Entre eu e você
O texto abaixo foi retirado de uma de minhas respostas dentro de um debate entre pensadores e espiritualistas.
Não sei se alguns aqui já devem saber, mas até alguns anos atrás eu costumava dizer que:
Minha religião é meu pensamento
Minha vida é minha Bíblia
Minha igreja é meu coração
Deus é meu amor
Um dia (já não lembro quando), alguém "corrigiu" o último trecho (já não lembro quem, mas sei que foi o comentário de uma mulher, na internet), de modo que passou a ficar:
Deus é nosso amor
Para mim, de fato fez toda a diferença do mundo. No momento em que li dessa forma, percebi o quanto o erro estava associado ao meu próprio ego. É óbvio que o amor divino não é "meu", nem "seu", nem "dele", ele é "nosso", necessariamente!
Há uma belíssima passagem dos poemas de Jalal ud-Din Rumi, o poeta sufi persa do séc. XIII, que fala assim:
Além das ideias de certo e errado,
há um campo. Eu lhe encontrarei lá.
Quando a alma se deita naquela grama,
o mundo está preenchido demais para que falemos dele.
Ideias, linguagem, e mesmo a frase “cada um”
não fazem mais nenhum sentido.
É desse tipo de amor divino que estou falando quando digo que "Deus é nosso amor". Não uma fonte de amor que transborda de algum canto do Cosmos e nos alcança como uma chuva permanente, mas a própria chuva, e o solo que ela rega, e a vida que cresce deste solo, e os mortos que o solo sepulta, e tudo, tudo o que há ou foi ou será.
Há este conflito entre perceber a Deus como um ser pessoal ou impessoal, o interessante é que há milênios atrás o próprio Bhagavad Gita falava precisamente disto no início do Cap. 12 (a tradução é minha, a partir da versão inglesa de Sir Edwin Arnold; no diálogo Arjuna representa o homem e Krishna, o ser divino):
Arjuna perguntou: Daqueles devotos que desejam alcançar o seu refúgio, qual deles são os melhores yogis, os que meditam e se conectam ao seu aspecto pessoal e manifesto, ou aqueles que focam a sua mente em seu aspecto universal e sem forma definida? (12.01)
Lorde Krishna disse: Considero os melhores yogis aqueles que me amam como um aspecto pessoal, com intimidade e familiaridade, pois esses terão maior facilidade em me imaginar ao seu lado. (12.02)
No entanto, aqueles que me amam como o absoluto, inefável, onipresente, indiviso, manifestado não somente numa pessoa, mas em todo o universo, infinito e eterno, o uno em tudo, se eles mantêm o seu ânimo inabalado em todas as circunstâncias da vida, se respeitam todos os seres e colaboram para o bem estar da sua vizinhança, se são capazes de compreender que a minha substância preenche a tudo o que há, foi ou virá a ser, eles também alcançarão o meu refúgio, ó príncipe. (12.03-04)
O caminho para a autorrealização é muito mais árduo para aqueles que me imaginam como o absoluto e sem forma definida, pois que a concepção do que é eterno e infinito é algo muito complexo para uma mente finita que viaja junto ao fluxo do tempo. (12.05)
Mas aqueles que me imaginam em meu aspecto pessoal, me amam e adoram, dedicam a mim todas as ações de suas vidas, e sempre meditam em mim como o seu alvo mais elevado, eles me alcançarão mais facilmente, ó Arjuma, e eu os salvarei do oceano das mortes e renascimentos. (12.06-07)
Assim, ignorando o conselho do próprio Krishna, eu mesmo optei por me arriscar a me religar não com uma divindade pessoal, mas com tudo o que existe, pois que não há neste vasto universo nenhum canto fundo o suficiente onde Ele não se encontre, nem espaço vazio e escuro o suficiente onde Ele não esteja, mesmo que oculto em flutuações quânticas.
No fim das contas, creio que o objetivo da união mística é precisamente este: de estar ao lado de Deus em todos os momentos, onde quer que esteja, e com quem esteja, pois como disse o poeta sufi enquanto rodopiava naquele campo precioso, eterno:
Entre eu e você não existe nem eu, nem você.
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Crédito da imagem: Oleg Oprisco
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