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6.12.25

É preciso amar o feminino

O primeiro ser humano a assinar a autoria de um texto foi uma mulher, Enheduanna, poeta e sacerdotisa de Ur, filha do rei Sargão, que viveu na Mesopotâmia, mais de 4.200 anos atrás, quando a presença feminina no reinado das ideias e das artes ainda era tida em alta conta. Muitos séculos depois, viveu em Alexandria uma das últimas pensadoras registradas pela história antiga, Hipátia, a quem o bispo Sinésio chamava de “divina mestra”. Depois, foram necessários mais séculos e séculos para que alguma delas fosse devidamente considerada como filósofa ou cientista, e aqui vale citar a brilhante Marie Curie, a primeira pessoa a ganhar duas vezes um Prêmio Nobel (um na física, outro na química). Ora, e o que aconteceu entre Hipátia, que viveu no século quinto, e Marie, que foi reconhecida como grande cientista no século vinte? Será que entre elas não viveram grandes filósofas, cientistas, pensadoras, artistas? Ou será que a história simplesmente deixou de registrar as poucas que conseguiam se sobressair em meio a um brutal mundo de homens?

Sim, um mundo de homens, vocês sabem do que estou falando, do patriarcado e coisa e tal... Mas, apesar delas certamente merecerem toda compaixão e caridade, este texto não pretende exaltar ou aconselhar as mulheres, que bem ou mal foram obrigadas a reconhecer e conviver com seu lado masculino, a fim de simplesmente sobreviverem nesta terra – não, eu vim aqui falar com vocês, homens, que podem não saber ou não querer saber, mas que têm sim um lado feminino, um lado cujo reconhecimento e bom convívio é essencial para uma vida, uma alma equilibrada. E, ao contrário do caso delas, esse mundo só nos fez afastar de nossa parte feminina.

Com isso não quero dizer que nós homens somos uns coitados, vítimas privadas de seu lado feminino. Certamente não brincaria com isso, pois nós não fomos sucessivamente dominados, adestrados, violentados, assassinados das formas mais brutais e covardes possíveis. Não, mas ainda assim, nós também saímos perdendo, e não foi pouca coisa.

Na psiquê humana, assim como em tudo o mais, há sempre dois lados, dois polos, e não é como se um deles fosse positivo e o outro negativo, no sentido qualitativo, pois ambos são essenciais e complementares: o lado feminino precisa reconhecer e conviver com o masculino para se tornar inteiro, equilibrado; e o mesmo ocorre no outro polo. Mas é justamente aqui o grande problema dos homens de hoje, que foram ensinados não somente a ignorar seu lado feminino, como a temê-lo, evitá-lo e, em casos mais extremos, odiá-lo com todas as forças.

Para começo de conversa, é bom dizer que isso tem pouco a ver o gênero, a orientação sexual ou mesmo o sexo em si – até mesmo porque o sexo, algo sagrado tanto para a alma quanto para o corpo e a fecundidade em geral, há tempos tem sido reduzido a uma mera sessão de falos e orifícios, algo mais mecânico do que propriamente natural, humano. Em suma, o que quero dizer é que reconhecer o seu lado feminino não fará de você “menos homem”, muito menos um homossexual. Por outro lado, também é fácil perceber que os homens homossexuais em geral, ou pelo menos os assumidos, já estão bem mais adiantados na via de convívio com seu lado feminino.

E o que diabos ganhamos ao reconhecer nosso lado feminino? O que estamos perdendo, por deixá-lo de escanteio em nossas vidas? Bem, qual foi a última vez que você chorou ao lado dos seus amigos, e não por razões religiosas, políticas ou futebolísticas? Qual foi a última vez que você saiu com um amigo para desabafar sobre coisas íntimas, puramente emocionais? Qual foi a última vez que você foi a um teatro, um recital de poesia, uma exposição de arte, quem sabe assistir um filme de drama no cinema? Qual foi a última vez que você se permitiu estar só, realmente só, refletindo sobre a vida? Qual foi a última vez que você abraçou sua melancolia, sabendo que ela também é apenas o outro lado da moeda? Qual foi a última vez que você contemplou a natureza a sua volta, espantado com tamanho espetáculo de fecundidade? Qual foi a última vez que você amou uma mulher como amiga, como companheira, como igual, e não somente como um orifício?

Sim, parafraseando Renato, é preciso amar o feminino. É preciso amar a mulher, a ideia da mulher, o pensamento da mulher, a arte de ser mulher, é preciso amá-las não somente com o corpo, por conta do corpo, mas também, e sobretudo, com a alma, pela alma...

A verdade é que é difícil colocar em palavras o que ganhamos, o que perdemos, se reconhecemos ou não nosso lado feminino. As palavras são cascas de sentimento, e o feminino, sendo puro sentimento, pura emoção, é mais fugidio que o masculino, mais difícil de ser capturado pela linguagem. Aliás, se fosse tão simples recuperar nosso lado feminino, este mundo de homens já teria deixado de ser tão, tão brutal, há muito tempo. No entanto, é preciso começar de algum lugar, algum dia, com um pensamento que seja, e depois seguir dali, passo a passo, rumo a uma noite mais enluarada, mais acolhedora, mais misteriosa.

E assim, no rastro da lua, vamos beneficiar enormemente não somente a nós, homens, como também a elas, que decerto ficarão contentes com mais uma alma equilibrada, e menos um agressor em potencial na sociedade. Pois quanto mais varremos para debaixo do tapete, quanto mais enrustimos nosso feminino, mais nutrimos um ódio inconsciente dele, mais sentimos raiva dos outros homens que se deixam conectar com seu feminino, mais nos afastamos da alma da mulher, mais nos ressentimos delas, simplesmente por serem mulheres, e vivemos uma meia-vida, uma existência incompleta, que justamente por negar as emoções, é assolada e dominada por elas. E, depois, ainda descontamos nossas mágoas em quem não tinha absolutamente nada a ver com o assunto.

Para encerrar, gostaria de trazer este discurso (ou desabafo) da única mulher atualmente exercendo o cargo de Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia:

Há uma forte hipocrisia no discurso pela igualdade que ignora a cultura de violência contra a mulher. Mata-se a mulher por ser mulher; só por isso, por ela ser o que ela é. E nós gostamos de ser mulher, e não queremos que matem os homens. O compromisso da mulher é com a vida, não com a morte. E não é civilizada uma sociedade que mata mulheres e crianças [...] E ainda hoje nós vemos homens que matam e depois dizem, “o comportamento dela não era bom”, ou, como nós vimos no início da década de 1980, [...] quando uma mulher foi morta, e estava sentada, levando quatro tiros, dois no rosto – como é próprio do feminicídio, em geral nos desfiguram, jogam cal, esfaqueiam, atiram na face, para negar a imagem do que foi aquela mulher. Isto é um nível de crueldade, de perversidade, que demonstra que uma sociedade que compactua com isso não alcançou a etapa civilizatória. E não adianta virem dizer que somos todos a favor da igualdade: não são. Se fossem, nós não estaríamos precisando nos reunir para dizer em alto e bom som que somos todos iguais em nossa humanidade, em nossa dignidade, em nossos direitos.

 

por Raph em 06/12/25

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Crédito da imagem: Brittani Burns/unsplash

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25.11.25

A beleza duradoura de Sofia

Poucos dias atrás eu estava descendo uma escada rolante no coração de São Paulo, mais precisamente no Hotel Nacional Inn Jaraguá, próximo à Praça da República, onde já se hospedaram artistas como Alain Delon, Sophia Loren e Mick Jagger. Por acaso eu também me dirigia a um encontro anual de artistas, embora nem sempre eles sejam compreendidos como tal.

Tal encontro é hoje conhecido como Sofia, ou Simpósio de Ocultismo e Filosofias Arcanas, mas ele também já foi chamado de Simpósio de Hermetismo, sendo a continuidade de algo que surgiu lá em 2010. Ele representa um genuíno caravançará espiritual. Calma, eu também não conhecia essa palavra até agora pouco, quando pesquisei sobre algum sinônimo para “uma parada de caravanas”. Eis a resposta do sr. Google:

Uma parada de caravanas no deserto é um caravançará, um ponto de descanso e comércio com alojamento para viajantes e camelos, localizado ao longo de rotas comerciais importantes. Eles serviam como base para caravanas que atravessavam o deserto, oferecendo água, abrigo, e suprimentos, facilitando o comércio de longas distâncias. Os caravansários também eram cruciais para a sobrevivência, conectando comunidades e impulsionando o desenvolvimento cultural e econômico nas regiões desérticas da Ásia, África e Oriente Médio.

Ora, não importa se a sua caravana de busca espiritual, de busca de um sentido, um entusiasmo que vá além do chumbo do mundo, é grande ou pequenina, fato é que no Sofia formamos todos uma grande caravana de almas, ainda que ela dure poucos dias, e depois se desfaça... Será?

Descendo as escadas, a primeira alma que vi foi justamente o coração do Sofia, Pri Martinelli, uma das sonhadoras que materializou nosso encontro. Nos cumprimentamos pessoalmente após cerca de um ano, após um giro da Terra em torno do Sol, e no entanto parecia que aquele nosso último encontro tinha sido ontem. De certa forma, estando ali, naquele mesmo local do ano anterior, parecia que o próprio tempo transcorrido havia se tornado, subitamente, algo irrelevante, sem importância: era como se ali, naquele encontro de caravanas, o próprio registro do tempo se desse de outra forma, como se ali cada momento, cada troca de cumprimentos e de saberes, fosse mais eterna, mais duradoura.

Os magos e os místicos, esses praticantes da Arte e de tudo o que ela irradia, são realmente capazes de ver a beleza, o ouro oculto entre o chumbo do mundo. O problema é que a vemos, e logo vem o chumbo e nos faz esquecer. Mas nenhum de nós realmente se esqueceu de nenhum de nossos encontros, de nossas rodas em torno da fogueira, de nossas peregrinações pelo deserto, de nossas aventuras na floresta, de nossos renascimentos na caverna... Ainda que isso ainda resida velado em nosso inconsciente, de alguma forma parte disso vem à tona em encontros como esse, em pleno centro de São Paulo. Esta é a beleza duradoura de Sofia.

Desde que participei do meu primeiro caravançará espiritual, em 2012, pude sentir e compreender que, embora muito importante e iluminador, o conteúdo das palestras dos expositores era algo que ficava claramente em segundo plano, ofuscado pela simples oportunidade de finalmente, finalmente, podermos conviver alguns dias em meio a uma comunidade de buscadores, de caminhantes, de gente que veio de todos os cantos do Brasil, e até de fora, para estar com seus semelhantes. E a nossa principal semelhança é querer buscar o que está além do dogma, além do julgamento, além das ideias de certo e errado. O Sofia é um campo onde as almas se encontram e são o que são.

Pode parecer fácil, mas não é. A magia mais difícil é ser quem realmente somos. A cada vez que paramos nossas caravanas isoladas nesse grande campo, a cada vez que percebemos que todas aquelas regrinhas hipócritas de “faça isso ou não faça aquilo senão aquilo outro pode acontecer”, de “pratique este caminho e jamais olhe, sequer de relance, para os demais”, ou de “nós somos os escolhidos e não podemos nos misturar com aqueles ali”, a cada vez que constatamos que tais regrinhas não passam de palavras ao vento, incapazes de gravar um coração sequer, nos voltamos um pouco mais, um pensamento de cada vez, para a grande realidade do que realmente somos.

E aquilo que buscávamos esse tempo todo também estava nos buscando. Também estava ali, no olhar de nossos irmãos mais adiantados no caminho; e como eles não poderiam caminhar por nós, tiveram de ser assim, pacientes, esperando que chegássemos até eles. Uma coisa que aprendi no deserto é que uma caravana precisa apenas do suficiente para alcançar a próxima parada, todo o acúmulo de preceitos, todo o empilhamento de dogmas, serve apenas para nos atrasar, nos fazer arrastar, cheios de julgamentos, nas areias escaldantes.

No fim das contas, a coisa toda é realmente simples: tudo tem a ver com amar e com não amar.

Amar nos enche de entusiasmo, nos faz ser habitados pelos deuses, nos faz querer ser antes de ter. Mas o amor não é algo escondido numa masmorra entre a floresta, não é um prêmio que se conquista ao final de alguma aventura fantástica, não é uma medalha de algum grau maçônico: o amor sempre esteve à nossa volta, tudo o que temos de fazer é derrubar, pedra por pedra, toda essa muralha de julgamentos que erguemos entre nós e ele. Daí então poderemos nos dedicar a construir um belo templo no lugar.

Quando nos aproximamos do grande caravançará de Sofia, pode ser que alguns desses templos dourados cintilem demais e nos façam fraquejar, imaginando que estamos distantes demais de tamanha beleza. Mas tudo o que os mestres querem é que façamos tudo aquilo que eles fizeram, e ainda mais. É somente assim que a chama pode realmente ser passada adiante. É somente assim que a beleza pode realmente se tornar duradoura, atemporal, eterna.

Seja como for, essa viagem não acaba nunca, e esse universo é vasto o suficiente, paciente o suficiente, amoroso o suficiente, para nos aguardar no próximo encontro.

Até lá, caravansárias e caravansários!

 

por Raph em 25/11/25

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Crédito da imagem: Guilherme Zorba (Déia Filha D'Água)

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16.9.25

Existe algo

Existe algo, e não nada:
eu não preciso de mais do que isso.

Ainda que nossa vida seja uma insignificância,
um pequeno milagre
que fez do inorgânico algo orgânico
nas profundezas de um oceano primordial
deste planetinha a girar em torno de uma estrela
na periferia de uma entre trilhões de galáxias,
ainda assim somos algo,
e não nada.

Ainda que realmente não tenhamos a decisão final,
ainda que nossos desejos, vontades e consciência
sejam mero devaneio de alguém que sonha desperto,
e acredita que segura as rédeas
do próprio sonho,
ainda assim sonhamos,
ainda assim somos algo,
e não nada.

Ainda que todos esses anjos e demônios
sejam mero fruto da imaginação;
ainda que uns digam que Deus é a cauda do elefante,
e outros, que é a tromba,
e outros, que são as orelhas, as presas, as patas,
ainda assim, imaginados ou não,
anjos, demônios e elefantes são algo,
e não nada.

Portanto, meu amigo,
eu sou da filosofia de que há esta única certeza,
e nenhuma outra:
eu não preciso de mais do que isso.

E ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temerei mal algum,
pois que algo está comigo,
e eu mesmo sou formado por algo,
e eu mesmo, quando já não for mais “eu”,
ainda serei algo.
E, para ser bem franco,
até mesmo o vale, a sombra e a morte
são algo, e não nada.

“Algo”: alguma coisa indeterminada;
qualquer coisa;
todas as coisas.

Portanto, meu amigo,
se você me acompanhou até aqui,
deve ter percebido que precisamos consertar
o início do poema...

Existe algo:
eu não preciso de mais do que isso;
pois não preciso negar
aquilo que não existe, existiu ou existirá.


raph'25

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Crédito da imagem: Photos by Beks/unsplash

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