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15.6.15

Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 4)

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

Uma questão de escala
É interessante como muitas vezes o significado de uma palavra, sua etimologia original, se perde ou se altera com o passar dos séculos e das sociedades. Talvez o exemplo mais claro disso seja o que ocorreu com o termo “candidato”.

Na Roma antiga, um candidato a um cargo público precisava se dispor a passar por uma espécie de ritual, onde ele atravessava uma praça pública vestindo tão somente um manto branco. Era um ato simbólico, é claro, mas sua simbologia era muito instrutiva: a brancura do manto (candidus) simbolizava a pureza de sua moral e de seu caráter, o que era essencial para administrar os assuntos públicos. Era tão óbvio há milênios quanto hoje: nenhum cidadão vai querer eleger um mau caráter, um corrupto, para gerir uma cidade-estado ou um país, até mesmo porque isso significa, basicamente, gerir o dinheiro dos impostos pago por todos, ou quase todos.

Ora, é evidente que, tanto na Roma antiga quanto nas democracias atuais, qualquer candidato vai buscar ocultar os seus “pontos fracos”, e enaltecer suas habilidades de bom governante. Isto está bom, é assim que fazemos quando queremos convencer aos outros das nossas qualidades, até mesmo numa entrevista de emprego...

O grande problema surge quando, ao invés de contar somente com a sua lábia, inteligência e oratória, ao invés de se apresentar somente com um manto branco em praça pública, o tal candidato passa a dispor de um conglomerado de agências de marketing e propaganda política, chefiadas por marqueteiros profissionais, verdadeiros magos do convencimento alheio, ao custo de muitos, muitos milhões de reais.

É dessa forma que, se após eleito o candidato talvez possa, quem sabe, atuar de forma livre (contanto que retribua as “doações” das empresas a sua campanha, é claro), é cada vez mais claro e evidente que, nos programas da TV, e até mesmo nos debates ao vivo, não é o próprio candidato quem fala, mas a sua “equipe de marketing” quem fala por ele. E assim chegamos a candidatos que são verdadeiras caricaturas de si mesmos, e que, uma vez chegando ao poder, assumem finalmente as suas personalidades reais (ou quase sempre, dependendo das estatísticas de aprovação nas pesquisas pós-eleições).

Assim sustentamos um sistema perverso de corrupção da democracia, um sistema que se retroalimenta, e se torna cada vez mais perigoso: um candidato precisa gastar milhões em sua campanha para convencer o eleitorado de que ele é o melhor (pois não há, de fato, outra opção para se vencer eleições majoritárias no Brasil e em muitos outros países); para conseguir tantos milhões, o candidato ou o seu partido político precisam convencer muitas grandes empresas de que eles têm uma boa chance de vencer (pois as grandes empresas jamais “doam” aos que não têm chance alguma, ou você pensou que se tratava de alguma ideologia?); para justificarem o gasto milionário em “doações eleitorais”, as grandes empresas precisam analisar cuidadosamente quais contratos superfaturados podem conseguir “lá na frente”, assim justificando seus investim... ops, suas “doações”, desculpem...

Finalmente, após as eleições as grandes empresas vão de vento em popa nos negócios, já que “a sorte lhes sorriu” e os candidatos em que “apostaram” acabaram vencendo. Logo, nas próximas eleições, as “doações” podem ser ainda mais substanciais, o que torna o custo das eleições em geral cada vez maior, e a chance de vencer um candidato realmente “puro”, como teoricamente eram os romanos antigos, vai se aproximando muito rapidamente de zero.

Portanto, a única forma de encerrar esse ciclo vicioso do Grande Negócio Eleitoral é reduzir drasticamente a escala do negócio como um todo: as eleições devem ser muito, muito mais baratas; e muito, muito mais amadoras!


Uma questão de lógica
Jan Larsson é um dos marqueteiros mais experientes do cenário político sueco; ocorre que isso jamais fez dele um administrador de campanhas suntuosas, cheias de propagandas pirotécnicas e curtas metragens exuberantes onde basicamente mais se atacam aos adversários do que se propõem políticas para melhorar o país. Ele tem bons conselhos para nós:

“Exatamente pelo fato de as campanhas publicitárias serem uma ferramenta tão cara e tão poderosa, é preciso ser cuidadoso e não exagerar na sua utilização.”

Até 2013, campanhas publicitárias de partidos políticos na TV eram proibidas na Suécia. Em 2014, pela primeira vez, fizeram uma experiência: no canal 4 da TV comercial, o eleitorado assiste a breves comerciais políticos de cerca de 40 segundos de duração, veiculados entre anúncios de margarina e barras de chocolate... Os comerciais são curtinhos mesmo, até mesmo porque os partidos não teriam recursos para filmar anúncios mais longos.

Na Suécia, o financiamento privado não passa de cerca de 30% do custo das campanhas, praticamente o oposto do que ocorre por aqui. Será que isso pode ser perigoso para nós? Vejamos o que diz Larsson:

“Seria um absurdo da minha parte expressar opiniões pessoais sobre a democracia brasileira, mas naturalmente é preciso tomar muito cuidado ao permitir que o dinheiro controle a informação. Especialmente quando não se tem um sistema rígido para controlar quem financia os partidos políticos. Se a distribuição de recursos para os partidos é justa, então todos têm as mesmas oportunidades. Mas quando você permite que grandes empresas e organizações controlem o financiamento dos partidos, põe-se em risco uma coisa extremamente fundamental, que se chama democracia.”

E é assim que, enquanto na “Suécia tropical” temos eleições cada vez mais caras e suntuosas, onde até mesmo grandes humoristas trazem seu show para as propagandas políticas, na Suécia real, tanto o oposto, os comerciais são curtos e semiamadores, e todo o embate político se dá nos debates televisivos (onde se evita a todo custo os ataques pessoais, pois os eleitores não suportam isso) e no “corpo a corpo” dos militantes, que muitas vezes chegam até a emprestar seus megafones aos militantes adversários, já que todos eles estão nas ruas antes para fazer prevalecer a democracia do que somente para vencer uma eleição.

Então me digam, honestamente, onde os mantos brancos sairiam de suas vitórias eleitorais mais sujos e maltrapilhos, num país recém-saído da miséria, onde as eleições são caríssimas, ou num país rico onde as eleições são baratas? Para mim, pelo menos, parece ser uma pura e simples questão de lógica.

» Em breve, “Gérard, por que não vem pegar uma praia?”

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Crédito da imagem: Wikipedia (vestuário usado na Roma antiga)

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21.5.15

Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 3)

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo responderam minhas perguntas, e agora estou comentando os assuntos abordados. Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

“Não há almoço grátis”
Recentemente, o ex-diretor de abastecimento da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, investigado na operação Lava Jato e signatário de acordo de delação premiada, deu o seguinte depoimento a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga os desvios bilionários da estatal:

“Não existe doação de empresas que depois essas empresas não queiram recuperar o que foi doado. Se ela doa R$ 5 milhões, ela vai querer recuperar R$ 20 milhões lá na frente... Não há almoço grátis.”

O que parece óbvio, claro e cristalino até mesmo para os mais desinformados acerca do nosso sistema eleitoral, no entanto, é muito mais grave do que parece. Doações empresariais são o investimento mais lucrativo do mercado, e o lucro compensa em muito o risco envolvido no negócio... Costa falou em empresas doando 5 e ganhando 20, ou seja, 4 vezes mais do que o valor doado, mas a realidade é muito mais lucrativa!

O estudo “The Spoils of Victory” (“Despojos da Vitória”), feito por pesquisadores de três universidades dos EUA, concluiu que as empresas que financiaram candidatos a deputado federal do PT nas eleições de 2006 receberam entre 14 e 39 vezes o valor doado por meio de contratos com o poder público nos anos subsequentes.

A pesquisa, publicada em 2014, cruza os dados oficiais de doações para as campanhas e os contratos obtidos pelas empresas nos anos seguintes – sem levar em conta eventuais pagamentos ilegais. Segundo os autores, não foi possível estender o estudo para governos anteriores por falta de dados públicos confiáveis.

Taylor Boas, um dos autores do estudo, explica que nos países em desenvolvimento os problemas envolvendo doações de campanha se agravam porque eles têm poucas leis de regulamentação da atividade. Segundo Boas, “No Brasil o limite para a doação corporativa é de 2% de seu faturamento bruto anual. Isso é um valor muito alto já que estamos falando de grandes empresas”.

E não é que as grandes empresas financiadoras tenham qualquer tipo de alinhamento ideológico com este ou aquele partido. Maior exemplo disso foi a atuação da JBS-Friboi, uma das maiores do mundo no ramo de alimentos, na campanha presidencial de 2014: não satisfeita em doar para um só candidato, resolveu doar de uma vez só para todos os que tinham alguma chance de vencer, ou seja, Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva. Não há, de fato, nenhuma ideologia envolvida neste processo – afinal, não à toa, a JBS foi na última década uma das grandes beneficiadas pelos empréstimos do BNDES a juros nível “ajuda de custo do papai”.

Ora, o próprio escândalo envolvendo a Petrobrás, outro daqueles que a grande mídia gosta de chamar de “maior caso de corrupção da história do país” (desta vez, porém, muito provavelmente com razão), está intimamente relacionado com o financiamento de campanhas eleitorais. E, como muitos devem saber, não se trata mais de financiamento não declarado a Receita Federal – o famigerado “caixa 2” –, mas doações perfeitamente legais e declaradas, ou seja, “caixa 1” mesmo... A questão é que a origem do dinheiro em si é ilegal, fruto de propinas gordas vindas de cartéis de empreiteiras.

Com tanto “crédito na praça”, não é de surpreender que o custo total das últimas eleições, em 2014, tenha batido o recorde histórico, e chegado a R$ 5 bilhões. Nós temos que olhar para esse número, infelizmente, não pelo seu valor atual, mas pelo que vai custar aos Cofres Públicos em “benefícios” a todas as empresas que tiveram a sorte de doar para os candidatos vencedores (afora, é claro, as que doaram para todos os candidatos)... Ou seja, no final das contas, quem paga pelo custo crescente de nossas eleições, no médio e longo prazos, somos eu, você, todos nós.


O Grande Negócio Eleitoral
É precisamente isso que eu chamo de Grande Negócio Eleitoral. Eu não sei quanto a você, mas neste ponto eu sou mesmo radical: não vejo como uma empresa possa ter quaisquer motivos para financiar campanhas políticas que não a possibilidade de lucro futuro. É muito simples: empresas não apoiam ideologias, elas investem.

Por conta desta minha percepção solidificada por inúmeros exemplos que venho analisando nos últimos anos, sou defensor ardoroso do fim do financiamento empresarial para campanhas eleitorais, e obviamente não sou o único... Faz mais de um ano que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a CNBB, a UNE, a CUT e outros movimentos sociais enviaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) desautorizando as doações empresariais para campanhas.

Ora, quando o julgamento já estava vencido em favor da ação, com 6 votos favoráveis dos ministros do STF (o que supera a metade), o ministro Gilmar Mendes pediu vistas para analisar “com cuidado” a Adin em casa, e interrompeu a tramitação da ação. E, repetindo, isso já faz mais de um ano!

Como defensor da democracia, eu compreendo que existam aqueles que defendam a continuidade do financiamento empresarial. Mas a questão aqui é que não está funcionando a democracia: é um único ministro emperrando a tramitação de uma ação importantíssima, que já foi voto vencido.

Vamos, porém, nos voltar para os defensores do financiamento empresarial... Eu quero crer que o motivo de eles persistirem defendendo o modelo atual se deva a um forte temor de que, em instaurado o temido financiamento público e exclusivo de campanha, os atuais detentores do poder se tornem quase que “lordes feudais”, utilizando os recursos públicos e a máquina do governo para injetar centenas de milhões de reais em suas campanhas, enquanto os que estão fora do poder mal teriam recursos para ter alguma chance nas eleições.

Pois bem, é talvez um motivo justo, mas inteiramente equivocado. E abaixo irei lhes enumerar as razões:

(1) Defender o fim do financiamento empresarial não significa defender o financiamento público e exclusivo. Isto porque o financiamento privado continua sendo perfeitamente possível, só que exclusivamente através de doações de pessoas físicas, e não jurídicas. De fato, o Butão é o único país onde foi adotado o financiamento público e exclusivo de campanha. No entanto, há diversos países que vêm adotando a proibição do financiamento empresarial nos últimos anos, dentre eles Canadá, Portugal, França, Polônia, Ucrânia, México, Paraguai, Peru, Colômbia e Egito.

(2) É preciso lembrar que o financiamento público já existe no Brasil, e está na Constituição. O Fundo Partidário, inclusive, recentemente teve o seu valor quase que triplicado, passando de R$ 289 milhões para R$ 867 milhões [1], no que parece ser uma clara reação dos parlamentares ao fechamento das torneiras das grandes empresas – que finalmente têm algum motivo para temer prosseguir com seus investimentos de campanha (alguma coisa, afinal, está dando certo!).

(3) Os atuais detentores do poder já são os maiores beneficiados pelas doações empresariais, inclusive em valores que superam em muito o que lhes cabe do Fundo Partidário. Por exemplo, ao final do segundo mês da campanha presidencial de 2014, a campanha do PT havia arrecadado de empresas 3 vezes mais do que o PSDB e 6 vezes mais do que o PSB. Já para o governo de São Paulo, não que fosse alguma surpresa, as doações se concentraram majoritariamente no PSDB.

Ou seja, não somente o financiamento público já existe, como em todo caso os atuais governantes, desde que mantenham sua popularidade em alta, são naturalmente os destinatários da maior parte do financiamento empresarial... No atual cenário, o financiamento público e exclusivo talvez fosse até um auxílio na renovação dos cargos eletivos, mas nem é isso que estou aqui defendendo...

Defendo tão somente o fim das doações empresariais, pois crer que alguma empresa tem realmente algum motivo para dar dezenas, centenas de milhões de reais para campanhas de políticos, que não seja para receber muito mais em troca lá na frente, é no mínimo de uma inocência muito grande.

Enfim, independente da opinião de cada um acerca do financiamento empresarial, o que todos devem concordar é que alguma reforma precisa ser feita em nosso sistema eleitoral, e ela é absolutamente urgente!

» Em breve, o ciclo vicioso que coloca em xeque a democracia...

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[1] Ainda assim, ficou somente pouco acima do valor das isenções fiscais concedidas as emissoras de TV por conta do horário eleitoral “gratuito” em 2014, que de fato jamais foi gratuito. Somente entre 2002 e 2014, o somatório das isenções chegou a R$ 4,4 bilhões.

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Crédito da foto: Google Image Search

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