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25.6.19

A chuva

Há pouco você via pela primeira vez a chuva
a cair do mesmo céu de onde veio;
aguando o mundo indistintamente, sem julgar
qual solo cá abaixo é mais ou menos digno.

Olhos de pequenino a fitar a imensidão:
me pergunto em quantas vidas nossas almas
viram a chuva desaguar;
quantas vindas e quantas criaturas foram necessárias,
quantas caçadas e quantos amores,
para que cá estivéssemos,
pai e filho
a fitar as gotas que o ar chora.

No entanto nenhuma chuva é igual
a chuva que passou,
e nenhuma gota, e nenhum alma, e nenhuma era
são as mesmas: apenas se assemelham.
Pois que em todos os tempos
houve pais e filhos
que se entreolham e reconhecem
a primeira vez.

Penso nas constelações de neurônios
que já estão aí dentro,
erigindo nova consciência, uma nova vida,
um novo "eu":
eu, seu filho; eu, seu pai.
A verdade é que entre eu e você
há somente poeira de estrelas
e gotas de uma eterna e peculiar
chuva de almas.

Nós dois aqui, em plena tardinha;
a chuva desaguou, o sol se foi,
nossas irmãs já bailam cintilantes
pela noite sem fim.
Você chora, tem fome...
e, enquanto mamãe não chega
eu lhe embalo em meu colo,
coração a coração:
por um momento, observando seus olhos entreabertos,
sinto estar em meus braços
toda a humanidade.


raph'19

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Crédito da imagem: Cole Keister/unsplash

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11.6.19

4 Amores: Eros

Neste vídeo continuamos nossa jornada pelo Amor, desta vez falando de Eros, o amor romântico, erótico. Vamos começar pelo marco inicial do Romantismo, "Os Sofrimentos do Jovem Werther", de Goethe, passar pelo reino adoravelmente bizarro do Butão, onde a poligamia é a tradição, e terminar com um precioso conselho de Khalil Gibran. Neste estágio da evolução no amor, o jogo de posse e conquista ainda se faz válido, mas até que ponto isso não envenenca o próprio Amor?

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7.6.19

A superação da humanidade

Para viver precisamos comer e beber. No entanto, a questão filosófica e ética é se devemos comer apenas o suficiente para nos manter vivos, ou se, por outro lado, um alto grau de permissividade e sensualidade deste prazer poderia ser vantajoso. Trata-se da questão ética de como lidamos com nossos desejos?

Quando ansiamos por adquirir muito daquilo que nos falta, assim como com a comida, nos empantufamos em sua abundância. O excesso de nossos desejos pode trazer diversos infortúnios, não só azia e má digestão.

Platão refletiu sobre esse assunto, e tanto na República quanto em Fédon propôs o ascetismo como modelo de vida para o filósofo. O homem sábio deveria saber se separar do corpo e suas necessidades – respeitando o mínimo para a manutenção da vida – permanecendo com reserva em relação aos prazeres excessivos. Deveríamos, desde já, praticar o “desapego para a morte”.

Mas, quantos de nós, mesmos com as considerações relativas à saúde, desejaríamos realmente abandonar os prazeres do corpo, tal como a necessidade de comer?

Quando Platão propões a austeridade sobre nossos desejos, ele pensava que nenhuma pessoa reflexiva gostaria de se ver escravizada por seus desejos. Um ser humano desligado gradualmente de todos os apegos e preocupações de natureza instáveis – como o amor, o sexo, a ânsia de poder ou a ganância de dinheiro – se liberta também dos seus respectivos conflitos.

A ética platônica diz que a superior harmonia filosófica provém da diminuição do número de “compromissos” mundanos que mantemos, pois consequentemente estamos menos sujeitos às tormentas que tais compromissos nos trazem. Cultivamos, como um exercício espiritual, um estado de paz para a morte.

Se grande parte das coisas são fontes de dor e sofrimento para um ser racional, o ascetismo filosófico é um remédio para o tormento. Mas não era o que pensava Nietzsche, que viu na filosofia platônica o culto à morte e a negação da vida.

Nietzsche escreve que o pensamento platônico é produto do ressentimento metafísico de quem odeia essa vida e espera uma vida melhor num outro mundo que talvez sequer exista. Ironicamente, Nietzsche, que nunca leu Platão com muita atenção, chega ele mesmo a uma solução platônica ao problema platônico.

Platão dizia que deixar de lado nossos desejos humanos seria abandonar, de certo modo, nossa condição de seres humanos. É surpreendente que Nietzsche, com todo seu antiplatonismo, chega a mesma conclusão em sua filosofia de afirmação da vida e negação da metafísica, seja na figura do além-do-homem ou de Zaratustra que anuncia uma nova moral para a humanidade.

Tanto Platão quanto Nietzsche, cada um ao seu modo, estavam profundamente insatisfeitos com a humanidade e achavam que a solução deveria ser superá-la. Ambos veem no homem a fraqueza de seus desejos, e seja pela via da austeridade ou pela via do seu esgotamento, precisaríamos nos tornar um novo tipo de homens e mulheres.

Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.

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Crédito da imagem: Giammarco Boscaro/Unsplash

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