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31.7.18

Por que estudar filosofia? (Reflexões no YouTube)

Neste vídeo falo sobre como pode ser altamente prejudicial a sua saúde mental acreditar por muito tempo na gente que fala que filosofia é só algo chato, difícil de ler, e que não serve para nada. No entanto, lhe darei dicas preciosas para que não faça como eu, e leia Platão antes de se aventurar por Kant... No fim das contas, veremos que a filosofia serve para algo essencial em nossa vida: aprender a pensar por si mesmo.

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23.2.17

Sócrates e a discordância construtiva

Texto por José Francisco Botelho em A Odisseia da Filosofia (Ed. Abril). Os comentários ao final são meus.

Dialética é uma dessas palavras escutadas com frequência, mas cujo sentido geralmente fica embotado pela fora do hábito e o peso do jargão. Na Antiguidade, contudo, ela tinha um significado claro: era a utilização do diálogo como ferramenta filosófica.

Para entender de que forma Sócrates transformou a história da dialética, vamos fazer uma recapitulação rápida – pois o sentido das coisas fica mais claro quando elas são comparadas com o que veio antes e depois. No início do século 5 a.C., Zenão de Eleia criou a dialética erística: um tipo de discurso em que o filósofo antecipa os contra-argumentos de seus adversários e utiliza-os para defender sua própria tese. No caso de Zenão, o debate era apenas imaginário: a palavra final ficava sempre com o autor da obra.

Depois, veio o diálogo sofístico, que era praticado face a face, entre dois interlocutores reais. Os sofistas não estavam interessados em descobrir grandes verdades; utilizavam o diálogo como ferramenta retórica, para vencer debates e influenciar a opinião do público. Aí entra o toque particular de Sócrates: para ele, o diálogo era um método de buscar a verdade por meio de perguntas e respostas. Ao contrário dos sofistas, ele partia do princípio de que a mente humana pode, sim, captar a realidade final das coisas – desde que assuma a sua ignorância de antemão.

Para os sofistas, o mais importante na filosofia era o uso persuasivo da linguagem – a verdade seria apenas uma questão de perspectiva e o que realmente importava era a habilidade em defender qualquer ponto de vista. Já Sócrates acreditava que a linguagem era uma ferramenta, e não um fim em si mesma. E, enquanto Zenão de Eleia usava a dialética com o objetivo de defender um ponto de vista decidido de antemão, os diálogos socráticos têm final aberto. Sócrates alimentava a dúvida, para que a verdade não fosse sufocada pelo peso das ideias falsas.

A teoria está explicada; mas, na prática, como funcionava o diálogo socrático? Sócrates geralmente começava lançando perguntas aparentemente simples sobre assuntos supostamente básicos: O que é o amor? O que é virtude? O que é educação? Em seguida, analisava cada resposta de forma implacável, questionando cada palavra e cada conceito usado por seus interlocutores – mas (e isso é muito importante) o questionamento socrático era sempre feito em tom amigável, sem arrogância, em uma tentativa de construir o conhecimento de forma partilhada, coletiva.

Existe no método socrático uma provocação atualíssima, que parece feita sob medida para o nosso século, cheio de som, fúria e desrazão. A arte do diálogo, conforme praticada por Sócrates nas tardes e noites de Atenas, era ao mesmo tempo implacável e civil. Implacável porque colocava em cheque todas as certezas herdadas, sem pruridos. Civil porque, se demolia ideias humanas, fazia-o em nome da humanidade, com o intuito de tornar possível uma sabedoria sem pés de barro.

A dialética de Sócrates não servia para defender posições arraigadas; lançava-se, cortesmente, contra todas elas. Partia do princípio de que a verdade absoluta não é monopólio de nenhum dos interlocutores; mas, contrapondo-se as aparentes verdades individuais, podia-se abrir caminho para uma visão mais clara e sólida das coisas. Em outras palavras: para Sócrates, a discordância não era uma força negativa, mas construtiva. Dois mil e quatrocentos anos se passaram e ainda estamos por assimilar essa lição.

Aqueles que ousassem embarcar na afável demolição socrática acabavam com uma impressão inquietante, mas potencialmente salutar: a de que todas as suas certezas eram relativas e, portanto, precisavam ser revistas. O objetivo de Sócrates era, exatamente, lançar o interlocutor em uma espécie de vazio – mas um vazio onde novas reflexões poderiam surgir, desimpedidas, em livre fluxo. “O alvo do método socrático”, escreve Richard Robinson em Plato’s Earlier Dialectic, “é arrancar os homens de sua sonolência dogmática e despertá-los para a verdadeira curiosidade intelectual”.

Como exemplo, vamos dar uma olhada no diálogo Laques, de Platão [ou seja, uma conversa entre Laques e Sócrates]:

“Laques, você acha que a coragem é algo bom ou reprovável?”

“Algo bom, certamente.”

“E quanto à tolice? É também uma coisa boa?”

“De forma alguma, Sócrates. A tolice é reprovável.”

“Imaginemos agora dois homens. Um sabe mergulhar, o outro nunca entrou na água. Ambos são desafiados a fazer um mergulho até o fundo do mar. Ambos aceitam o desafio, com grande perseverança de espírito. Qual dos dois é o mais corajoso?”

“O que não sabe mergulhar, é claro.”

“Contudo, qual dos dois é o mais tolo? O que tem o devido conhecimento técnico das artes do mergulho, ou o que se enfia na água sem mal saber nadar?”

“O mais tolo, nesse caso, é o mergulhador inexperiente.”

“Você havia me dito que a coragem é algo bom, enquanto a tolice é reprovável. Mas agora chegamos à conclusão de que, nesse caso, o mais corajoso não é o mais perseverante, e sim o mais tolo.”

“É fato, Sócrates.”

“Você continua achando que sua definição está correta?”

“De forma alguma. Eu estava errado. Que coisa estranha, Sócrates! Parece que não consigo expressar em palavras o que parecia claro em meu pensamento; sinto que sei o que é a coragem, mas, se tento defini-la, ela me passa a perna e foge de mim.”

“Ora, meu caro Laques, sejamos então como o bom caçador, que jamais desiste de perseguir sua presa. Tenhamos perseverança de espírito. Avante!”

Nesse lapidar diálogo socrático, o filósofo não estava sugerindo que a coragem fosse algo inútil ou estúpido – afinal de contas, ele próprio dera mostras exemplares de bravura no campo de batalha [Sócrates foi soldado ateniense em sua juventude]. O que Sócrates demonstrou é que, na maior parte das vezes, não sabemos direito sobre o que estamos falando – mesmo quando falamos de assuntos aparentemente elementares.

E assim, de interlocutor em interlocutor, Sócrates ia demolindo certezas: tornou-se, em suas próprias palavras, um “vagabundo loquaz”, andando por Atenas a fazer perguntas e mais perguntas a quem se dispusesse a respondê-las. Sua amistosa impertinência conquistou muitos seguidores entre os jovens atenienses. Além de Platão, o encantamento socrático também seduziu Alcibíades, seu companheiro de batalhas.

No Banquete, o jovem guerreiro descreve desta forma o efeito de Sócrates sobre a mente dos ouvintes entusiastas: “Quando escuramos Sócrates, pensamos inicialmente que seus discursos são ridículos: pois, no exterior, estão cobertos por frases e palavras absurdas. Mas, quando olhamos mais a fundo, descobrimos que as palavras de Sócrates são as únicas que realmente fazem sentido”.


Comentários
Pode parecer simples resumir as três vertentes da dialética, e ainda explicar a essência do diálogo socrático em poucos parágrafos. Mas passa longe de ser: outros que se meteram a tentar explicar a vasta história da filosofia ocidental precisaram de muito mais palavras. José Francisco Botelho, escritor e tradutor do sul do Brasil, é um mestre em passar esse tipo de conhecimento filosófico adiante. Eu o conheci inicialmente lendo seus memoráveis artigos para a revista Vida Simples. Depois o encontrei também como colunista da Veja. Mas foi neste livro, encontrado ao acaso numa banca de jornal, que pude compreender toda a extensão da sua habilidade para resumir conceitos grandiosos em parágrafos muito fáceis de serem lidos.

Outros autores precisaram de muitas centenas de páginas para explicar de forma aprofundada a história da filosofia no Ocidente. José precisou de menos de 300. Mas todo o seu cuidado em usar tais páginas da melhor forma possível é claro e evidente ao longo da obra. Se você quer conhecer mais sobre a filosofia, não existe introdução melhor e mais eficiente do que A Odisseia da Filosofia, que ainda pode estar dando bobeira numa banca ou livraria a poucos metros da sua casa. Não perca essa oportunidade!

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Crédito da imagem: Louis J.Lebrun (Socrates speaks)

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28.11.15

Pirro e o ceticismo

Trechos do artigo de José Francisco Botelho para a revista Vida Simples. Os comentários ao final são meus.

Em Élida, no oeste da Grécia, vivia um pintor de minguados recursos e parcos talentos chamado Pirro. Ganhava a vida fazendo afrescos, mas é de se imaginar que sua clientela fosse pouco exigente: os antigos cronistas garantem que suas pinturas eram perfeitamente esquecíveis. Pirro compreendeu, decerto, que seus dotes pictóricos nada tinham de olímpicos; talvez embalado pela desilusão artística, resolveu tornar-se filósofo.

Foi uma decisão propícia: a nova ocupação levou-o – literalmente – longe. Naquela época, um rapaz baixote e megalomaníaco ocupava o torno da Macedônia, a maior potência militar da Europa. Em 356 a.C., o monarca de 22 anos marchou rumo ao Oriente, com o plano de espalhar seus domínios até os confins do mapa-múndi. Além dessas ambições desmedidas, Alexandre – que, apesar da estatura mínima, foi apelidado de “o Grande” – nutria veleidades literárias e filosóficas. Mesmo nas barracas militares, costumava dormir com um exemplar da Ilíada embaixo do travesseiro; e gostava de alardear que seu professor de retórica e metafísica fora o sublime Aristóteles.

Pois bem: em sua jornada de conquista universal, Alexandre alistou não apenas lanceiros, arqueiros e espadachins, mas também pensadores abstratos. E, dessa forma, o pintor frustrado tornou-se turista global: no séquito de Alexandre, Pirro embrenhou-se pela Pérsia, pela Arábia, pelo Egito; atravessou o árido coração da Ásia, molhou os pés no Ganges e respirou as brisas geladas do Himalaia. Ao longo da travessia, deparou-se com a indomável variedade da espécie humana: conheceu povos que veneravam crocodilos e chacais, outros que adoravam o fogo, outros que conversavam com as estrelas; na Índia, encontrou sábios que viviam no meio da floresta, alimentando-se de folhas secas e vestidos com cascas de árvores.

Do Mar Mediterrâneo às praias do Índico, o ser humano buscava a verdade; mas, em todo o vasto mundo, Pirro não encontrara uma única verdade igual a outra. Convenceu-se de que nada é convincente: de volta a Grécia, passou a pregar uma nova e estranha doutrina, segundo a qual todo conhecimento humano é mera suposição. Já não existe verdade segura, só nos resta esmiuçar o mundo de forma incansável, sem jamais nos determos em conclusões inquestionáveis: da infinita insegurança nasce a incabível curiosidade. Por isso, os seguidores de Pirro ficaram conhecidos como os céticos – do grego sképtomai, que significa “examinar” ou “investigar” [1].

A incerteza, para muita gente, é sinônimo de angústia – mas, para os seguidores de Pirro, ela é uma eficaz terapia. Ao longo da história, dogmas inumeráveis estontearam a humanidade; nós, pobres mortais, vivemos correndo atrás de certezas que sempre se encontram na curva do horizonte. A necessidade de ter razão pode nos tornar desarrazoados: quantas vezes não percebemos que andamos esbravejando sobe coisas que só conhecemos pela metade (ou nem isso) [2]?

Perante essas agruras, a terapia cética é de uma simplicidade implacável: antes de afirmar qualquer coisa, deveríamos admitir que não podemos afirmar tudo. Aceitar os limites do conhecimento humano é uma forma de libertação: quem abraça a eterna dúvida encontra a paz de espírito ou ataraxia, virtude que os antigos valorizavam sobe todas as coisas.

[...] O ceticismo, como tantos vocábulos profundos, perdeu um tanto do sentido original, à força de ser repetido ou mesmo sequestrado: Pirro consideraria dogmáticas muitas pessoas que hoje se declaram céticas. Digamos que alguém pergunte a um Pirro moderno se ele acredita em Deus. À primeira vista, existem duas respostas possíveis: sim ou não. O senso comum diria que a posição cética corresponde à segunda alternativa. Mas, nesse caso, o senso comum está enganado: para um cético clássico, devemos suspender o juízo a respeito de assuntos logicamente insolúveis.

É possível imaginar um universo criado por uma inteligência transcendente, além da compreensão humana; é também possível imaginar um cosmos solitário e materialista, sem outro sentido além do bailado dos átomos. Ou seja: ambas as hipóteses são verossímeis, mas nenhuma delas é verificável. Não podemos bater uma radiografia do universo e constatar a presença ou ausência de Deus, como quem identifica um órgão ou uma cartilagem; logo, tanto o sim quanto o não correspondem a um salto de fé.

O ateísmo, nos olhos pirrônicos, é apenas uma crença, igual às outras. Pirro, aliás, tornou-se sacerdote da antiga religião grega, após seu retorno a Élida; e George Berkeley, um dos nomes mais célebres do ceticismo moderno, era bispo da Igreja Anglicana.

Mas não precisamos nos alçar a enigmas metafísicos para testas a terapia pirrônica. Mesmo que deixemos o sentido do cosmos à escolha de cada um, veremos que o método tem efeitos salutares quando aplicado às coisas do dia a dia. Os céticos da Antiguidade colocavam em dúvida até mesmo o testemunho dos sentidos; alguns questionavam o brilho do Sol, a doçura do mel, ou a vermelhidão das coisas vermelhas [3] – mas não precisamos ir tão longe. Será suficientemente cético quem se ativer a esta máxima: somos criaturas finitas, enquanto a verdade é infinitamente complexa – e o universo talvez não caiba em uma casca de noz.

Isso não implica renunciar a toda a opinião – podemos deixar a suspensão total do juízo ao velho Pirro, em suas divagações. [...] Para nós, basta recordar que toda perspectiva humana é parcial. A visão completa das coisas só pertence aos deuses – e, bem, eles costumam guardar seus segredos com muito afinco.

Os antigos cartógrafos tinham o hábito de escrever, nas bordas dos mapas marítimos, o lema latino nec plus ultra – “daqui não passarás”. O objetivo era assustar os navegantes audazes – e lembrá-los de que toda viagem tem de chegar ao fim. O dogmatismo também anda, sempre, a rabiscar términos e limites na geografia da mente; com regra e esquadro, ele insiste em tascar pontos-finais à aventura do pensamento.

Nessas horas, um gole do antídoto pirrônico vem a calhar. Pois ele nos devolve a medida certa de modéstia e ousadia: não sabemos tudo; e, por isso mesmo, temos de acreditar que a busca continua. Sejamos então como Alexandre, que não quis se deter na Babilônia, nem em Persépolis, nem nos desertos do Afeganistão; seguiu marchando enquanto pôde e, ao olhar as estrelas, exclamava com sonhadora melancolia: “Há muitos mundos lá em cima; e não poderei conquistar nem mesmo este mundinho nosso, aqui embaixo”.

***

[1] O ceticismo original nasceu, com Pirro, de uma constatação tão simples quanto profunda e humilde: a de que nenhum ser humano detém a verdade absoluta. Há uma parábola sufi que diz que Deus carregava um espelho e esse espelho era chamado “Verdade”. Um dia, ele deixou cair, e seu vidro se quebrou em inúmeros pedacinhos. Cada pessoa que descobriu um desses pedacinhos acreditou que havia descoberto toda a verdade, e foram raras as que chegaram à conclusão de que a verdade absoluta não pode nunca ser a propriedade de uma só pessoa, de uma só doutrina ou filosofia. É isto precisamente o ceticismo de Pirro: não uma negação da verdade, mas um reconhecimento de que ela só pode ser encontrada em parte, e somente por aqueles que não desistiram de continuar investigando.

[2] Infelizmente é muito comum encontrarmos entre os que se satisfazem com dogmas e certezas absolutas gente que não está aqui em busca de uma verdade para satisfazer as suas dúvidas internas, mas antes para expô-la aos demais, por vezes de forma grosseira e violenta, numa necessidade quase que insaciável de “ter razão”. Ironicamente, tais pessoas são as que se encontram, quase sempre, mais distantes da razão.

[3] O ceticismo moderno está, talvez irremediavelmente, contaminado pelo positivismo da Academia. O que isto quer dizer, basicamente, é que hoje é muito comum crermos que nossas dúvidas só podem ser solucionadas por comprovações objetivas, muitas vezes em um laboratório, e acompanhadas por calhamaços de estudos científicos e/ou estatísticas. Isto é bom, por exemplo, para o desenvolvimento da tecnologia; mas é muito ruim para o desenvolvimento do ser humano. Os céticos antigos questionavam tudo, é verdade, mas também aceitavam as comprovações subjetivas de suas próprias experiências pessoais, ainda que não pudessem, com isso, “evangelizar” suas comprovações adiante. Ocorre que Pirro e seus seguidores não perdiam seu tempo tentando convencer os outros de nada – nem do que existe, nem do que não existe.

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Crédito da imagem: Google Image Search

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