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24.5.23

Projeto Ars Magica (trecho 2)

10 anos após o lançamento de Ad infinitum, enfim eu voltei a escrever um livro totalmente original. De lá para cá, foram muitas traduções, edições, e compilações de poemas e artigos do meu blog; mas agora chegou a hora de algo novo. E, assim como o próprio Ad infinitum um dia foi tão somente o Projeto Ouroboros, agora também voltarei a postar trechos de meu novo livro, enquanto ele é escrito. Bem-vindos ao Projeto Ars Magica!

Ao contrário do projeto anterior, neste não darei muitos detalhes do que exatamente se trata. Mas, para resumir, será uma obra sobre a Arte e o Caminho.

Então, vamos direto ao que interessa: abaixo, segue um dos trechos já escritos do projeto.

3.1

Imagine que antes das cidades e vilarejos, antes da agricultura, antes que os homens se decidissem por habitar um só canto, existiram templos, e um deles é bem mais antigo que as pirâmides; de fato, sua idade passa dos dez mil anos:

Göbekli Tepe (“monte com barriga”, em turco) é o topo de uma colina onde foi encontrado um santuário, no ponto mais alto de um encadeamento montanhoso no sudeste da Turquia. Sua estrutura possui 15 metros de altura por 300 de diâmetro e inclui dois complexos que se acredita serem de natureza ritual, e datam do décimo ao oitavo milênio a.C. Neles foram erguidos círculos de enormes pilares de pedra em forma de T – os megalitos (monumentos de pedra) conhecidos mais antigos do mundo. O estudo dos três recintos de pedra mais antigos do santuário revelou um padrão geométrico oculto: um triângulo equilátero com 19,25 metros de lado, subjacente a todo o plano arquitetônico.

Um templo, um templo de dez mil anos! Mas o que era um templo, o que é um templo? A palavra deriva de templum, “local sagrado”, em latim. E não há dúvida que Göbekli Tepe era um deles. Mas, será que naquele tempo os caçadores-coletores, os andarilhos e xamãs se reuniam ali, na maior estrutura arquitetônica do mundo, apenas para ouvir um sermão religioso e cantarolar músicas edificantes? Ou será que aquele templo era o próprio centro de sua existência, o lugar para onde retornavam, de tempos em tempos, para preencher suas vidas de sentido, e suas almas de entusiasmo?

Seus pilares de pedra apresentam os seguintes animais esculpidos: raposas, leões, bois e vacas, javalis, burros, garças-reais, patos, escorpiões, formigas, aranhas, muitas serpentes e algumas figuras antropomórficas. É preciso lembrar que isso tudo se deu antes do registro das primeiras linguagens escritas. Ou seja, tais pilares ancestrais representam os primeiros registros da arte rupestre fora das cavernas. Mas o que exatamente os xamãs realizavam no ventre da terra, o que exatamente se fazia em Göbekli Tepe?

Para todas essas questões, seria leviano dar uma resposta categórica e definitiva. O que podemos imaginar daqui, dez mil anos depois, é que ali, no sudeste da Turquia, o ser humano começou a entrar em contato com o Mistério.


3.2

Há uma lenda bastante difundida entre as religiões ocidentais que afirma, basicamente, que o monoteísmo, a “descoberta” do Deus Único, foi uma concepção originária do judaísmo. Segundo esta lenda, existem no mundo algumas poucas religiões monoteístas, derivadas da crença hebraica, e outras tantas que creem na existência de vários deuses de origem paralela – o chamado politeísmo.

A verdade, no entanto, pode ser mais profunda: Joseph Campbell foi um estudioso de mitos e religiões em todo o globo, e em O poder do mito ele deixa muito claro o que acredita ser a principal diferença entre as grandes religiões ocidentais e orientais: enquanto a oeste do canal de Suez, a maioria das pessoas identifica Deus com a fonte do Mistério, a leste de Suez, a associação que se faz é a da divindade como o veículo desta energia transcendente.

Por isso as religiões ocidentais tendem a identificar a Deus como um Grande Senhor que, sabe-se lá de onde, mantém a fonte da vida em constante afluência, enquanto que as religiões orientais tendem a ver esta divindade por toda a parte – ela seria o próprio fluido em movimento, a habitar a essência de todos os seres e de todas as coisas.

O curioso é que ambas as visões são complementares, e parecem ser apenas formas diferentes de se contemplar este grande Mistério: “por que existe algo, e não nada?” Para resolver tal questão ancestral, a mente humana tem se aventurado a observar os recônditos mais distantes do Cosmos, e a mergulhar cada vez mais profundamente dentro de si mesma. Este grande conjunto de dualidades, de opostos, emanados de uma única fonte, mas que preenchem a tudo o que há, se parece mais com uma imensa roda de deuses, eternamente girando em torno de um eixo misterioso.

Como a pedra do moinho, gira a roda do céu
em torno de Allah.
Acaso segure um raio de tal roda
terá sua mão decepada!

(Rumi)

E, como veremos, nesta mesma roda há diversas maneiras de se enxergar este Mistério que nos transcende.

 

Rafael Arrais

***

Crédito das imagens: [topo] raph (com Midjourney e GFPGAN); [ao longo] Google Image Search (escavações em Göbekli Tepe).

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10.5.23

Projeto Ars Magica (trecho 1)

10 anos após o lançamento de Ad infinitum, enfim eu voltei a escrever um livro totalmente original. De lá para cá, foram muitas traduções, edições, e compilações de poemas e artigos do meu blog; mas agora chegou a hora de algo novo. E, assim como o próprio Ad infinitum um dia foi tão somente o Projeto Ouroboros, agora também voltarei a postar trechos de meu novo livro, enquanto ele é escrito. Bem-vindos ao Projeto Ars Magica!

Ao contrário do projeto anterior, neste não darei muitos detalhes do que exatamente se trata. Mas, para resumir, será uma obra sobre a Arte e o Caminho.

Então, vamos direto ao que interessa: abaixo, segue um dos trechos já escritos do projeto.

1.2

Uma bela forma de se pensar o Caminho é imaginar uma região cheia de vales e montanhas. De vez em quando, um caminhante tem a oportunidade de subir no pico de uma das montanhas, mesmo que seja a menorzinha. Então, dali ele consegue observar as terras abaixo, as florestas e as estradas, os jardins e as fazendas, as pequenas aldeias e as grandes cidades, os rios correndo rumo ao oceano, e o horizonte onde as montanhas cada vez mais altas têm seu cume coberto pelas nuvens. Há sempre grande contentamento em simplesmente descansar no cume de um monte e contemplar o mundo abaixo, sem se preocupar com nada, sem ser nada e, ao mesmo tempo, ser carregado pelas brisas, ser dissolvido em tudo. A verdade, porém, é que nenhum caminhante consegue reter tal estado por muito tempo: do contrário, já teria chegado à última estada, e não precisaria mais caminhar.

Então, todo caminhante sabe que precisará descer novamente, e se aventurar em mais uma jornada, rumo ao próximo cume de montanha. O que separa uma escalada dessas de outra? Uma prática de meditação bem feita? Um recital de poesia? Uma dança ao redor da fogueira, ao som do tambor? Uma nova vida? Tanto faz: o que importa é que, do Alto, podemos somente observar o Caminho à frente, mas é cá embaixo que se caminha. Daí que cabe ao caminhante memorizar o Caminho, quando visto do alto; e não apenas dentro da mente, mas sobretudo no interior do próprio coração, nas profundezas da alma.

Ao descer abaixo, muitos caminhantes trazem consigo mapas detalhados de cada passada, de cada estradinha, de cada curva e ponte estreita que deverão passar a fim de chegar depressa na próxima subida de montanha. Não há nada de ruim em ser precavido, mas é preciso considerar que tudo muda, que nada está parado, que ninguém atravessa o mesmo rio uma segunda vez, e que até mesmo as montanhas mudam de lugar. E, ainda mais importante que isso: é preciso considerar que isso não é uma competição, e que mais vale chegar na próxima estalagem na companhia de outros caminhantes do que se destacar, e chegar primeiro, e estar só.

Nós não fomos chamados a este Caminho para subir no “pódio dos melhores artistas da caminhada”, nós fomos chamados a caminhar juntos, e há grandes caminhantes que se abstiveram de avançar mais, apenas para poder dar conselhos aqueles que se arrastam lá atrás.

Afinal, estamos todos debaixo do mesmo Sol, e mesmo na noite mais escura, vem a Lua nos dizer: “Olhem, olhem para o Alto, contemplem a imensidão e iniciem a contagem dos sóis!”.

Tudo isso foi sempre assim, caminhantes e retardatários, sábios e ignorantes, amigos dissolvidos em tudo que há, e seres obsediados pelo próprio ego. Não sabemos onde vai dar o Caminho, mas aqueles que já se aventuraram a dar os primeiros passos já não se encontram mais perdidos.

 

Rafael Arrais

***

Crédito das imagens: [topo] raph (com Midjourney e GFPGAN); [ao longo] Daniel Kordan.

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