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30.11.06

Onde estão seus móveis?

Havia um sábio no Egito que era visitado por todo tipo de celebridade e empresários na décade de 80. Mattew era um desses jovens quase milionários que ainda buscava um ideal de vida, e resolveu pegar o avião da empresa de seu pai, a qual também fazia parte ele mesmo na área de finanças, e seguir para o templo do guru.

Chegando lá, teve de esperar algumas horas para ser atentido, visto que o sábio não atendia as pessoas por ordem de grandeza material... Quando finalmente chegou a sua vez, Mattew adentrou a sala onde o guru aconselhava os seres, achando que seria tão luxuosa quanto o resto do templo. Mas lá dentro, havia apenas algumas velas em cima de um toco de madeira, uma pequena pilha de livros antigos empilhados num canto, um jarro dágua com alguns copos de barro ao lado, e um semi ancião sentado em um longo tapete cheio de mandalas bordadas.

Interessante foi que Mattew nem esperou o sábio a sua frente iniciar a conversa:

"Ora, mas como o senhor atende as pessoas o dia todo praticamente sentado no chão... Porque não pediu para alguém lhe trazer alguns móveis do saguão ao lado?"

No que o guru olhou bem fundo nos olhos de Mattew, e assim permaneceu até o fim da conversa:

"Mais esses móveis não são meus, são os móveis desse templo de luz que gentilmente me sede esta sala para que eu possa aconselhar e curar a alma das pessoas angustiadas e perdidas... Com o que já fico imensamente agradecido."

"Mas e por acaso sua casa não fica próxima daqui?"

"Sim, de fato ela fica muito próxima realmente..."

"E então, onde estão os seus móveis? Poderia trazer ao menos uma cadeira para não ter se ficar aí no chão."

"Mas eu não tenho móveis."

"Como? Não tem móveis? Mas como assim, você quer dizer que sua casa também não tem móvel algum?"

"Permita-lhe perguntar portanto, porque você mesmo não trouxe as cadeiras de sua casa para nossa conversa?"

Mattew soltou uma leve gargalhada e respondeu:

"Ora, mas não lhe avisaram? Eu estou em trânsito, vim lá dos Estados Unidos somente para ver o senhor..."

E o sábio respondeu, ao que Mattew não teve com o que retrucar:

"Pois eu também estou em trânsito! E sempre levo minha casa comigo mesmo, pois que não sei aonde a vida irá me levar amanhã."

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29.11.06

O reino do padre

A religiosidade é comum a todo ser humano, mas não a religião. Todo homem possui a faculdade da fé, todos acreditamos de coração em alguma ou em muitas coisas… Uns tem fé na ciência, outros na natureza, alguns na loucura, e muitos tem fé em algum deus. Mas quão poucos tem fé no Deus.

Ao longo da história a humanidade cultivou e destruiu inúmeras e variadas religiões… Mal sabia a humanidade que só existe uma única religião. E essa possui poucos membros, mas é a única apta a receber verdadeiramente qualquer homem, sem restrições de nacionalidade, classe, cor, sexo, etc…

Os caminhos que levam a Deus são muitos. Não importa o caminho que escolhemos, e sim de que maneira o seguimos: O meio mais rápido é pelo amor ao tudo; O outro é lento porque se prende ao ego e as restrições do preconceito.

Toda e qualquer religião, a exceção da verdadeira, parte de um pressuposto comum e ilusório: “Nós veneramos e glorificamos ao único e verdadeiro Deus. Apenas nós vemos ao criador. Qualquer um que siga outro caminho estará perdendo o seu tempo, e porisso todos devem ser convertidos a nossa religião, ao nosso Deus.” “Nosso Deus”? Deus não pertence a ninguém, não está contido em nada, pois é ele o único que contêm a tudo. Deus não é exclusividade de nenhuma religião. E tão pouco qualquer religião foi capaz de ver a Deus em toda sua magnitude… [1]

Umas chegaram mais perto, muitas possuem grandes méritos de amor, caridade e educação moral. Mas enquanto as religiões se aterem a divisão, enquanto se preocuparem em converter fiéis ao invés de esperar que os homens por si só se lhe tornem fiéis, nunca chegarão a verdadeira religião.

Como pôde observar o filósofo alemão Immanuel Kant em sua crítica a grande igreja da época: “Os homens não souberam entender a mensagem de Jesus. E ao invés de ser instalado na Terra o reino de Deus, foi instalado o reino do padre.” Claro: Jesus dizia para nós amarmos a Deus acima de tudo, e o próximo como a nós mesmos… E todos os seres são nossos próximos... Todos, sejam os que vieram antes de nós, sejam os que convivem conosco agora, sejam os próximos seres a povoar a Terra… Todos!

O quão duro é para a humanidade entender que a felicidade, a simplicidade e a facilidade estão exatamente em amar a todos sem restrições, sem complicações. Não importa o caminho escolhido, e sim a maneira de caminhar. Não importa nossa falta de visão, porque temos ainda uma eternidade para lapidar nossa alma.

A verdadeira religião é aquela que não divide, une. Não dita o caminho, pois é o único caminho a ser seguido. Não pune, consola. Não julga, mas é eternamente julgada. Não se vangloria, porque sabe que um dia todos estarão com ela.

E quão felizes são os seguidores de tal religião… Esses não precisam nem orar e nem pedir benção, pois sabem que Deus os abençoa eternamente, e fazem de sua vida uma oração sem fim. Uma oração de agradecimento pelo milagre da vida.

Minha religião é meu pensamento.
Minha igreja é meu coração.
Minha vida é minha bíblia.
Deus é nosso amor.

***

Esse texto é um dos capítulos do meu livro "Do Universo ao Universal" (1998), devidamente editado para refletir o meu pensamento atual. Basicamente, diminuí o nível de dramaticidade retirando algumas exclamações, afora deletar alguma baboseira pretensiosa. As quatro últimas linhas ainda refletem meu ideal de vida, no entanto, e no geral ainda acho uma mensagem bastante atual, com o devido perdão a igreja de cada um...

[1] Importante lembrar que nesse parágrafo o termo "religião" é usado no contexto de "igreja", representando as grandes igrejas monoteistas (Cristianismo, Islamismo, Judaismo). Religião no entanto significa "religação a Deus ou ao Cosmos", já igreja significa "comunidade dos escolhidos por Deus" - Nesse sentido podemos dizer que nem toda religião é uma igreja, embora toda igreja seja uma religião.

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28.11.06

Olhos de gato

Estaria tua beleza perdida, minha amiga?
Ou antes espalhada pelas telhas e parapeitos da madrugada
A bailar para a lua, e cantarolar para a noite?
Seriam os cânticos e miados que ouço despercebidamente
A prova de que nas cidades etéreas
Já estais com tua pena a escrever doces poemas?

E quanto a esses felinos maravilhosos?
A cor de seu pelo brilha ainda mais com a aurora,
Seus movimentos precisos lembram as passadas de Hermes,
E em verdade não há nesse mundo nada mais enigmático que seus olhos!
Será que, como a rainha egípcia,
Você também agora os cria em seu templo de amor?

Mesmo essa saudade, que arde como um corte ainda aberto
Não poderia ser amenizada pela lembrança
De que em cada moita, telhado ou degrau
Há pegadas de teus filhos tão amados?

Pois tudo que hoje almejo
É olhar bem profundo
No próximo par de olhos de gato que encontrar
E fitando-os, tentar achar a porta
Que leva as escadarias de tua torre, minha amiga
Pois que ainda sinto essa falta tão amarga
De nossas conversas, nossas brincadeiras
E de gatos a pular

raph'06

***

Escrevi essa poesia em homenagem a minha melhor amiga, Flávia, que desencarnou nesse ano, e também a minha gata Xica, que sumiu de casa pouco depois. Muito embora tenho certeza de que ambas estão bem, já estamos com outra gata (Júlia), e uma das razões que pensei em começar esse blog foi para preencher o vazio de não ter mais uma poeta para conversar... E vamos em frente!

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Conversa de bar

Já era noite na cidade e como de costume a boêmia se encontrava nos bares para dançar, beber, seduzir e conversar. Alan e Carlos conheciam-se apenas de vista, mas por alguma razão no final da festa passaram a conversar sobre filosofia, ou mesmo filosofar (bem talvez eles tivessem bebido um pouco além da conta, não é a toa que a "filosofia de butequim" é um dos ramos mais difundidos da arte).

Conversa vai e conversa vem, depois de terem passado por filósofos modernos, acabaram como sempre caindo na grécia antiga. Interessante, ambos gostavam de Epicuro (nem todos entendem a simplicidade de se viver feliz, porisso a surpresa usual )... Mas Carlos teceu aquele tipo de comentário que pode encerrar uma conversa num momento: "Sim, puxa como é belo o pensamento de Epicuro, uma pena que não acreditasse em Deus." - Ora, mas Alan era ateu, como muitos filósofos aliás, e já se sentia triste por ter de encerrar a conversa, principalmente devido ao "uma pena": "Bem, mas eu também não acredito em deus."

Houve uma leve tensão no ar, mas para a surpresa de Alan seu agora talvez quase amigo respondeu: "Ah tudo bem, é que... Bom, eu acredito Nele, ou melhor, tenho certeza, então acho que Deus adicionaria muito na filosofia de Epicuro... Principalmente porque na época a idéia de Deus não era limitadora como na idade média." - Alan achou interessante poder continuar uma conversa como aquela, sem ser "censurado" por não acreditar em algo que a maioria acredita.

Conversa vem e conversa vai, Alan começou a ficar curioso para saber como alguém que acreditava em Deus podia ser tão "mente aberta" e sem preconceitos para com muitos assuntos e muitos filósofos... Até que teve vontade de dizer, e realmente disse: "Sabe, para alguém que tem certeza de deus, até que você está aberto a muitas idéias novas. Certeza é uma palavra forte, como você pode dizer que tem essa certeza toda?" - Carlos simplesmente disse: "Ora não sei. Bem eu sei que já nasci com essa certeza, mas não sei muito bem explicar ela."

"Mas e você não conversa com deus? Não tem medo de ir para o inferno ou coisa assim?"

"Não. Bem se Deus quisesse que fossemos perfeitos desdê a criação, não nos teria criado assim tão imperfeitos não é mesmo? Mas fácil teria sido criar robôs que já viriam programados para sempre trilhar os caminhos iluminados e sempre fazer as escolhas corretas... Eu não tenho medo de ir para o inferno, porque para mim não existe inferno, apenas ignorânica. Se tenho medo, tenho medo de repetir erros e fazer escolhas erradas, mas mesmo assim na vida ou na morte, tudo tem conserto."

"Mas então você não é daqueles que conversa com deus todo dia antes de ir dormir? Tipo, acredita que ele aparece para nós? Acredita que Jesus era deus?"

"Claro que Jesus não era Deus. Jesus foi o maior homem a passar pela Terra, mas entre o homem e Deus ainda existe uma extensa distância a percorrer. Deus não precisa aparecer nem conversar conosco, já que tudo na existência segue suas leis que foram determinadas ainda na criação do cosmos, acredito... Mas também não acho importante o fenômeno, o milagre. O importante é estar no caminho certo na vida, e se reconfortar com a idéia de que existiu sim um Ser antes do universo, e que se nos criou só poderia ter uma intenção de amor, já que o próprio ato de criar é um ato de amor."

"Interessante, mas se para você deus não interfere em nada em nossas vidas, se não pode fazer milagres por nós, se não pode nos julgar e nos mandar para o céu ou o inferno, então deus não exerce nenhum influência em sua realidade... Existe apenas a idéia, ou a certeza, a crença, de que ele existe. E que diferença isso faz?"

"Meu caro Alan, será que ainda se lembra de primeira vez que beijou sua mulher? Ou da primeira vez que fez amor com ela? Ou quando teve a certeza dentro de si que a amava, embora essa certeza fosse tão invisível quanto tantas outras?"

"Sim, bem eu ainda a amo."

"Pois é, e que diferença isso faz?"

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27.11.06

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Crédito da imagem: Google Image Search

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Bem-vindo

Um torii em algum lugar do litoral do Japão

Esta espécie de arco que você vê na imagem acima é um torii. Na verdade, toriis são portões tradicionais japoneses, ligados ao xintoísmo, e querem significar a entrada ou proximidade de um local sagrado.

Agora, veja que interessante: se você já está caminhando em meio a natureza, e vê um portal de madeira como esse, pode pensar, “Mas onde está o local sagrado? Não vejo igreja, mesquita, sinagoga, nem templo algum!”.

Pois é, a beleza da compreensão que vem com essa imagem é que o local sagrado pode muito bem ser todo o lugar, tudo a sua volta... E também, é claro, você mesmo. Afinal, não existe canto que você possa visitar neste mundo inteiro em que não esteja ainda aí, bem dentro de você mesmo.

Então, quem sabe, atravessar portais sagrados também pode ser algo que fazemos aqui dento, na essência. Este blog vai direto a essência... Bem-vindo!


O blog
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre filosofia, ciência e espiritualidade. Onde se busca a sabedoria tanto no Evangelho de Tomé quanto no Cosmos de Carl Sagan. Onde as palavras nada mais são do que cascas de sentimentos, embora a poesia ainda assim possa nos levar a um outro mundo. Onde toda religião se pratica no pensamento, e onde Deus é nosso amor.

Foto de Rafael Arrais

O autor
Rafael Arrais é poeta e designer de novas ideias. Escreve desde o século passado, mas foi somente em 2006 que criou este blog; em parte para organizar as próprias ideias, em parte para posicionar espelhos nos locais corretos, em parte em homenagem a uma grande amiga e poetisa que partiu naquele ano para outros continentes cósmicos.
Já passou por diversas experiências no campo espiritual, algumas boas, outras nem tanto, outras inesquecíveis. Este blog é também um testemunho da sua caminhada.

Os colunistas
Após mais de uma década, o blog eventualmente passou a contar com alguns colunistas convidados para falar sobretudo de assuntos fora da especialidade do autor (ou simplesmente gente que sabe tanto ou mais do que eu sobre o que eu também sei). Abaixo, trazemos todos os colunistas da casa, em ordem alfabética:

A editora
As Edições Textos para Reflexão surgiram em 2013, a princípio como forma de divulgação dos livros do autor, mas eventualmente se tornaram também uma plataforma de tradução e divulgação de grandes autores em domínio público, tanto em versão impressa quanto digital.

Reflexões em série
Uma boa forma de conhecer melhor o blog é começar pela leitura de nossas reflexões sobre assuntos específicos. Os links abaixo abrem novas janelas:

Os 10 melhores
Talvez lhe interesse conhecer os 10 artigos que mais gostamos de escrever. Os links abaixo abrem novas janelas:

  1. As lições da ciência
  2. Ágape: a iluminação
  3. E não pisquem os olhos!
  4. A crença do espiritualista
  5. As lições do carma
  6. Serpentes
  7. Perseguindo a eternidade
  8. Uma breve advertência
  9. A roda dos deuses
  10. Adão e Eva eram negros

Séries de contos
Estes são alguns de nossos contos mais interessantes. Alguns já chegaram ao fim, outros talvez jamais tenham um final... Os links abaixo abrem novas janelas:

Para ajudar nos debates
Muitas vezes perdemos um precioso tempo debatendo sobre termos que cada um compreende de uma forma. Esses artigos visam tentar "alinhar as definições" para que os debates em geral sejam mais produtivos. Os links abaixo abrem novas janelas:


Boa leitura a todos! E lembrem-se:

A luz foi criada para ser refletida.

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Para entrar em contato com o autor (Rafael Arrais), utilize o e-mail: rarrais@yahoo.com

Crédito da imagem: Michael Kenna (o artista também é responsável por boa parte das imagens de fundo no atual layout do blog).

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