja a melancolia que nos faça encontrar um ao outro, nalgum lugar profundo, onde o amor é eternamente vivo."


"Todo dia é nosso aniversário, mas comemoramos uma vez por ano por praticidade, senão comeríamos muito bolo e brigadeiro."

"A doçura está na ponta dos olhos de quem lambe a vida tal qual a abelha ao mel."

"Nem todo trabalho é uma relação remunerada. A Natureza não nos paga em cédulas de papel."

"O que Pessoa buscou na vida foi não viver como um cadáver adiado que procria, mas ser ele mesmo parte da Natureza que passa em ventania."


"Toda oração deveria ser um agradecimento. Se pedimos alguma coisa, deveria ser a Vontade para prosseguir adiante na religação... A Vontade que já temos em semente, mas que por vezes necessita de uma oração para regá-la, de quando em quando."

"A Substância não se irradia como árvore, nem como teia, mas como ambas: um fractal. Tudo se conecta, tudo já foi semente."

"Oh Senhora Gravidade, fazei com que tudo que suba ainda desça, e que todas as casas permaneçam em seus lugares, por mais um dia!"

"O dia em que soltarmos uma pluma ao vento da varanda, e soubermos calcular todo seu percurso até atingir o chão, teremos a ciência exata."


"Não leia com o intuito de contradizer ou refutar, acreditar ou concordar, ou para ter o que conversar, mas para refletir e avaliar." (F. Bacon)

"Não somos seres humanos passando por uma experiência espiritual. Somos seres espirituais passando por uma experiência humana." (P.T. de Chard)

"Para mim sou um tormento e um arcano, uma ilha de encanto e temores, como talvez o sejam os homens todos, e como o foste tu, sob outros astros." (Borges)

"E não se esqueça de que a Terra gosta de sentir os seus pés descalços, e que o vento anseia em brincar com seus cabelos..." (Gibran)

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Crédito da imagem: Roger Antrobus/Corbis

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8.7.12

Estrelas

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Aqui estou novamente, num vagão de metrô da Cidade Maravilhosa...

Basta ir morar por algum tempo (meses, anos?) longe de uma grande cidade, do tipo que tem metrôs lotados, para voltar a se espantar novamente, quando retornamos a nossa antiga casa: “Nossa, se entrasse mais alguém por aquela porta, eu acho que teria sido esmagado neste poste no meio do vagão!”.

Há tanta gente em tão pouco espaço, que quando você planeja pegar o metrô do Rio em horário “nobre”, precisa realmente elaborar uma estratégia... “Se entro pela esquerda, preciso garantir minha posição próximo à porta direita, ou seria a esquerda?” – Um momento de indecisão, e é capaz de você passar do ponto sem ter tempo de sair...

Mas é entre as estações, com o trem percorrendo os corredores escuros por debaixo da metrópole, que os pensamentos mais profundos me assaltam: “Quantas histórias distintas neste mesmo vagão, quantas formas de ver o mundo... Aquele cara está com o olhar fixo nos seios daquela garota, será que ela também sabe dos seios lindos que tem? (me parecem naturais); Aquela outra ali tem pinta de nerd... Nossa, ela está lendo Game of Thrones na tela do celular, isso que é dedicação! E ali, no outro canto, aquele grupo de turistas alemães escolheu uma péssima hora para fazer turismo pelo Centro...” – Mas todos eles estão pensando. Não há aperto suficiente neste vagão que impeça alguém de pensar.

Muitos certamente estão voltando do trabalho e, invariavelmente, dedicam uma boa parte do seu tempo de reflexão a pensar no dinheiro: quanto têm, quanto almejam ter, quantas dívidas a pagar, etc. Isto tudo, sem dúvida, passou por sua educação: se não foram os pais ou familiares a lhes alertar que “tempo é dinheiro”, certamente foi a orientadora vocacional. A primeira função das orientadoras vocacionais é tentar convencer o maior número possível de jovens mentes promissoras a ingressar numa carreira “promissora”, que “pague bem”. Ultimamente, por falta de mão de obra qualificada, o empresariado brasileiro tem quase que implorado para tais orientadores: “Pelo amor de Deus, manda alguém para exatas”.

Ciências exatas! Pode ser chato de aprender, principalmente se você não gostar, mas o que importa é que “dão dinheiro” (alguns cientistas teóricos podem discordar)... Melhor seria, entretanto, se na escola alguém nos explicasse, antes de iniciar a primeira aula de química ou física: “Meus caros, vocês podem não gostar desse decoreba sem fim de fórmulas que irão vomitar sobre vocês nos anos seguintes, mas, por favor, lembrem-se ao menos disso: somos formados por elementos químicos que só podem ser gerados nos núcleos estelares! Compartilhamos a história de nossos genes com todas as espécies animais da Terra, desde as bactérias aos roedores que sobreviveram à extinção dos dinossauros... A vibração dos nossos átomos, esses que formam nosso corpo inteiro, seguem as mesmas leis dos átomos que formam pedregulhos em Marte, ou supernovas há milhões de anos-luz de nossa galáxia. Há luz por todo o lugar! Tudo bem, agora podem entrar no decoreba... Boa sorte”.

Então saberiam ao menos que, conforme as estrelas, também somos pedaços do universo capazes de produzir luz. Sim, pois todo homem é uma estrela, e toda mulher também: sua luz é seu pensamento, quando conectado ao Infinito!

E a filosofia? Bem, esta nem é mais ensinada na maioria dos colégios. Por toda parte, os “arautos da estagnação”, estes que gostariam que você não pensasse, espalharam o boato de que a “filosofia é difícil e muito, muito chata; seria melhor estudar ciências exatas, que às vezes não são assim tão chatas”. Existem, quem sabe, dois tipos de pensadores: os que usam o pensamento para manter a “ordem estabelecida”, para estes é interessante que somente alguns poucos “doutrinados” aprendam a pensar, e mesmo assim desde que não pensem em nada que possa ir contra a tal “ordem estabelecida”; existem outros pensadores, no entanto, que acreditam que todos deveriam ser livres para pensar no que quiser, e cada vez mais abrangentemente e profundamente – a estes os “estagnados” de cada época taxaram de loucos, hereges, subversivos, bruxos ou, como está tão na moda: irracionais.

Talvez a filosofia não dê mesmo dinheiro, mas certamente te ajudará a entender o porque de tantos viverem correndo atrás do dinheiro, e não da felicidade, que por vezes se perde em meio a “sobrevivência”... Pegue todos os livros da seção de autoajuda desta megastore: não equivalem a um livreto de Epicuro sobre a felicidade [1]. Com a filosofia, a verdadeira autoajuda, se aprende a viver, não somente sobreviver. Para tal, não necessitamos de tanto dinheiro assim, só do necessário (para Epicuro, um pedaço de queijo ocasional era um banquete).

Que falar das religiões então? Tudo bem, todos poderiam continuar sendo batizados antes de terem opção de escolha, assim como seus pais já escolheram seus times de futebol, em todo caso... Mas, antes da primeira missa de Domingo após os, quem sabe, 12 anos, alguém de espírito livre deveria lhes alertar: “Vá e ouça tudo o que o padre tem a dizer, mas, ainda que suas palavras sejam reconfortantes, e ainda que você não possa dialogar, dialogue consigo mesmo – duvide, questione, elabore, experimente. Não faça de sua vida religiosa mais um decoreba eclesiástico!”. O único problema é que um sujeito assim seria expulso da Igreja...

E quem seria hoje Nosso Senhor Jesus Cristo? Um socialista radical? Um hacker anônimo? Um psicólogo dos Médicos Sem Fronteiras? Aquele mendigo que mora nas escadas da paróquia? Ou mais uma dessas estrelas do céu, que insistem em irradiar sua luz antiga, para aqueles que têm alma para às admirar? Ou, quem sabe ainda, mais uma dessas estrelas espremidas neste vagão de metrô?


para Maria Luiza

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[1] Carta a Meneceu.

Crédito da foto: Claudio Lara (Metrô Rio)

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7.7.12

Parker

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Acabei de ver o novo filme de Peter Parker.

Para quem não sabe, Peter Parker é o Homem-Aranha. Mas o que todo mundo está comentando é sobre o reinício da série de filmes no cinema: “Como assim, não é o Homem-Aranha 4? É outro ator? Vão contar a história toda outra vez? Para que?”.

Tudo bem, talvez tenham relançado a “nova franquia” cedo demais; Em essência, no entanto, estão apenas seguindo a mitologia do Homem-Aranha: as histórias mitológicas estão sendo recontadas há milênios, e Parker é apenas mais um herói, mais um mito...

Nas noites estreladas de outrora, em torno das fogueiras, nas tavernas vikings, nas baladas medievais, os mitos não eram vistos por espectadores passivos através de uma projeção de cinema, mas ainda tanto melhor: eram imaginados, vivenciados e, por vezes, incorporados.

A melhor cena do filme pode ter passado desapercebida – não é central a história do filme em si, mas sim uma referência ao mito de Parker, o jovem herói com grandes responsabilidades... Nela, um garotinho precisa fugir de um carro suspenso pela teia do Aranha, mas sem poder contar com sua ajuda, já que o herói está a sustentar o carro no ar, evitando que caia de uma ponte. Parker retira a máscara e joga para o garoto: “Vá, ponha a máscara; Ela te transforma num herói, com ela não precisará ter medo”. No fim, claro, o garoto consegue alcançar o Aranha, é salvo, e Parker recoloca a máscara. Metalinguagem?

O cético não crê em deuses e antigos mitos: “É tudo mentira!”. Mas o cético pode ser um grande fã do Homem-Aranha: “Sei que não existe, mas eu amo o Peter Parker... As vezes me sinto como se fosse um herói como ele”. Ironia da ironia – por vezes é o cético quem melhor vivencia o mito, quem faz dele uma verdadeira religião sem dogmas... Como os homens de outrora.

Para não sair das histórias em quadrinhos, foi Alan Moore quem alertou [1]: “A maioria das pessoas tem pavor da responsabilidade de cuidar da própria alma”... Grandes poderes, grandes responsabilidades!

Todos temos o maior dos poderes: a vontade. O Homem-Aranha é rápido, ágil, escala paredes e têm um sentido que lhe alerta do perigo – mas foi Peter Parker quem teve a vontade de ser um herói.

Outro grande herói, bem mais antigo, nos disse algo bem parecido com isso: “Sois heróis! Dia virá que farão tudo que tenho feito, e ainda muito mais!”

Em nossa mente, em nossa alma, um lagarto monstruoso está na espreita, esgueirando-se pelo esgoto de nossa metrópole de pensamentos...

Mas não é o Homem-Aranha quem virá nos socorrer – nós somos o herói, nós somos Parker... “O que está esperando aí? Trate de saltar pela janela, para dentro de si mesmo, e caçar o seu lagarto!”

***

[1] Em The Mindscape of Alan Moore.

Crédito da imagem: Divulgação (O Espetacular Homem-Aranha, 2012)

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5.7.12

Anti-reflexo

» Conto pessoal, inaugurando a série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Uma em cada quatro crianças não enxerga bem.

É isso que acabei de ler na seção “Você sabia?” do site da empresa que criou as minhas lentes anti-reflexo. Depois piora, segundo o mesmo site: cerca de 2,4 bilhões de pessoas no mundo não enxergam bem. Isso é um tanto quanto vago, no entanto: o que seria enxergar bem, afinal?

Se estavam se referindo a miopia, ou “enxergar mau de longe”, acertaram em cheio: eu fui parte das crianças que não enxergavam bem. Descobri isso quando comecei a sentar mais pelas últimas fileiras da sala de aula; Acho que quando comecei a ser mais levado, descobri que não enxergava bem o quadro negro... Mas não foi punição do Papai Noel, foi?

Você sabia que quando uma criança com cerca de 2 graus de miopia passa a usar óculos pela primeira vez, o topo dos prédios de Copacabana passa a ser a visão mais interessante do mundo? “Nossa, olha aquela pessoa olhando daquela janela lá em cima, e eu consigo vê-la direitinho daqui da janela do ônibus!”.

Geralmente não nos lembramos mais de quando aprendemos a enxergar as coisas pela primeira vez, mas quando você volta a aprender a enxergar as coisas distantes, lá pelos 6 anos de idade, esta pode ser uma memória e tanto... É como o caçador-coletor que encontrou o final da floresta, e admirou as árvores distantes na planície.

Que é o mundo todo, senão o que percebemos dele?

Muito tempo após, já adulto, eu comprei minha primeira TV de alta definição, dessas que usam cabo HDMI. Então pluguei meu videogame de alta definição nela, e me preparei para o espetáculo: nada demais. A primeira coisa que aprendi é que não adianta termos uma TV de alta definição, nem um videogame de alta definição, se não temos um cabo que suporte tanta definição junta, conectando tudo isso numa mesma experiência.

Conectei o cabo, a loja que me vendeu disse que era caro porque tinha “partes de ouro”... Bem, eu admito que dei pause no game de futebol e fiquei uns 5 minutos apenas apreciando a alta definição do gramado – e nem era um gramado real, mas virtual. Importante é que o cabo funcionou, já estava achando que aquela alta definição toda era um conto do vigário...

Mas nossa história ainda não terminou. Eu tinha óculos com lentes anti-reflexo e etc., achava que com eles havia deixado de fazer parte daqueles bilhões todos que não enxergam lá muito bem. Mas ocorre que, olhando para a tela da minha TV de alta definição, um dia percebi que a lente direita estava muito arranhada... Eu nem estava enxergando tudo com tanta definição assim!

Fui novamente numa ótica depois de muitos anos. Minha miopia havia estagnado em 5 graus, então apenas encomendei óculos novos. Mas não eram quaisquer lentes de óculos:

Para quem busca um produto premium. A melhor performance em lente anti-reflexo do mercado oferece uma visão nítida por muito mais tempo do que qualquer outra lente. Maya Forte [1] oferece as melhores performances para combater os 5 inimigos da visão, pois foi desenvolvido através de uma combinação de tecnologias de ponta resultando nos benefícios...

A seguir, o site da empresa lista os benefícios. Espinosa, sem dúvida, seria um homem muito rico hoje em dia – isto é, se tivesse vocação empreendedora. Mas, voltando ao assunto que importa: coloquei minhas novas lentes premium e liguei minha TV de alta definição. “Uau!”. Agora sim, estava lembrando os prédios de Copacabana.

O anti-relexo não serve para expulsar a luz, e sim para filtrar a luz que realmente importa: aquela que estamos contemplando. É esta que chegará aos olhos da mente e do espírito, não importa o grau da miopia, e tampouco a qualidade dos óculos. Não importa nem mesmo se podemos enxergar. Há muitas formas de ser ver o mundo, assim como há muitas formas de passear por aqui sem nada perceber, com olhos que nada veem e nada sentem. Eu sou, portanto, eternamente agradecido ao que vi, aos 6 anos, quando saí com meu pai do oculista.

O mundo todo estava apenas um pouco além de alguns graus de miopia. Para quem não enxerga bem, há lentes anti-reflexo. Para quem já enxerga bem, e nada reflete, o caminho será um tanto mais árduo...

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[1] Marca de fantasia.

Crédito da foto: Tetra Images/Corbis

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4.7.12

Uma breve citação não aleatória...

Há aqueles que criticam o aparente excesso de significado das grandes religiões. Creem que os homens criaram a deuses e céus e infernos, e até mesmo a ideias de carma, simplesmente por não terem coragem de encarar o aleatório.

Eu já não sei... Voltaire um dia disse a uma senhora aflita: "Minha senhora, acredito em uma providência geral, mas não numa providência particular que salvou o seu pássaro que estava machucado"... Isso já é fugir do aleatório?

Na verdade, para fugir do aleatório primeiramente deveríamos descobrir onde há exatamente aleatoriedade na Natureza que não, quem sabe, num jogo de dados. De fato o elétron na física quântica tem a probabilidade de estar aqui ou acolá, passando por esta ou aquela fenda, mas não há um espectro de aleatoriedade infinita aqui: apenas possibilidades dentro de um mesmo "campo".

Talvez o mais aflito seja o gato de Schrödinger, que não sabe nem se está vivo ou morto... Na verdade, as vezes o medo do inferno pode ser pior do que o medo do "sonho sem sonhos", muito embora tenhamos tido inúmeros deles durante várias noites desta vida.

Não sei mais quem eu era há 15 anos atrás. Será que aquele quem eu era morreu? Será que devo estar enlutado por isso? Será que a ideia da reencarnação me conforta?

Tudo passa, tudo flui, tudo muda, e nada se perde. Nunca vi, em toda a minha vida, uma única pedra chutada que tenha chutado a si própria. Há por aí, sem dúvida, algum deus brincalhão chutando pedras... Mas não aleatoriamente... Esta é a sua brincadeira, quem mais tem vontade para brincar assim?

raph'12

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Crédito da imagem: Don Johnston/All Canada Photos/Corbis

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A melodia

É como o lamento da flauta na floresta
Um tamborilar a ecoar pelo tempo
A persistente harmonia em tudo que nos resta
Quando nos voltamos para dentro

É como a calmaria antes da tempestade
No mar do ser: na praia de cada ilha
No céu: as estrelas em sua majestade
Cintilam na alma: “bem vinda, querida filha”

E então ela dança: cada movimento
É como a história de uma vida
A girar por este momento

Quantos passos de dança, quantas vidas e amores,
Compostas pela eterna melodia
A ecoar como um chamamento: “tenha esperança!”


raph’12

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Crédito da imagem: Raghu Rai

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3.7.12

Gênesis: o mundo antes da lei

O Discovery Channel, canal de TV a cabo, tem uma série com documentários acerca dos grandes livros da humanidade. Este episódio fala sobre o Gênesis. Bem, gostemos ou não, todos devemos levar em consideração que boa parte do pensamento ocidental foi influenciada pelo conteúdo deste que é o primeiro livro da Bíblia, e narra o início de tudo - do mundo e dos homens que habitam o mundo...

O grande mérito deste documentário, na minha opinião, é ir além da teologia, da história, da moral e mesmo da metáfora, e analisar o Gênesis como "uma cultura humana em formação". Um exemplo está logo no início (1:55), quando um dos comentaristas, Alan Dershowitz, professor de direito de Harvard, diz assim:

"Gênesis é sobre o mundo antes de haver lei. É sobre um Deus em aprendizagem, lutando para ser justo, sem regras [antecedentes]. Deus não teve problemas em criar um universo físico, só precisou de seis dias. Ele teve mais dificuldade quando chegou à parte da justiça... O Gênesis é sobre isso, sobre tentar fazer as coisas direito, com justiça."

Vejam o documentário, em 4 partes (cerca de 50min no total), no YouTube. Abaixo, a parte 1:

Ver a parte 2 | Ver a parte 3 | Ver a parte final


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2.7.12

Onde vivem os deuses

Deus não se demonstra
Não está aqui ou ali
Não disse isto ou aquilo
Deus é uma experiência
Um pensamento antes da linguagem
Pois que não é uma palavra
Nem um conceito, nem uma ideia, nem uma filosofia...
Deus não é nada que possamos defender com palavras, com cascas de sentimento...
Deus é o puro sentimento
Deus não é o puro sentimento
Deus apenas é

“Ele passou por aqui” – diz-nos a testemunha
Passou pela alma, tal qual leve brisa a escorar pelo ombro...
“Onde foi agora?”
Para todo lugar
Para nenhum lugar

O agnóstico tem razão ao dizer que não podemos compreender a Deus, nem a existência de Deus...
Assim como os poetas não podem compreender a poesia, o amor...
O amor é como um pássaro fugidio
A sombra de uma nuvem – um leve acinzentado pairando pela paisagem
O animal fantástico, a Fênix!
Há muitos poetas-caçadores que tentaram captura-la, mas nenhum deles jamais trouxe a prova...
Nenhuma pena da Fênix para contar a história
Apenas a experiência
O deslumbre e o espanto
De observar a mais bela das aves a voar...
Mas, e onde estaria agora, para onde teria voado?

A ave do amor voou para além do horizonte da linguagem
A fronteira entre a sua terra e a terra do pensamento
Parece-nos intransponível...

Somente os poetas-loucos souberam construir essa tal ponte
Entre a razão e o amor
Em seus pensamentos há uma luz que brilha ainda antes que possam dizer:
“Estou pensando”
E então dizem o que não podem dizer:
“Estou pensando no amor”
“Estou pensando em Deus”

Há essa ponte entre duas terras:
A terra onde tudo está separado em pequenas caixas, como segredos hermeticamente fechados;
E a terra onde tudo jaz junto, unido, conectado...

O amor é a ponte
O amor é uma fonte
Deus está a aguardar na outra margem
Deus não está a aguardar na outra margem
Deus é uma experiência


raph’12

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» Parte da série "Mito da criação"

Crédito da foto: Peter Adams/JAI/Corbis (Angkor Wat, Camboja)

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