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17.11.16

Trio Mandili

Como alguns devem saber também sou um curioso e admirador da chamada world music, que para mim é só música mesmo. Em minhas andanças virtuais esbarrei neste belo trio de cantoras da Geórgia, um pequeno país do leste europeu espremido entre a Rússia e a Turquia, e que é também o único país do mundo onde o georgiano é o idioma oficial.

Devido a imensa dificuldade em se achar até mesmo versões em inglês das músicas do Trio Mandili, vou ficar devendo as costumeiras (tentativas de) traduções das letras. O que posso dizer é que elas são de uma região montanhosa e rural no leste da Geórgia (chamada Khevsureti), que cantam em geral antigas canções tradicionais do seu povo (que falam de amor, natureza e cortejos de sedução), e que tocam um instrumento muito peculiar chamado Panduri (um espécie de bandolim). Finalmente, os seus nomes são Anna Chincharauli, Tatia Mgeladze e Shorena Tsikarauli.

O vídeo abaixo, encontrado na página do trio no Facebook, traz a canção Erti nakhvit:

Veja também outras belíssimas canções do Trio Mandili:
» Apareka (ao vivo num programa de TV local)
» Assa! (ao vivo na beira de um riacho)

***

Crédito da foto: Trio Mandili/Divulgação

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12.11.16

Metafísico

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Meus amigos às vezes me dizem que eu sou um cara meio metafísico. Quase sempre eles têm toda a razão.

Não sei quando isso começou direito, provavelmente bem cedo. Por agora me lembro especificamente dos engarrafamentos em Copacabana, e eu na janela do 485, a caminho da faculdade de Artes no Fundão; ou seja, a uma boa hora de distância, quando tinha sorte!

Mas mesmo quando tinha azar e ficava preso muito tempo na Nossa Senhora, havia muito o que se observar pela janela, muito o que refletir – e a luz, como já devem saber, foi criada para ser refletida.

Ora, aqueles raios que me alcançavam numa esquina do Rio de Janeiro levavam menos tempo para viajar do Sol até ali do que eu levava para chegar na porta da aula de desenho. Todos os dias eles me venciam, e ricocheteavam na lente dos meus óculos e rumavam sabe-se lá para que outro canto do Cosmos.

Mesmo desenhando, é impossível explicar o que se sente ao compreender que nós mesmos também somos parte do que foi forjado no núcleo dos sóis, e catapultado a imensidão. Nós mesmos também somos hidrogênio, oxigênio, carbono, ferro e muitos outros elementos pesados das forjas estelares. Nós mesmos também vivemos mergulhados no oceano cósmico, e não aprendemos a nadar em suas profundezas somente por ter lido manuais de natação...

As palavras, as cascas de algum sentimento ancestral, escapam. Mesmo aos poetas mais loucamente cosmológicos, elas escapam!

Então estou tomando um delicioso chopp de trigo nalgum bar deste canto do hemisfério sul na terceira pedra do Sol, e tento fazer com que meus amigos percebam que nem a caneca em cima da mesa está perfeitamente parada, nem nós mesmos em nossas cadeiras, nem o planeta, nem mesmo a estrela por onde temos girado.

Desde o mais ínfimo átomo do trigo, tudo vibra e nada está parado. E em meio a conversas sobre resultados de partidas de futebol e eleições, não só o bairro da Lapa, como nossa galáxia inteira está a rodopiar junto a um aglomerado de bilhões e bilhões de sóis e seus mundos, rumo a onde quer que este Big Bang queira nos levar!

Enquanto vivemos esta vida entre dois séculos contados desde o nascimento de Cristo, as placas tectônicas se movem alguns bons milímetros, e algumas montanhas crescem um pouco, enquanto outras diminuem. Há árvores imensas e frondosas que nos viram nascer, e ainda verão muitas gerações de nossas famílias chegarem e partirem novamente.

Pasmado com tanta grandiosidade, posso muito bem concordar com Caeiro, há de fato metafísica suficiente em não pensar em nada...

E assim, de tanto não pensar, de tanto sentir, quem sabe eu também deixe de ser metafísico por um instante, quem sabe por breves momentos deste ir e vir incessante de sóis e átomos eu consiga deixar este observador de lado, para me espalhar por tudo o que há.

Não há misticismo maior do que romper tal casulo do ser, e voar assim, verdadeiramente liberto, seguindo a fragrância ancestral deste Amor que mantém a dança dos mundos: uma abelha seguindo o caminho do pólen, um pássaro rumando ao Monte Kaf, um louco saltando um abismo, um franciscano em busca de um bom pedaço de pedra para usar como tijolo em sua igrejinha, um físico maravilhado com a relação entre o espaço e o tempo, um poeta a escrever com sangue e lágrimas...

E depois voltar, da eternidade para a Lapa, e terminar o chopp, junto aos amigos. E olhar rapidamente para as estrelas, sem que percebam, e orar esta grande oração de uma palavra só, gratidão. É este, meus caros, o meu Evangelho!

Mas nada disso era para ser dito. Nada disso terá fim, tampouco teve um início...


raph’16

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Crédito da imagem: Google Image Search/Holzweg

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8.11.16

Marcelo Gleiser, o Carl Sagan brasileiro

Desde o final do século passado, com o seu monumental A dança do universo, o físico e escritor Marcelo Gleiser já se alçava como um dos maiores divulgadores de ciência nacionais. De lá para cá, só tem melhorado, particularmente por não reduzir o escopo da sua curiosidade somente a ciência, como também a arte, a espiritualidade, a meditação, as mitologias, e até mesmo as religiões. Talvez nada disso tenha tornado Gleiser um cientista melhor, mas certamente o tornou um ser humano melhor.

Tudo isso fica claro e evidente nesta espetacular entrevista que ele deu para o Canal Livre da Band no último final de semana. O mote inicial da conversa é a possibilidade de vida fora da Terra, mas ao longo do programa eles também falam de muito, muito mais coisa. Dentre outros grandes momentos, é particularmente profundo aquele em que ele explica porque é agnóstico, e não ateu.

Aliás, nesta e em outras abordagens acerca da relação da ciência com a crença, Gleiser está inteiramente alinhado com o saudoso Carl Sagan, que nunca teve pudor em falar de espiritualidade (e tampouco foi ateu, e sim agnóstico). De fato, faz algum tempo que Gleiser é o nosso Sagan brasileiro. Vejam só:

(clique na imagem acima para abrir o vídeo da primeira parte do programa no site da Band)

Abaixo seguem os links para as 3 demais partes:
» Parte 2 (a colonização de outros planetas)
» Parte 3 (ciência e religião)
» Parte 4 (questões metafísicas)

***

Obs.: Também não posso deixar de ressaltar a participação do jornalista Salvador Nogueira, que ajudou muito com suas perguntas muito bem elaboradas. Não é para menos, pois se trata de um dos nossos melhores jornalistas na área de ciência.


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7.11.16

10 anos

Dez anos de nossas conversas
sob a luz do luar carioca,
num telhado de prédio,
soberanos sobre a noite tijucana.

Saudade.
Dizem que é palavra exclusiva de nossa língua,
difícil de definir...

Então lá vai, amiga:
se somos o sal da terra,
é a saudade o sal do amor.
Bonita, enigmática, como você,
e seus gatinhos, e a Lua.

Não sei se este poema está ficando bom.
Afinal, são dez anos,
dez anos sem nossas conversas,
sem trocarmos poemas e confissões
sobre coisas que somente os poetas veem e sentem:
dores e hemorragias profundas da alma,
e também as rimas, as canções,
e os feitiços de cura...

E você se foi assim, sem aviso;
ficaram só os gatos e os poemas.
Mas seus felinos moram longe, na Tijuca,
e os seus versos, embora belos como sempre,
embora eternos como nossas noitinhas,
nada me respondem
acerca do seu paradeiro.

Amiga! Eu continuo contemplando a Lua,
na esperança de que onde quer que esteja,
possamos por um momento estar encarando o mesmo céu,
a mesma luz.

Nós: poetas desamparados num telhado de prédio,
alheios as superficialidades da vida,
trovadores da essência.
Ainda de mãos dadas,
ainda em nossa Tijuca
que é todo o mundo...

As vezes fecho os olhos, e ainda estou lá,
naquelas noites contigo,
além das ideias de certo e errado,
além do sangramento das almas,
além do julgamento final.
Mas então os abro e estou aqui.
E o que me resta, amiga?

Saudade.
Dez anos
de saudade...


(este poema é dedicado aos dez anos do blog Textos para Reflexão, que por sua vez é dedicado a minha amiga, Flávia Lopes)


raph'16

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Crédito da foto: Google Image Search

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3.11.16

Estranho

“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.”

Foi em homenagem a esta frase de William Blake, o poeta inglês, que Aldous Huxley, seu conterrâneo de um século mais próximo ao nosso, deu o título ao seu clássico As portas da percepção, que por sua vez é o livro que Stan Lee está lendo em sua curtíssima aparição no novo filme da Marvel, Doutor Estranho.

Stephen Strange é um dos meus personagens favoritos nos quadrinhos da Casa das Ideias. Ele foi criado em 1963 por Lee e a lenda, Steve Dikto, que também foi cocriador de Peter Parker, o Homem-Aranha. Aliás, como veremos abaixo, há algum paralelo entre a origem e a motivação desses heróis, a despeito de sua diferença de idade.

Antes de prosseguir, no entanto, devo avisar que este artigo vai falar exatamente do novo filme de Estranho, e embora eu não vá falar de nada que já não esteja na origem do personagem nos quadrinhos, certamente o que virá a seguir trará alguns spoilers do filme, estejam avisados!

Spoilers ahead...

Não foi à toa que Lee apareceu com o livro de Huxley: toda a ideia por detrás do Doutor Estranho nasceu da brincadeira com a possibilidade da existência de incontáveis dimensões paralelas e outros planos de existência, ou de percepção da existência, bem aqui em nosso mundo e a nossa volta. Também não é por acaso que Lee está exclamando it’s hilarious! (isto é hilário!) em sua cena: talvez a sua grande qualidade seja exatamente essa, de não se levar tão a sério, tampouco as suas criações.

Aliás, é também isso que transparece nos filmes da Marvel Studios nos últimos anos, o que é muito bom por sinal, pois quadrinhos são entretenimento, e espera-se que eles sirvam mais para nos divertir e atiçar a imaginação do que para nos trazer reflexões acerca de como a existência é sombria, de como o mundo é ultraviolento, ou de como o nome de nossa mãe é algo sagrado.

Dito isso, não quer dizer que quadrinhos, ou filmes de quadrinhos, não possam trazer suas lições de moral, por mais que hoje elas sejam clichês algo antigos. É também dos anos 1960 a famosa reflexão que Peter Parker aprende a duras penas: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Tudo bem, é um clichê antigo, mas ainda é perfeitamente válido. Quadrinhos são mitologia líquida, profanada, hilária, divertida, e assim está bom – em todo caso, nada disso conseguiu apagar por completo a luz dos contos de outrora (basta lembrar que ainda temos um Thor e um Hércules na Marvel).

No filme de Estranho, apesar de ser muito fiel aos quadrinhos, não há somente uma frase capaz de resumir a moral da história toda, como no Homem-Aranha, mas ainda podemos refletir acerca de muitos ensinamentos:

Um outro sentido para a vida
Strange é um neurocirurgião muito bem sucedido em Nova York, talvez o melhor do mundo. Ele tem memória fotográfica, grande inteligência e uma capacidade de concentração incomparável. Mas, no final das contas, tudo depende do que ele consegue realizar na mesa de cirurgia: é ali que realiza não somente o seu grande show, como até então o grande sentido de sua vida.

Fica muito claro, no entanto, que Strange não está ali propriamente para curar pessoas, e sim para manter o seu status de grande cirurgião. Não exatamente pela grande quantia de dinheiro que recebe, mas simplesmente pela fama. Já diziam os estoicos que não devemos basear nossa vida nas coisas que não dependem de nós, como o status e a fama, e é precisamente isso que Strange tem de aprender, não pela sabedoria (que não tinha até então), mas pela dor, esta grandiosa professora...

Ao acordar do grave acidente de carro onde quase perdeu a vida, ele parece mais preocupado com a situação de suas mãos do que com o resto do corpo. De fato, ali poderíamos quem sabe dizer que ele trocaria a cegueira de um olho, ou até uma perna, por ter suas mãos novamente intactas. Afinal, elas eram o seu principal instrumento de trabalho, e consequentemente de status – sem elas o sentido de vida que ele havia construído para si estava arruinado. Uma lição e tanto.

A arrogância não leva a lugar nenhum
A arrogância, ou ignorância das próprias limitações humanas, é também um grande fardo para o ignorante: enquanto tudo vai bem, há a enorme angústia e preocupação em poder se manter na costumeira posição de status, onde se pode dizer “você sabe com quem está falando?”; mas, assim que as coisas vão mal, o arrogante encontra enorme dificuldade em achar um caminho de saída, de resolução para a situação atual, pois que há muitas coisas neste mundo das quais não temos controle algum.

O acidente de carro, a fatalidade, pegou Strange de calças curtas. Neste momento, a arrogância não lhe serve mais para nada, mas é exatamente a dor gerada por esta falta de controle do próprio destino que o encaminha para uma via espiritual, ainda que a princípio pelas razões erradas. Fato é que, bem ou mal, foi a fatalidade que o levou ao Oriente, a esta milenar metáfora para o caminho da sabedoria. Teria sido melhor que chegasse lá pelo autoconhecimento, mas como dizem por aí: seja pelo amor ou pela dor, caminhamos sempre!

Me ensine!
Como tantos outros místicos e ocultistas do mundo real, Strange chega ao templo no Oriente (de fato, poderia ser em qualquer outro canto) profundamente cético acerca do mundo espiritual. Basta atentar para o que a cultura moderna, científico-materialista, fez do significado dos termos “místico” e “ocultista” para compreender que, na maior parte dos casos, o ceticismo é um estágio inicial perfeitamente natural para as mentes racionais. E, embora trabalhem sua percepção muitas vezes muito além desta racionalidade, em nenhum momento se disse que místicos e ocultistas deveriam ser irracionais.

Apesar de recorrer aos velhos clichês de sempre, no filme este embate entre a racionalidade cética e a racionalidade “mente aberta” é, em geral, tratado de forma saudável. Quando finalmente vê com os próprios olhos que a magia é real, Strange vai aos poucos cedendo em seu ceticismo, e também em sua arrogância. A neurociência, a medicina de ponta, quem diria, não explicavam tudo o que havia por ser explicado. Existiam outras possibilidades, outros caminhos, e ao encarar sua guru e suplicar, “Me ensine!”, ele estava tão somente dando o seu primeiro passo, para dentro.

Não é sobre você, Stephen
Tão logo inicia seu caminho de mago, Strange se vê envolvido na costumeira batalha do bem contra o mal, embora no filme eles tenham tratado o “bem” e o “mal” de uma forma consideravelmente menos maniqueísta do que a média. Em todo caso, em se falando de caminho espiritual, tal batalha é muito mais interna do que externa. Assim como foi com Arjuna, a primeira reação de Strange é querer ficar de fora desta guerra.

No entanto, é somente lá para meados do filme que, numa derradeira conversa com sua guru, Strange finalmente percebe que, naquele cenário, fugir da batalha também era um ato egoísta. “Não é sobre você, Stephen”, é sobre a vizinhança, é sobre o mundo inteiro: que o objetivo desta grande guerra que cada ser trava dentro de si, para domesticar seus demônios sombrios, seu lado animal, é também o de salvar a humanidade toda.

Aqui se dá o grande paradoxo de tantos contos mitológicos: eles dizem respeito a você, todos os personagens são aspectos de nós mesmos; porém, ao mesmo tempo, a nossa evolução neste caminho diz respeito a um céu que ainda precisa ser erguido lá fora, nesta terra, nesta vizinhança. No fim das contas, todos os paradoxos de fato serão reconciliados...

Um pacto com Dormammu
O momento mais profundo e inteligente do filme, e também o mais hilário, é aquele em que Strange vai sozinho negociar um pacto com o grande demônio Dormammu na dimensão sombria.

Parece ser simples e trivial a solução de prendê-lo num loop temporal junto com si mesmo, de modo que ou ambos ficariam ali se digladiando pela eternidade (bem, não exatamente, pois Strange seria massacrado infinitas vezes, mas ainda assim, pela eternidade...), ou chegariam a uma espécie de trégua onde cada um poderia cuidar da sua vida sem intervir na do outro: Strange aqui na Terra, Dormammu em sua dimensão sombria.

Mas, pensem bem, não teria algo muito mais profundo se passando nesta negociação? Afinal, o que é a ignorância senão um loop temporal? Senão um rato correndo em sua gaiola, sem jamais sair do lugar? Senão um embate sem fim, e sem sentido, na dimensão sombria de nossa própria alma?

O que Strange realizou, afinal, foi um pacto com sua própria animalidade, sua própria ignorância: “Olha, já estamos aqui nos matando faz muito tempo, que tal seguirmos em frente agora?”.

E assim, ao se curar, ao salvar o seu próprio mundo, Strange não se tornou de fato nenhum mestre, nenhum guru, mas sim um médico de si mesmo, um Doutor Estranho.

***

Crédito das imagens: Marvel Studios/Divulgação (Doutor Estranho)

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