Há pouco mais de 2.400 anos, a filosofia ocidental viveu a sua cena definitiva: numa prisão em Atenas, após ser julgado pelos próprios concidadãos e se recusado a abandonar a cidade, Sócrates cumpria sua pena, e bebia o veneno que, dali a alguns momentos, causaria sua morte.
Faziam parte da acusação: ateísmo (não crer nos deuses gregos, e se associar a deuses desconhecidos) e corrupção dos jovens (com novas ideias). Ambas eram absurdas, e talvez os próprios acusadores sequer acreditassem realmente nelas, mas fato é que eles desejavam se livrar daquele maldito filósofo que insistia em expor a todos o quão ignorantes eram aqueles que se julgavam sábios, sem o ser. Foi oferecida a Sócrates a oportunidade de abandonar sua defesa do que considerava ser a verdade, exilando-se de Atenas para sempre. Ele preferiu a morte a uma vida exilada do diálogo e da busca conjunta pela verdade.
Sócrates, afinal, não deixou obra escrita e sequer fundou alguma nova doutrina. Foi influenciado por Permênides e pelos ritos místicos de sua época, mas não parece ter sido alguém como Platão, que fundou uma escola filosófica e deixou extensa obra escrita, onde usava de Sócrates como personagem para divulgar suas próprias ideias. O que sabemos de Sócrates, para além do personagem de Platão, é que ele de fato existiu, e parece mesmo ter irritado muitos atenienses de sua época, sobretudo aqueles que julgavam ser “muito sábios” acerca de certos assuntos. Existiu, porque também foi descrito na obra de Xenofonte – outro filósofo que foi seu discípulo – e nas peças teatrais de Aristófanes. Foi irritante, porque ninguém é alvo da galhofa de um grande comediante sem razão: e as peças de Aristófanes nada mais eram do que uma crítica bem humorada aquele “filósofo chato” que insistia em viver no mundo das ideias.
Voltemos então à cena: Sócrates aproxima o veneno dos lábios e toma a taça de uma vez. A sua volta, seus discípulos mais próximos se desesperam. Eis o que narrou Fédon (retirado do Fédon de Platão):
Até então quase todos tínhamos tido forças para conter nossas lágrimas, mas, ao vê-lo beber e depois de ter bebido, já não podíamos conter nossos impulsos. Quanto a mim, minhas lágrimas caíam em abundância, apesar de meus esforços para contê-las, e tive de cobrir-me com meu manto para poder chorar livremente. Porque não era a desgraça de Sócrates que chorava, mas a minha, ao pensar no amigo que ia perder. Críton, que já estava transtornado antes de mim, não pôde reter as lágrimas e saiu do recinto. Apolodoro, que não parava de chorar, se colocou a gritar e a soluçar de tal modo que não houve quem não se comovesse, exceto Sócrates.
Sócrates continuava sendo irritante: ele insistia em permanecer ao lado da verdade – ao menos, da sua verdade – mesmo no momento de sua morte. “Permaneçam tranquilos, meus amigos, e demonstrem maior coragem” – foi mais ou menos o que disse em seguida; e ele tinha todo motivo para tal, pois segundo sua lógica, viver no exílio seria algo certamente terrível, enquanto a morte era somente uma viagem desconhecida. Pouco antes daquele momento trágico, Sócrates havia dito uma de suas frases definitivas:
Mas eis a hora de partir: eu para a morte, vocês para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto os deuses.
Na realidade, a crença de Sócrates nos deuses gregos era tão profunda que ele confiava que a vida após abandonar definitivamente o seu corpo não seria tão terrível, uma vez que seguiu a sabedoria por boa parte da sua vida; vejam como ele próprio explicou a questão (outro trecho do Fédon):
Há uma coisa, pelo menos, que seria justo que todos nós refletíssemos: se a alma é verdadeiramente imortal, é preciso que zelemos por ela não apenas durante o tempo atual, que chamamos vida, mas durante todo o tempo, pois seria grave perigo não se preocupar com ela. Admitamos que a morte seja tão somente uma total dissolução de tudo. Que sorte admirável estaria então reservada para os maus que se veriam libertos de sua própria maldade! Mas, na verdade, uma vez tendo sido tornado claro que a alma é imortal, não haverá fuga possível para ela frente a seus males, a não ser que se torne melhor e mais sábia.
Eis, portanto, a sua lógica: Sócrates julgava que se tornava melhor e mais sábio ao dedicar-se a filosofia. O seu método, no entanto, não era solitário. Ele precisava estar em Atenas, junto aos jovens (de ideias), para poder prosseguir em seu caminho rumo à sabedoria. Exilar-se seria, antes de tudo, abdicar daquilo que ele julgava ser a tarefa mais essencial da vida. Seria melhor continuá-la após a vida – curar-se da própria ignorância, era tudo o que o filósofo buscava, e talvez seja isso o que melhor explique o seu último enigma, a última frase que disse a um dos seus discípulos mais próximos:
Críton, somos devedores de Asclépio, nós o devemos um galo; pois bem, paga minha dívida, não se esqueça.
Críton ainda respondeu, “Assim será, mas veja se não tem algo mais a dizer”. E não tinha, pois estava morto. O homem mais sábio de Atenas havia deixado o mundo com um dito aparentemente corriqueiro e ordinário para alguns, ou um profundo enigma, para outros.
Ora, do ponto de vista ordinário, tal frase pode dar a entender que o filósofo valorizava a justiça ao ponto de, mesmo em seu último momento, não esquecer de que eles deviam um galo a algum cidadão ateniense. Uma coisa do dia a dia, por assim dizer. Entretanto, apesar de Sócrates só o haver mencionado uma única vez em toda a obra de Platão, Asclépio não era um mero homem a quem se pudesse “dever um galo”, mas sim o deus da medicina (posteriormente conhecido como Esculápio, entre os romanos) – aquela não era propriamente uma dívida, portanto, mas antes uma oferenda.
Parece estranho, deveras estranho, que o sábio e tantas vezes excessivamente racional Sócrates tenha reservado suas últimas palavras para render culto a um “deus menor”, ao menos se comparado a Zeus, que ele cita incontáveis vezes. Mas, se é verdade que Sócrates foi um personagem usado por Platão para divulgar suas próprias ideias, aqui fica mais evidente, quem sabe, o “Sócrates real”, para além do mero personagem dos livros. E esse homem real era bem mais ligado ao misticismo do que Platão gostaria.
O mais antigo registro do nome “Asclépio” é encontrado na Ilíada de Homero. Ele pode ter existido de fato, vivendo em torno de 1200 a.C. Na cultura grega era comum que heróis célebres fossem objeto de culto após sua morte. Asclépio, no entanto, foi médico, não exatamente um herói aos moldes de Hércules. Seja como for, na época de Sócrates e Platão ele já havia sido incluso no panteão dos semideuses, sendo filho do deus Apolo com uma mortal chamada Corônis. Segundo dizem as lendas, Asclépio eventualmente se tornou um curandeiro tão poderoso que era mesmo capaz de ressuscitar aqueles que morreram há pouco tempo, o que virou motivo de preocupação para Hades, o deus que cuidava do mundo dos mortos. Hades foi reclamar a Zeus que um médico estava impedindo que mais almas chegassem ao seu reino, e este resolveu a situação fulminando Asclépio com um raio. Algumas versões dizem que após algum tempo Zeus ressuscitou Asclépio e permitiu que continuasse a tratar dos doentes, desde que nunca mais trouxesse ninguém de volta dos mortos.
Em torno de 420 a.C., aproximadamente vinte anos antes de Sócrates beber o veneno, o deus da medicina havia sido invocado para afastar uma peste em Atenas, no que foi aparentemente bem sucedido. Poucos anos após, Asclépio também foi inserido definitivamente nos ritos dos Mistérios de Elêusis, que eram cultos agrícolas de cunho místico-iniciático celebrados nas proximidades de Atenas – é quase certo que tanto Sócrates quanto Platão não somente os conheciam como também participaram de suas celebrações; e, o que é mais importante, tiveram o seu pensamento influenciado por tais ritos.
Eventualmente o culto a Asclépio cresceu, e entre os romanos, sob o nome de Esculápio, ele chegou a ter templos em dezenas de cidades. Se as práticas do seu culto foram fieis a época de Sócrates (de onde não temos relatos lá muito precisos), então podemos considerar que elas eram mais ou menos assim:
O paciente adentrava o templo, se purificava na fonte do santuário e oferecia um sacrifício. Oferendas comuns eram bolos de mel, bolos de queijo e figos. Preces, meditação, o canto de hinos sacros, banhos medicinais, exposição à luz do sol, caminhadas de pés descalços, uma dieta especial, abstinência de sexo e exercícios físicos também eram muitas vezes parte do ritual e do tratamento. À noite o doente se dirigia a um quarto reservado, a fim de dormir e se produzir a enkoimesis, ou "incubação", ou seja, a revelação do deus em sonhos, o que frequentemente acontecia. O deus ou aparecia e curava diretamente, ou dava instruções sobre um tratamento específico, o que às vezes acontecia ao longo de vários dias em sonhos diferentes. Os sonhos eram então relatados ao sacerdote, que interpretava ou complementava as instruções. Ocasionalmente o deus transformava uma doença séria em outra mais branda, e então a deixava ao cuidado dos médicos. Às vezes os sonhos não eram necessários, e a cura se efetuava imediatamente. Se a pessoa fosse curada, o costume era agradecer com um novo sacrifício, então geralmente era oferecido um galo ou uma soma em dinheiro.
Ou seja, o galo que Sócrates “devia” a Asclépio não era uma dívida ordinária, mundana, mas uma forma de oferenda em agradecimento a uma cura alcançada. E a cura que o filósofo julgava ter alcançado era justamente aquela que o permitiria, enfim, viajar para o mundo dos deuses. E não por um motivo fútil, não por uma fuga da vida, mas tanto o oposto disso: por haver defendido a sua verdade até o fim.
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Crédito das imagens: [topo] Jacques-Louis David (1787); [ao longo] Google Image Search (culto a Asclépio/Esculápio)
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