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27.7.10

Poemas vivos

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Manuel Bandeira (poema "Preparação para a morte")

***

A morte não é nada.
Apenas passei ao outro mundo.
Eu sou eu. Tu és tu.
O que fomos um para o outro ainda o somos.

Dá-me o nome que sempre me deste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom a um triste ou solene.
Continua rindo com aquilo que nos fazia rir juntos.

Reza, sorri, pensa em mim, reza comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa
como sempre se pronunciou.

Sem nenhuma ênfase, sem rosto de sombra.

A vida continua significando o que significou:
continua sendo o que era.
O cordão de união não se quebrou.
Porque eu estaria fora de teus pensamentos,
apenas porque estou fora de tua vista?

Não estou longe,
Somente estou do outro lado do caminho.
Já verás, tudo está bem.
Redescobrirás o meu coração,
e nele redescobrirás a ternura mais pura.
Seca tuas lágrimas e se me amas,
não chores mais.

Atribuído a Sto. Agostinho

***

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais:
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
Neófito, não há morte.

Fernando Pessoa (poema "Iniciação")

***

Sob a impressão de tais poemas, espero conseguir extrair do Alto a inspiração necessária para a próxima série de artigos – Quase Morte...

Crédito da foto: vribeiro

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23.7.10

Agora também sou colunista do Entrementes

Não sei se foi estranha sincronicidade, mas logo após ser convidado para participar com artigos do blog no Projeo Mayhem Wiki, também recebi o convite para participar como colunista da Entrementes.

Entrementes é uma Revista Digital de Cultura que foca as quatro áreas do conhecimento humano: Arte, Ciência, Filosofia e Cosmovisão. Sua proposta é a divulgação de toda e qualquer manifestação cultural disponibilizando espaço para os artistas, filósofos, cientistas, poetas e todos os buscadores de conhecimento por meio de publicações, promoções de eventos e registros de atividades realizadas.

» Veja artigos de Rafael Arrais em sua coluna no Entrementes


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21.7.10

Reflexões sobre a perfeição, parte 4

Continuando da parte 3

O caminho do pólen

Se há algo de comum em todas as doutrinas religiosas, é a idéia do retorno, de re-conexão com Deus, o Cosmos, um Éden perdido nos confins de nossas origens... Alguns de nós podem sentir a fornalha cósmica que arde em nosso ser, e vislumbram a perfeição na totalidade da obra divina, em eterna vibração, em eterna construção, em belas simetrias e assimetrias, em leis imutáveis... Entretanto, onde estará o Éden. Onde se encontra o Reino de Deus?

Esse sentimento, entretanto, não é exclusividade dos religiosos. Aqueles que não conheceram pouca ciência também o expressam. Carl Sagan, apesar de ter sido agnóstico, foi uma dos autores com maior espiritualidade expressa e evidente em seus textos:

"Recentemente, aventuramo-nos um pouco pelo raso (do Cosmos), talvez com água a cobrir-nos o tornozelo, e essa água nos pareceu convidativa. Alguma parte de nosso ser nos diz que essa é a nossa origem. Desejamos muito retornar, e podemos fazê-lo, pois o Cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar, somos uma forma do próprio Cosmos conhecer a si mesmo."

Sim, existem seres que não conheceram pouca religião, e buscam o Reino de Deus em todas as formas e todos os campos, pois que sabem que em nenhum lugar estaremos nalguma dia fora dele... Mas decerto também existem seres que não conheceram pouca ciência, e O buscam nos limites dos átomos e nas ondas luminosas mais antigas do Cosmos. Buscam-No mesmo sem acreditar Nele? Que seja – como julgar? Deixem que busquem o próprio Cosmos!

Mas então, como se religar? Como retornar ao Éden perdido? Talvez o primeiro passo seja reconhecer que o julgamento da perfeição, a reconciliação com tal paradoxo, esteja ainda além de nossa compreensão atual...

Existe um conto espiritualista, de autoria desconhecida, que fala da importância da espontaneidade:

“Agora, eu lhe pergunto, quão longe você acha que uma flor chegaria se de manhã ela virasse sua face para o céu e dissesse:

"Eu exijo o Sol. E agora eu preciso de chuva. Então eu a exijo. E exijo que as abelhas venham e tomem meu pólen. Eu exijo, portanto, que o Sol deva brilhar por certo número de horas, e que a chuva deva verter-se por certo número de horas... E que as abelhas venham – as abelhas A, B, C, D e E, pois não aceito que nenhuma outra abelha venha.

Eu exijo que a disciplina opere, e que o solo deva seguir meu comando. Mas eu não permito ao solo qualquer espontaneidade própria. E não permito ao Sol nenhuma espontaneidade própria. E não concordo em que o Sol saiba o que está fazendo. E exijo que todas estas coisas sigam minha idéia de disciplina"

E quem, eu lhe pergunto, iria ouvir? Pois, na espontaneidade milagrosa do Sol, há uma disciplina que lhe escapa totalmente, e um conhecimento além de qualquer um que você conheça.

E na espontaneidade da atuação das abelhas, de flor em flor, colhendo ao pólen mesmo sem saber, há uma disciplina além de qualquer uma que você conheça, e leis que seguem o conhecimento delas, e contentamento que está além de seu comando.

Pois a verdadeira disciplina, veja, é encontrada apenas na espontaneidade. E a espontaneidade conhece sua própria ordem.”

Viver o aqui e agora – esta é a condição para que possamos visualizar os portais do Éden... Mas como adentrá-lo finalmente?

Epicteto e os estóicos diziam que não devemos nos preocupar com aquilo que não nos é dado escolher. No entanto, ao que nos é dado escolher, devemos nos portar da melhor forma possível. Devemos reconhecer nossa imperfeição, mas devemos também ter sempre em nossos horizontes a perfeição do “vir a ser”...

E nesse momento, admirando a perfeição estendida pelo horizonte, poderemos dar os primeiros passos no caminho do pólen – apenas um dentre tantos outros cantos sagrados dos indígenas (ou de qualquer outro povo) que servirá para nos guiar nessa trilha:

Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen
Com um deus enevoado eu me aventuro
No caminho do pólen
Para uma dimensão sagrada
Com um deus à frente eu me aventuro
E um deus atrás de mim
Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen

Ah! A beleza à minha frente
A beleza atrás de mim
A beleza a minha direita, e a minha esquerda
A beleza acima e a beleza abaixo
Eu estou no caminho do pólen!

O Éden não foi, nem será, mas o Éden é este momento – o único momento que sempre existiu. A eternidade irradia-se por todos os cantos do espaço e do tempo, todos os pontos estão igualados – eis a bela simetria que a ciência vislumbra...

Mas o caminho para o centro, para a essência, para a divina flor que espalhou todo esse pólen pelo infinito – este está e sempre esteve em nossa própria consciência. Quando adentramos esse caminho, pouco importa quanto tempo resta para chegar ao céu, pois que compreendemos que a perfeição se encontra no caminhar, e não no chegar. Eis que mesmo este paradoxo pode ser reconciliado. Eis que todas essas meias-verdades apontam para uma única verdade – que infelizmente não pode ser descrita por cascas de sentimento...

É preciso se aventurar no caminho!

***

Crédito das imagens: [topo] Lauren Bishop, [ao longo] Joel Nakamura (ilustração baseada no mito do caminho do pólen, dos índios navajo)

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20.7.10

Reflexões sobre a perfeição, parte 3

Continuando da parte 2

Em busca da Teoria do Tudo

Tenho um amigo matemático – Guilherme Tomishiyo – que ousa afirmar que a matemática é mais arte do que ciência. Vejamos seu pensamento acerca do assunto:

“O motivo pra mim da matemática não ser uma ciência, ao menos uma ciência natural – que estuda a natureza –, é que ela não parte de observações da mesma.

Um matemático não analisa um aspecto do mundo natural e tenta traduzir aquilo. Ele parte de axiomas e constrói daí um sistema lógico. Eu diria que ela é o estudo dos padrões. Quem estuda matemática sabe que números são apenas uma parte, a grande maioria dela não está nem um pouco relacionada com isso.

Uma coisa que eu acho estupidamente bela na matemática é o seu aspecto ontológico. Daqui a mil anos, podemos descobrir que Einstein esteve errado, e a sua teoria inteira não passava de um caso particular de uma teoria mais geral (como foi com Newton), mas daqui a 10 mil anos, o Teorema de Pitágoras continuará sendo verdadeiro, assim como todos os teoremas já demonstrados até o momento.

O teor artístico da matemática é inegável. A criatividade – mesmo para conjecturar alguns fatores – é sublime.”

Por muitos e muitos anos a física experimental esteve sempre à frente da física teórica – primeiro a natureza era observada, experimentada, e somente após os cientistas tentavam explicar o mecanismo natural através de suas equações e teorias... Ultimamente, entretanto, isto se inverteu...

Desde a formulação das teorias da relatividade e da mecânica quântica, os físicos vêm tentando unir todas as forças da natureza em uma espécie de Teoria do Tudo. Assim como Maxwell conseguiu unificar a eletricidade e o magnetismo em uma elegante matemática, Einstein e muitos outros gênios científicos vêm tentando unir o eletromagnetismo as forças nucleares (forte e fraca) e a gravidade. Até agora, a única teoria que obteve sucesso considerável foi à teoria das supercordas ou Teoria-M (não me pergunte sobre o que significa o “M”).

Essa teoria postula que os elementos mais fundamentais da matéria não são pontos e/ou partículas, e sim cordas muito, muito pequenas, em eterna vibração... Da amplitude de suas vibrações partículas de maior ou menor massa são criadas, e o universo se trona uma elegante sinfonia cósmica.

O grande problema da Teoria-M, entretanto, é que ela não pode ser testada! Não dispomos da tecnologia necessária para chegar sequer próximo da energia necessária para detectarmos uma supercorda (ou p-brana). Entretanto, físicos de toda a parte do mundo a estudam a décadas, simplesmente porque sua matemática lhes parece bela e simétrica, com a vantagem de que a gravidade se adequou as suas equações desde os primeiros esboços da teoria. Mas, seria esse sentimento de beleza suficiente para garantir a veracidade de uma teoria?

Brian Greene, um dos grandes defensores da Teoria-M, admite que a simetria da natureza atraí certos cientistas:

“Os cientistas descrevem duas propriedades das leis físicas - o fato de que elas não dependem da ocasião (tempo) ou do lugar (espaço) em que foram invocadas - como simetrias da natureza. Com isso eles querem referir-se ao fato de que a natureza trata todos os momentos do tempo e todos os lugares do espaço de forma idêntica - simétrica -, fazendo com que as mesmas leis estejam em operação em todas as partes. O efeito causado por essas simetrias é o mesmo que exercem na música e na arte em geral - o de uma profunda satisfação; eles revelam ordem e coerência no funcionamento da natureza. A elegância, a riqueza, a complexidade e a diversidade dos fenômenos naturais que decorrem de um conjunto simples de leis universais é parte integrante do que os cientistas querem dizer quando empregam o termo "beleza".”

Já o físico brasileiro Marcelo Gleiser recentemente passou a criticar ferozmente esse tipo de “utopia estética” na ciência:

“A noção de que a natureza é perfeita e pode ser decifrada pela aplicação sistemática do método reducionista precisa ser abolida. Muito mais de acordo com as descobertas da ciência moderna é que devemos adotar uma abordagem múltipla, e que junto ao reducionismo precisamos utilizar outros métodos para lidar com sistemas mais complexos. Claro, tudo ainda dentro dos parâmetros das ciências naturais, mas aceitando que a natureza é imperfeita e que a ordem que tanto procuramos é, na verdade, uma expressão da ordem que buscamos em nós mesmos.
 
É bom lembrar que a ciência cria modelos que descrevem a realidade; esses modelos não são a realidade, só nossas representações dela. As "verdades" que tanto admiramos são aproximações do que de fato ocorre. As simetrias jamais são exatas. O surpreendente na natureza não é a sua perfeição, mas o fato de a matéria, após bilhões de anos, ter evoluído a ponto de criar entidades capazes de se questionarem sobre a sua existência.”

Espinosa concluiu que o conceito de perfeição só pode ser aplicado às obras humanas, pois que essas podem já ter terminado... Como os quadros e as esculturas dos grandes artistas da Renascença. Talvez o mesmo possa ser dito dos teoremas matemáticos – que são perfeitos porque já foram terminados... Mas, e o que isso tem a ver com a natureza, com a imensidão cósmica a nossa volta?

Eu disse que muita ciência e/ou muita religião nos aproximam e desvelam a Deus... Mas não seria então um “deus imperfeito”? Um “deus ausente” que irradiou o Cosmos à partir de si mesmo somente para deixar-nos a mercê desse eterno baile de partículas e poeira? Existe algum sentido em todo esse infinito a nossa volta? Onde estará à perfeição prometida pelos profetas, o céu que aguardamos para descansar?

Isso nós descobriremos a seguir, seguindo pelo caminho do pólen (dentre outros)...

***

Crédito da imagem: mib_hr

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Reflexões sobre a perfeição, parte 2

Continuando da parte 1

O paradoxo da perfeição

Espinosa nos será de valioso auxílio na definição mais aprofundada da perfeição:

“Quem decidiu fazer alguma coisa e a concluiu, dirá que ela está perfeita, e não apenas ele, mas também qualquer um que soubesse o que o autor tinha em mente e qual era o objetivo de sua obra ou que acreditasse sabê-lo. Por exemplo, se alguém observa uma obra (que suponho estar inconclusa) e sabe que o objetivo de seu autor é o de edificar uma casa, dirá que a casa é imperfeita e, contrariamente, dirá que é perfeita se perceber que a obra atingiu o fim que seu autor havia decidido atribuir-lhe. Mas se alguém observa uma obra que não se parece com nada que tenha visto e, além disso, não está ciente da idéia do artífice, não saberá, certamente, se a obra é perfeita ou imperfeita. Este parece ter sido o significado original desses vocábulos. Mas, desde que os homens começaram a formar idéias universais e a inventar modelos de casas, edifícios, torres, etc., e a dar preferência a certos modelos em detrimento de outros, o que resultou foi que cada um chamou de perfeito aquilo que via estar de acordo com a idéia universal que tinha formado das coisas do mesmo gênero, e chamou de imperfeito aquilo que via estar menos de acordo com o modelo que tinha concebido, ainda que na opinião do artífice, a obra estivesse plenamente concluída. E não aprece haver outra razão para chamar, vulgarmente, de perfeitas ou imperfeitas também as coisas da natureza, isto é, as que não são feitas pela mão humana.”

De acordo com Espinosa, somente as obras humanas podem ser – talvez – perfeitas, porque somente essas estarão algum dia concluídas... Observamos os quadros de Da Vinci ou as esculturas de Michelangelo e somos praticamente obrigados a admitir que ali não falta nenhuma pincelada, nenhuma lasca a ser lapidada. Essas obras são perfeitas não pela sua utilidade prática e/ou física, mas pela impressão que provocam na alma dos admiradores.

Já as obras naturais estão em constante afloramento. Tudo vibra, tudo se movimenta e se influencia mutuamente, tudo evoluí – a matéria rumo a desordem, e a vida rumo a alguma espécie de perfeição... Foi o próprio Darwin que afirmou que o desenvolvimento das espécies tendia a perfeição, e disse mais:

“Há grandeza nesta concepção de que a vida, com suas diferentes forças, foi alentada pelo Criador num curto número de formas ou numa só e que, enquanto este planeta foi girando segundo a constante lei da gravitação, desenvolveram-se e se estão desenvolvendo, a partir de um princípio tão singelo, infinidades de formas as mais belas e portentosas.”

A natureza é, portanto, um eterno “vir a ser”... Uma obra inacabada, sendo esculpida e imaginada pelas leis naturais desde que algo surgiu da substância primeira... A substância que não poderia ter criado a si mesma, e que por isso mesmo – como nos explica tão bem Espinosa em sua “Ética” – há de ter irradiado tudo o que há de si própria, como o pólen exalado pelas flores.

Quando se pensa sobre o início do universo, os primeiros momentos após o Big Bang, e se percebe que se não fosse por uma assimetria entre a matéria e a anti-matéria, além de várias outras assimetrias e/ou “ajustes” mais ocultos, não existiriam estrelas, nem planetas, e muito menos vida biológica, chegamos à conclusão de que nossas utopias acerca da perfeição talvez tenham sido um pouco apressadas...

Afinal, o que há de mais perfeito do que o vácuo, o vazio? Tudo ordenado. Nenhum som. Nenhum movimento brusco. Nenhum pensamento desordenado. Nenhuma luz... Apenas a perfeita escuridão do Grande Nada. Em realidade, nada seria mais terrível e assombroso do que esta perfeição.

Porém, por alguma razão, a substância primeira não irradiou a tudo de forma perfeita, absolutamente simétrica, ordenada... Assim como até hoje podemos perceber – através dos instrumentos que possibilitaram os experimentos da física quântica – que no seu estado mais fundamental a realidade é um baile frenético e caótico de partículas, nada nos diz que essa idéia de perfeição absoluta seja realmente perfeita!

A perfeição é um conceito humano. Como tal, talvez possa ser aplicado as grandes obras de arte, as mais belas músicas e poesias, a mais sofisticada literatura... Mas, no campo natural, tal conceito torna-se um paradoxo. O paradoxo da perfeição: quando o imperfeito é perfeito, e vice-versa.

Afinal, se Deus houvesse criado seres perfeitos, não seriam seres e sim máquinas, robôs programados para uma perfeição artificial... A perfeição da “benção divina”, e não da conquista própria, da edificação de nossa própria obra. O Cosmos é uma obra de arte, sim, não há duvidas... Mas não é humana, é divina – e como tal, ainda está sendo edificada (ao menos dentro do tempo dos homens).

Carl Sagan dizia que nós somos uma forma do Cosmos conhecer a si mesmo... Ao alcançarmos a consciência, chegamos ao estágio em que podemos caminhar com as próprias pernas, pensar por nós mesmos, e não mais apenas participar da criação como figurantes, mas como verdadeiros agentes criativos.

Aqueles que conheceram pouco da ciência talvez tenham se afastado de um deus humanizado, incompatível com a imensidão cósmica. Da mesma forma, aqueles que conheceram pouco da religião talvez tenham sido ludibriados por um deus que opera por barganhas – prometendo o céu a alguns de seus escolhidos –, incompatível com a infinita diversidade da vida.

Entretanto, aqueles que arriscaram olhar um pouco mais profundamente na noite de sua própria alma talvez tenham achado mais estrelas do que escuridão e vazio... Talvez tenham, como Espinosa, encontrado a evidência da substância primeira, aquela que não pode ter criado a si mesma. Aquela substância que, desde os primórdios do Cosmos, vêm tecendo uma bela teia imperfeita, mas que tende a perfeição...

A seguir, a busca da perfeição na ciência – seria a matemática uma arte?

***

Crédito da foto: Kenneth Libbrecht/Visuals Unlimited/Corbis (cristal de gelo - não absolutamente simétrico, ademais belo)

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19.7.10

Reflexões sobre a perfeição, parte 1

A perfeição é um estado de completude e ausência de falhas. Normalmente atribuímos a perfeição a um Criador, um Ser Perfeito ou as Leis da Natureza.

Natureza imperfeita

Ante a grandiosa perplexidade que a observação profunda da natureza nos imprime a alma, somos inexoravelmente levados a crer que o Cosmos – tudo o que há, que foi ou que será – é perfeito. Apesar de ser muitas vezes complexo para nós definir tal perfeição, quase sempre a associamos com a beleza, a simetria, a homogeneidade das formas naturais.

Na geometria a perfeição parece estar associada ao círculo: um espaço onde todos os pontos estão à mesma distância do centro, e conseqüentemente não temos nenhum ponto em posição privilegiada em relação aos demais. Essa igualdade nos parece sublime, e muitas vezes a tentamos traduzir para a realidade, tanto que muitos símbolos e signos da geometria sagrada se baseiam ou contém o círculo... Entretanto, ainda temos o ponto central do círculo – este está em posição privilegiada, na medida em que está a mesma distância de todos os demais. O centro é necessário para que os outros pontos se sintam em igualdade. Retire o centro e teremos novamente uma guerra em busca do ponto de superioridade. É mais simples supor que Deus está no centro. A mente de Deus, o motor inicial do Cosmos, a essência da natureza – aí está a perfeição!

Porém, quando aplicamos essa noção ao espaço-tempo, não temos o resultado que esperaríamos. Segundo a cosmologia, é impossível definir um “centro espacial” do universo. Certamente segundo a teoria do Big Bang, toda a matéria e energia cósmica foi catapultada de um mesmo “ponto inicial”, mas o espaço-tempo cresceu por igual em todas as direções. É como se o próprio centro crescesse ele mesmo, e não os pontos que estavam a sua volta... Nenhum ponto do universo está “em torno de algum centro”, pois que todo o espaço-tempo é ele mesmo um único ponto original que simplesmente cresceu rumo ao infinito. Não há nada fora nem além do universo – e, se é que há, haverá de ser o que o criou.

Costuma-se imaginar que a natureza é perfeita. Perfeita, simplesmente porque é o que havia já aqui muito antes de nós chegarmos (ou pelo menos, muito antes de nossa lembrança de estarmos conscientes da chegada). Como imaginar uma natureza imperfeita? Como imaginar falhas no projeto da criação? A ciência tem descoberto algumas...

Por exemplo: a grama é verde por causa do pigmento clorofila, que absorve as regiões azuis e vermelhas do espectro eletromagnético da luz solar. Por causa dessas absorções a luz que a grama reflete nos parece verde. Entretanto, as regiões verdes e amarelas do espectro da luz solar são as mais energéticas. Portanto, se formos pensar em perfeição no sentido de funcionalidade, a fotossíntese das plantas traria muito mais energia química caso a clorofila absorve-se as regiões verdes e amarelas do espectro, ao invés de absorver as regiões azuis e vermelhas. Seria isso um “erro de design” da natureza?

Não paremos por aqui. Se a grama parece ter “escolhido a cor errada”, mesmo o tão aclamado “projeto homo sapiens” parece ter os seus erros... Soluços, por exemplo, que variam de um aborrecimento passageiro a uma doença que pode durar meses ou, em raríssimos casos, anos. O soluço é provocado por um espasmo de músculos na garganta e no peito. O som característico é produzido quando inspiramos ar repentinamente enquanto a epiglote, uma aba de tecido macio localizada no fundo da garganta, se fecha. Todos esses movimentos são involuntários; soluçamos sem nem pensar no assunto. Os soluços revelam pelo menos duas camadas da nossa história evolutiva: uma parte compartilhada com os peixes e outra com os anfíbios, de acordo com uma teoria bem fundamentada [1].

Herdamos dos peixes os nervos principais usados na respiração. Um desses conjuntos de nervos (frênico) estende-se da base do crânio ao tórax e ao diafragma. Esse caminho sinuoso cria alguns problemas; qualquer coisa que interrompa o trajeto desses nervos pode interferir na respiração. Uma simples irritação pode deflagrar os soluços. Um projeto arquitetônico mais radical do homo sapiens teria colocado o início dos nervos frênicos em local mais próximo do diafragma e não do pescoço.

Já o soluço em si parece ter vindo do passado em comum com os anfíbios. Quando usam a respiração braquial, eles enfrentam um grande problema – precisam bombear água para a boca e garganta e depois para as brânquias, mas essa água não pode entrar nos pulmões. Como conseguem isso? Enquanto inspiram, eles fecham a glote, impedindo que a água escoe pelas vias respiratórias. Pode-se dizer que eles respiram com as brânquias usando uma forma estendida de soluço. Remexendo em nossa história evolutiva, vemos que uma boa parte dela se deu em oceanos, córregos e savanas – e não em cidades, igrejas ou academias.

Para muitos religiosos, essa “ousadia” em se criticar a natureza suscita um senso de ingratidão, de falta de respeito... Provavelmente são os mesmos que criticam qualquer tentativa dos biólogos e geneticistas de “intervir” na natureza – clonando, modificando, até mesmo adicionando informações a obra divina.

Louis Pasteur dizia que “uma pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. Eu gostaria de estender essa citação a religião: “um pouco de religião nos esconde a Deus. Muito, nos mostra-O em todo o Seu esplendor”... Para tentar lhes demonstrar o que eu quero dizer com isso, é preciso primeiro falar sobre o paradoxo da perfeição...

Na continuação, as imperfeições que geraram o Cosmos, e uma visão mais aprofundada do que é realmente a perfeição.

***

[1] Para saber mais consultar “A história de quando éramos peixes”, de Neil Shubin (Ed. Campus).

Crédito da foto: James L. Amos/Corbis

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17.7.10

Projeto Mayhem Wiki

Este blog foi convidado pelo Marcelo Del Debbio para participar do Projeto Mayhem Wiki, uma espécie de Wikipedia focada em ocultismo, espiritualismo, mitologia e religião. Como se trata de um projeto do Del Debbio, desnecessário dizer que o conteúdo do Mayhem é bem mais confiável do que os conteúdos de temática similar da Wikipedia brasileira.

Irei aos poucos postar por lá os artigos mais relevantes sobre tais temas:

» Ver Textos para Reflexão no Projeto Mayhem Wiki

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16.7.10

5 programas para salvar sua semana

Se você se identifica com alguns dos assuntos tratados aqui no blog – como espiritualidade, ciência, filosofia, etc. – e acha que a programação da TV brasileira está muito aquém do que pode se considerar interessante, saiba que não é o único...

Porém, ao invés de criticar os programas que teoricamente são “líderes de audiência” (o que quer que isso signifique exatamente), prefiro lhes trazer uma pequena lista de cinco programas semanais [1] bem interessantes que, de uma forma ou de outra, tem a ver com os assuntos aqui tratados.

O curioso é que a maioria deles passa na TV aberta:

Café Filosófico (TV Cultura, domingos às 23h)
Parceria da CPFL Energia com a Fundação Padre Anchieta, este é de longe o melhor programa da TV brasileira – na minha humilde opinião é claro. Trata-se de uma série de encontros nos quais são abordados anseios e angústias dos indivíduos na sociedade contemporânea, tendo como referências teóricas fundamentais a psicanálise e a filosofia. Os palestrantes ficam sentados em uma mesa, bem próximos dos convidados, num ambiente bem informal que lembra mesmo uma amigável conversa em uma loja de café.
Os programas são separados em séries, onde cada série é “comandada” por um pensador que, por sua vez, convida outros pensadores a discursar sobre os temas em questão. O grande trunfo do programa é que ele não se limita aos “filósofos de carteirinha” e é muito comum vermos poetas, psicólogos, ambientalistas, médicos e outros profissionais discursarem sobre os temas.
Destaque para as participações de Viviane Mosé, a filósofa corajosa que tentou inserir pequenos documentários sobre filosofia no Fantástico (da Globo), com relativo sucesso...

» Ver posts sobre o Café Filosófico no blog

Não Conta Lá em Casa (Multishow, quartas às 22:30h)
A visita as praias da Indonésia pós-tsunami foi o “protótipo” desse corajoso (ou louco?) programa conduzido por 4 legítimos aventureiros. Desde então já visitaram lugares bem menos paradisíacos, mas igualmente “exóticos”, como Mianmar, Iraque e até o Afeganistão. O objetivo é revelar um outro lado de países que se encontram em situação de constante conflito, fechados para o mundo.
O grande destaque até agora foi à inesquecível visita a Coréia do Norte, como todas as suas nuances que beiram o nonsense, mas que continuariam ocultas não fosse pela sua ousadia. Eles dizem que querem salvar o mundo – eu digo que isso podem não conseguir, mas estão de certa forma salvando a eles mesmos, e isso é um belo começo...

Em Frente (TV Aparecida, quintas às 21h)
O Em Frente é um programa que incentiva o auto conhecimento e reflexão sobre os assuntos da natureza humana. A proposta do programa é analisar as experiências ou dificuldades relatadas pelos telespectadores através dos meios de participação, telefone de e-mail, e propor alternativas. Os apresentadores atendem o maior número de pessoas possível, esclarecendo várias dúvidas e orientando o telespectador sempre com uma mensagem otimista.
Apresentado por um padre católico e dois psicólogos, este é o tipo de programa que parece bem melhor “a segunda vista”, se formos capazes de nos livrar do preconceito contra programas religiosos... Até mesmo porque este é genuinamente diferente de quase todos os outros, na medida em que não responde as angústias dos espectadores apenas com um “reze que melhora” – mas procura ir bem mais fundo nas causas existenciais que geram esses questionamentos. O padre ainda é limitado pelas “normas da igreja” em alguns de seus aconselhamentos, mas é evidente a sua boa vontade para auxiliar da melhor forma possível...

Programa Transição (RedeTV, domingos às 15:15h)
Na tradição do espiritismo verdadeiramente elucidativo, este programa traz importantes entrevistas com divulgadores espíritas ou espiritualistas em geral. Para quem já conhece ou quer conhecer mais sobre a doutrina espírita, sem que para isso precise deixar sua racionalidade e ceticismo de lado, este é um excelente programa.
Destaque para os programas com o Dr. Sérgio Felipe de Oliveira (psicólogo que estuda os cristais da glândula pineal), Severino Celestino (estudioso com vasto conhecimento de mitologia, da bíblia e assuntos espiritualistas em geral) e Divaldo Pereira Franco (maior divulgador espírita ainda encarnado).

» Ver posts sobre o Programa Transição no blog

A Liga (Band, terças às 22h)
Este é um programa que estreou recentemente e mostra o cotidiano de jovens, tribos urbanas, prisioneiros e etc.
Para contar uma história sob a perspectiva de quem a vive só há um jeito, ir ao encontro dela. Comum seria não interferir e normal, nada sentir, não vivenciar. Mas não é isso que querem os apresentadores do programa. Eles tocam na realidade, olham de perto. Ao participarem de um mundo do qual nunca fizeram parte, a indiferença vai embora.
Apesar de se concentrar muito no universo paulista, o programa é um verdadeiro achado para os sociólogos em geral. Claro que não vai tão fundo assim em suas análises, mas até onde vai já é bem mais profundo do que a maioria dos programas similares.
Se o Rafinha Bastos conseguir controlar o próprio ego, é capaz do programa fazer tanto sucesso quanto o CQC.

***

[1] Como estou falando de programas semanais e de preferência na TV aberta, obviamente deixei de lado muita coisa boa, como por exemplo os programas da Discovery Channel (Vida, Rituais de Fé, Segredos do Ocultismo, O Universo de Stephen Hawking, etc). Para não dizer que não achei nada de bom na Globo, fica aqui a lembrança do excelente “Sagrado” – apesar de que ele passava tão cedo que provavelmente ninguém viu. Pelo menos disponibilizaram os episódios online.

Crédito da imagem: Divulgação dos programas listados.

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14.7.10

Mito da criação

Na eternidade existia o Ser, aquele que simplesmente é.
Percebendo o Ser que nada mais poderia haver ali além dele próprio, o Ser pensou: “que se faça a luz!”
E irradiou-se da eternidade para a ante-sala de seu Reino.
E, tendo preenchido todo o Reino, o Ser soube que era bom.

Movimentando-se em sua ante-sala, o Ser refletia sobre si mesmo.
E, a cada reflexão, um universo brotava de sua mente.
E assim, nesse movimento, universos iam e vinham de sua fronte, como num piscar de olhos.
E, tendo percebido que cada universo continha uma nova história, o Ser soube que era bom.

Seu plano para cada universo era cuidadosamente elaborado em sua mente, entre os momentos em que apenas refletia sobre si mesmo...
Cada universo tinha uma substância, e essa substância os preenchia por completo – cada estrela, planeta e partícula.
E para que houvesse movimento, o Ser permitiu que a substância fosse maleável.
E para que os seres conscientes que brotassem pudessem renascer quantas vezes fossem necessárias, o Ser permitiu que a maleabilidade da substância construísse uma sequência de eventos na consciência dos seres.
E para que tudo não fosse determinado, o Ser permitiu que um átimo dessa maleabilidade ficasse a cargo dos pensamentos e da vontade dos próprios seres conscientes.

Tendo erigido o infinito em seu próprio Reino, o Ser decidiu aventurar-se em seus próprios pensamentos.
E desde então tem sido testemunha do nascer e morrer dos sóis, do raro alvorecer de vidas em algumas de suas pedras, e até do surgimento de seres conscientes.
E tem observado todas as conquistas e desgraças, todas as juras de amor e todos os olhares indiferentes, e mesmo o início e o fim dos grandes impérios...
E tendo visto tudo isso, jubilou-se mesmo foi com o conhecimento que os seres elaboraram sobre o próprio Ser – pois que lembravam seus momentos de auto-reflexão.

Dizem os iniciados que vez por outra o viram, escondido no tronco oco de uma árvore ou atrás de uma nuvem... As vezes mesmo mais distante, navegando entre as estrelas...
E dizem eles ainda que alguns perguntaram seu nome, e ele simplesmente disse:
“Eu sou”.


raph'10

***

» Este conto iniciou a série "Mito da criação" - obrigado, Nath :)

Crédito da foto: jkairvar

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Mulher objeto

Vamos ser honestos e ir direto ao ponto: faz muito tempo que o mundo ocidental é machista – no mínimo, desde que o culto a Deusa foi destroçado pela Igreja, mas isso não vem ao caso no momento...

Sim, já foi pior, já foi muito pior. Houve época em que mulheres “não tinham alma”. Houve época em que não podiam nem estudar nem trabalhar “porque sua única função era cuidar da casa e dos filhos”. Houve época em que não podiam votar e muito menos se eleger... Mas graças aos anticoncepcionais e aos movimentos de emancipação do século passado, as mulheres hoje estão em situação bem mais digna.

Ou melhor, elas sempre estiveram em situação digna. Os homens é que eram indignos das mulheres, pois por muito tempo foram educados para as tratar como seres secundários, às vezes serviçais.

Dizem que a humanidade não evoluiu moralmente. Os dogmáticos do apocalipse adoram lembrar que nossa evolução tecnológica nada fez por nossa moral. Dizem que “não há nada de novo abaixo do céu”... Eu não concordo.

Não concordo, porque há 2 mil anos o povo ia ver feras devorarem homens no Coliseu de Roma. E aplaudiam... Hoje o povo vai a um estádio de futebol (mesmo em Roma) para ver uma disputa esportiva, e raramente aplaude algum derramamento de sangue – é claro que os hooligans estão aí para nos lembrar do quão ignorante parte de nós ainda é, mas eles são a minoria, felizmente...

Os homens diziam que o mercado de trabalho não comportaria o afluxo de mulheres, que isso provocaria desemprego e conflitos e caos generalizado... Não, o apocalipse não chegou porque uma mulher assumiu a gerência de uma multinacional, ou a presidência de um país. Elas não são tão diferentes assim dos homens, e em muitas áreas são estatisticamente melhores – como na direção de automóveis, por exemplo; Se não acredita basta verificar em qualquer seguradora quanto custa o seguro para homens, e quanto custa o mesmo seguro para mulheres.

Mas há homens inteligentes e sensíveis o suficiente para reconhecer todas as potencialidades femininas... Vejamos o presidente da França, por exemplo, que certamente não deve ter muitas reclamações acerca da belíssima ex-modelo com quem se casou – uma artista de mão cheia, que não deixou de ser musicista e nem escritora por ser uma “primeira-dama”. Quantos homens não se sentiriam intimidados por uma Carla Bruni? Alguém tão bela, tão dona de si mesma, tão deliciosamente poética... Seria “muita areia para o caminhãozinho dele”? Certamente, talvez exatamente por isso ele esteja com ela – “o mais improvável dos relacionamentos”. “Improvável”, isto é, para os machistas que ainda se sentem melhor com as mulheres serviçais, as secundárias, as que não os podem ofuscar...

Porém, os ecos da barbárie medieval e a sombra da ignorância humana ainda se fazem presentes na época atual. Há algo de obscuro enterrado no cerne de nossa educação precária. Uma idéia de que homens são provedores e mulheres são “alguma espécie de bem material” – e que os homens devem ter muito, muito dinheiro, para poder “usufruir” dessas mulheres. Eis o absurdo conceito de mulher objeto (não estou me referindo a parafilia, mas simplesmente ao conceito em si), tão absurdo que se oculta longe da racionalidade, de modo que muitas vezes ele está no inconsciente, e não no consciente. Mulheres objeto no inconsciente coletivo de homens, e também de mulheres... Não acredita?

Se não acredita, dê uma breve olhada em comerciais de cerveja, em revistas masculinas, em sites pornô – ou melhor, talvez seja mais simples ir direto ao ponto, direto na “ferida”...

Clipes de música americana! Eles infestam as mentes de jovens e adolescentes – e mesmo de crianças e pré-adolescentes... Eu poderia citar vários exemplos, mas vamos direto a um ícone, do Black Eyed Peas (vale lembrar que não tenho nada contra a música em si, mas contra a idéia que os levou a escrever uma letra que, no fim das contas, resume muito bem o conceito de mulher objeto):

Na música acima, chamada “My Humps”, temos praticamente uma relação comercial estabelecida: o homem deve prover a mulher com dinheiro e jóias caras, e ela deve prover ele (com o perdão da palavra) com “muita bunda dentro do seu jeans” – eu estou apenas traduzindo a letra!

Algumas mulheres perceberam o absurdo estabelecido na cultura musical “pop” americana... Alanis Morissette nos brindou com sua brilhante paródia da mesma música, em que ela usa a mesmíssima letra, mas com outro ritmo (ela certamente não pretendia lançar um hit com esse clipe):

Isso dá uma pequena idéia geral de como o conceito de mulher objeto penetra em nossa cultura desde praticamente o berço – e nem sempre nossos adolescentes percebem por onde esse tipo de pensamento adentrou suas vidas (e até mesmo alterou o funcionamento cerebral)... Infelizmente não somos educados para pensar por nós mesmos, e dá no que dá: “conceitos enlatados goela adentro” – muitos de nós são praticamente gansos com cérebro inchado (ao invés do fígado).

E como mudar? Como fazer com que as mulheres escapem dessa sina – e de quebra reduzir (muito) a violência contra a mulher, causa direta de muitos traumas e assassinatos, mesmo nas “melhores famílias” –?

Simples: não aceite. Não compre essas idéias. Analise a si mesmo, conheça aos próprios pensamentos, e questione-se até que ponto eles são seus, e até que ponto são fruto de uma sociedade algo decadente, onde o deus do consumo faz o que quer e aonde quer... E todos o aplaudem, ou quase todos.

Mas, sobretudo, homens e mulheres, não desanimem! Quem sabe o dia em que nos chamaremos não de homens e de mulheres – mas de seres, de almas, de consciências –, não esteja tão distante assim... Era após era. Século após século... Hoje melhor do que ontem. Amanhã melhor do que hoje. Passo a passo.

***

» Tradução da música "My Humps" (atenção: a leitura pode fazer você perder a fé na humanidade)

Crédito das fotos: Anônimo/Divulgação.

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9.7.10

Sobre quem os mitos falam?

Queremos pensar em Deus.

Deus é um pensamento. Deus é uma idéia.

Mas a sua referência é algo que transcende o pensamento. Ele existe além da existência...
Além da categoria de ser ou não ser.
Ele existe ou não?

Nem existe, nem não existe.

Qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros nesse sentido...
Assim como uma metáfora do mistério humano e cósmico.

Quem pensa que sabe, não sabe.
Quem sabe que não sabe, este sim, sabe.

Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual...
Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é.

Todos os símbolos da mitologia se referem a você.

Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?

Na sua mais profunda identidade, você é Deus.
Você é um com o ser transcendental.

Texto de Joseph Campbell para a introdução da última entrevista de "O Poder do Mito", sobre "As Máscaras da Eternidade".

***

Crédito da foto: drona

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7.7.10

O homem que esquecia, parte 3

continuando da parte 2

A vida nas montanhas fez muito bem a Oliver. Caminhava quase todos os dias pelas trilhas até pedras com vistas belíssimas para os vales salpicados de bois aqui e ali, e nas noites de verão às vezes madrugava lá no alto, sozinho com sua luneta e uma garrafa de vinho... Com tudo isso passou a escrever não somente em prosa, mas em poesia, no seu Caderno do Amor.

As filhas preferiam vir visitá-lo de vez em quando do que ter de lidar com ele na capital. Em todo caso, a família chegou a um consenso de que era melhor simplesmente não mais relembrá-lo de sua amada Maria. Pensaram: “O luto já passou, assim ele vai muito bem.”

Seus livros cada vez vendiam mais, era agora reconhecido não somente como grande divulgador científico, mas também como um dos mais inovadores poetas dos últimos tempos. “Quem diria” – repetiam os críticos –, “um astrônomo que trata das estrelas como poesia”... A verdade é que qualquer cientista de mais idade que se metesse a escrever de forma não ortodoxa já chamaria atenção suficiente. Mas a outra verdade é que ele era mesmo um excelente poeta, pois em seu âmago sentia alguma tristeza obscura.

Ele preferia não comentar com ninguém, mas sempre que relia seu Caderno sentia que faltava alguma coisa... Era sobre isso que suas poesias tratavam, só que ninguém percebia. Ele olhava as estrelas, a constelação de Órion, e se perguntava se elas não queriam lhe dizer algo. Era quase como um “chamamento” – isso acabou acarretando uma depressão que ele também soube esconder dos irmãos e das filhas, pois que sempre foi muito inteligente – ou nem tanto assim...

Num fim de tarde estava encarando o abismo do alto de uma de suas pedras preferidas. Seus pensamentos eram um tanto confusos, mas já no início da idade que muitos chamam de “idosa”, acreditava que seria mais fácil, talvez, abreviar um pouco a vida... Queria deixar o vento carregá-lo, queria descobrir o que faltava em sua vida, o que havia esquecido, o que as estrelas tinham a lhe dizer...

Foi desperto abruptamente de seus devaneios por um latido de cachorro... Virou-se surpreso e viu o golden retriever um pouco mais acima nas pedras. Era o cachorro do Sr. Heinz, um judeu alemão que havia ido morar lá desde a fundação da cidade, fugindo da ignorância dos homens do norte. O Sr. Heinz era uma pessoa muito espiritualizada, e somente por isso Oliver se esquivava de conversar com ele – era o único que percebia sua depressão, disso tinha certeza.

“Suba aqui, Oliver. Vamos conversar. Eu sei que você quer me contar seu problema, vamos aproveitar o fim de tarde aqui de cima. As montanhas vão continuar onde estão por muito tempo ainda...” – Disse o velhinho.

Conversaram por quase duas horas. Tempo suficiente para Oliver lhe contar que apesar do seu amor pelas estrelas, apesar dos irmãos e das filhas adotivas, e mesmo apesar de seu estranho esquecimento, sentia que sua vida não era tão diferente assim das vidas dos outros. Seu problema era o cintilar das estrelas – ele sentia, ele sabia que elas queriam lhe dizer alguma coisa... Talvez o que não pudesse saber na vida, soubesse na morte.

“Ora, e o que é a morte, senão o eterno renovar das coisas que formam a vida? Você diz que não é tão diferente dos outros, e digo que não é mesmo. Todos morremos, como você, todas as noites. E todos renascemos, como você, todas as manhãs. A única diferença é que a sua experiência é um pouco mais intensa.”

“Um pouco mais intensa?! Mas eu esqueço de todos que conheci e amei desde a adolescência, esqueço até das minhas próprias filhas! Estou sempre perdendo e redescobrindo o amor. Nunca fui muito chegado a drama, mas sou obrigado a admitir que a minha vida é o maior drama do mundo!”

“Isso é o seu ego que admite. Em sua essência, você sabe muito bem que nunca perdeu o amor. Você perde memórias, mas não a capacidade de amar. A potencialidade de amar, em você, nunca diminuiu... Todo esse drama – ‘o maior drama do mundo’ – só serviu para te tornar uma pessoa mais e mais sensível e amorosa, basta ler suas próprias poesias para lembrar disso... Aliás, não que precise não é? Pois você nunca esqueceu de uma poesia sequer.”

Era isso, essa era a resposta! Oliver nunca se deu conta de que seu sofrimento tinha a ver não com o esquecimento, mas com o relembrar! Ele recordava de cada poesia que havia escrito, e suas poesias eram carregadas de sentimentos e emoções – ele estava se livrando de sua maldição, estava voltando a relembrar, lentamente, cada momento e cada emoção de sua vida... Voltou-se para o Sr. Heinz e perguntou, de olhos já marejados:

“Mas como eu posso abreviar esse processo? Como posso relembrar o que as estrelas estão a me dizer?”

“Ora, é muito simples. Até hoje você se maravilhou com as estrelas e as mensagens que sua luz nos traz a cada noite... Agora, basta apontar sua luneta para outra direção, para ler as mensagens que as estrelas de sua própria alma têm lhe trazido, mas que você deixou aí dentro – presas. É importante ler a mensagem da noite infinita, mas é ainda mais importante ler a mensagem do próprio ser em si.”

E desde então Oliver tem apontado sua luneta para a imensidão que se esconde dentro de si mesmo. Embora nunca tenha deixado de amar as estrelas lá fora, agora passou a amar as estrelas lá dentro... Particularmente a mais amada, e agora a que lhe traz as recordações mais doces e dolorosas: a terceira Maria.


Conto por Rafael Arrais (2010), inspirado em descrições clínicas dos livros de Oliver Sacks

***

“Estranho de se pensar, nenhum dia é como o dia que se foi e nenhuma noite como a noite que virá! Porque, então, temer a morte, que é noite e nada mais? Porque se preocupar, se o dia que virá trará uma nova face e um novo espírito?” – John Galsworthy

“Viver na memória dos que nos amam, é viver para sempre” – Carl Sagan

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Crédito da imagem: Bryan Allen/Corbis

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6.7.10

O homem que esquecia, parte 2

continuando da parte 1

Com o tempo, as anotações no Caderno de Oliver deram resultado: afora o fato de que ele gastava cada vez mais tempo lendo-o todas as manhãs, sua vida conjugal parecia bem mais normal agora... Para Maria e as gêmeas, era quase como ter o marido e o pai de volta, após uma breve pausa para leitura. No final das contas, Maria acabou tendo ciúmes das estrelas: é que Oliver esquecia da esposa, mas jamais esquecia das posições das estrelas.

Após chegar as mil páginas, Oliver teve de contratar um biógrafo para poder resumir sua própria história conjugal, senão só lhe restaria tempo de trabalhar a noite – teria de gastar todo o dia lendo sobre sua vida com as três Marias... Deu certo, mesmo quando suas filhas já estavam chegando na época do vestibular, o biógrafo conseguia resumir tudo em umas 500 páginas. A vida parecia mais superficial, mas funcionava, e sobrava o tempo necessário para continuar observando estrelas...

Maria Cristina queria ser cineasta, e Maria Luísa jornalista. Ainda que os pais tenham insistido, nenhuma das duas quis fazer documentários ou artigos sobre ciência... Elas achavam que esse negócio de ser cientista que tinha deixado o pai daquele jeito meio esquisito – embora o amassem como o melhor pai do mundo. O pai que retomava sua paternidade a cada nascer do sol.

Era uma vida feliz, novamente. Mas quiseram os deuses da fortuna que a história de Oliver e das três Marias se complicasse uma vez mais... Não se sabe se foi pelo estresse da situação conjugal, mas após o acidente de Oliver, Maria havia voltado a fumar – coisa que havia feito brevemente na adolescência, mas desde o acidente tinha retornado com força total: três maços por dia. Ela chamava-os de as três Marias também. O resultado foi câncer no pulmão, descoberto fora de hora. Que coisa, uma bióloga que não se cuidou... Acontece.

Quando visitava a esposa no leito do hospital, Oliver não se conformava com sua sorte: “Meu Deus, para que descobrir que tenho uma família tão linda todas as manhãs, se a noite percebo que estou prestes a perdê-la?”. Maria havia desenvolvido uma grande sabedoria através dos anos, e sempre respondia seu amado da mesma forma: “Não chore. Pior seria você não ter sobrevivido e suas filhas não terem crescido com um pai tão maravilhoso ao lado. Se estou assim não é culpa de Deus ou da sorte, mas do câncer que eu mesmo procurei sem saber... Em todo caso, é melhor amar e perder, amar e esquecer, do que nunca haver sequer amado!”

A beleza dos discursos de Maria só foi aumentando na medida em que se aproximava de sua hora... Mas para Oliver era sempre um único discurso. Não havia tempo para elaborar a perda: ele percebeu que em verdade perdia a quase todos que amava todas as noites. Era difícil se conformar...

Quando Maria finalmente se foi, Oliver pediu às filhas que lhe levassem para a cidade nas montanhas onde viviam dois de seus irmãos... Ele queria descansar de todo aquele sofrimento. Para seu biógrafo, fez um pedido especial: queria uma versão do Caderno do Amor onde não houvesse encontrado Maria. Nem encontrado nem perdido. Queria que as filhas fossem adotivas... Disse que queria ler assim sua vida, apenas durante as férias que ia passar nas montanhas. Suas filhas concordaram, em todo caso já estavam atarefadas demais na faculdade para dar suporte ao pai.

Vivendo nas montanhas Oliver parecia vivo e cheio de si novamente. Sempre perguntava das filhas, mas continuava fascinado pelas estrelas. Observava sempre as três Marias e se perguntava se não havia conhecido uma terceira Maria...

Como seus irmãos não consideravam suas questões, terminou por admitir: “Bem, são só estrelas mesmo.”

continua na parte 3 (final)

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Crédito da foto: viedeia

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O homem que esquecia, parte 1

Um conto sobre os observadores do céu...

Oliver apaixonara-se pelas estrelas ainda criança, aproveitando muitas de suas horas noturnas para brincar com a imaginação, valendo-se não de soldados de plástico ou animações de pixels, mas da luz das estrelas sobre o pálido céu noturno e soturno de sua pequena cidade no interior.

Seus pais lhe ensinaram que as estrelas não eram deuses, e sim gigantescas fornalhas cósmicas. Mesmo assim, o garoto lia muitas histórias em quadrinhos, e imaginava que algumas das estrelas cintilavam de forma diferente das outras... “Será que são alienígenas nos enviando alguma mensagem? Será que alguém está nos chamando para viajar até lá?” – como nenhum adulto considerava seriamente suas questões, terminou por admitir: “Bem, são só estrelas mesmo”.

Quando decidiu o que apostar no vestibular, já sabia das histórias de Kepler, Galileu, Newton e Einstein. Já havia se apoiado em ombros de gigantes e vislumbrado com sua vasta imaginação toda a longa trilha da luz – desde os primeiros minutos do Cosmos até alcançar o mesmo céu que observara por tantas horas de tantas noites em sua pequena luneta. Oliver queria ser astrônomo. Seus pais afirmavam que era por amor a ciência, mas ele sabia que no fundo queria mesmo era ter acesso a lunetas maiores, cada vez maiores...

Oliver quase se arrependeu quando percebeu que tinha de estudar muito mais do que seus colegas economistas e advogados, para ganhar muito menos. “Que importa, mesmo que fosse milionário não poderia comprar um observatório inteiro só para mim...” – esse pensamento costumava amenizar seu rancor em relação ao assunto.

Durante a faculdade conheceu uma bióloga que se chamava Maria. Quando a pediu em namoro, em um parque da capital, apontou para o céu noturno e disse: “Eu sou Rigel, porque sempre gostei desse sol da constelação de Órion; e você é aquela ali, Maria, logo ao meu lado”. Porém, para sua surpresa, Maria respondeu: “Ei, mas ali são três Marias, assim vou ficar com ciúmes das outras duas!”.

“Não se preocupe, é que as outras duas são nossas filhas: Maria Cristina e Maria Luísa” – Assim Oliver conseguiu contornar o problema astronômico do início de sua relação, mas ao terminar o mestrado se arrependeu: Maria estava grávida de duas meninas gêmeas... Oliver preferia que as Marias ao menos nascessem uma de cada vez...

Era uma vida feliz. Oliver conseguira constituir família e ter um bom padrão social trabalhando com o que ama, observando o céu e tentando encontrar padrões que auxiliassem nas teorias de ponta de sua época. Trabalhava em contato com grandes astrônomos do mundo todo e estava pensando em escrever um livro sobre as estrelas. Mas essa vida terminou quando um dia, após deixar as filhas no colégio, sofreu um acidente de carro a caminho do observatório... Era grave, e Oliver teve de permanecer em coma induzido por mais de uma semana. O que preocupava não era seu corpo, alguns arranhões e um pé quebrado não eram nada... Mas sua situação neurológica talvez nunca mais fosse a mesma.

Quando acordou viu toda a família, mas se lembrava apenas dos pais, dos irmãos e dos primos – esquecera quase por completo que tinha esposa e filhas gêmeas... Oliver manteve sua capacidade lógica e raciocínio intactos, mas todas as emoções que houvera tido ao lado das três Marias haviam sido eclipsadas por alguma lua obscura.

Desde esse dia, e todos os dias, sua família lhe ajudava a relembrar das três Marias, mas após cada noite de sono, acordava novamente sem qualquer memória delas... Por um lado era um casamento maravilhoso: Oliver redescobria seu grande amor e suas filhas todas as manhãs, e dormia radiante, tão apaixonado quanto estava ao declarar seu amor num parque da capital.

Por outro lado, era uma situação terrível para aqueles que não esqueciam: sua mulher já não conseguia mais descrever a mesma história todos os dias, pelo menos não com a mesma emoção... E suas filhas já haviam cansado de tentar ensinar ao pai que eram suas filhas, preferiam simplesmente ver desenho a essa altura.

Tentaram todo tipo de tratamento neurológico, mas não resolveu... Como agora trabalhava apenas como divulgador de ciência, escrevendo livros aclamados pela crítica especializada, Oliver achou por bem tentar registrar em um caderno as histórias que ouvia todos os dias pela manhã – por mais bizarras que lhe parecessem –, assim pelo menos poupava sua recém descoberta esposa de ter de repetir a mesma história ad infinitum. Poderia agora ler, ele mesmo, seu próprio caderno de anotações. Ele o chamou de Caderno do Amor.

continua na parte 2

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Crédito da foto: Trevor Lush/Corbis

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5.7.10

Doença e mediunidade

No programa espírita Transição (Domingos, as 15:15h na RedeTV), o Dr. Sérgio Felipe de Oliveira (psiquiatra com mestrado na USP) fala novamente sobre suas pesquisas da glândula pineal (ele associa os cristais de apatita a receptores de ondas eletromagnéticas, que "recebem" as informações através da mediunidade) e outros assuntos como vida após a morte, a relação entre doenças psíquicas e a mediunidade (ele curiosamente afirma que na maioria das vezes não é possível seprarar "problemas biológicos de problemas espirituais", já que a mediunidade tem reflexos físicos/corporais) e o renovado interesse pelos livros de Chico Xavier (particularmente os de Andre Luiz).

Ele é um crítico do materialismo, e as vezes faz suas críticas "por fazer", fora de contexto - mas a maneira genuinamente científica com que estuda a mediunidade é algo a ser exaltado entre espíritas e não espíritas:

Ver também:

» Uniespírito (projeto idealizado pelo Dr. Sérgio)

» Estudo diferencia manifestação mediúnica de doença mental (Terra Magazine)

» UFJF: Mediunidade não está atrelada à esquizofrenia, diz pesquisa (Universia Brasil)

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2.7.10

Livro: Em Seus Mares, versão impressa a venda

Poesias de Rafael Arrais no livro Em Seus Mares

Achei uma editora que possibilita a venda de meus livros em versão impressa. Para quem me perguntava sobre isso, surgiu a oportunidade!

Release
Para quem já conhece o trabalho do poeta espiritualista Rafael Arrais do blog Textos para Reflexão, esta é a oportunidade de ter em mãos sua obra impressa e com diagramação profissional.

Para quem não conhece, esta é a oportunidade de entrar em contato com uma nova dimensão poética, digna de grandes poetas como Tagore e Gibran.

"Eu navego em seus mares
E mesmo em minha pequena embarcação
Já percebi que no mar existe a dor:
Refletida em sua superfície;
Mas no mar também existe o amor:
O amor é mais profundo"

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Nota: A versão impressa tem 3 poesias exclusivas, que não constam na versão em PDF.

» Você também pode baixar o livro gratuitamente em PDF

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1.7.10

O que dizem os astros, parte 2

continuando da parte 1

E o que é o futuro, senão a conseqüência do que se faz – do que se escolhe – no presente? Que a astrologia tenha se popularizado como uma forma simples de se prever a sorte diária não é culpa dos grandes sábios e cientistas (a astronomia veio da astrologia) de diversas épocas que a consideravam com seriedade, mas sim da superficialidade com que os ignorantes tratam do assunto. A Astrologia funciona através do que Carl Gustav Jung chamou de sincronicidade. As mesmas energias universais responsáveis por todo o mecanismo de gravitação dos corpos celestes e emanações solares fazem com que a cada determinado instante, a Terra seja imantada com uma determinada gama energética, que é representada através de arquétipos (signos).

Agrippa via o universo como o unus mundus, onde o que ocorre no mundo celestial chega até o mundo dos fenômenos, intermediado pela esfera dos corpos celestes. Nesta concepção, a relação entre a esfera dos corpos celestes e a esfera humana não é de causalidade, mas de analogia ou sincronicidade. Astrólogos de orientação biológica procuram a explicação nos ritmos e ciclos biológicos, como os circadianos e lunares. John Addey realizou vários levantamentos estatísticos em busca da comprovação de conceitos astrológicos, como o de quase mil nonagenários e a relação Sol-Saturno. Descobriu, assim, o significado das relações harmônicas entre períodos cósmicos. Outra concepção é que a influência se dá através da variedade de raios cósmicos que chegam ao nosso planeta. Ebertin é um dos defensores desta hipótese... Por mais que tais suposições e nomenclaturas soem estranhas para os astrônomos atuais, há que se admitir que possuem muito mais lógica do que a astrologia de jornal – independente de serem reais ou não.

Em todo caso, ao que me parece, a totalidade dos astrólogos sérios considera que o movimento celeste não exerce influência direta sobre os eventos cotidianos... Não é porque Vênus está neste ou naquele local do céu que teremos maior ou menor sorte em apostar na loteria. E, em todo caso, o que seria a sorte senão a conseqüência futura de escolhas presentes?

“Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.” – esta era a inscrição no Oráculo de Delfos, um dos centros religiosos da Grécia antiga. Me parece que ele encerra o conceito primordial em que se baseia toda a Astrologia: conhecer a si mesmo é análogo a conhecer os deuses e o universo (Cosmos). O que está em cima, os corpos celestes, é como o que está embaixo, os corpos neuronais... O céu noturno é uma emanação física da mente cósmica (isso é uma analogia!) assim como o baile elétrico das sinapses é uma emanação física de nossa alma (isso também é uma analogia).

Se o futuro é fruto de nossas escolhas presentes, de nada adiantam previsões que sempre serão algo incertas. O que importa é compreender o mecanismo pelo qual fazemos nossas escolhas. O que importa é compreender o sentido pelo qual fazemos nossas escolhas. O que importa é compreender a nós mesmos, que perto de tal compreensão todo o futuro é secundário. Exatamente por isso sempre houve esse consenso entre os grandes sábios... Mesmo o Rabi da Galiléia nos afirmou que somos deuses (João 10:34), que faremos tudo o que ele fez e muito mais ainda (João 14:12). O universo interior é ainda mais vasto que o exterior, compreendê-lo é a nossa divina jornada.

"Nós, como pessoas que experienciam, não aceitamos tudo o que nos é fornecido por nosso instrumento, a máquina neuronal de nosso sistema sensorial e o cérebro, nós selecionamos tudo o que nos é fornecido de acordo com o interesse e a atenção, e modificamos as ações do cérebro, através do eu" – Esta não é uma citação de um religioso ou astrólogo, mas de um neurologista... Sir John Eccles, vencedor do prêmio Nobel de medicina de 1963, foi talvez o mais ilustre cientista a argumentar em favor da separação entre a mente, a consciência (no caso, um processo da mente) e o cérebro. Somos seres que interpretam informações de acordo com nossa vontade, e não máquinas que computam informações de acordo com nossa programação.

Nós não fomos programados, não formos criados como robôs ou fantoches. Fomos criados livres, e com um caminho infinito de evolução à frente. Nossa liberdade não é absoluta, da mesma forma que uma criança precisa brincar apenas em sua caixa de areia, nossas escolhas são locais e não globais – ainda assim, são escolhas! Perto da magnitude do Cosmos, perto da abrangência desse sistema que nos conecta a todos em uma trilha de luz, que importância poderia ter o futuro? Que importância poderia ter saber se vamos casar, ou com quem, se vamos ter mais ou menos dinheiro, se vamos sofrer acidentes ou doenças, se vamos tirar a sorte grande, se vamos ter tranqüilidade ou angústia, se vamos amar ou odiar, se vamos viver ou morrer? Se tudo passa pela nossa sagrada capacidade de escolher as escolhas que nos são dadas, e sermos inexoravelmente empurrados pelos ventos que não são possíveis de se evitar, honestamente eu dispenso a previsão.

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Crédito da foto: Mark Miller e The Virgo Consortium

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O que dizem os astros, parte 1

“Nós podemos tomar o estado presente do universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Um intelecto que, em dado momento, conhecesse todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos.”

O texto acima é de autoria de Pierre Simon Laplace – grande matemático, astrônomo e físico, conhecido como “o Newton francês” –, um ávido defensor filosófico do determinismo. Segundo algumas doutrinas religiosas, Deus criou o universo e comanda absolutamente todos os eventos – cada fio de cabelo que cai e cada estrela cadente que penetra a atmosfera terrestre são fruto de um determinismo divino sob o qual não temos nenhum controle ou escolha.

Em sua crítica a astrologia, na série de TV Cosmos, Carl Sagan afirma que ela implica num perigoso fatalismo: “se nossas vidas são governadas por um conjunto de sinais de trânsito celestes, porque tentar mudar algo?”. Ora, há muitos céticos que criticam a astrologia ou a existência de um “ditador divino”, porém a idéia do determinismo não vem apenas de fontes ditas “místicas”.

O intelecto ao qual Laplace se referia em seu experimento mental foi batizado de Demônio de Laplace pelos seus biógrafos. Segundo a cosmologia de sua época, todas as partículas e planetas e estrelas exerciam influência gravitacional (e de outras forças) umas sobre as outras. Isso, e somente isso, poderia explicar todo o movimento dos corpos celestes e atômicos – exatamente por isso o Demônio teria em sua mente todo o passado e todo o futuro, todo o movimento do universo, como se fosse o presente. Para tal Demônio, nada que já ocorreu ou resta ocorrer será alguma novidade...

Laplace também esteve próximo a propor o conceito de buraco negro. Ele observou que poderiam existir estrelas maciças cuja gravidade seria tão grande que nem mesmo a luz escaparia de sua superfície. Na cosmologia moderna, sabe-se que tais singularidades existem, mas ainda não se sabe se a informação que é engolida por sua gravidade se perde ou é reaproveitada em algum outro lugar do universo. Essa é uma questão fundamental, pois se alguma informação é perdida, não seria mais viável conceber uma previsão do futuro como a de seu Demônio, pois ele não disporia mais de toda a informação necessária para sua previsão (embora decerto ainda disporia de muita informação).

Já a física quântica nos demonstrou o quão bizarro é o universo em suas partículas fundamentais. Hoje se sabe que é impossível prever o movimento (momentum) e a posição de partículas como um elétron: quanto mais se sabe sobre uma informação, menos se sabe sobre a outra. Tudo o que podemos determinar é uma probabilidade de tais partículas estarem neste ou naquele local – não podemos analisar a trajetória de uma única partícula como uma linha reta (física clássica), e sim como uma função de onda.

Finalmente, os neurologistas já descobriram que temos tantos neurônios no cérebro quanto estrelas em nosso horizonte cósmico. Segundo o filósofo Daniel Dennet, não existem coisas como experiências subjetivas; em vez disso ele propõe que o cérebro é um computador que possui informações de diferentes fontes com uma disposição para um comportamento particular e uma habilidade para distinguir entre estímulos diferentes. Esse é o ápice do determinismo: não apenas um determinismo divino ou a influência derradeira dos corpos celestes, mas a redução total de seres a coisas. Somos como poeira espalhada pelo vento, tudo o que fazemos, tudo o que pensamos, é determinado pelas reações químicas de partículas dentro de nossa cabeça. Eis o determinismo materialista.

Ante o evidente absurdo do determinismo – seja divino, astrológico ou material – tudo que posso dizer é isto: Ora, se tudo o que fazemos, todo nosso movimento e nosso pensamento, toda nossa razão e emoção, todas as nossas escolhas, são previamente determinadas, de que diabos adiantaria discutir o assunto filosoficamente? Se estaremos a discutir alguma coisa, não será por nosso livre-arbítrio (inexistente), mas sim porque fazemos parte de um teatro de fantoches... E nossa discussão, e todas as discussões, seriam apenas mais uma encenação de um Mestre dos Fantoches. Nossa angústia seria fruto do movimento dos corpos celestes. Nosso medo do futuro seria o resultado de alguma reação química em nosso cérebro. Seria o fim de toda a responsabilidade, o fim de toda liberdade, o fim da vida como algum dia foi compreendida... E isso é tudo o que tenho a dizer sobre o assunto.

No entanto, se o livre-arbítrio de fato existe, se somos parcial ou totalmente responsáveis por nossas próprias escolhas, então a filosofia de Dennet cai por terra, o fatalismo dos astros se reduz a fantasias inapropriadas, e o Demônio de Laplace torna-se apenas mais um pretendente a Deus. Ora, se a física quântica nos demonstra que o futuro é feito de probabilidades, se as singularidades cósmicas nos deixam na dúvida se a informação é ou não perdida, me parece que o determinismo é uma ilusão... O que temos, em realidade, é um sistema. Um sistema cósmico muito bem orquestrado para que todo movimento gere outro movimento, toda ação gere outra ação, e todas as coisas e todos os seres sigam eternamente conectados em sua harmonia cósmica. Se alguém sabe do futuro de forma perfeita (como Laplace postulou), precisaria ter criado tudo o que há a partir de si mesmo, precisaria ser Deus.

Na continuação, a sincronicidade de Jung, o Oráculo de Delfos e o porque de não precisarmos nos preocupar com a previsão do futuro...

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Crédito da imagem: Gravura de autor anônimo, divulgada primeiramente em um livro de Camile Flammarion

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