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11.11.24

Lançamento: Raízes do Estoicismo (os clássicos de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio)

As Edições Textos para Reflexão lançam o seu primeiro box de filosofia estoica.

O estoicismo ficou conhecido como a filosofia que ajuda as pessoas a atravessarem momentos de crise, mas em realidade vai muito além disso: ensina-nos a viver. Esta edição traz traduções comentadas das principais obras do estoicismo: dois dos mais celebrados textos de Sêneca, o Manual de Epicteto e as Meditações do imperador Marco Aurélio.

Este compilado com traduções de Rafael Arrais já está disponível na Amazon, em e-book, e também na versão impressa:

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27.9.24

Lançamento: Da Felicidade, de Sêneca

As Edições Textos para Reflexão retornam ao estoicismo.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade.

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22.8.24

A felicidade possível

Em abril do ano 65 d.C., numa vila nos arredores de Roma, a filosofia ocidental viveu mais um grande drama: após Sócrates, era a vez de outro expoente do amor a sabedoria ter a sua sentença de morte. O seu nome era Sêneca, um espanhol nascido aproximadamente no ano 3 a.C., que teve como pai um habitante instruído de Roma. Ele seguiu carreira política e vinha sendo razoavelmente bem-sucedido quando o imperador Cláudio o exilou na Córsega (em 41 d.C.), por conta de uma birra da imperadora Messalina. Mas a segunda esposa de Cláudio, Agripina, o retirou de seu exílio forçado (em 48 d.C.) e o nomeou tutor de seu filho, então com 11 anos. Sêneca, entretanto, não teve a mesma sorte de Aristóteles: o seu pupilo cresceu para se tornar o imperador Nero, aquele que entrou para a história como o louco que pôs fogo em Roma.

Aos 28 anos, com distúrbios mentais cada vez mais agravados, Nero foi informado da existência de uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, ele buscou vingança contra todos a sua volta (incluindo sua própria mãe, seu meio-irmão e sua esposa, além de inúmeros nobres e senadores, todos sentenciados à morte). Embora não houvesse prova alguma do envolvimento de Sêneca na tentativa de golpe, e a despeito de ter sido o seu tutor e depois um ministro leal por mais de uma década, Nero o sentenciou à morte como medida de precaução.

Um centurião foi enviado a sua casa com as instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo da própria vida imediatamente, escolhendo o método que achasse melhor. Os familiares e amigos do filósofo empalideceram e começaram a chorar assim que souberam da notícia. Todavia, segundo o relato de Tácito, um historiador daquela época, Sêneca permaneceu inabalado, e tratou de acalmar todos a sua volta:

Ora, meus amigos, onde está sua filosofia? E o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos temos incentivado uns aos outros a manter? Decerto ninguém aqui ignorava que Nero era cruel! Após matar a própria mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e tutor.

Em seguida, Sêneca se voltou para sua esposa, Paulina, e lhe deu um longo e afetuoso abraço, recomendando que achasse consolo para aquela tragédia em uma vida bem vivida. Mas ela não podia conceber uma vida sem o filósofo ao seu lado, e lhe pediu permissão para cortar os pulsos juntamente com ele. A princípio, ainda segundo Tácito, ele não impôs barreiras ao seu desejo:

Não impedirei que você dê um exemplo tão admirável. Podemos morrer com uma força moral idêntica, embora o seu fim seja muito mais nobre que o meu.

No entanto, o centurião e seus soldados impediram que aquela tragédia fosse ainda mais cruel, quiçá na esperança de serem lembrados como meros cumpridores de ordens, e não como monstros. Já o que se sucedeu ao próprio Sêneca, segundo os relatos, foi algo extraordinário, quase sobrenatural.

Mesmo após ter cortado os pulsos, as veias dos tornozelos e da parte interna dos joelhos, o sangue simplesmente não fluía com rapidez suficiente de seu corpo já quase septuagenário. Foi então que, lembrando da morte de Sócrates, 464 anos antes, Sêneca pediu a seu médico que lhe preparasse uma taça de cicuta. Afinal, assim como outros expoentes do estoicismo [1], ele tinha a figura de Sócrates na mais alta conta, um verdadeiro exemplo de como era possível vencer as tragédias do mundo com a ajuda da filosofia. Em uma carta escrita anos antes daquele dia, ele já havia deixado registrada tal admiração:

Ele viveu em tempos de guerra e sob o jugo de tiranos (...), mas todas essas provações afetaram tão pouco seu espírito que suas feições jamais se alteraram [na morte]. Que privilégio tão raro e maravilhoso! Ele manteve a mesma atitude até o fim. (...) Em meio a tantos reveses da [deusa] Fortuna, ele foi imperturbável.

Seja como for, o desejo de Sêneca em seguir Sócrates até na morte não pôde ser concretizado. Ele bebeu a cicuta, duas vezes, mas continuava bem vivo! Depois de tantas tentativas em vão, ele finalmente pediu que o colocassem em um banho de vapor, onde sufocou lentamente até a morte, sereno e impassível diante do revés derradeiro.

Com sua morte, Sêneca ajudou a consolidar um dos pilares do estoicismo, uma abordagem comedida e serena em relação as tragédias e os desprazeres da vida. Ao se portar tal qual Sócrates em seus momentos finais, ele comprovou que sua filosofia não era somente algo teórico, metafísico, mas sim extremamente prático. Sêneca tentou ser filósofo 24 horas por dia, e tudo indica que foi extremamente bem-sucedido nisso, do contrário dificilmente teria continuado filósofo nos momentos derradeiros. Foi justamente porque praticou sua filosofia em boa parte da vida que foi, verdadeiramente, um filósofo.

Podemos ter uma boa ideia de como era esta prática pela espécie de reflexão que Sêneca recomendava a todos que fizessem todos os dias, pela manhã, de preferência logo após despertar:

Nenhuma dádiva da [deusa] Fortuna nos pertence de fato.
Nada, seja público ou privado, é estável: os destinos dos homens, assim como os das cidades, estão sujeitos a um turbilhão. Qualquer edificação que tenha levado longos anos para ser erguida, à custa de grande sacrifício e graças ao bom humor dos deuses, pode dispersar-se ou desfazer-se em um único dia. Não, aquele que disse “um dia” exagerou, dando um prazo longo demais para um revés repentino: uma hora, um átimo, é o bastante para promover a queda de impérios.
Com que frequência cidades da Ásia foram destruídas por um único tremor de terra? Quantas aldeias na Síria, ou na Macedônia, já não foram engolidas? Quantas vezes devastações desse tipo já não deixaram o Chipre em ruínas?
Vivemos em meio a coisas que estão, sem qualquer exceção, destinadas a morrer.
Mortal você nasceu; mortal você dá à luz.
Não se surpreenda com nada, espere tudo.

A sua morte não foi o único exemplo de como a sua sabedoria não estava limitada à teoria. Quando exilado na ilha de Córsega, ele se viu repentinamente privado de todos os luxos de que dispunha, afinal aquela ilha em específico estava muito distante de gozar dos benefícios da civilização romana. Assim, as condições de vida no exílio deveriam ter formado um doloroso contraste com a vida em Roma. No entanto, em uma carta a sua mãe, Sêneca explicou como havia conseguido se adaptar às circunstâncias, graças aos anos de meditação pela manhã, regados a água e sopa rala:

Nunca confiei na Fortuna, mesmo quando ela parecia estar oferecendo paz. Todas aquelas bênçãos que generosamente derramou sobre mim  riquezas, cargos, prestígio  eu releguei de tal maneira que ela pudesse retomá-las sem me causar grandes aflições. Sempre mantive grande distância entre mim e seus favores. Ela tão somente me tirou o que havia concedido, portanto nada arrancou de mim.

Há uma espécie de metáfora estoica que resume muito bem tanto o pensamento de Sêneca quanto de outros expoentes dessa filosofia. Ela foi formulada pelo filósofo Zenão de Cítio, fundador do estoicismo, e “repaginada” pelos seus discípulos, Cleantes e Crisipo, sucessivamente. A sua referência mais antiga é relatada pelo sacerdote romano Hipólito:

Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça irá obrigá-lo a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo se passa com os homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o destino lhes reservou.

Ou seja, um homem é livre para seguir em qualquer direção que queira. Todavia, como sugere a metáfora, se os seus movimentos são limitados, é melhor acompanhar a direção da carroça do destino do que ser arrastado por ela. Embora o nosso primeiro impulso possa ser o de lutar contra a guinada repentina do veículo, caso ele siga noutra direção, o nosso sofrimento decorrerá exclusivamente de nossa resistência. Se vivemos de acordo com as necessidades da natureza, aceitando tanto a liberdade momentânea de seguirmos na direção desejada quanto a necessidade, igualmente momentânea, de irmos para onde não gostaríamos de ir, então não há realmente nada que possa nos abalar.

Os filósofos antigos tinham um belo nome para tal estado de contentamento: eudaimonia. A sua tradução literal seria algo como “o estado de ser habitado por um bom daemon, ou espírito”. Os estoicos, provavelmente, diriam que é simplesmente o estado alcançado quando “vivemos de acordo com a natureza”. Isto é, quando temos perfeita noção da natureza e do mundo a nossa volta, e sabemos que há coisas que podemos decidir, e outras que nos escapam totalmente o controle. Assim, seria inútil buscar a felicidade todo o tempo, algo literalmente impraticável, de modo que o mais sábio é sabermos discernir a felicidade possível em meio a um mundo impermamente e, muitas vezes, brutalmente dolorido. Mas viver apenas lamentando as dores do mundo seria tão equivocado quanto buscar somente os prazeres, todo o tempo. O estado de contentamento com a vida, eudaimonia, surge justamente da sabedoria que reconhece a felicidade possível, mesmo que a carroça volta e meia nos arraste para aqui e acolá.

Sêneca foi o filósofo estoico que mais deixou obras inteiras para a posteridade, e dentre mais de uma centena de cartas, peças de teatro e diálogos filosóficos, quiçá aquela que melhor resuma o seu pensamento seja justamente a que fala da felicidade possível, De Vita Beata, cujo título foi traduzido do latim como Da Felicidade ou A Vida Feliz.

***

[1] O estoicismo é uma escola de filosofia helenística que floresceu na Grécia Antiga e, posteriormente, também na Roma Antiga. Os estoicos acreditavam que a prática das virtudes filosóficas era suficiente para alcançar a eudaimonia (ver restante do artigo) e, consequentemente, uma vida bem vivida. Foi fundada na antiga Atenas por Zenão de Cítio, em torno de 300 a.C.

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Sêneca); [ao longo] A Morte de Sêneca; pintura de Manuel Domínguez Sánchez (1840-1906); Olu Eletu/unsplash

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8.11.18

O que a filosofia nos ensina sobre o ódio

Nunca se falou tanto sobre o ódio. O cenário político e o crescimento dos conflitos sociais nos últimos anos têm nos chamado a atenção para esse afeto. Hoje vemos inclusive que o ódio pode ser um fenômeno social, capitalizado para interesses políticos.

Mas como a filosofia pode nos ensinar a lidar com esse afeto? Vejamos o que nos diz Sêneca em seu diálogo Sobre a Ira, a face mais agressiva do ódio.

A ira, diz-nos Sêneca, é o desejo de causar dano ao outro porque temos o sentimento que nos foi causado algum dano antes. Neste sentido, a ira é um desejo de vingança. Retribuir um dano sofrido.

Muitas vezes não se trata de um dano físico, como um golpe, mas toda sorte de prejuízos que achamos ter sofrido por consequência das ações de outra pessoa. Por exemplo, se acreditamos que perdemos a mulher que amamos para outra pessoa, passaremos a odiar a mulher que perdemos ou nosso rival amoroso porque achamos que fomos prejudicados por eles.

Temos nossa primeira lição sobre o ódio: ele nasce da sensação de prejuízo. A partir disto, raivosos, queremos reparar o dano que sofremos igualmente prejudicando ou atacando quem consideramos inimigo.

Quando hoje se fala em discurso de ódio, não se trata de simplesmente odiar um grupo em particular. É odiar um grupo por acreditar que tais indivíduos são, diretamente ou indiretamente, responsáveis pela minha infelicidade.

O ódio aos homossexuais, por exemplo, e a consequente perseguição que esse grupo sofre, parte do fato que muitas pessoas se sentem ofendidas pela simples existência deles. Não importa que os gays não estejam fazendo nada além de simplesmente existirem e amar como desejam. Muitas pessoas aprenderam a odiar qualquer coisa que seja diferente de sua concepção de mundo ou que possa balizar os seus próprios desejos, e a diferença lhes agride. Trata-se, claro, de um problema de quem não suporta a diferença.

E Sêneca vai além. É impossível vivermos sem encontrarmos algo do qual não tenhamos motivos de censura ou aversão. É natural que haja coisas que apreciamos enquanto outras repudiamos. Faz parte da própria diversidade humana.

Basta rolar o feed de notícias das redes sociais ou ligarmos a televisão que veremos muitas coisas que desaprovamos. Seja um caso de corrupção que saiu no jornal ou a agressão injusta que uma pessoa querida nossa sofreu. Estamos sempre sujeitos a nos revoltarmos com as coisas que acontecem ao nosso redor. É muito fácil que o ódio surja a qualquer momento.

Porém, o ódio não é um afeto que soluciona nossos problemas.

Odiar um político corrupto pelo que ele fez ou um ex-amigo pela traição que ele cometeu consigo não irá reparar os danos causados. É possível sim que, por vingança, você queira fazer algo. Mas será que a vingança irá realmente curar as feridas?

Sêneca nos diz que algumas coisas não valem o ódio. A serenidade da alma é o bem mais precioso, e perder isso talvez seja o verdadeiro dano que você irá se causar.

Na filosofia estoica de Sêneca, o problema não é o dano que você venha a sofrer. A vida é inevitavelmente de dificuldades e desastres. O verdadeiro sofrimento está em aceitar que essas tragédias estraguem o seu humor, o seu dia, ou mesmo a sua vida.

Portanto, é melhor curar-se do ódio que tentar se vingar, pois a vingança absorve muito tempo e nos expõe a uma multidão de outras ofensas que nos causariam ainda mais dano. Além disso, satisfazer-se com as misérias alheias é uma satisfação muito pequena diante de outras que você proporcionar a si mesmo.

Ainda que nunca estejamos imunes ao ódio, e reações enérgicas podem ser algumas vezes justas e necessárias, vale como regra geral o conselho estoico: é melhor economizar suas energias de tentar se vingar ou atacar alguém investindo em sua própria felicidade.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Jason Rosewell/Unsplash

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30.1.17

É preciso cair para levantar

O texto abaixo foi retirado de uma das respostas de minha amiga Wanju Duli (Juliana Duarte) dentro de um debate entre pensadores e espiritualistas do qual também participo. Os comentários ao final são meus.

Podemos falar um pouco sobre o significado de evolução ou progresso espiritual. Acredito que o termo "evolução" ficou muito conectado a Darwin, com um sentido de que se passa de um estágio mais baixo para outro mais alto de forma linear. No entanto, o próprio Darwin considerava o termo "evolução" inadequado. Afinal, segundo ele, cada espécie é bem-sucedida caso se adapte melhor ao ambiente em que vive. Isso não significa que um ser humano é necessariamente mais evoluído que um pássaro ou um tubarão, apesar de possuir razão. Caso a espécie humana fosse extinta, os seres mais bem-sucedidos seriam simplesmente os sobreviventes, do ponto de vista biológico. Através da razão, o homem criou tecnologia para voar ou respirar embaixo d'água, mas não necessariamente para tornar-se um ser moralmente bom, espiritualmente elevado ou feliz.

De acordo com Erasmo em Elogio da Loucura, "O homem não foi feito para ser perfeitamente feliz na terra". O próprio termo "progresso" nos lembra o positivismo, que não por acaso está na bandeira do Brasil. Ou seja, tanto "evolução" quanto "progresso" nos remetem à necessidade de avanços científicos para darmos um passo adiante, mas a experiência nos mostra que em alguns casos avanços da ciência podem até nos ser negativos. Nem preciso citar bombas e outras armas de guerra. Em vez disso, irei citar elementos ainda mais fundamentais. É evidente que descobertas que contribuam para saúde e conforto, e que economizem tempo e dinheiro, são boas, desde que bem utilizadas. Por outro lado, conforto e facilidades demais podem nos deixar mal acostumados e nos fazer perder alegrias simples. Deixar de plantar e cozinhar os próprios alimentos de certa forma nos desconectaram da natureza e nos fizeram esquecer um pouco do sentido natural da existência.

Uma coisa que consumimos muito ultimamente são comidas prontas, em nome do maior conforto e da economia de tempo. No entanto muitas comidas industrializadas são pobres em nutrientes, fazem mal para a saúde e baixam nossa imunidade. Consequentemente nossa saúde mental fica prejudicada pelo reflexo do que comemos.

[...] É óbvio que comer bem não é a receita mágica para a felicidade, mas é um fator importante que muitos livros de espiritualidade podem não levar em consideração. A "falta de tempo" é um dos fatores levantados para que as pessoas cozinhem menos e caminhem menos. Evolutivamente, nosso corpo e mente estão adaptados a funcionar gastando tempo caçando, colhendo e cozinhando. No momento em que deixamos de exercitar o corpo e comemos de forma inadequada, não somente a saúde do corpo é prejudicada, mas também a saúde mental. Isso interfere diretamente em nossa espiritualidade, pois podemos nos sentir deprimidos e sem energia.

Meu primeiro ponto é bem simples: para tratar do tópico "evolução" num sentido mental ou espiritual, devemos levar em consideração que não somos somente mente-alma-espírito, mas também corpo. É o corpo que fica doente, envelhece e morre. Foi por causa dessas condições do corpo que Buda iniciou sua busca espiritual. Um dia todos iremos passar pela morte corporal, e todos conhecemos a doença e a dor corporal. É também em nome delas, e não somente do sofrimento mental, que buscamos respostas na espiritualidade. As nossas perguntas começam na mente, mas também tiveram origem no corpo. As nossas respostas terminam na mente, mas também terminarão no corpo, já que todo bom caminho espiritual também deve gerar modificações físicas em nosso estilo de vida.

E agora vamos ao próximo ponto: "aperfeiçoamento mediante a ação lúcida e continuada da consciência". Anteriormente tratamos da natureza dos pensamentos e agora devemos pensar em que sentido esses pensamentos podem ser trabalhados visando uma evolução moral e espiritual. Para introduzir esse tópico tratarei do conceito de busca do aperfeiçoamento e da verdade citando um livro que admiro: O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse. Nesse livro se trata de um conceito que já existia desde a Grécia Antiga: a ideia de que todas as áreas do conhecimento estão, de alguma forma, conectadas umas com as outras. O cristianismo também adotou esse conceito, baseando-se na ideia de que Deus criou "o melhor dos mundos possíveis", e que tal universo é harmonioso e racional.

Hoje em dia temos dificuldade de entender como as diferentes áreas do conhecimento se conectam, pois somos incentivados a ter um conhecimento mais especialista do que generalista. Perdemos muito a ideia do polímata, homem universal ou renascentista, que sabia transitar em diferentes saberes. Por isso é dito no livro de Hesse que vivemos na "Idade Folhetinesca" e isso fica ainda mais evidente hoje com a internet: o conhecimento está tão fragmentado e reduzido em posts curtos de blogs ou frases de redes sociais para "não perdermos tempo" que ficamos com a impressão que sabemos muito de várias coisas, mas não sabemos conectar ou aprender a fundo nenhum desses saberes. Uma invenção medieval chamada "universidade" tenta resgatar isso, mas como ela não é mais baseada nas Sete Artes Liberais e sim em conhecimentos pragmáticos visando apenas o mercado de trabalho, ainda está longe dessa realização. 

No paradigma secularista e materialista do século XXI, vivemos num universo sem sentido, em que muitos eventos ocorrem de forma aleatória, incluindo nossa própria vida e morte. No meio desse caos, nossa única esperança para esquecer a dor e a morte é ter o máximo de prazer e conforto possível, obtidos principalmente através do dinheiro. Talvez alguns problemas das filosofias espiritualistas do século XX e XXI sejam fruto da tentativa de construir uma solução moral e espiritual dentro desse paradigma. Nele o objetivo máximo é ser feliz através do "prazer" e do "sentir-se bem" seja com êxtase e emoções fortes ou paz.

Para buscarmos uma evolução consciente, seria bom lembrarmos do que nos diziam os gregos e romanos da Antiguidade, a exemplo dos estoicos. Diz Sêneca em Aprendendo a Viver:

Por que olhas para o cofre? A liberdade não pode ser comprada [...] Primeiro, livra-te do medo da morte, pois ela nos impõe o seu jugo, e, depois, deves perder o medo da pobreza.

Nós vivemos numa sociedade em que o maior objetivo da vida é não ser pobre, sendo que Jesus disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus. Isso significa que não podemos servir a dois deuses: a Deus e ao Dinheiro. É óbvio que tantas pessoas hoje se sentem depressivas e desconectadas do divino: porque estão adorando ao Deus errado. Eu respeito muitos Deuses de várias culturas e religiões, mas algo me diz que adorar ao Deus Mamon, conforme a história mostra, não tem gerado nem mesmo uma felicidade temporária nesse mundo.

Buda e Jesus nos deram outra resposta: a filosofia do sofrimento. Buda nos diz que a vida é sofrimento e Jesus nos convida a imitá-lo sofrendo com ele e carregando sua Cruz. O sofrimento pode não ser o problema, mas a resposta. Quem sabe o problema da humanidade seja achar que a dor e a morte sejam um erro, fugindo deles desesperadamente e se agarrando num sonho de felicidade. A solução é ver a morte como a chave para a vida, para o renascimento: o mártir que morre para o "eu" e renasce no "outro" e em "Deus" encontra a verdadeira vida. É preciso cair e morrer para levantar e nascer. A vida e o mundo não são erros a serem corrigidos pela ciência.

Comentários
A última vez em que falei da Wanju Duli aqui no blog foi trazendo a melhor resenha que já recebi para um livro, quando ela destrinchou o meu Ad Infinitum. Deveria ter trazido mais coisa dela para cá, visto que se trata de uma das maiores conhecedoras (no sentindo abrangente do termo) de magia e ocultismo da web e do meio literário nacional. Espero ter me redimido com este belo trecho que pesquei de nosso debate sobre espiritualidade em geral (também temos outros participantes, provavelmente esse “debate” ainda renderá um livro no futuro). Você também pode encontrar a Wanju na coluna sobre Magia do Caos do portal Teoria da Conspiração.

***

Crédito da foto: David Uzochukwu

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4.4.13

A grama

Trecho do Projeto Rumi:

O mesmo vento que arranca os troncos
faz a grama brilhar.

O vento senhoril ama a fraqueza
e a humildade da grama.
Jamais se vangloria de ser forte.

O machado não se preocupa com a grossura dos galhos.
Ele os corta em pedaços. Mas não as folhas.
Ele deixa as folhas em paz.

Uma flama não considera o tamanho da pilha de lenha.
Um açougueiro não corre de um rebanho de ovelhas.

O que é a forma na presença da realidade?
Muito pobre. A realidade mantém o céu revirado
como um cálice acima de nós, girando. Quem rodou
a roda do céu? A inteligência universal.

E o movimento do corpo
vêm do espírito como uma roda d’água
construída num riacho.

A inalação e a exalação vêm do espírito,
agora raivoso, agora em paz.
O vento destrói, e protege.

Não há realidade que não Deus,
diz o xeique completamente entregue,
que é um oceano para todos os seres.

Os níveis da criação são como pequenas ondulações neste oceano.
Seu movimento provém de uma agitação na água.
Quando o oceano deseja acalmar as ondulações,
ele as envia para perto da costa.
Quando ele as quer de volta, junto as grandes ondas do mar profundo,
faz com elas o mesmo que faz com a grama.

Isso nunca acaba.


Comentário

Os estoicos comparavam nossa vida a vida de um cão atrelado por uma coleira a uma carroça que, a qualquer instante, pode se colocar em movimento.
O comprimento da correia é tal que nos permite certa liberdade de movimento, porém, não nos permite ir aonde bem quisermos...
A carroça hoje está parada, de modo que podemos vaguear um tanto por aqui e acolá. Mas é preciso estar atento e preparado: se ela seguir viagem, se quiser nos levar a outro reino, de nada adiantará lutar contra a coleira – o máximo que conseguiremos é sermos arrastados pela estrada, à força!
Sêneca [1] explicava que “ao lutar contra o laço, o cão o aperta mais... Qualquer cabresto apertado irá machucar menos o animal se ele se mover com ele do que se lutar contra ele. Somente a capacidade de resistência e a submissão à necessidade proporcionam o alívio para o que é esmagador”.

***

Nesta realidade de formas impermanentes, o cão que se adéqua ao cumprimento da própria correia, e se preocupa em passear somente onde lhe é possível passear, é tão humilde quanto uma folha de grama.
A grama, constantemente açoitada pelo vento, mas que não obstante, tem sempre perdurado, junto a suas irmãs, por todas as planícies do mundo...

Que importa se o vento é ameaçador? Enquanto houver um tanto de terra fértil no reino, o sol estará resplandecendo a toda nova manhã, e alimentando a grama, que lhe retribuí com o verde.
Toda manhã traz um novo alento e um novo espírito. Deixemos que a carroça nos conduza seguindo pelos velhos sulcos da terra.

Que importa se o vento é ameaçador?  É o vento quem anuncia a chuva que virá... E enquanto houver chuva, haverá planícies verdejantes, haverá este inefável perfume de grama, haverá vida, haverá eternidade!

***

[1] Lucius Annaeus Seneca, mais conhecido como Sêneca, foi um filósofo estoico. Nasceu no ano 4 a.C. em Córdova e morreu no ano 65 d.C. em Roma: “Se vives de acordo com as leis da natureza, nunca serás pobre; se vives de acordo com as opiniões alheias, nunca serás rico”.

Crédito da imagem: Nathan Griffith/Corbis

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2.8.12

O senhor do destino

Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado (Gandalf em O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien).


Um dos maiores sábios da Antiguidade nasceu escravo, mas isso não o impediu de ter sido uma das almas mais livres do mundo. Epicteto nasceu em Hierápolis – na atual Turquia – em cerca de 55 d.C., e provavelmente foi levado ainda jovem para Roma, onde teve como mestre Epafródito, que por sua vez servia ao então imperador Nero. Tendo reconhecido a sabedoria e o potencial de seu escravo, Epafródito o declarou homem livre para seguir os ensinamentos de Musônio Rufo, filósofo estoico que o tomou como discípulo.

Epicteto foi manco desde a juventude, provavelmente devido ao reumatismo, mas foi com a razão e as ideias que caminhou muito além de seu professor no estoicismo, uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas por Zenão de Cítio, no início do século III a.C. Os estoicos ensinavam que as emoções destrutivas resultavam de erros de julgamento, e que um sábio não deveria “se deixar abalar” por tais emoções.

Os estoicos se debruçavam na relação dinâmica entre o determinismo cósmico e a liberdade humana, defendendo a crença de que é virtuoso manter uma vontade que esteja de acordo com a natureza. Por causa disso, os estoicos apresentaram a sua filosofia como um modo de vida, e pensavam que a melhor indicação da filosofia de uma pessoa não era o que teria dito, mas sim como teria se comportado em vida.

Epicteto foi, junto com Sêneca, um dos estoicos tardios que defendiam que a virtude é suficiente para a felicidade. O sábio que nasceu escravo, entretanto, teve uma existência muito mais dura do que Sêneca, um intelectual nascido entre uma família nobre romana [1]. Sua fama, no entanto, se deveu sobretudo ao seu exemplo de vida. Como Sócrates e outros sábios antigos, jamais deixou nada escrito; foi graças a Ariano, um de seus discípulos, que nos chegou a modernidade as anotações de seus cursos: os Discursos (Diatribes) e o Manual (Enchiridion) de Epicteto, sendo o último apenas um resumo do primeiro.

Ao longo do tempo, a despeito de terem influenciado inúmeros grandes filósofos e religiosos posteriores, os estoicos também foram alvo de muitas críticas, usualmente por quem mal conheceu sua obra, ou a interpretou de forma apressada, ou ainda, como no caso de Nietzsche, que a transportou para um contexto inadequado, dentro do cristianismo...

Quando Epicteto falava em Zeus, o deus dos deuses, ou nos deuses como “um todo, um conjunto divino”, não se referia a Divindade da mesma forma que muitos religiosos de sua época, nem da mesma forma que a grande maioria dos cristãos que lhe foram posteriores. Sim, de fato Epicteto compreendia na Divindade uma substância, uma força única, mas daí a imaginar que ele via a Divindade como os cristãos veem a Deus é um passo muito grande, que talvez não se sustente:

“Este mundo é uma única cidade, a substância da qual ele é feito é una e, necessariamente, existe uma revolução periódica, os seres cedem lugar uns aos outros, uns se dissolvem enquanto outros aparecem, uns estão fixos e outros em movimento. Tudo está repleto de amigos, antes de tudo os deuses, em seguida os homens que a natureza uniu intimamente uns aos outros. Uns são dados a viver juntos, outros a se separar; é preciso regozijar-se por estar juntos, e não se afligir por dever se separar. O homem, além de sua grandeza natural e de sua faculdade de desprezar o que não depende da sua escolha, possui ainda esta propriedade de não criar raízes e de não estar amarrado à terra, mas de ir de um lugar a outro, seja pressionado pelas necessidades, seja simplesmente para poder contemplar.” (Discursos, III, 24)

O sábio estoico defendia o uso da razão acima das emoções destrutivas, que poderiam levar ao desespero e a angústia permanentes, mas não se deve imaginar que ele era contrário as emoções em geral, tanto pelo contrário! Para Epicteto, a existência era uma grande festa, uma grande oportunidade de se contemplar a grandiosidade da natureza, e de se caminhar, passo a passo, para cada vez mais próximo da Divindade. A razão na Antiguidade grega era muito mais o logos, uma razão conectada ao Cosmos, aos desígnios da natureza, a intuição e a experiência mística e religiosa, do que propriamente a razão fria e demasiadamente científica, conforme a maioria de nós a tem interpretado nos tempos modernos. O que os estoicos procuravam suprimir através de sua “medicina mental” eram as emoções destrutivas, e jamais as prazerosas.

De fato, a felicidade e o contentamento com a existência, a paz de espírito, eram os grandes objetivos a serem alcançados pelos estoicos – e isso não tinha nada a ver com “ir para o céu”. Para tais sábios, o céu se construiria no espírito de cada ser, quando devidamente conectado ao Cosmos. Mas, se por um lado alcançar tal conexão com a Divindade era o grande objetivo da vida, também era necessário compreender que a festa não deveria durar para sempre:

“A vida é como uma navegação. Quando o barco está atracado, e vais em busca de água, no teu caminho poderás também encontrar uma concha ou uma cebola, mas é preciso guardar o espírito direcionado para o barco e mirá-lo constantemente para ver se acaso o piloto não te chama, e se te chama, deixar tudo isso, para não ser arrastado a bordo como um animal. Assim, na vida, se no lugar da concha ou da cebola está uma mulher e um filho que te foram dados, nada te impeça. Mas, ao apelo do piloto, corre para o barco, deixando tudo para trás, sem retornar. E se és velho não te distancies muito do barco para não correres o risco de faltar à chamada.” (Manual, VII)

Longe de ser uma atitude covarde e passiva, como muitos têm interpretado apressadamente, a calma estoica perante os infortúnios da vida, e até mesmo perante o fim da vida, é antes de tudo uma grande lição de coragem. Epicteto não ignorava os infortúnios, a escravidão, e nem mesmo a morte, e viveu sempre com o espírito atento para a possibilidade do barco vir lhe buscar a qualquer momento (como de fato pode o ser para cada um de nós); mas foi exatamente por saber pesar os infortúnios e os benefícios, os prós e os contras da existência, e por ter percebido que os benefícios (mesmo há 2 mil anos atrás) ainda excediam em muito os infortúnios, que viveu sua vida em paz e tão feliz quanto era possível.

A maior lição dos estoicos sempre será esta que está muito bem descrita no início do seu Manual:

“As coisas se dividem em duas: as que dependem de nós e as que não dependem de nós. Dependem de nós o que se pensa de alguma coisa, a inclinação, o desejo, a aversão e, em uma palavra, tudo o que é obra nossa. Não dependem de nós o corpo, a posse, a opinião dos outros, as funções públicas, e, numa palavra, tudo o que não é obra nossa. O que depende de nós é, por natureza, livre, sem impedimento, sem contrariedade, enquanto o que não depende de nós é fraco, escravo, sujeito a impedimento, estranho.” (Manual, I)

Não deve ter sido a toa que Ariano iniciou suas anotações exatamente por esta – parece-me que esta foi à primeira lição que Epicteto aprendeu com seu professor, Musônio, e provavelmente a primeira que também passava adiante, ele mesmo, para seus discípulos. Mas o sábio que nasceu escravo não era apenas um teórico: sua própria vida foi sua maior obra, seu grande exemplo para posteridade. O desconhecido que nasceu escravo e, não obstante, através do logos, tornou-se senhor de si mesmo, e por consequência, senhor do próprio destino – um genuíno livre-pensador.


Não temo a morte. Peço a Deus que não me dê um dia a mais de vida se eu não puder me orgulhar desse dia (José Alencar, ex-vice-presidente do Brasil, que travou uma luta de 13 anos contra o câncer, sempre atento ao chamado do piloto).

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[1] Mas Sêneca, por sua vez, teve um final bem mais dramático, condenado injustamente ao suicídio (sem julgamento), pela acusação de ter tramado para o assassinato do imperador Nero – na morte, porém, provou que uma vida de filosofia não foi em vão, foi-se “de modo muito sereno”.

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Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo Epicteto e os Estoicos no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

Crédito das imagens: [topo] Macduff Everton/Science Faction/Corbis; [ao longo] Paul Edmondson/Corbis

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