No começo ele era uma pequena noz flutuando numa caverna submersa, quase como um girino, mas não era nem peixe nem anfíbio. Mesmo assim, ali já se cumpria o código de Darwin, um contrato entre o ser humano e a vida, um baile multimilenar onde teimamos em tentar vencer a entropia... mesmo assim, a minha vida já estava mudada, pelo resto de meus dias: isso era muito claro para mim.
Depois nos comunicamos com ele, basicamente, através de sinais de pele. Pequenos carinhos na superfície do lago onde ele vivia. De volta, chutes e cabeçadas, cada vez mais fortes, faziam uma barriga de gestante de primeira viagem tremular aqui e ali. Para uma mãe, para um pai, isso já era a coisa mais maravilhosa e bizarra do mundo. Dois seres coabitando um só corpo... parem para pensar: isso talvez já solucione uma parte considerável deste mistério.
Então, num belo dia, ele se colocou de cabeça para baixo, e podíamos ver cada um de seus pezinhos despontando no topo da barriga. Não sei quem o ensinou toda essa ginástica de nascimento, mas fato é que funcionou muito bem!
"Você já está no início do trabalho de parto, quer esperar e aguentar a dor, ou fazer um corte e tirar logo esse rapazinho daí?" - disse o médico parteiro. E ela me olhou, como se fosse eu quem pudesse sentir suas dores, como se fosse eu quem pudesse decidir. Mamães, deixa eu lhes dizer uma coisa: nós homens não fazemos vaga ideia do que é ter um ser humaninho dentro de nós. Não temos a menor noção de como é ter um desejo súbito de comer uma fruta rara ou um sorvete de sabor específico. E, acima de tudo: não concebemos a experiência (e a dor) de um parto. Nós somos tão somente observadores de um baile ancestral de genes e açúcares – podemos (e devemos) oferecer carinho, jamais a compreensão exata do que de fato se passa em vocês.
Ela escolheu tirar logo. Tudo o que eu pensava era na descomunal alternância na experiência de vida pela qual todos nós passamos. Não nascemos no parto; nascemos, quem sabe, quando nosso cérebro pequenino começa a receber informações sensoriais – e flutuamos em águas mornas por meses, por todos os dias de uma nova vida ainda aquática... sair dessa primeira caverna, literalmente de um minuto para o outro, deve ser algo absolutamente impactante. Acho que, se pudéssemos realmente nos lembrar deste dia, talvez não conseguíssemos registrar mais muita coisa no caminho místico, talvez não fosse mais necessário.
Quando o vi pela primeira vez, meio azulado, parecia um bebê krishna, um ser de alguma dimensão paralela. Por um momento, ainda em silêncio, ele abriu os olhos e inspirou o ar deste mundo de chumbo, então chorou: é o que fazem os anjos caídos. E todos nós aqui somos anjos assim, embora muitos tenham se esquecido com o tempo. Talvez seja por isso que não nos lembramos mais do parto, a saudade do céu seria dolorida demais...
Essa é a história de todos nós. Ao contemplar aquele pequeno milagre chegando a este mundo, subitamente me dei conta de que estava participando ativamente desta epopeia humana, da qual até então havia sido somente mero espectador indireto. Ali não, ali estava a Vida, na ânsia por si mesma, em todo o seu esplendor, em toda a sua ancestralidade e mistério, em toda a sua potencialidade de luz e escuridão.
Um poeta do Líbano disse que "vossos filhos não são vossos filhos", e desde que o li o entendi e guardei para mim sua mensagem: que somos empréstimos, mensagens de Algo Maior para este mundo. Todos nós trazemos um poema em nosso coração, somos um anjo que não sabe que é um anjo. Depois, muitos se esquecem de que o empréstimo é passageiro, e este é só mais um mundo no Caminho. Então acham que devem conquistar o mundo e viver nele para sempre, como se isso fizesse algum sentido em meio a uma jornada que nos ultrapassa em bilhões e bilhões de anos. Somos poeira de estrelas, filhos do cintilar dos sóis, como isso tudo poderia ser reduzido a uma só vida, a uma só persona, a um único registro social?
E assim, refletindo sobre isso, percebi que a minha vida já estava mudada, pelo resto de meus dias: isso era muito claro para mim. Ninguém recebe um empréstimo desses e passa impune – vive, mas parte de seu coração já começa a bater noutro ser; caça, mas guarda a melhor parte do alimento para o seu rebento; ora, mas sabe que carrega consigo, num carrinho de bebê, um pequeno milagre que, de alguma forma, é maior do que todos os milagres deste mundo.
para Gael...
raph'19
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Crédito da imagem: raph
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