Se há uma função pela qual o estoicismo se tornou mundialmente conhecido, é a de auxiliar as pessoas a atravessarem momentos de crise. Isso, por si só, já explica o porquê da filosofia estoica ter voltado às prateleiras dos títulos mais vendidos em nossas livrarias. Mas, dito assim, “auxiliar as pessoas nos momentos de crise”, pode parecer que o estoicismo é uma espécie de autoajuda, e é mesmo: a raiz da autoajuda, ou seja, conhecer a si mesmo pela prática da filosofia, para assim ajudar a si mesmo a viver uma vida melhor. A questão está, portanto, em não ler o estoicismo de forma superficial, como quem segue uma receita de bolo. Afinal, não é porque este ou aquele guru lhe disse que o estoicismo era isto ou aquilo, que você deveria adentrar esta filosofia, e sim porque você mesmo a leu, conheceu, praticou, e viu que funciona, que de fato modificou sua vida para melhor. A filosofia estoica, afinal, é muito, muito mais do que um fenômeno de marketing.
Os grandes expoentes do estoicismo viveram em sua fase romana. Sêneca (ca. 3 a.C. – 65 d.C.) foi um dos mais célebres pensadores do Império Romano, tendo ao mesmo tempo alcançado altos patamares na Política de seu tempo, ao ponto de ter sido um conselheiro do imperador. Já Epicteto (ca. 50 – 135 d.C.) teve origem muito diversa: nascido como um escravo grego, eventualmente se tornou um homem livre, vivendo e lecionando em Roma até perto de sua morte. Marco Aurélio (121 – 180 d.C.), por sua vez, estava na outra ponta da escala social. Era sobrinho e filho adotivo do imperador Antonino Pio, a quem sucedeu em 161 d.C. para governar o maior império do mundo, enquanto ainda encontrava tempo para escrever suas Meditações.
Seja como for, se foi em Roma que o estoicismo se tornou imensamente popular, com seus filósofos mais preocupados em falar de uma vida virtuosa, voltada para problemas práticos, como mudar o que se pode mudar, e aceitar o que não temos controle para decidir, foi na antiga Grécia que ele nasceu – pela mente de um personagem quase lendário, Zenão de Cítio.
Nascido na ilha do Chipre, na cidade de Cítio, em torno de 332 a.C., Zenão chegou a Atenas aos 22 anos, por volta de 310 a.C. Foi descrito como um homem de pele morena, franzino, sempre de cara séria e vestido com roupas leves. Vivia de maneira frugal e comia moderadamente, sobretudo pão e mel. Amava um bom vinho, embora bebesse raramente. Era sociável até certo ponto, frequentando muitos banquetes, embora temesse a multidão, raramente sendo visto com mais do que duas ou três pessoas ao seu redor. As fontes variam sobre as circunstâncias de sua chegada a Atenas. Elas concordam no fato de que ele era um comerciante que importava mercadorias da Fenícia, mas, segundo alguns, teria perdido toda a sua carga em um naufrágio; e, para outros, vendeu toda a sua mercadoria e depois resolveu se dedicar somente à filosofia, que teria descoberto por acaso ao perambular por Atenas.
Durante aproximadamente uma década, seguiu os ensinamentos de três correntes filosóficas que tinham suas origens no célebre Sócrates: os megáricos dialéticos, dos quais não nos restou quase nada; os cínicos e, sobretudo, a Academia de Platão. Zenão abriu sua própria escola aproximadamente em 301 a.C., sob o pórtico de Atenas conhecido na época como Pórtico das Pinturas (Stoa Poikile), daí o nome de Stoa, do qual derivou o termo “estoicismo”, ou simplesmente “O Pórtico”. O sucesso foi rápido e, por ocasião da sua morte, em torno de 262 a.C., a cidade lhe prestou honrarias dignas de um sábio.
As principais características da escola inaugurada por Zenão, que hoje em dia vemos tão em voga, são a busca por se levar uma vida virtuosa, pautada na ética e no autocontrole, assim como aceitar aquilo que não podemos mudar, e focar naquilo que pode ser feito, isto é, aceitar corajosamente o destino e a morte, e ter uma visão mais racional da vida, avaliando constantemente nossos sentimentos, e os mantendo sob controle.
Mas toda a filosofia antiga, além da parte comportamental e ética, também se propunha a responder questões como “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”, com sua própria cosmogonia. No caso do estoicismo, o Cosmos é finito, com a Terra, o Sol, a Lua e os demais planetas e estrelas; porém eles rejeitavam a ideia de um vácuo, um vazio absoluto, pois para eles tudo era conectado de alguma forma.
Antes do Cosmos, no entanto, existia o pneuma, o sopro divino, a substância que é a origem de tudo, a força criativa, isto é, o Deus Primordial que tudo criou a partir de si próprio. Segundo os estoicos, a criação do Universo se inicia com o fogo, que tudo moldou; e, da mesma forma, tudo há de aniquilar no fim dos tempos. No estoicismo, Deus (ou Zeus), como a substância original, dava origem ao universo, aos demais deuses, à natureza e aos seres humanos; mas, ao mesmo tempo, tudo era composto desse Deus-Substância. Seja como for, não sobraram muitas orações estoicas, nada de apelo aos deuses, visto que eles acreditavam que isso não era algo muito necessário em um universo racionalmente ordenado.
Em suas raízes, a filosofia estoica é monista, ou seja: “tudo é um”; e também panteísta, Deus como um princípio associado à natureza, compondo tudo o que existe. Além disso, é materialista, atribuindo um corpo físico até mesmo para a alma, e muito focada na mecânica dualista de “ativo e passivo”, que afirma que tudo o que existe é capaz de agir ou de receber uma ação. O Cosmos material, entretanto, é preenchido com o pneuma, com o sopro divino, que é racional e ordena a realidade.
Embora tenha sido convenientemente deixado de lado por boa parte dos estudiosos acadêmicos, o estoicismo também guarda um lado profundamente espiritual, até mesmo esotérico: dentre as suas principais contribuições para a cena esotérica do Ocidente estão a ideia do perenialismo e a doutrina das correspondências.
É comum, ao pensarmos nos primeiros seres humanos, que os imaginemos como ignorantes, desprovidos de conhecimento e ingênuos, pois somos influenciados pelas ideias da biologia evolutiva, que considera que os humanos vão se tornando mais inteligentes e complexos após muitas e muitas gerações. Para os estoicos, no entanto, era justamente o contrário: para eles os primeiros humanos, surgidos do fogo criador, eram homens e mulheres de profunda capacidade intelectual, com uma natureza até mesmo semidivina, capazes de compreender o Cosmos de forma precisa, sem falhas de interpretação. Eles eram considerados muito superiores, em todos os sentidos, aos homens da época de Zenão. Os estoicos também acreditavam que a primeira linguagem surgiu diretamente do contato do homem com a natureza divina e profunda, sendo que a natureza e a linguagem eram conceitos intimamente conectados.
Por isso a filosofia estoica era tão preocupada com a linguagem, com o significado das palavras, e sempre recomendava que tentássemos encontrar a sua origem profunda, primeva. Tal conhecimento poderia revelar a real natureza da natureza, que era considerada divina. Para os estoicos, as verdade primordiais estavam preservadas na filosofia da natureza, nas leis e nos mitos religiosos.
Aliás, os mitos eram vistos como extremamente importantes, por serem superiores à simples narrativa, assim como pelo seu profundo caráter épico: eles carregavam verdades que precisavam ser interpretadas e compreendidas. Assim, por meio da linguagem e do estudo dos mitos, era possível exercer a piedade, no sentido espiritual do termo, e decifrar o entendimento divino por trás dessas histórias de heróis e deuses. Ou seja, os estoicos foram pioneiros em defender interpretações não literais dos contos mitológicos, como uma forma de se conectar espiritualmente à natureza divina.
Assim, vemos conceitos importantes do estoicismo que viriam a influenciar o perenialismo, ou a filosofia perene, que busca identificar a verdade que une todas as religiões, algo que posteriormente iria ser mais aprofundado por espiritualistas da era moderna, como René Guénon e Helena Blavatsky. Ou seja, eles acreditavam que analisar as diversas crenças poderia dar origem a um corpo de entendimento que é comum a todas elas, que existe uma verdade que é expressa em todas as religiões. E não só isso, como a própria busca do significado das palavras e do entendimento profundo da linguagem, segundo eles, era algo que poderia nos levar à compreensão da natureza.
É engraçado considerar tudo isso como advindo de uma filosofia que hoje em dia é vista como algo tão racional, tão voltado para o dia a dia mundano.
Bem, e a principal conexão estoica com a espiritualidade é justamente a ideia da ligação entre as coisas: os estoicos acreditavam que havia um princípio ordenador, um pneuma, que ligava os objetos e mantinha a natureza racionalmente coesa. E o pneuma não somente conectava as coisas, como também espalhava sinais e símbolos na própria natureza, para que fossem interpretados pelos seres que a contemplassem. Dessa forma, o sábio poderia contemplar o leão, e por meio de uma compreensão oculta, associá-lo ao Sol. Ou ainda identificar tanto o leão quanto o Sol com o ouro. Tal doutrina parte do desejo estoico de buscar compreender as pistas e os sinais deixados pela inteligência divina.
E é por tudo isso que você pode, sim, ser ao mesmo tempo um estoico e um espiritualista, e se dedicar tanto a uma vida virtuosa quanto à busca pelos sinais divinos ocultos na natureza a sua volta. Essas são as verdadeiras raízes do estoicismo, e quando Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio falam em “viver de acordo com a natureza”, são tais ideias que eles têm em mente.
Bibliografia
História da filosofia ocidental, de Bertrand Russell; Epicteto e a sabedoria estoica, de Jean-Joël Duhot; A odisseia da filosofia, de José Francisco Botelho; Canais Esoterica (por Dr. Justin Sledge) e Barbarismo Esotérico (por João Drewes) no YouTube.
***
Crédito das imagens: Google Image Search
Marcadores: artigos, artigos (311-320), espiritualidade, estoicismo, filosofia, mitologia, ocultismo, perenialismo