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28.7.15

Um poema misterioso

Há alguns dias um poema de autoria anônima, encontrado num pub londrino, viralizou nas redes sociais. A princípio, ele parece um poema um tanto depressivo [1]:

Hoje foi absolutamente o pior dia de todos
E não tente me convencer que
Há algo bom em cada dia
Porque, quando você olha mais de perto,
Este mundo é um lugar muito ruim
Mesmo sabendo que
Alguma bondade vem brilhar de tempos em tempos
Satisfação e felicidade não perduram
E não é verdade que
Está tudo na mente e no coração
Porque
A verdadeira felicidade pode ser obtida
Apenas se o que nos rodeia for bom
Não é verdade que o bem exista
Eu estou certo que você pode concordar com isso
A realidade
Cria
Minha atitude
Está tudo fora do meu controle
Nem em um milhão de anos me escutará dizer que
Hoje foi um bom dia

Mas havia nele uma última linha, que em realidade faz toda a diferença, e foi o que de fato o tornou viral:

Agora leia de baixo para cima


Então, o que parecia um poema refletindo a angústia de algum beberrão britânico, subitamente se torna um pequeno tratado de como nosso ponto de vista pode transformar a realidade, e uma verdadeira alquimia mental é realizada.

O mais interessante, no entanto, não foram as dezenas de milhares de leituras que tal poema conquistou no mundo todo na última semana, mas o fato de que ele na realidade foi escrito por uma garota do ensino médio de Nova York, de família judaica, chamada Chanie Gorkin.

O poema, intitulado “Worst day ever?” (“O pior dia de todos?”), já havia sido semifinalista de um concurso de poesia, no site poetrynation, e chegou a ser publicado numa coletânea por uma pequena editora americana, isso tudo em 2014.

Quando ficou sabendo do sucesso do poema da filha, Dena Gorkin se disse “chocada”, já que se considera parte de uma família “regular e pacata”. Dena ainda afirmou ao site poetrynation que Chanie está em férias escolares, sem acesso a internet, e que ainda não faz ideia do ocorrido na última semana.

Para mim, particularmente, esta bela e curiosa história evidencia como muitos de nossos jovens, no mundo inteiro, podem ser tão sensíveis e talentosos. A parte realmente triste é que há muitos artistas em potencial que jamais irão exercer sua arte, seja por questões econômicas, seja por questões culturais; afinal, mesmo em Nova York é muito difícil “viver de poesia”. Quem sabe Chanie se sinta encorajada a tentar, mas pela personalidade da mãe, acredito que será complicado...

Em todo caso, a despeito de todas as mazelas e comentários sombrios que temos visto nas redes sociais, é inegável que ela também é capaz de nos fazer sorrir de vez em quando. E, se formos capazes de manter nosso ponto de vista e nosso estado de espírito elevados, são os sorrisos que vencerão, e farão dos nossos dias não os melhores ou os piores, mas tão somente dias de aprendizado.

***

[1] A tradução do original em inglês foi feita por Gabriel Bonfim.

Crédito da imagem: Alan Copson/Jai/Corbis/Twitter/Mashable

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26.7.15

Uma visão espiritual da Ayahuasca

Desde 2012, um grupo de amigos interessados em espiritualidade, e também membros do Projeto Mayhem, publicam podcasts e videocasts sobre diversas doutrinas e temáticas espiritualistas. Este grupo, que toca o site Conversa entre Adptus, já passou por várias formações, mas desde o início conta com PH Alves, grande conhecedor de hinduísmo e umbanda sagrada, e Emerson Luiz, especialista em espiritismo. Hoje em dia, além dos dois, há também o Roe Mesquita, que é um ilustrador de mão cheia com grande curiosidade sobre temas espirituais.

Bem, e como eu mesmo também faço parte do Mayhem, todos eles são meus amigos. Além disso, também já tive a honra de participar de alguns episódios [1]... Mas o que me fez trazer os adeptus de volta ao blog é o fato de que a qualidade do videocast deles aumentou consideravelmente com os anos, ao ponto de terem chegado a fazer uma espécie de documentário em vídeo para o último tema, a Ayahuasca.

"Mas o que diabos é a Ayahuasca?", muitos podem se perguntar. Bem, como eles mesmos explicam na chamada do vídeo: "A Ayahuasca é um chá divino, que alguns conhecem como Santo Daime. Mas o que será essa bebida sagrada? Um alucinógeno? Um enteógeno? Nós, os adeptus, resolvemos sair a campo e visitamos uma casa espiritualista que pratica o Ritual da Ayahuasca. Aprendemos, vivenciamos, e principalmente desmistificamos mitos e preconceitos que cercam essa bebida. Para saber como foi nossa visita e conhecer mais sobre essa planta de poder que tem por finalidade a transformação e a elevação espiritual das pessoas, basta dar play e assistir:"

Apesar de ser um vídeo longo [2], com cerca de 1 hora e meia, há muita coisa que vale a pena ser vista, particularmente os depoimentos pessoais dos frequentadores da casa (que bebem o chá), muitos deles surpreendentemente sinceros e profundos (os depoimentos se iniciam com o representante da casa, aproximadamente em 28:05).

***

[1] Para quem tem o aplicativo de troca de mensagens Viber, venha acompanhar a nossa conversa nos grupos abertos (eu sou um dos participantes).

[2] Eles também tem uma série de vídeos mais curtos, com até cerca de 10 minutos, que também são excelentes, intitulados Adeptologia. O primeiro deles fala sobre o deus Hermes.

Crédito da imagem: Google Image Search/Ayahuasca Visions

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22.7.15

O dia que não passou

Se você já correu em bando atrás de uma pipa perdida, se já escalou árvores para comer frutos na companhia de outros adoradores da tardinha, se já se aventurou em florestas, praias e cavernas, reais ou imaginárias, desde que junto ao seu fiel grupo de aventureiros, então não é falso este sorriso que irrompe sem aviso em sua boca, pois que ele vem da alma.

De todas as lendas que os seres humanos criaram para o convívio em sociedade, do grande espírito da montanha aos duendes e fadas, do código da cavalaria a declaração dos direitos humanos, da teoria do big bang a bolsa de valores, só há mesmo uma entidade que não desvanece com o tempo, nem escapa, como tudo o mais, por entre nossos dedos sedentos de permanência...

Neste mundo somos livres, nos disseram, para buscar o que bem quisermos. Há aqueles que rodam todo o globo atrás de tesouros, e outros que fazem longas jornadas, todos os dias, enquanto contemplam o giro de tudo, sem sequer saírem do lugar. O que importa é que, seja aqui ou no Himalaia, ninguém pode escalar mais alto do que o pico que reside em seu interior.

E ainda que a pedra mais preciosa estivesse, em realidade, nas profundezas do Oceano, de nada adiantaria montar uma grandiosa empreitada para sugar suas águas – nenhuma máquina será capaz de esvaziar a alma, somos nós que temos de mergulhar e encontrar essa pérola cintilante, somente nós!

No entanto, é até estranho de se pensar, mas todos os vislumbres de tal milagre, todos os suspiros de saudade, todas as lágrimas de angústia, todos os solavancos cardíacos e, enfim, todos os momentos de pura e plena paz, em que deixamos nosso intelecto de lado e vivemos a experiência em si, sem crer nem descrer, sem ansiar nem temer, tudo isso ocorreu no dia em que o ser olhou para si, espalhado e espelhado pelo mundo, e compreendeu, ainda que sem saber, e de seus lábios emergiram estas palavras:

“Isto sou eu...”

E este dia não passou, pois ele mora no coração da eternidade.


raph'15

***

Crédito da imagem: Google Image Search/Reflections Wallpaper

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15.7.15

A sabedoria do silêncio interno

Este é um texto de autoria anônima, atribuído ao taoísmo, que se tornou célebre pela web. Os comentários ao final são meus.


Pense no que vai dizer antes de abrir a boca. Seja breve e preciso, já que cada vez que deixa sair uma palavra, deixa sair uma parte da sua energia vital (chi). Assim, aprenderá a desenvolver a arte de falar sem perder energia.

Nunca faça promessas que não possa cumprir. Não se queixe, nem utilize palavras que projetem imagens negativas, porque se reproduzirá ao seu redor tudo o que tenha fabricado com as suas palavras carregadas de chi.

Se não tem nada de bom, verdadeiro e útil a dizer, é melhor não dizer nada. Aprenda a ser como um espelho: observe e reflita a energia. O universo é o melhor exemplo de um espelho que a natureza nos deu, porque aceita, sem condições, os nossos pensamentos, emoções, palavras e ações, e envia-nos o reflexo da nossa própria energia através das diferentes circunstâncias que se apresentam nas nossas vidas.

Se se identifica com o êxito, terá êxito. Se se identifica com o fracasso, terá fracasso. Assim, podemos observar que as circunstâncias que vivemos são simplesmente manifestações externas do conteúdo da nossa conversa interna. Aprenda a ser como o universo, escutando e refletindo a energia sem emoções densas e sem preconceitos.

Porque, sendo como um espelho, com o poder mental tranquilo e em silêncio, sem lhe dar oportunidade de se impor com as suas opiniões pessoais, e evitando reações emocionais excessivas, terá a oportunidade de uma comunicação sincera e fluida.

Não se dê demasiada importância, e seja humilde, pois quanto mais se mostra superior, inteligente e prepotente, mais se torna prisioneiro da sua própria imagem e vive num mundo de tensão e ilusões. Seja discreto, preserve a sua vida íntima. Desta forma irá se libertar da opinião dos outros e terá uma vida tranquila e benevolente, invisível, misteriosa, indefinível, insondável como o Tao.

Não entre em competição com os demais, a terra que nos nutre já nos dá o necessário. Ajude o próximo a perceber as suas próprias virtudes e qualidades, a brilhar. O espírito competitivo faz com que o ego cresça e, inevitavelmente, crie conflitos. Tenha confiança em si mesmo. Preserve a sua paz interior, evitando entrar na provação e nas trapaças dos outros. Não se comprometa facilmente, agindo de maneira precipitada, sem ter consciência profunda da situação.

Tenha um momento de silêncio interno para considerar tudo que se apresenta e só então tome uma decisão. Assim desenvolverá a confiança em si mesmo e a sabedoria. Se realmente há algo que não sabe, ou para que não tenha resposta, aceite o fato. Não saber é muito incômodo para o ego, porque ele gosta de saber tudo, ter sempre razão e dar a sua opinião muito pessoal. Mas, na realidade, o ego nada sabe, simplesmente faz acreditar que sabe.

Evite julgar ou criticar. O Tao é imparcial nos seus juízos: não critica ninguém, tem uma compaixão infinita e não conhece a dualidade. Cada vez que julga alguém, a única coisa que faz é expressar a sua opinião pessoal, e isso é uma perda de energia, é puro ruído. Julgar é uma maneira de esconder as nossas próprias fraquezas.

O sábio tolera tudo sem dizer uma palavra. Tudo o que o incomoda nos outros é uma projeção do que não venceu em si mesmo. Deixe que cada um resolva os seus problemas e concentre a sua energia na sua própria vida. Ocupe-se de si mesmo, não se defenda. Quando tenta se defender, está a dar demasiada importância às palavras dos outros, a dar mais força à agressão deles.

Se aceita não se defender, mostra que as opiniões dos demais não o afetam, que são simplesmente opiniões, e que não necessita convencê-los de nada para ser feliz. O seu silêncio interno o torna impassível. Faça uso regular do silêncio para educar o seu ego, que tem o mau costume de falar o tempo todo.

Pratique a arte de não falar. Tome algumas horas para se abster de falar. Este é um exercício excelente para conhecer e aprender o universo do Tao ilimitado, em vez de tentar explicar o que é o Tao. Progressivamente desenvolverá a arte de falar sem falar, e a sua verdadeira natureza interna substituirá a sua personalidade artificial, deixando aparecer a luz do seu coração e o poder da sabedoria do silêncio.

Graças a essa força, atrairá para si tudo o que necessita para a sua própria realização e completa libertação. Porém, tem que ter cuidado para que o ego não se infiltre… O poder permanece quando o ego se mantém tranquilo e em silêncio. Se o ego se impõe e abusa desse poder, este irá se converter num veneno, que o levará rapidamente a ruína.

Fique em silêncio, cultive o seu próprio poder interno. Respeite a vida de tudo o que existe no mundo. Não force, manipule ou controle o próximo. Converta-se no seu próprio mestre e deixe os demais serem o que têm a capacidade de ser. Por outras palavras, viva seguindo a via sagrada do Tao.


Comentários
A primeira coisa que me lembro de haver me perguntado quando achei o Tao Te Ching numa livraria há muitos anos atrás foi algo como, “O que diabos é o Tao?”. Ora, acredito que qualquer um que cruze com o taoísmo pela primeira vez, principalmente no Ocidente, tenha a mesma dúvida.
Deste lado do mundo aprendemos a ser demasiado racionais, precisamos separar tudo em categorias, embrulhar e guardar em pequenas caixas, enfim, precisamos saber o que é alguma coisa antes sequer de decidirmos se vamos dedicar alguns minutos de nosso precioso tempo a ela.
Pior, então, é quando cremos que realmente sabemos o que são as coisas em profundidade. Daí, muitas vezes, cremos que este saber por si só nos torna superior aos demais, e que não temos praticamente nada a aprender com “os que nada sabem”.
Repare como tudo isso ocorre sob o ponto de vista do ego. Este nosso lado ignorante, e por isso mesmo tão necessário, que acredita ser algo a parte do todo, da natureza, do universo, dos seres. Neste caso, o Tao é como um guia para os andarilhos, ele aponta uma direção para que possamos caminhar e assim, nessa longa caminhada, irmos lentamente, passo a passo, domesticando nosso ego, até que ele se torne um animal sob nosso controle, e não como era anteriormente, um cão raivoso que ladra para todos os desconhecidos, julgando a tudo e a todos...
Ocorre que, para o Tao, nada é inteiramente conhecido, tampouco desconhecido. O Tao apenas é.

Rafael Arrais é um cara que escreve um blog, e que também já traduziu o Tao Te Ching da versão clássica inglesa de James Legge para o nosso bom português.

***

Veja também:
» Os significados ocultos no Yin-Yang
» Deus no Taoismo

Crédito da imagem: H. Koppdelaney

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13.7.15

Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 5)

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

De Obelix a Rasputin
Gérard Depardieu afirmou recentemente que “está pronto para morrer pela Rússia, pois lá as pessoas são fortes, e não tolas como os franceses”. Ele não estava brincando. Apesar de ter nascido na França, desde 2013 adquiriu a cidadania russa, e abandonou definitivamente sua terra natal.

O premiado ator, muito lembrado por sua atuação como Obelix nos filmes de Asterix, na verdade não parece ter nada contra a cultura francesa em geral, mas sim uma enorme preocupação com os seus rumos políticos. Na prática, o que fez Depardieu abandonar os papéis frugais franceses e encarnar russos mais misteriosos, como o místico Rasputin, foi algo um tanto quanto prático: ele queria pagar menos impostos.

Apesar de ter origem humilde, Depardieu fez fortuna como astro do cinema europeu. Mas não foi só: ele também se tornou um grande empreendedor, dono de diversos vinhedos e restaurantes, com cerca de 80 empregados em sua folha de pagamento.

A ironia da coisa toda é que Obelix se mudou da França para a Rússia para fugir do... socialismo! Ou pelo menos é assim que ele classifica a ideologia política do atual governo de François Hollande, e a sua proposta de taxar grandes fortunas. O projeto do presidente francês foi vetado pelo Tribunal Constitucional de seu país, mas somente a possibilidade de haver passado, e que todos os franceses com renda anual acima de um milhão de euros fossem taxados em 75%, já foi motivo suficiente para Depardieu rumar para Moscou, com o aval do presidente russo, Vladimir Putin.

Estima-se que na Rússia ele não vá pagar mais do que 13% de imposto, podendo chegar a míseros 6%! E depois dizem que a Rússia é comunista...

Mas este exemplo de “fuga fiscal” passa longe de ser exclusividade da França ou de um ou outro milionário. Não importa se tiveram origem humilde e se beneficiaram do estado de bem estar social de seus países natais, a maioria dos europeus que se tornam milionários rapidamente se tornam irredutíveis defensores de baixos impostos. Taxar as grandes fortunas, então, soa quase como um ato terrorista.

Aqui no Brasil, apesar de previsto na Constituição de 1988, o imposto sobre grandes fortunas nunca passou de um “princípio de discussão” no Congresso. E, mesmo assim, sempre que o tema surge na pauta, há um verdadeiro exército midiático preparado para jogá-lo a lona o mais breve possível. Mesmo em época de pleno ajuste fiscal, falar em taxar milionários, neste país, é a heresia das heresias.

Mas é preciso reconhecer que, de fato, já existem muitos impostos no Brasil. Sobretudo para os pobres...


O imposto do champanhe
No “país do futuro”, aquele que sonha em ser uma “Suécia tropical”, temos sim uma alta carga tributária, assim como um retorno pífio nos serviços públicos que deveriam garantir o tal bem estar social “sueco”, como saúde, educação e transportes. Isso faz com que aqueles brasileiros que se consideram “classe média”, e que pagam escola e plano de saúde particular para a família, reclamem que “precisam pagar duas vezes pelo mesmo serviço”: uma pelo serviço precário que o Governo não presta, e outra pelo serviço em si, via rede privada.

Ora, disso tudo todos vocês devem saber, afinal não falei nenhuma grande novidade. De fato, isso tudo não está inteiramente errado, mas tampouco inteiramente de acordo com a realidade do país... Uma realidade, aliás, que dificilmente é mostrada nas grandes vias da mídia. Vejamos, ponto a ponto, o que precisa ser “acrescentado” aos fatos do último parágrafo:

1. O que é a tal classe média brasileira
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República determinou em 2012 que a classe média brasileira tem renda familiar per capta entre R$291,00 e R$1.019,00. Muitos de nós encaramos tais valores como absurdos, mas isso ocorre sobretudo porque temos visto muitos filmes de Hollywood. Ora, a renda da “classe média” de um país é sempre relativa à renda média de seus habitantes. Nesse caso, tais valores equivalem à renda de famílias que recém saíram da miserabilidade, e é isso mesmo o que eles refletem: que a maior parte da população brasileira é pobre, muito pobre, se comparada às classes médias dos filmes americanos.
É muito difícil que uma família brasileira que consiga pagar escolas particulares para os filhos, e planos de saúde privados, seja efetivamente de “classe média”. Segundo a média do país, seriam famílias de classe média alta, ou ricas.

2. Nossos impostos são mesmo injustos, mas não da maneira que muitos imaginam
O que torna toda essa situação ainda mais grotesca é que, comparativamente a renda, é exatamente a tal classe média brasileira que arca com os maiores impostos, talvez os mais injustos de todo o planeta.
A taxa máxima do imposto de renda no país é de 27,5%. Nesse quesito, ainda estamos mesmo distantes de uma Suécia, onde ela pode chegar a 58%. Mas, da mesma forma, estamos abaixo de muitos países desenvolvidos, como Alemanha (51%), EUA (46%) e Coreia do Sul (41%), assim como de alguns de nossos vizinhos na América Latina, como Chile (45%) e Argentina (35%).
Ora, e como nossa carga tributária total é tão alta se nosso imposto de renda passa longe de estar entre os maiores do mundo? A resposta é o que torna nossos impostos tão injustos: os impostos indiretos, que são aplicados ao consumo (e não a renda).
É assim que vivemos num país onde um quilo de arroz ou feijão, uma geladeira ou fogão, e quase tudo o que há num supermercado, possuem impostos altíssimos e fixos, ou seja: tanto um milionário quanto um miserável pagam exatamente o mesmo imposto quando fazem as compras do mês ou precisam trocar um eletrodoméstico.

3. Para os ricos, há muitos impostos “simbólicos”
Segundo o abrangente estudo do economista José Roberto Afonso, A Economia Política da Reforma Tributária: o caso Brasileiro, somente o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, arrecada mais com o IPTU, ou seja, o imposto sobre o patrimônio imobiliário, do que toda a área rural do país, com todas as grandes fazendas e latifúndios de terra (ver pág. 9 do estudo). É isso o que chamo de “imposto simbólico”, algo que existe basicamente só para os fazendeiros poderem reclamar que também pagam impostos. Ora, se isso fosse revisado e atualizado, a própria reforma agrária talvez ocorresse naturalmente, sem grandes conflitos além da chiadeira geral dos latifundiários.
É por uma razão muito parecida que pagamos o IPVA, o imposto sobre automóveis, enquanto jatinhos particulares, helicópteros e lanchas luxuosas jamais foram taxadas. Mesmo o nosso imposto sobre heranças é irrisório perto do que é praticado em boa parte do mundo.
Todo o nosso sistema tributário reflete o nosso passado de colônia e de grandes coronéis: se antes a carga pesada do trabalho recaía sobre os escravos, hoje algo muito parecido ocorre com a nossa carga tributária, que pressiona muito mais as camadas pobres da população, enquanto faz cócegas nos realmente ricos, ou nem isso...

Levando tudo em consideração, a nossa carga tributária sobre os ricos ainda é maior do que a russa, mas ao menos aqui Depardieu poderia pegar uma praia e tomar uma caipirinha, ao invés de curtir uma sauna siberiana. Em todo caso, é certamente mais vantajoso para um milionário viver no Brasil do que na Suécia ou na França, ao menos a nível de pura tributação sobre a renda.

Mas a pior notícia é que, a despeito da melhoria do padrão de vida dos nossos miseráveis nas últimas décadas, com o Plano Real e a distribuição de renda (trunfos dos governos tucanos e petistas, respectivamente), a triste realidade é que a carga tributária veio se tornando com o tempo cada vez mais injusta, isto é, aumentou como um todo, mas aumentou bem mais para as camadas mais pobres (ver pág. 9 do estudo).

E, se após décadas de governos que se dizem de esquerda ou centro-esquerda, não houve nenhuma reforma significativa que pudesse ao menos aplainar um pouco tanta desigualdade tributária, fica cada vez mais difícil imaginar que a nossa geração ainda verá um Brasil com impostos mais justos.

Mas em algum iate caríssimo, ancorado em alguma belíssima praia do nosso litoral, eles estão celebrando o “país do futuro”... Quanto será que pagaram de imposto no champanhe? Pouco lhes importa.

» Em breve, Zingales vs. Piketty...

***

» Ver os posts mais recentes desta série

Crédito da imagem: Rasputin/Divulgação (Gérard Depardieu no papel de Rasputin)

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10.7.15

Neruda, Pontual e a poesia

Jorge Pontual é um dos jornalistas mais bacanas do mundo. Além de ser especialista em relações internacionais, ciências sociais, divulgação científica e bactérias, também parece ter sido o principal responsável por trazer ao programa GloboNews em Pauta um quadro semanal onde, vejam só, recita poemas de grandes poetas da história.

Desta vez ele nos presenteou com uma primorosa tradução do poeta chileno Pablo Neruda:

Jorge Pontual recita Pablo Neruda

(clique na imagem para abrir o vídeo no site da GloboNews)

***

[A poesia]

E foi nessa idade,
chegou a poesia para me buscar...

Não sei, não sei de onde saiu,
de inverno ou rio,
não sei quando nem como...

Não, não eram vozes,
não eram palavras, nem silêncio;
mas de uma rua, me chamava...

Dos ramos da noite,
de repente entre os outros,
entre fogos violentos,
ou voltando sozinho,
ali estava, sem rosto,
e me tocava...

Eu não sabia o que dizer,
minha boca não sabia dar nome,
meus olhos estavam cegos,
e algo me golpeava a alma...

Febre? Ou asas perdidas?

E fui ficando só,
decifrando aquela queimadura,
e escrevi a primeira linha vaga;
vaga, sem corpo, pura tontice!
Pura sabedoria
de quem não sabe nada...

E vi de repente o céu,
descascado e aberto,
planetas, plantações palpitantes,
a sombra perfurada,
crivada por flechas, fogo e flores.
A noite avassaladora,
o universo...

E eu, mínimo ser,
ébrio do grande vazio constelado,
a semelhança, a imagem do mistério,
me senti parte pura do abismo,
rodei com as estrelas,
meu coração se desatou no vento...


Pablo Neruda (tradução de Jorge Pontual)


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9.7.15

Uma longa tradução (parte 2)

O grande projeto do Textos para Reflexão este ano é, como alguns devem saber, a tradução de um dos livros mais sagrados do mundo, o Bhagavad Gita (vocês podem saber mais sobre ele no artigo A sublime canção, que servirá de base para o prefácio da edição).

Conforme falei no início, estarei lhes trazendo alguns trechos desta longa tradução para que possam acompanhar o seu andamento enquanto eu não chego ao final do trabalho.

Portanto, continuando da parte anterior, segue abaixo mais um trecho do Capítulo I:


O dilema de Arjuna

Ante tal visão, Arjuna foi tomado de uma grande compaixão e pronunciou tais palavras com imensa tristeza:
Ó Krishna, ver meus parentes em ambos os lados do campo de batalha, com vontade de lutar até a morte, faz minha alma arrefecer e minha boca ressecar. Meu corpo estremece e meu pelo fica todo arrepiado. (1.27-29)

Meu arco escorrega das mãos, e minha pele se incendeia. Minha cabeça tonteia, eu mal consigo permanecer de pé. Ó Krishna, eu vejo maus presságios. Eu não vejo nenhum sentido em matar meus parentes nesta guerra. (1.30-31)

Não desejo nem a vitória nem a conquista de reino algum, ó Krishna. Qual o uso de um reino, dos espólios da guerra, ou mesmo da própria vida, se todos eles estão aqui, agora, dispostos a lutar entre si até a morte? [1] (1.32-33)

Eu não quero matar nenhum dos meus parentes, nem mesmo pelos reinos do céu, e muito menos pelos reinos da terra, ó Krishna. (1.34-35)

Ó meu amigo, que prazer nós poderemos encontrar na matança de nossos irmãos? Nesta guerra insensata tudo o que podemos colher é o remorso e o arrependimento. (1.36)

Desta forma, não devemos lutar contra nossos parentes. Como poderíamos ser felizes após matá-los, ó Krishna? (1.37)

Apesar de estarem cegos pela ganância, e não conseguirem perceber o grande mal que há na destruição de sua própria família, ou o pecado em serem traiçoeiros com seus amigos, por que nós, que podemos ver claramente esta grande calamidade, deveríamos concordar com ela, ó Krishna? (1.38-39)


(tradução de Rafael Arrais)

***

[1] No plano literal, o início do Bhagavad Gita traz uma mensagem pacifista. Já no plano mítico, Arjuna identifica os participantes da guerra aos próprios desejos. Isto é, conforme destacado no prefácio desta edição, fica claro que se trata de uma guerra psicológica. Neste caso, o leitor deve invariavelmente se identificar com o próprio Arjuna, e descobrir quem são os Kurus e os Pândavas (os pensamentos materialistas e espirituais, respectivamente) em sua própria mente. Note, entretanto, que todos eles “são seus filhos”.

» Em breve, novos trechos desta tradução...

***

Crédito da imagem: Google Image Search/God Wallpapers

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4.7.15

A linguagem divina

No início, era o silêncio...

Então, quando as primeiras nuvens de poeira
se encontraram, colidiram e formaram sóis,
não havia ninguém espreitando à beira,
ninguém para ouvir, nenhum de nós...

Desde o tempo ancestral
ao primeiro despertar da consciência,
desde o início até o longínquo final
deste inefável Dia Divinal,
o que a tudo permeia e abraça,
que não o silêncio?

Todos somos como breves sibilos,
o leve tilintar de notas musicais
que pontuam o intervalo das vidas
e das eras e civilizações humanas;
ó Sadhu, observa bem:
todos somos ancestrais!

E o que permite que todas as melodias,
todos os acordes e pontos de tambor
tornem este tempo que escorre pelas vias
uma única e grandiosa canção de amor?

Ora, já lhe chamaram de El,
Brâman, Olorun, Nhanderuvuçu,
e de Supremo Senhor do Céu.
Mesmo Parmênides e Espinosa
lhe deram o mesmo nome...
Já eu, eu lhe chamo “silêncio”.

E há aqueles que ainda seguem angustiados,
sem ter respostas para suas orações;
sem ouvir sua voz, vivem exilados
do mundo, dos seres, e dos próprios corações...

Ó Sadhu, ó Sadhu,
vai e lhes ensina
que o silêncio é a linguagem divina!
Vai e lhes diz
que nunca houve nem haverá
um momento sequer
em que Deus não esteja a lhes abarcar
e a lhes sussurrar, bem baixinho,
tudo o que nunca pôde ser dito
nem ouvido... 

“...”


raph'15

***

Crédito da foto: Petr Horálek

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2.7.15

A voz de Hanuman

Fazia em torno de três anos que Jeffrey Kagel, um típico nova-iorquino, morava na Índia, onde estudava yoga devocional no ashram de seu mestre, Neem Karoli Baba (Maharaj-ji), quando ele lhe deu uma missão: retornar a América. O que segue é o relato do próprio Kagel:

Eu estava petrificado de pavor com a ideia de retornar aos EUA após tantos anos. Fazia tanto tempo que eu não vestia calça jeans, nem sequer usava sapatos, que eu não podia imaginar como seria. Eu não queria ter perguntado, mas não pude evitar: “Mas, Maharaj-ji, como eu posso lhe servir na América?”.

Ele me encarou com um olhar zombeteiro e disse, “O que poderia ser? Se você precisa me perguntar, então não é mais o seu serviço. Faça o que tem em mente”. Eu não podia acreditar no que ouvi, eu ainda não tinha este tipo de fé; apenas fiquei ali, paralisado... Então, após aproximadamente um minuto, ele me olhou com um sorriso doce nos lábios, e disse, “E então, como você irá me servir na América?”.

Minha mente estava vazia. Já era hora de eu partir para Delhi e pegar meu voo para os EUA. Ele continuou me olhando e sorrindo. Eu me inclinei e toquei seus pés e, assim que olhei para sua face, senti como se estivesse num sonho. Eu peguei minhas coisas e parti, mas então vieram essas palavras em minha boca, quando me virei para ele e disse: “Eu cantarei para você na América!”.

Pouco tempo depois, naquele mesmo ano de 1973, numa lua cheia de Setembro, Maharaj-ji deixou este mundo. No entanto, a semente que ele havia plantado no coração de seu discípulo estava destinada a florescer; e de fato, floresceu...

Mas não foi pelo nome de Jeffrey Kagel que aquele nova-iorquino amante de música se tornou um “pop star” da música devocional hindu. Na América, assim como em todo o mundo, ele hoje é conhecido como Krishna Das.

Krishna canta principalmente mantras de devoção aos deuses hindus. Um mantra (do sânscrito, “controle da mente”) é basicamente um poderoso instrumento de auxílio na meditação e nos transes místicos. Segundo muitos psicólogos que estudaram o fenômeno, nem mesmo é necessário que entendamos o que está sendo dito nos mantras; contanto que participemos da ritualística e cantemos junto com todos, provavelmente também seremos “afetados” pela música.

Assim, Krishna canta até hoje mantras em homenagem a muitos deuses, mas em especial a Hanuman, o “deus macaco”, avatar do deus Vishnu, um dos principais deuses da mitologia hindu [1], e do qual o seu mestre era devoto. De fato, ele canta com tamanha paixão e entrega sobre Hanuman, que é quase como se fosse a sua voz descendo a Terra.

Explicar mais, com palavras, seria inútil... A música devocional, em sua lenta progressão, realmente não é para qualquer um, e certamente nada tem a ver com nossos tempos apressados; no entanto, se lhes interessar, convido-os a um mergulho na magia musical de Krishna Das:

Sundara Chalisa, mantras em homenagem a Hanuman; cantados em Maui, Havaí, em Dezembro de 2014 (acompanhar a letra, em sânscrito e inglês).

***

» Ver também o mantra para Saraswati, ao vivo em Nova York (Abril de 2014).

[1] Saiba mais sobre a mitologia hindu e seus inúmeros deuses neste episódio do excelente Conhecimentos da Humanidade.

Crédito das imagens: Google Image Search/Krishna Das/Divulgação

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