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31.10.14

Filosofar é aprender a morrer

Trechos de Michel de Montaigne em Os Ensaios (Livro I, cap. XIX) (Cia. das Letras/Penguin). Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. Os comentários ao final são meus.

Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. É assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplação retiram nossa alma de nós e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhança com ela; ou então, é porque toda a sabedoria e a razão do mundo se concentram, afinal, nesse ponto de nos ensinar a não ter medo de morrer. Na verdade, ou a razão está escarnecendo de nós ou seu objetivo deve ser apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve tender, em suma, a fazer-nos viver bem e a nosso gosto, como dizem as Sagradas Escrituras.

Todas as opiniões do mundo chegam à conclusão de que o prazer é nosso objetivo, conquanto adotem meios diversos, do contrário as rejeitaríamos de início. Pois quem escutaria aquele que estabelecesse como objetivo nosso pesar e sofrimento? As discussões das escolas filosóficas, nesse caso, são verbais. Passemos por essas bagatelas tão solertes (Sêneca). Há aí mais teimosia e pirraça do que convém a uma nobre profissão. Mas, seja qual for o personagem que o homem adote, ele sempre representa, de permeio, o seu. Digam o que disserem, na própria virtude o objetivo último que visamos é a volúpia.

Agrada-me manter os ouvidos das pessoas com essa palavra que as contraria tão fortemente: e se ela significa um deleite supremo e extremos contentamento, é uma melhor acompanhante para a virtude do que qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril, essa volúpia é mais seriamente voluptuosa.

[...] A felicidade e a beatitude que reluzem na virtude preenchem todas as suas dependências e avenidas, da primeira entrada até sua última barreira. Ora, um dos principais benefícios da virtude é o desprezo pela morte, o que fornece à nossa vida a mansa tranquilidade, dá-nos seu gosto puro e benfazejo sem o qual todo outro prazer está extinto. [...] Pois se a morte nos amedronta, é um contínuo motivo de tormento que nada consegue aliviar. Não há lugar onde ela não nos venha. Podemos virar incessantemente a cabeça para cá e para lá, como em terra suspeita: ela é como o rochedo sempre suspenso sobre Tântalo (Cícero).

[...] Amedrontamos nossa gente só em mencionar a morte, e a maioria se persigna, como diante do nome do diabo. [...] Porque essas sílabas atingiam muito rudemente seus ouvidos, e porque essa palavra lhes parecia de mau agouro, os romanos aprenderam a suavizá-la ou diluí-la em perífrases. Em vez de dizer “ele morreu”, dizem “ele parou de viver”, ou “ele viveu”. Consolam-se,  contanto que seja vida, ainda que passada.

[...] Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de si. E ademais, pobre louco que és, quem te fixou os prazos da vida?

[...] É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição. [...] Por mim mesmo, não sou melancólico mas sonhador: não há nada de que me haja ocupado desde sempre como dos pensamentos sobre a morte, e até na época mais licenciosa de minha vida, entre as damas e os jogos, julgavam-me ocupado em digerir comigo mesmo algum ciúme ou a incerteza de uma esperança, enquanto eu pensava em não sei quem que fora surpreendido dias antes por uma febre alta, e em seu fim ao sair de uma festa parecida, com a cabeça cheia de ócio, amor e bons momentos, como eu: e eu mesmo martelava em meus ouvidos:

O presente já terá passado e nunca mais poderemos chamá-lo de volta (Lucrécio).

[...] Como sou homem que continuamente está incubando sues pensamentos e guardando-os dentro de si, a qualquer momento estou preparado, tanto quanto possa estar, e nada de novo me anunciará a chegada inesperada da morte. Devemos estar sempre com as botas calçadas e prontos para partir, tanto quanto de nós dependa, e sobretudo nos precavermos para que então só tenhamos de tratar conosco mesmos. Pois temos bastante trabalho sem outra sobrecarga. Um se queixa, mas que da morte, de que ela lhe interrompe o curso de uma bela vitória; outro, que deve partir antes de ter casado a filha, ou controlado a educação dos filhos; um sente falta da companhia da mulher, outro, do filho, que eram os principais confortos de sua existência. Por ora estou em tal situação, graças a Deus, que posso me ir quanto Lhe aprouver, sem me lamentar de coisa nenhuma.

Desligo-me de tudo: minhas despedidas de cada um estão quase feitas, exceto de mim. Nunca um homem se preparou para deixar o mundo mais pura e plenamente, e desapegou-se mais completamente do que eu tento fazer. As mortes mais mortas são as mais saudáveis.

[...] Que importa quando será nossa morte, já que é inevitável? Àquele que dizia a Sócrates: “Os trinta tiranos te condenaram à morte”, ele respondeu: “E a natureza a eles”. Que tolice nos atormentarmos no momento em que se dá a passagem à isenção de todo o tormento! Assim como nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim nossa morte trará a morte de todas as coisas.

[...] A morte não vos diz respeito nem morto nem vivo. Vivo, porque existis: morto, porque não mais existis. Ademais, ninguém morre antes de sua hora. O tempo que abandonais não era mais vosso que o tempo que se passou antes de vosso nascimento: e tampouco vos toca. Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estais aqui. Ter vivido bastante está em vossa vontade, não no número dos anos. [...] Tudo não se mexe como vos mexeis? Há coisa que não envelheça convosco? Mil homens, mil animais e mil outras criaturas morrem neste mesmo instante em que morreis.

Pois nenhuma noite sucedeu ao dia, nenhuma aurora à noite em que não se ouviram, misturadas aos tristes vagidos, as lágrimas acompanhando a morte e os negros funerais (Lucrécio).

***

Comentário
Herdeiro da fortuna do avô, um rico comerciante de peixes da região de Bordeaux (na França), Michel se recolhe à vida privada com cerca de 38 anos, o que naquela época (séc. XVI) já era considerado uma idade relativamente avançada. Nos pouco mais de 20 anos que o separavam da morte, Michel dedicou-se inteiramente a contemplação do mundo e do tempo na vizinhança do seu castelo em Montaigne, tendo produzido as cerca de mil páginas dos seus Ensaios, que inauguraram um novo estilo literário.
Conforme discorreu sobre quase tudo, sem ser um especialista em nada, Michel é quase um Sócrates renascido que, na falta de um séquito de jovens questionadores, optou por se recolher a uma vida literária. Não que houvesse se tornado um ermitão, pelo contrário: foi exatamente da sua própria vida e das suas próprias amizades e experiências que retirou a matéria prima dos seus Ensaios.
De certa forma, Michel também foi o primeiro blogueiro da história. E, na medida em que procurou escrever antes para si mesmo, sem jamais imaginar a fama que seus escritos alcançariam, particularmente séculos após sua vida, Michel também nos dá uma lição profunda acerca dos reais motivos pelos quais os verdadeiros filósofos tingem as suas folhas em branco, ou os campos vazios das postagens dos seus blogs... Meditar sobre a morte é a melhor forma, afinal, de encontrar a fonte da vida.

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Crédito da imagem: Google Image Search (foto da estátua de Montaigne em frente da Universidade de Sorbonne, em Paris)

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22.10.14

Um convite para a eternidade

São rostos de todo tipo,
faces e olhares a alhures,
e restos de passados,
angústias de futuros,
e presentes aprisionados
num vagão lotado
e na tela cristalina
de um smartphone...

Não obstante, neste instante,
por entre meios fios
e rachaduras em concretos frios,
flores desabrocham,
relvas tingem o cinza,
e verdejam as plantas mais comuns,
enquanto as montanhas cochicham umas as outras
(por milênios a fio)
sobre os seres apressados
que elas viram nascer
e passar e morrer...

Cada pedra portuguesa desta calçada,
cada pequeno jardim,
cada loja de rua e padaria,
cada igreja e banca de jornal daqui
são para mim os símbolos e os emblemas
da minha breve história...

Lá do alto, porém,
de braços abertos,
e um olhar convidativo ao horizonte sem fim deste grande mar,
vela por nós o Cristo,
e nos redime de nossa brevidade,
e nos estende a mão –
um convite para a eternidade.


raph'14

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Crédito da foto: Ladyce West

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21.10.14

Da convivência

"Se vivemos em sociedade, temos de aprender a conviver com todo o tipo de gente... Temos mesmo?"

Conviver sim, mas não necessariamente converter ou ser convertido.

O sábio não nega o mundo, não se torna ermitão, mas também compreende que certas pessoas têm a capacidade de compreender certas coisas, e outras não têm (incluindo o próprio sábio).

Se as igrejas não fossem baseadas em dogmas, hierarquias e evangelizações, o mundo racional teria uma relação mais cordial com elas. Mas igrejas continuam sendo comunidades de pessoas, e só entraremos no céu de mãos dadas (doa a quem doer).

Se todos pensassem da mesma forma, a política seria absolutamente desnecessária, e teríamos um só partido agregando a todos. Seria, de fato, uma utopia a ser buscada, no entanto precisamos tomar muito cuidado com ideias falsas de "concordância geral". Afinal, é preferível termos o embate de ideias, e as tentativas de acordos, ainda que mal sucedidos, do que a ilusão de que todos concordam em tudo, construída por um sistema ditatorial.

O sábio não menospreza as ideias divergentes, pois sabe que é graças a elas que pode elaborar as suas próprias. Afinal, como ele poderia discursar sobre o calor, se o frio não existisse?

De fato, aqui estamos todos a buscar a sabedoria... Assim como a gravidade deste planetinha é a mesma de galáxias tão distantes que escapam do nosso horizonte cósmico, as leis naturais não distinguem sábios de ignorantes, e essa é precisamente a promessa divina: a de que todo ignorante um dia também será sábio.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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12.10.14

El Partido de la Red

A democracia que temos está aprisionada: é míope, ordena suas prioridades de forma equivocada, tem a sua largura de banda limitada (Manifesto de la Red)


Desde seu surgimento na Grécia antiga, onde os próprios cidadãos decidiam as ações do Estado, a democracia passou por tantas reviravoltas e atualizações que hoje um filósofo daquela época mal a reconheceria. É verdade que hoje não há mais escravidão, e que mulheres também podem votar, mas por outro lado nossas cidades-estado cresceram tanto que a única forma que encontramos de continuar consultando os anseios do povo foi instaurando a democracia representativa, onde certos candidatos são eleitos para nos representar em tais decisões. Assim, teoricamente, somente os mais bem preparados e sábios dentre nós deveriam ser eleitos para nos representar. Estaria tudo certo, contanto que o sistema eleitoral fosse capaz de dar oportunidade aos mais bem preparados e sábios concorrerem nas eleições. Como bem sabemos, isso não é mais o que ocorre hoje em dia...

Teoricamente nossas eleições deveriam ser um embate de ideias e de propostas, baseadas sobretudo em ideologias. Mas, na prática, o que ocorre hoje em dia está muito longe disso. Se tomarmos o segundo turno das eleições de 2014 para a presidência do país, por exemplo, não temos exatamente um embate de ideologias opostas (embora há muitos que ainda creiam nisso, e considero que devemos respeitar sua inocência, para que o sonho não morra), mas sim uma disputa de poder onde está em jogo muito, muito dinheiro. Não importa se um partido de "esquerda" se alia, de última hora, ao partido opositor de "centro-direita" em troca de certos ministérios; pois o partido que disputa a reeleição, apesar de se declarar de "esquerda", também só se encontra em seu posto devido a negociação de inúmeros ministérios com os partidos de "direita" da base aliada. Onde ficou a ideologia nesse Grande Negócio Eleitoral? Ficou na cartilha dos marqueteiros, que usam os milhões doados por grandes empresas (muitas das quais doaram a ambos os partidos, o opositor e o que disputa a reeleição) para suas superproduções do "horário eleitoral gratuito".

Conforme bem analisou Lawrence Lessig em sua reflexão sobre o sistema eleitoral dos EUA, "Há um forte sentimento de inevitabilidade, de que não temos o que fazer para mudar tudo isso". Mas foi o próprio jurista que, em sua histórica palestra no TED, apontou um caminho para a mudança: tirar o "dinheiro grande" das eleições, para que o povo possa voltar a decidir, de fato, entre os candidatos mais bem preparados e sábios. Obviamente que esta reforma não é algo que se dê da noite para o dia, mas é uma reforma cada vez mais necessária, pois no fim das contas a única outra opção será uma revolução - e na revolução, como bem sabemos, há muito mais mortes e violência, além de ser um processo de estabilização lenta e incerta.

Porém, ainda que o "dinheiro grande" fosse retirado das eleições, ainda não haveriam garantias suficientes que ele não pudesse ser usado para corromper os candidatos mais bem preparados e sábios que foram eleitos. Pois também já vimos inúmeros exemplos de boas pessoas que, de um jeito ou de outro, se viram obrigadas a jogar o Grande Negócio Eleitoral uma vez eleitas. A solução seria fiscalizar mais de perto tais candidatos, em cada passo, em cada decisão, em cada votação... Isto sim seria a semente de uma nova democracia, uma forma de, ironicamente, voltarmos as origens gregas, e realmente participarmos diretamente das decisões dos nossos representantes eleitos.

É precisamente isso que pretende o Partido de la Red, um partido político argentino que surgiu há poucos anos, fruto da experiência fracassada de tentar convencer aos políticos tradicionais de vincular suas decisões a votações específicas de um aplicativo para tablets e smartphones, intitulado DemocraciaOS. Conforme a oferta foi inicialmente recusada, os argentinos desbravadores de uma nova era decidiram fundar o seu próprio partido, onde cada deputado eleito se compromete a votar de acordo com a decisão da maioria dos votos no aplicativo. É claro que não é uma ideia completa, imune a hacks de todos os tipos, mas é um novo caminho, uma luz no fim do túnel.

Para saber mais sobre esta ideia preciosa, vejam a palestra de Pia Mancini, uma das fundadoras do Partido de la Red, no TED Rio recém realizado em Outubro de 2014 (com legendas em português):

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Veja também:

» x dólares, 1 voto (a palestra de Lawrence Lessig)

» Interregno de eras

» Primavera Brasilis

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10.10.14

A arte impactante de Pawel Kuczynski

Pawel Kuczynski é um ilustrador polonês, formado pela academia de Belas Artes de Poznan, cuja arte nos leva a uma profunda reflexão acerca do mundo em que vivemos. Suas obras são bastante críticas, sobretudo, ao consumismo desenfreado, a política armamentista das potências mundiais, a usurpação da democracia pelo poder financeiro e ao culto das redes sociais. Vale a reflexão...

Nós criamos uma galeria em nossa página do Facebook com algumas de suas obras mais impactantes:

Veja a galeria com a arte de Pawel Kuczynski

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7.10.14

A Igreja da Alma do Mundo

Há um trecho do Alcorão, na Surah Al Falaq, que nos incita a dizer: "Refugio-me no Senhor da Alvorada contra o mal daquilo que Ele criou".

Ora, o mal é a ignorância do bem. Não chegamos a existência perfeitos em conhecimento, sabedoria ou moral, e portanto estamos lentamente, passo a passo, desenvolvendo nossas potencialidades, depurando nossa ignorância, nosso mal... Pela lógica, é impossível atribuir a maldade a ideia de Deus. No entanto, é logicamente plausível que exista mal "naquilo que Ele criou", e que esse mal seja exatamente o atestado da eficiência e do sentido do sistema da Criação: fôssemos criados perfeitos, seríamos autômatos, robôs programados para fazer o bem (e isto não seria "ser bom").

Acredito que não exista uma ideia mais bela do que a ideia de se deixar um princípio, uma semente de perfeição, aflorar e se desenvolver por si mesma, bastando o contato do sol para que floresça, e nada mais... É claro que o próprio conceito de "perfeição" encerra inúmeras complexidades. Até que ponto ela iria? Quando seria o suficiente? Quando estaríamos, enfim, aptos a ver Deus "face a face"?

Já disse o Rabi da Galileia que "um dia faremos tudo o que ele fez, e muito mais". E disse também que éramos deuses... Quem sabe esta "perfeição" não resida num ponto do caminho, mas no caminho em si, e no sistema que o possibilitou existir?

Portanto, Deus, ou o que quer que tenha imaginado o Cosmos, não é mal, e nem devemos supor que alguma maldade de sua parte seria justificada pela "justiça divina". A justiça não faz o mal, ela aplica remédios. Tais medicinas podem ser amargas, é bem verdade, mas elas visam tão somente a nossa cura, e a nossa religação ao caminho.

Não há médico, porém, que possa nos prometer ou garantir a cura, nem o mais santo dos santos. Somente nós mesmos podemos nos curar, mas existem diversos tratamentos. Algumas pessoas chamaram algumas dessas receitas de "doutrinas religiosas", mas fato é que a nossa verdadeira igreja reside mesmo é em nosso coração. É somente lá, na Igreja da Alma do Mundo, que as orações tomam forma, as mais belas formas de todo o universo...

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Crédito da imagem: Vorrarit Anantsorrarak

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