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22.8.24

A felicidade possível

Em abril do ano 65 d.C., numa vila nos arredores de Roma, a filosofia ocidental viveu mais um grande drama: após Sócrates, era a vez de outro expoente do amor a sabedoria ter a sua sentença de morte. O seu nome era Sêneca, um espanhol nascido aproximadamente no ano 3 a.C., que teve como pai um habitante instruído de Roma. Ele seguiu carreira política e vinha sendo razoavelmente bem-sucedido quando o imperador Cláudio o exilou na Córsega (em 41 d.C.), por conta de uma birra da imperadora Messalina. Mas a segunda esposa de Cláudio, Agripina, o retirou de seu exílio forçado (em 48 d.C.) e o nomeou tutor de seu filho, então com 11 anos. Sêneca, entretanto, não teve a mesma sorte de Aristóteles: o seu pupilo cresceu para se tornar o imperador Nero, aquele que entrou para a história como o louco que pôs fogo em Roma.

Aos 28 anos, com distúrbios mentais cada vez mais agravados, Nero foi informado da existência de uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, ele buscou vingança contra todos a sua volta (incluindo sua própria mãe, seu meio-irmão e sua esposa, além de inúmeros nobres e senadores, todos sentenciados à morte). Embora não houvesse prova alguma do envolvimento de Sêneca na tentativa de golpe, e a despeito de ter sido o seu tutor e depois um ministro leal por mais de uma década, Nero o sentenciou à morte como medida de precaução.

Um centurião foi enviado a sua casa com as instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo da própria vida imediatamente, escolhendo o método que achasse melhor. Os familiares e amigos do filósofo empalideceram e começaram a chorar assim que souberam da notícia. Todavia, segundo o relato de Tácito, um historiador daquela época, Sêneca permaneceu inabalado, e tratou de acalmar todos a sua volta:

Ora, meus amigos, onde está sua filosofia? E o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos temos incentivado uns aos outros a manter? Decerto ninguém aqui ignorava que Nero era cruel! Após matar a própria mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e tutor.

Em seguida, Sêneca se voltou para sua esposa, Paulina, e lhe deu um longo e afetuoso abraço, recomendando que achasse consolo para aquela tragédia em uma vida bem vivida. Mas ela não podia conceber uma vida sem o filósofo ao seu lado, e lhe pediu permissão para cortar os pulsos juntamente com ele. A princípio, ainda segundo Tácito, ele não impôs barreiras ao seu desejo:

Não impedirei que você dê um exemplo tão admirável. Podemos morrer com uma força moral idêntica, embora o seu fim seja muito mais nobre que o meu.

No entanto, o centurião e seus soldados impediram que aquela tragédia fosse ainda mais cruel, quiçá na esperança de serem lembrados como meros cumpridores de ordens, e não como monstros. Já o que se sucedeu ao próprio Sêneca, segundo os relatos, foi algo extraordinário, quase sobrenatural.

Mesmo após ter cortado os pulsos, as veias dos tornozelos e da parte interna dos joelhos, o sangue simplesmente não fluía com rapidez suficiente de seu corpo já quase septuagenário. Foi então que, lembrando da morte de Sócrates, 464 anos antes, Sêneca pediu a seu médico que lhe preparasse uma taça de cicuta. Afinal, assim como outros expoentes do estoicismo [1], ele tinha a figura de Sócrates na mais alta conta, um verdadeiro exemplo de como era possível vencer as tragédias do mundo com a ajuda da filosofia. Em uma carta escrita anos antes daquele dia, ele já havia deixado registrada tal admiração:

Ele viveu em tempos de guerra e sob o jugo de tiranos (...), mas todas essas provações afetaram tão pouco seu espírito que suas feições jamais se alteraram [na morte]. Que privilégio tão raro e maravilhoso! Ele manteve a mesma atitude até o fim. (...) Em meio a tantos reveses da [deusa] Fortuna, ele foi imperturbável.

Seja como for, o desejo de Sêneca em seguir Sócrates até na morte não pôde ser concretizado. Ele bebeu a cicuta, duas vezes, mas continuava bem vivo! Depois de tantas tentativas em vão, ele finalmente pediu que o colocassem em um banho de vapor, onde sufocou lentamente até a morte, sereno e impassível diante do revés derradeiro.

Com sua morte, Sêneca ajudou a consolidar um dos pilares do estoicismo, uma abordagem comedida e serena em relação as tragédias e os desprazeres da vida. Ao se portar tal qual Sócrates em seus momentos finais, ele comprovou que sua filosofia não era somente algo teórico, metafísico, mas sim extremamente prático. Sêneca tentou ser filósofo 24 horas por dia, e tudo indica que foi extremamente bem-sucedido nisso, do contrário dificilmente teria continuado filósofo nos momentos derradeiros. Foi justamente porque praticou sua filosofia em boa parte da vida que foi, verdadeiramente, um filósofo.

Podemos ter uma boa ideia de como era esta prática pela espécie de reflexão que Sêneca recomendava a todos que fizessem todos os dias, pela manhã, de preferência logo após despertar:

Nenhuma dádiva da [deusa] Fortuna nos pertence de fato.
Nada, seja público ou privado, é estável: os destinos dos homens, assim como os das cidades, estão sujeitos a um turbilhão. Qualquer edificação que tenha levado longos anos para ser erguida, à custa de grande sacrifício e graças ao bom humor dos deuses, pode dispersar-se ou desfazer-se em um único dia. Não, aquele que disse “um dia” exagerou, dando um prazo longo demais para um revés repentino: uma hora, um átimo, é o bastante para promover a queda de impérios.
Com que frequência cidades da Ásia foram destruídas por um único tremor de terra? Quantas aldeias na Síria, ou na Macedônia, já não foram engolidas? Quantas vezes devastações desse tipo já não deixaram o Chipre em ruínas?
Vivemos em meio a coisas que estão, sem qualquer exceção, destinadas a morrer.
Mortal você nasceu; mortal você dá à luz.
Não se surpreenda com nada, espere tudo.

A sua morte não foi o único exemplo de como a sua sabedoria não estava limitada à teoria. Quando exilado na ilha de Córsega, ele se viu repentinamente privado de todos os luxos de que dispunha, afinal aquela ilha em específico estava muito distante de gozar dos benefícios da civilização romana. Assim, as condições de vida no exílio deveriam ter formado um doloroso contraste com a vida em Roma. No entanto, em uma carta a sua mãe, Sêneca explicou como havia conseguido se adaptar às circunstâncias, graças aos anos de meditação pela manhã, regados a água e sopa rala:

Nunca confiei na Fortuna, mesmo quando ela parecia estar oferecendo paz. Todas aquelas bênçãos que generosamente derramou sobre mim  riquezas, cargos, prestígio  eu releguei de tal maneira que ela pudesse retomá-las sem me causar grandes aflições. Sempre mantive grande distância entre mim e seus favores. Ela tão somente me tirou o que havia concedido, portanto nada arrancou de mim.

Há uma espécie de metáfora estoica que resume muito bem tanto o pensamento de Sêneca quanto de outros expoentes dessa filosofia. Ela foi formulada pelo filósofo Zenão de Cítio, fundador do estoicismo, e “repaginada” pelos seus discípulos, Cleantes e Crisipo, sucessivamente. A sua referência mais antiga é relatada pelo sacerdote romano Hipólito:

Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça irá obrigá-lo a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo se passa com os homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o destino lhes reservou.

Ou seja, um homem é livre para seguir em qualquer direção que queira. Todavia, como sugere a metáfora, se os seus movimentos são limitados, é melhor acompanhar a direção da carroça do destino do que ser arrastado por ela. Embora o nosso primeiro impulso possa ser o de lutar contra a guinada repentina do veículo, caso ele siga noutra direção, o nosso sofrimento decorrerá exclusivamente de nossa resistência. Se vivemos de acordo com as necessidades da natureza, aceitando tanto a liberdade momentânea de seguirmos na direção desejada quanto a necessidade, igualmente momentânea, de irmos para onde não gostaríamos de ir, então não há realmente nada que possa nos abalar.

Os filósofos antigos tinham um belo nome para tal estado de contentamento: eudaimonia. A sua tradução literal seria algo como “o estado de ser habitado por um bom daemon, ou espírito”. Os estoicos, provavelmente, diriam que é simplesmente o estado alcançado quando “vivemos de acordo com a natureza”. Isto é, quando temos perfeita noção da natureza e do mundo a nossa volta, e sabemos que há coisas que podemos decidir, e outras que nos escapam totalmente o controle. Assim, seria inútil buscar a felicidade todo o tempo, algo literalmente impraticável, de modo que o mais sábio é sabermos discernir a felicidade possível em meio a um mundo impermamente e, muitas vezes, brutalmente dolorido. Mas viver apenas lamentando as dores do mundo seria tão equivocado quanto buscar somente os prazeres, todo o tempo. O estado de contentamento com a vida, eudaimonia, surge justamente da sabedoria que reconhece a felicidade possível, mesmo que a carroça volta e meia nos arraste para aqui e acolá.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade ou A Vida Feliz.

***

[1] O estoicismo é uma escola de filosofia helenística que floresceu na Grécia Antiga e, posteriormente, também na Roma Antiga. Os estoicos acreditavam que a prática das virtudes filosóficas era suficiente para alcançar a eudaimonia (ver restante do artigo) e, consequentemente, uma vida bem vivida. Foi fundada na antiga Atenas por Zenão de Cítio, em torno de 300 a.C.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Sêneca); [ao longo] A Morte de Sêneca; pintura de Manuel Domínguez Sánchez (1840-1906); Olu Eletu/unsplash

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13.8.24

Lançamento: Atthaka Vagga, O Livro Budista das Oitavas

As Edições Textos para Reflexão retornam aos primórdios do budismo.

Monges budistas da vertente teravada registraram o Cânone Páli algumas centenas de anos após a morte do Buda. Dentre todo o Cânone, este é um dos registros mais antigos que se conhece dos ensinamentos do Buda. Ele é chamado de Atthaka (oitavas) por ter sido escrito originalmente em 16 seções de 8 estrofes.

A nova tradução de Rafael Arrais já está disponível na Amazon, em e-book, e também na versão impressa, pelo Clube de Autores:

Comprar eBook (Kindle) Comprar livro (Clube de Autores)

» Leia a tradução de um dos 16 poemas da obra

» Leia um dos textos adicionais da edição, "O Buda que Ri"


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8.8.24

O Buda que Ri

Quando muitos ocidentais pensam em “Buda”, geralmente não visualizam o Buda histórico, seja meditando ou ensinando. Este “Buda verdadeiro” é conhecido mais precisamente como Buda Gautama ou Buda Sakyamuni, e é quase sempre retratado em profunda meditação ou contemplação. Geralmente a imagem ilustra um indivíduo muito magro com uma expressão séria no rosto, embora plena de paz.

A maioria dos ocidentais, no entanto, traz à mente um personagem gordo, careca e alegre chamado “O Buda que Ri” quando pensa no Buda. De onde veio essa figura?

O Buda que Ri surgiu dos contos populares chineses do século X. As histórias originais do Buda que Ri retratavam um monge zen budista chamado Chi-tzu, ou Qieci, de Fenghua, no que hoje é a província de Zhejiang. Chi-tzu era um personagem excêntrico, mas muito amado, que fazia pequenas maravilhas, como prever o tempo. A história chinesa atribuiu a data aproximada entre 907 e 923 d.C. para o nascimento de Chi-tzu, o que significa que ele viveu consideravelmente mais tarde do que o histórico Sakyamuni, o verdadeiro Buda.

De acordo com a tradição, pouco antes da morte, Chi-tzu revelou ser uma encarnação do Buda Maitreya. Maitreya é nomeado nas escrituras como o Buda de uma era futura. As últimas palavras de Chi-tzu foram:

Maitreya, verdadeiro Maitreya,
renascido inúmeras vezes,
de tempos em tempos manifestado entre os homens:
[mas] os homens de sua época não o reconhecem.

Os contos de Chi-tzu se espalharam por toda a China, e ele passou a ser chamado de Budai, que significa “saco de cânhamo”. Ainda segundo a tradição, ele carregava um saco cheio de coisas boas, como doces para crianças, e muitas vezes é retratado com muitas delas ao seu redor. Budai representa felicidade, generosidade e riqueza, e também é considerado um protetor das crianças, dos pobres e dos fracos.

Hoje, uma estátua de Budai pode ser encontrada perto da entrada na maioria dos templos budistas chineses. A tradição de esfregar a barriga de Budai para se obter sorte é uma prática popular; todavia, não é um ensinamento budista genuíno.

Seja como for, é um claro sinal da ampla tolerância do budismo à diversidade que este Buda risonho do folclore seja aceito na prática oficial. Para os budistas, qualquer qualidade que represente a natureza búdica deve ser encorajada, e o personagem folclórico do Buda que Ri não é visto como algum tipo de sacrilégio, mesmo que as pessoas inconscientemente possam confundi-lo com o Buda Gautama.

Budai também está associado ao último painel dos Retratos dos Dez Pastores de Bois. Estas são dez imagens que representam estágios de iluminação no zen budismo. O último painel mostra um mestre iluminado que entra em cidades e mercados para dar às pessoas comuns as bênçãos da iluminação.

A figura de Budai seguiu a disseminação do budismo em outras partes da Ásia. No Japão, ele se tornou um dos Sete Deuses da Sorte do Xintoísmo, e é chamado de Hotei. Ele também foi incorporado ao taoísmo chinês como uma divindade da abundância.

***

Este texto será um dos textos adiconais da minha tradução do “Atthaka Vagga, O Livro Budista das Oitavas”, a ser lançado em breve tanto em ebook como na versão impressa.

Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Budai na entrada de um templo budista chinês); [ao longo] Google Image Search (Buda Gautama).

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