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29.7.14

Em casa no universo

O melhor que podemos fazer de nossa vida é empregá-la em alguma coisa mais duradoura que a própria vida.


A primeira vez em que ouvi falar do autor desta frase, William James, foi num livro póstumo de Carl Sagan, famoso astrofísico e divulgador de ciência do século XX. Ao organizar o livro com a transcrição de algumas palestras do marido já falecido, Ann Druyan o intitulou Variedades da experiência científica; segundo ela, como forma de homenagem a obra prima de James, Variedades da experiência religiosa.

Sagan admirava a definição de religião de James, “um sentimento de estar em casa no universo”, e a citou na conclusão de um de seus livros mais conhecidos, Pálido ponto azul. Mas as conexões entre Sagan e James não param por aí, ambos foram seres plenos de espiritualidade, e grandes investigadores do Cosmos. Talvez a diferença primordial entre o cientista e o psicólogo seja a de que o primeiro olhou, sobretudo, para as estrelas mais distantes, enquanto que o último tratou de desbravar os astros internos da mente e da alma humanas. Há espiritualidade suficiente em ambos os casos.

Apesar de ser considerado “um dos pais da psicologia moderna”, James costumava se sentir mais a vontade referindo-se a si mesmo como um filósofo. Embora a Academia se esforce para esquecer, foi também um grande estudioso da parapsicologia (de fato, pode-se dizer que foi um de seus fundadores) e, particularmente, do misticismo.

O seu Variedades da experiência religiosa é um estudo denso e profundo da mente e da alma de diversos místicos que passaram pelo seu olhar cuidadoso. Apesar de se encontrar muito longe dos costumeiros extremismos religiosos, focava suas pesquisas exatamente naqueles que passaram pelas experiências mais “radicais” no campo religioso, citando casos como os de São João da Cruz e Santa Teresa D’Ávila.

Mas, embora tratando dos astros internos, o seu método de estudo se aproximava tanto de um método científico, e suas análises eram tão profusas em racionalidade e lógica, que não é mesmo surpresa que Sagan tenha sido um de seus entusiastas, assim como alguns dos grandes intelectuais do século XX, entre eles Émile Durkheim, Edmund Husserl, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein.

Já em sua época, na transição dos séculos XIX e XX, James se esforçava para combater o materialismo científico, não num sentido de menosprezar a ciência e o empirismo, mas antes num sentido de reconhecer que a experiência mística e religiosa é de fato algo real e profundamente impactante na vida dos seres, particularmente daqueles que realmente praticam a religião. Também em sua época, James já esboçava as bases do conceito de inconsciente, que ainda seriam aprofundadas por grandes sucessores, como Sigmund Freud e Carl Gustav Jung.

Em A Vontade de Crer, também a transcrição de uma de seus conferências, dirigida aos grêmios filosóficos de duas universidades americanas (Yale e Brown), James foca exclusivamente na defesa da importância da fé religiosa, e da crença em geral, como ferramentas vitais da mente para galgar grandes conquistas. De certa forma, se nunca ninguém houvesse acreditado em nada sem antes obter comprovação empírica, e se diante de grandes desafios todos os homens e mulheres se resignassem ante as perspectivas de fracasso, talvez nem houvesse uma civilização de pé.

É óbvio que a capacidade de crer, e mais profundamente, a vontade de crer, desempenham papéis vitais em nossas vidas, ainda que muitos não queiram admitir. Nem sempre, é claro, todas as crenças serão racionais. E quase sempre, igualmente, encontraremos aqueles que exploram as crenças alheias. Mas nada disto impede que existam seres que conseguem se observar, se compreender, e viajar dentro de si, e encontrar tesouros e mistérios grandiosos, imateriais, e além de qualquer descrição que possa ser dada somente por palavras.

James foi, afinal, um daqueles raros homens que soube transitar com igual destreza entre a Academia e o Templo, entre a racionalidade e a espiritualidade, entre o empirismo e a subjetividade. James estava, de fato, em casa no universo. Mas o seu universo não se resumia ao que residia lá fora. Ele sabia, pois também contemplou tal caminho, que haviam espaços infinitos, ou quase infinitos, também dentro de nós.

***

Texto escrito para o Epílogo de A Vontade de Crer, de William James, o próximo lançamento das Edições Textos para Reflexão. Este muito especial, por se tratar da primeira tradução da mais nova integrante de nossa equipe: Hipátia (pseudônimo de Kamila Janaina Pereira), também colaboradora do blog Queremos Querer.

Crédito da imagem: Google Image Search (William James)

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24.7.14

Algoritmos

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Outro dia vi um sujeito, no metrô, usando uma cédula de dois reais como marca página de seu livro.

Imediatamente me veio a mente que o dinheiro não deveria ser usado desta forma. "Nossa, imagina se ele deixa cair sem querer!". Nós somos acostumados a dar grande valor ao dinheiro. Porém, é até estranho de se pensar, mas aquela cédula nada mais era do que um papel impresso. Ligeiramente mais fino e flexível do que um marcador de página, mas com uma imagem consideravelmente mais elaborada. Bem, um dia ainda podem criar um marcador de página que tenha a mesma imagem de uma cédula de dois reais – neste caso, restaria somente a diferença da grossura e da flexibilidade.

Quando usávamos moedas de ouro, há muito tempo atrás, era a própria moeda que tinha valor. Com o tempo, acabou ficando mais simples usarmos papeis impressos, com gravuras multicolores, para não termos de carregas sacos cheios de moedas (inclusive pelo metrô). Ocorre que tais cédulas costumavam ser rastreadas, isto é, terem uma equivalência direta ao ouro que estaria depositado nalgum cofre do respectivo Estado que imprimiu as cédulas. Mas isto durou somente até os Estados Unidos precisarem de "mais dinheiro do que tinham realmente" para continuar gastando com sua guerra no Vietnã. A "brilhante" solução foi abandonar o lastro material em ouro, e simplesmente continuar imprimindo cédulas multicolores. "Sim, não temos mais como comprovar que estes valores existem, mas se somos a Superpotência do mundo, podemos simplesmente dizer que eles existem, e se tudo correr bem vai todo mundo acreditar".

Deu muito certo. O sistema econômico da pós-modernidade é, desta forma, um grandioso sistema de crenças. Vivemos de grandes bolhas especulativas, que quando estouram revelam pequenas bolhas especulativas por dentro delas. Esperemos que ninguém nunca estoure as bolhas pequenas, pois pode ser chocante descobrirmos que, no fim, o valor que damos ao dinheiro é realmente uma crença – algo que existe somente na nossa cabeça.

Mas, afinal, e o que existe além daquilo que existe somente na nossa cabeça?

Provavelmente a natureza exista, mesmo fora da nossa cabeça. O problema é que, com o que temos feito com a natureza de nosso planeta, em nome de alguma estranha ideia de "empreendedorismo infinito", podemos chegar num ponto em que nossa existência conjunta com esta natureza fique insustentável. A natureza vai continuar existindo, mesmo aqui neste planeta – o que não temos certeza é se ainda teremos cabeças e olhos humanos para a contemplar.

Sabemos hoje que, se todo o planeta já tivesse o mesmo padrão de consumo dos cidadãos dos Estados Unidos, seriam necessários recursos naturais de cerca de três planetas e meio para fechar a conta. E ainda assim eles não estão satisfeitos. Por que ter somente um carro? Por que não ter uma máquina de lavar louça? Por que não trocar de celular a cada seis meses? "Sim, sabemos que tudo isto pode fazer mal pro planeta, mas se não continuarmos consumindo, pode ser ruim para a economia. Nosso PIB pode ficar abaixo da meta!"

É assim que, a despeito do que nos disseram sobre a democracia na escola, no final das contas parece mesmo é que somos governados por algoritmos de lucro. Há empresas tão, tão grandes, que possuem tais algoritmos em suas "metas anuais"; e são eles que determinam o que deve ser feito para maximizar os lucros. Não é a ideia de um ou outro empresário, mas uma construção coletiva. Um ideia que cresceu tanto que assumiu "vida própria". Não são os grandes empresários, os CEOs, quem governam as multinacionais, são os algoritmos de lucro.

Assim, com tanto lucro, também fica muito simples investir na política, no Grande Negócio Eleitoral. Algumas grandes empresas, como petrolíferas e empreiteiras multinacionais, financiam campanhas dos candidatos que têm alguma chance de vencer eleições. As eleições do Grande Negócio Eleitoral são caras, muito caras. Assim, somente quem tem muito, muito dinheiro, tem alguma chance de vencer. Isto porque somente quem tem como financiar grandes agentes de marketing tem alguma chance de convencer as pessoas (as filosofias e ideologias já não convencem mais ninguém, o marketing sim). Desta forma, o sistema é montado para que somente algumas poucas empresas, muito grandes e muito ricas, possam colocar seus candidatos no poder.

E assim, seguindo o plano à risca, conseguem manter a roda girando, e cada vez mais rápido, até que o mundo acabe... Não faz muito sentido, quem é que pensou que poderia dar certo?

Aí é que está: algoritmos não pensam. Algoritmos foram pensados, e quem os pensou pode nem estar mais aqui para ver como as coisas, quem sabe, não estejam enveredando para um caminho viável, digamos assim.

"Ora, mais pode ser que nem todos pereçam, que sobrem alguns poucos, e que não sejamos totalmente extintos; e então poderemos reconstruir tudo de novo."

Mas então, se já sabemos que não dará certo, por que continuar insistindo neste modelo? Por que o medo de buscar algo novo? O máximo que pode ocorrer é nos extinguirmos um pouco mais rápido, em meio a algumas guerras e conflitos que escapem de controle...

Pelo menos não teremos sido hipócritas. Pelo menos teremos sido honestos, até o fim.

Portanto, se algum país invade outro em busca de petróleo, sejamos honestos, e não inventemos que ali havia "uma luta pela democracia".

E se multinacionais vêm comprar nossas fontes de água doce, sejamos honestos, e não inventemos que elas estão apenas "investindo no mercado interno".

E se nossos gadgets mais avançados são construídos por trabalhadores escravos ou semiescravos, sejamos honestos, e não inventemos que isto se dá somente para que "a livre concorrência deixe o mercado sadio".

E se um de nossos candidatos vence a eleição com um financiamento de campanha um pouco mais robusto do que o outro, sejamos honestos, e não inventemos que havia ali "um embate de ideologias", nem muito menos que vivamos numa época de "democracia plena".

É este o meu manifesto. O manifesto pelo fim da hipocrisia.

***

Crédito da imagem: ABM/Corbis

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21.7.14

Frases (17)

Palavras aventureiras que vêm e vão. Costumam aparecer primeiro no meu twitter, e depois aqui:


"Místico: aquele que encontrou o Amor em Deus, e Deus no Amor."

"Quem sabe não exista bem o velho e o novo, mas sim a Roda e o Eixo. A Roda, que nunca acorda no mesmo local do dia que passou; e o Eixo, eterno..."

"Quem poderá saber, a cada passo dado, se somos nós quem caminhamos, ou o mundo todo que gira por debaixo dos nossos pés, imóveis?"

"Como poderíamos saber para onde devemos retornar se já não tivéssemos dançado e brincado em seu gramado, há tantas eras?"

"Não há religião além desta doce e fugidia saudade da algazarra de outrora... Além das ideias de certo ou errado, lá nos encontraremos!"


"Todo ato sexual profundo é um ato mental, uma forma de masturbação divina."

"Orgasmo: experiência religiosa, para ser realizada de olhos bem fechados."

"Há coisas que os corpos fazem que transbordam a eles mesmos, e que estão muito, muito além do pensamento e da razão..."

"É impossível tocar sem ser tocado."

"Tudo é natural. Só o amor vai além, pula por sobre, torna-se sobrenatural..."


"Enquanto os artistas fazem tão somente 'o que o povo quer ver', não são bem artistas, mas fantoches; e com fantoches no lugar de artistas, o mundo jamais caminhará a frente."

"Viver sem julgar, viver por viver, viver para amar."

"Não quero mais vencer na vida; quero brincar com ela, quero construir castelos de areia pela beira dos mundos..."

"A luz foi criada para ser refletida."


"Alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias. A espiritualidade vive de evidências subjetivas, mas extraordinárias."

"Siga a alegria em seu coração, esta que surge a cada passo dado na direção em que ele pulsa com mais vontade."

"O Cosmos é uma história de seres que vêm, que são e que vão ser..."

"Não se demore muito se indagando sobre o sentido da vida, mas busque pelo sentido que você dará a ela."


"Quando eu disse ao caroço da laranja que dentro dele dormia um laranjal inteirinho, ele me olhou estupidamente incrédulo." (Hermógenes)

***

Crédito da imagem: Bruno Walpoth (escultura em madeira)

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15.7.14

Um breve interlúdio da eternidade

É precisamente aqui
no topo destas montanhas
que fecho meus olhos e imagino,
e viajo com o vento
e observo do alto
a tudo o que corre e caminha
e ara e caça e assobia e dança
e, pelas vastas campinas, vive.

Eu vejo as fileiras de berberes em seus antigos camelos
a cruzar uma tempestade de areia.
No norte da África, este povo sobreviveu a aridez do Saara,
e ao surgimento e morte de civilizações.
Ninguém conseguiu represar seu pensamento
que, livre como o vento,
canta com certa tristeza
e também com imemorial alegria
o destino de todos aqueles que cruzaram
para o Norte, o Oriente e o Ocidente.

Eu vejo os templos de Veranasi semi encobertos pelas águas
do rio mais sagrado de seu povo.
No coração da Índia, corre o Ganges,
com suas águas a fluir das grandes alturas;
e assim, batizando a todos,
curando a todos,
embalsamando a todos,
desce o Ganges, desde o Himalaia,
e junto com ele também
vai toda uma procissão fluvial de deuses.

Eu vejo as ciganas a dançar numa praça de Skopje,
ao som dos antigos pandeiros.
Seus tecidos são como criaturas a bailar pelo ar,
e os seus corpos sensuais
nada mais são do que uma extensão de sua alma.
Ninguém sabe de onde vieram, nem para onde vão:
Macedônia, Romênia, Itália, Espanha, Portugal...
Vejo um povo que gosta de perder países
e que jamais encontrou qualquer fronteira
ou muro em seu caminho.

Eu vejo uma roda de samba nos Arcos da Lapa,
e ouço o murmúrio dos escravos vindos da África
tornado amarga alegria.
A sua volta, representantes de diversos povos do globo
arriscam passos desengonçados
numa tentativa de dançar como os negros brasileiros;
mas somente um povo que tanto sofreu
e que guardou todos os seus mitos lá no fundo do coração
pode dançar este samba.

Eu vejo uma grande festa
num bar na cobertura de um dos arranha-céus
da cidade no centro do mundo – ó Nova York!
Vejo uma grande reunião de povos,
viajantes genéticos dos confins da Terra,
que celebram ali
toda a vã alegria da pós-modernidade.
Vejo seres abatidos por um grande esquecimento
das celebrações ancestrais
ao redor de fogueiras
e debaixo de uma vastidão de tribos estelares.

Vejo, enfim, um grande comboio de almas
a singrar em ziguezague pelo mundo,
a ir e voltar e ainda assim
jamais sair do lugar.
E vejo também
a beira das estradas
e a beira das estrelas
os instrutores desconhecidos
a cuidar e amar
cada uma delas,
sem exceção!

E após contemplar a tudo isso,
e após meditar acerca disso,
e refletir adentro
este breve interlúdio da eternidade,
é que posso ver
o que Deus vê
ao olhar para si mesmo
a cada momento,
desde que decidiu imaginar a Tudo,
a Tudo!


raph’14

***

Crédito da foto: APOD

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10.7.14

669 razões

Sir Nicholas Winton

Há muitas histórias de homens e mulheres que se tornaram celebridades por seus feitos heroicos, mas casos como o de Sir Nicholas Winton não são tão fáceis de se encontrar. Hoje Winton tem mais de um século de idade, mas o que ele realizou pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, segundo ele próprio, "não foi nada de heroico". Winton apenas tentou salvar o máximo de crianças judias que fosse possível da então Tchecoslováquia, evitando sua morte certa nos campos de concentração nazistas, porque "existia alguma chance de ser possível".

Winton acabou conseguindo trazer 669 crianças para a Inglaterra, com a ajuda do governo inglês e sueco (muitos outros governos europeus da época se recusaram a receber as crianças, e alguns até fecharam as fronteiras, impedindo que elas atravessassem seus territórios), mas depois não achou relevante contar para ninguém sobre o seu feito - nem mesmo para sua mulher. Ao arrumar o sótão de casa, ela descobriu por acaso, num velho álbum coberto de poeira, fotos de crianças, cartas e telegramas, e uma lista com nomes e datas de viagens de trens. Foi ela quem revelou ao mundo o feito do marido.

As 669 crianças tchecas salvas jamais viram novamente seus pais - todos, sem exceção, foram mortos pelos nazistas. Mas muitas delas seguiram suas vidas, adotadas por famílias ou vivendo em abrigos e orfanatos ingleses. Tais crianças se tornaram escritoras, jornalistas, engenheiros, biólogos, construtores, guias turísticos e até mesmo cineastas... Muitas, sabendo da história de como foram salvas, também se tornaram adultos generosos, adotando outras crianças e se dedicando ativamente a caridade.

Winton só lamenta que o último trem, que traria mais 250 crianças para a Inglaterra, não tenha conseguido sair da Tchecoslováquia - a guerra havia iniciado, e as fronteiras já se encontravam fechadas. Nenhuma das crianças que não conseguiram embarcar sobreviveu, morreram nos campos de extermínio junto com suas famílias.

Difícil imaginar o que se passa no coração e na alma de um homem como Winton. Difícil imaginar a alegria de haver salvo 669, e a tristeza de haver perdido as 250 do último trem. Há muita gente que acha a vida tediosa e monótona, e outros um grande sofrimento, há muita gente que não consegue encontrar uma razão para continuar tocando a vida, para viver com esperança e alegria duradouras - Sir Nicholas Winton encontrou 669 razões.

Um dia um programa de TV inglês encheu um auditório com boa parte das crianças que Winton havia salvo, naquela época já bem adultas - sem que ele soubesse. O que se seguiu, quando foram apresentadas, demonstra o quão maravilhosa pode ser a resposta da Vida a quem, um dia, fez o possível para a preservar (ver a partir de 6:25, no vídeo abaixo):

"Quem, na plateia, teve a vida salva por Nicholas Winton, fique de pé, por favor."

Trecho do programa Fantástico, da Rede Globo, exibido em 23/12/2007.

***

Crédito das fotos: Arquivo de Nicholas Winton (fotos da época em que recebeu as crianças na Inglaterra, e de dias mais atuais)

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6.7.14

As cartas de Deus

Poema de Walt Whitman em "Folhas de Relva" (Ed. Martin Claret). Tradução de Luciano Alves Meira. O comentário ao final é meu.


Eu disse que a alma não é mais do que o corpo,
e disse que o corpo não é mais do que a alma,
e nada, nem Deus, é maior para um ser do que esse ser para si mesmo,
e quem quer que ande um estádio sem solidariedade caminha para seu próprio funeral vestindo sua mortalha,
e eu ou tu sem um centavo no bolso podemos comprar a nata da terra,
e vislumbrar com um olho, ou apresentar um grão na sua vagem, confundindo o conhecimento de todas as eras;
e não há negócio ou emprego em que um jovem, seguindo carreira, não possa se tornar um herói;
e não há objeto que seja tão delicado que não posso funcionar como o centro em que se ligam todas as rodas que movem o Universo;
e digo para qualquer homem ou mulher, “Deixe que sua alma esteja tranquila e íntegra perante um milhão de universos.”

E digo para a humanidade, “Não tenha curiosidade sobre Deus”,
pois eu que sou curioso sobre todas as coisas não tenho curiosidade alguma sobe Deus.
(Não há uma gama de termos grande o suficiente com a qual eu possa dizer o quanto estou em paz sobre Deus e sobre a morte.)

Ouço e observo Deus em todos os objetos e ainda assim não compreendo Deus minimamente;
não posso compreender quem possa haver que seja mais maravilhoso do que eu.

Por que eu deveria ver Deus melhor do que este dia?
Eu vejo algo de Deus a cada hora das vinte e quatro horas do dia, e a cada momento,
nos rostos dos homens e mulheres eu vejo Deus, e em minha própria face no espelho;
encontro cartas de Deus espalhadas pelas ruas e todas elas são assinadas por Ele,
e deixo-as ficar onde se encontram, pois sei que onde quer que vá,
outras virão pontualmente – para toda a eternidade.

***

Grandes místicos e poetas não precisam ir longe para encontrar a Deus, e tampouco têm curiosidade sobre tal encontro.
Eles quebram um galho seco, removem uma pedrinha do lugar, observam a relva que preenche os campos, e não estão curiosos acerca do mistério divino.
Eles vivem este mistério, e leem a assinatura divina em cada pequeno pedacinho do Cosmos.
E eles vivem isto neste momento, pois não poderia haver outro.
E eles sabem que estão em Deus e Deus está neles, pois não haveria nenhum outro lugar onde um ou outro pudessem estar.
Não há neste vasto Universo, tampouco num milhão deles, alguém tão maravilhoso quanto você.
Não há nenhum grande herói ou vilão dos mitos de outrora que não seja você mesmo, e não há nenhum deus que não contemple a humanidade inteira.
De fato, não há nenhum deus além deste que sempre esteve ainda mais próximo de ti do que o seu próprio olho.
Não há, enfim, uma gama de termos grande o suficiente para descrever o que Walt Whitman sentia no momento em que escreveu tais palavras.
E palavras são somente as cascas do que se sentiu, os rascunhos da Eternidade, a flutuar pelos campos como as folhas secas carregadas pelo vento outonal...
Você pode ler suas assinaturas?

***

Crédito da imagem: Joel "Boy Wonder" Robinson

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1.7.14

A educação de Casanova, parte 7

A educação de Casanova

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 6


7.

Ainda ficamos por lá algumas horas, até que todas estivessem saciadas e dessem a noite por encerrada – para o alívio dos ursos dançarinos, que já mal conseguiam se manter rígidos... E todas foram embora, menos uma, envolta num vestido vermelho, azul e roxo, esvoaçante, que parecia ser formado por mil e um véus.

Então, ela se levantou e caminhou em nossa direção. Ela sabia de nossa presença todo o tempo! Eu deveria parecer surpreso, mas alguma coisa nela me era estranhamente familiar... Não sei se era o perfume do oeste, ou o seu olhar árabe, que parecia conter inúmeros oásis e seus desertos, mas algo em minha alma me confidenciou que se tratava da distinta amante de meu amigo.

“Sua mulher?” – eu perguntei a Asik.

“Eu a amo, mas ela não é minha.”

Sim, com isso meu amigo quis dizer que não havia o conceito de propriedade no amor que eles partilhavam. Eu já havia tido lições demais, e pelo menos isto eu aprendi, pelo menos isto!

Mesmo assim, havia ainda tantas dúvidas, tantas curiosidades acerca dela e da relação dos dois. Mas, ante tamanha beleza bronzeada pelo sol do oriente, eu não tive outra reação que não emudecer, e esperar que ela se apresentasse.

“Meu nome é Duniazade, mas pode me chamar de Dunia” – disse, estendendo a mão para que a beijasse, e nela havia dúzias de pequenas mandalas tatuadas, que mais pareciam algum código para antigos rituais de amor...

“Quando lhe vi, me pareceu familiar... Você já esteve em Veneza?”

“Nunca, mas me convide e um dia irei. O que lhe pareceu familiar não fui eu, Giacomo, mas o reflexo de Asik em mim.”

“Como assim?”

“Nós nos amamos profundamente, de modo que já não há, entre nossos corações, uma distância tão grande. Assim, de certa forma, é como se entre eu e ele, não houvesse nem um “eu”, nem um “ele”.”

“Me perdoe, mas como pode ser isso? Você estava aqui hoje e noutra noite eu e Asik estávamos em Beyazit, num caba...” – eu interrompi subitamente o que iria dizer, embora na verdade não houvesse razão para tal, foi tão somente um velho hábito compartilhado pelos homens, que ainda não havia ido embora...

“Num cabaré, Giacomo. E ela soube de tudo o que ocorreu por lá, pois temos muita curiosidade sobre as experiências um do outro, e sobre as amizades que cultivamos. Tudo o que tange os caminhos dos corações humanos nos interessa, cada pequeno olhar amoroso não nos passa desapercebido. O que alimenta nossas almas é este desejo de um pelo outro, e de todos por todos, é a esperança de um novo amanhã, de que o parto de um novo mundo finalmente se concretize...” – completou Asik.

Mas vocês não sentem desejos? Não traem?

“Meu amigo,” – prosseguiu – “sentimos muitos desejos, e cada vez mais intensos. Mas muitos dos desejos de outrora, superficiais, bestiais, já foram domesticados. Nós jamais trairíamos um ao outro por conta de uma noite de sexo, se é a sua dúvida. Mesmo esse termo que usam, “traição”, denota alguma espécie de “promessa” ou “contrato nupcial”, e já lhe esclareci que não acreditamos neste tipo de coisa. Em todos esses séculos, já tivemos experiências com outros seres, isto é bem verdade, mas perto de nosso amor, elas são como pequenos córregos fluindo para o oceano. No fim, tudo deságua na Alma do mundo, e nós somos parte desta corredeira, nós afluímos junto como o amor de todos, mas é em nossa união, em nosso entrelaçamento, que vislumbramos ao grande plano da Vida, e não trocaríamos tal experiência por nada nesse mundo!”

“E como é esse plano, o que os deuses lhes dizem quando estão conectados neste amor?”

Foi neste momento que Dunia se aproximou e sussurrou parte da resposta em meus ouvidos. E foram poucas palavras, mas que não podem ser transmitidas, já que palavras são tão somente cascas de sentimentos, e palavras de amor são como fagulhas da eternidade, que brilham intensas como explosões solares, mas que só podem ser compreendidas por quem sente parte desse calor.

Meus amigos, afinal, viveram por muitas eras, e já haviam caminhado por muitos desertos e muitas ruínas de civilizações, assim como por muitas novas plantações, e promessas de eras vindouras. Continuar ao seu lado seria como ser carregado no colo por algum anjo, e já era tempo de eu recomeçar a caminhar com minhas próprias pernas.

E, se eles já estavam tão adiantados no caminho, em nenhum momento os invejei, pois sabia que haviam passado pelos mesmos espinhais e deixado seu rastro de sangue em muitos espinhos. Asik havia me reeducado na Grande Arte da Putaria – ou Grande Arte do Amor, pois nomes são apenas nomes –, e agora era a minha vez de me aventurar novamente, de peito aberto, neste grande campo onde a Vida encena e reencena sua dança ancestral.

“Adeus, meus amigos, e até breve... Mas, vocês têm alguma sugestão para onde poderei ir a seguir?”

“Rume para o sul, Giacomo, para além do Amazonas. Soube que há uma grande festa por lá” – respondeu Dunia.


***

Esta foi a sétima parte de A educação de Casanova, por raph em 2014.
Comece a ler do início | Veja a oitava parte


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