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18.3.22

Odes ao vinho (que não se colhe da videira)

Hoje Nixapur é uma cidade modesta situada no nordeste do Irã, mas há cerca de mil anos ela era uma das maiores cidades do mundo, sendo um ponto importante da famosa Rota da Seda. Na época, em meio aos impérios persas, nela nasceu e morreu um cientista, astrônomo e matemático chamado Omar Khayyam. Dizem que também foi poeta, e teria nos deixado centenas de poemas compostos por quatro versos – os rubaiyat, plural de rubai (poema em quarteto). Muitos séculos depois, tais versos foram transpostos ao inglês por um poeta de ascendência irlandesa chamado Edward FitzGerald, que foi o grande responsável por tornar o Rubaiyat de Omar Khayyam célebre em todo o Ocidente. Em suas versões portuguesas, o Rubaiyat recebeu o epíteto de “Odes ao vinho”, pelo simples fato da bebida ser muito celebrada em suas quadras. No entanto, até hoje persiste o debate acerca do significado desse vinho, e do Rubaiyat como um todo: uns dizem que se trata de vinho literal, e estes classificam a obra como agnóstica e hedonista; mas há tantos outros que afirmam que se trata do vinho “que não se colhe da videira”, de uma metáfora das experiências místicas do sufismo (o misticismo do Islã), e esses incluem a obra de Khayyam entre os grandes poemas místicos da humanidade.

Quem sabe o Rubaiyat possa ser lido das duas formas; talvez caiba somente a quem lê, a quem interpreta e mergulha na profundidade (ou superficialidade?) de seus versos, dizer, sentir do que eles se tratam. Um brinde a vida, e outro brinde a morte: bem-vindo ao Rubaiyat de Omar Khayyam.

O poeta que observava estrelas
Filho de um fabricante de tendas, Omar Khayyam nasceu em Nixapur por volta do ano 1040, e faleceu em 1123. Seu verdadeiro nome era Ghiyat ud-Din Abu Fat Omar Ibn Ibrahim al-Khayyam. Sua vida esteve conectada a personagens que também marcaram a história: Hassan Sabbah, o lendário “Velho da Montanha”, e Nizam al-Mulk, que foi vizir do sultão Alp Arslan.

Quando jovens, Hassan e Nizam foram atraídos a Nixapur pela fama do imã Novassak (na época, um ancião), buscando a sua instrução. Lá conheceram Khayyam, que já estudava matemática e astronomia, e entre eles nasceu uma duradoura amizade. Desta amizade veio uma espécie de pacto: quem primeiro fosse bem-sucedido financeiramente na vida deveria ajudar os outros dois.

Quem chegou lá primeiro foi Nizam, que foi um secretário e depois vizir do sultão Alp Arslan, o Leão. Logo, seus amigos foram lembrá-lo do pacto de Nixapur. O pedido de Hassan foi por um cargo na Corte; porém, ao se envolver em intrigas palacianas, logo caiu em desgraça, retirando-se às montanhas do sul do mar Cáspio, onde eventualmente veio a se tornar o lendário “Velho da Montanha”, o mestre da Ordem dos Assassinos.

Já o pedido de Khayyam foi consideravelmente mais modesto: uma espécie de pensão vitalícia para que pudesse voltar a Nixapur e se dedicar tão somente à matemática e à observação das estrelas. E sua pensão foi quantia suficiente para que pudesse passar o restante de seus dias entregue ao cultivo do estudo e da poesia. Cercou-se de amigos e com eles dedicou-se a aproveitar a vida. Dizem que seu maior prazer era simplesmente beber e conversar com amigos, sob a luz da lua, no terraço de sua casa, geralmente ao som de tocadores de alaúde e, volta e meia, apreciando a arte das dançarinas persas.

Envolto em tal atmosfera, Khayyam iniciou a composição dos seus famosos rubaiyat. Eram poemas que cantavam o amor, o vinho, a vida e a morte; às vezes, de um pessimismo aterrador, noutras tantas, de uma exaltada homenagem à existência.

Além de poeta, foi um celebrado homem de ciências. Escreveu um famoso tratado de álgebra, elaborou tabelas astronômicas e reformulou o calendário muçulmano, tendo recomendado a adoção do ano bissexto cinco séculos antes de tal ideia ser retomada no Ocidente, com a promulgação do Calendário Gregoriano.

Após sua morte, um de seus amigos mais jovens e discípulo, Kuajah Nizam, escreveu sobre ele o seguinte: “Nós costumávamos conversar com o mestre em um jardim. Um dia, ele nos disse: Vocês irão achar meu túmulo no local onde o vento do norte possa cobri-lo de rosas. Anos depois, ao retornar para Nixapur após uma longa ausência, me dirigi ao lugar que tinham me indicado como sendo o túmulo do meu mestre. Encontrei-o junto a um jardim. As árvores, exuberantes em plena primavera, inclinavam seus galhos por cima de um muro vizinho, enquanto uma brisa suave desfolhava suas flores. Ao cair, pétala por pétala, cobriam o túmulo de muitas cores...”

Uma releitura ocidental
Os rubaiyat persas seriam hoje algo solenemente ignorado no Ocidente, não fosse pelo fato do poeta Edward FitzGerald (1809 – 1883) ter tomado conhecimento da obra de Khayyam, vertendo-a para o inglês e publicado sua tradução em 1859.

Entretanto, FitzGerald não foi propriamente um tradutor, mas antes um adaptador. Alguns afirmam que sua obra poderia ser intitulada: “De como Omar Khayyam teria escrito Rubaiyat, acaso se chamasse Edward FitzGerald e vivesse na Inglaterra vitoriana”. Dito isso, não se pode negar o fato de que ele foi o grande responsável por tornar o erudito persa conhecido no Ocidente. À sua tradução, aliás, seguiram-se várias outras, tornando Rubaiyat um dos livros de poesia mais traduzidos e vendidos do século XX, merecendo inclusive diversas edições luxuosas, ilustradas por artistas renomados.

Em certo aspecto, Rubaiyat é um livro de poesia diferente de todos os demais: cada vez que uma nova edição é publicada, surge uma obra diversa. Isso se deve a alguns fatores: primeiro, o próprio Khayyam parece não ter somente composto os próprios rubaiyat, como colecionado muitos que circulavam em Nixapur na época; segundo, alguns rubaiyat podem ter sido introduzidos posteriormente a sua morte, provavelmente por poetas apócrifos que gostariam de ver seus versos eternizados sob a autoria de um cientista renomado; e, terceiro, no fim das contas a tradução da poesia persa para outra língua é quase sempre uma releitura.

Para além disso tudo, ainda resta a polêmica acerca do Rubaiyat ser ou não uma obra mística. Ora, no prefácio de sua tradução o próprio FitzGerald associou-a ao epicurismo, uma visão filosófica da vida mais focada nas pequenas alegrias e prazeres ditos “mundanos” do que em experiências religiosas. Farid ud-Din Attar (1145 – 1221), um célebre místico islâmico conterrâneo de Nixapur, disse certa vez que “Khayyam não era um místico, mas um livre-pensador”.

Entretanto, em 1867, J. Nicolas, o cônsul francês na Pérsia, realizou uma nova tradução do Rubaiyat, afirmando que o poeta era um sufi, e que suas quadras traziam, de forma alegórica, o pensamento e os ensinamentos desta vertente mística do Islã. Segundo esta visão, a taberna seria a mesquita; o vinho, a essência de Allah; o cálice, o mundo inteiro (por onde se espalha o vinho que não se colhe na videira); e a embriaguez em si, o êxtase místico, o contato direto com o amor divino.

A lição que fica é que o Rubaiyat será, sobretudo, aquilo que causar no coração de seus leitores. E, se você for mais um deles, então responda por si mesmo: do que, afinal, se trata o Rubaiyat de Omar Khayyam?

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O Rubaiyat de Omar Khayyam será o próximo lançamento das Edições Textos para Reflexão, na tradução de Rafael Arrais (a partir da versão inglesa de Edward FitzGerald), em um e-book ilustrado por diversos artistas cuja obra já entrou em domínio público (o que infelizmente não é o caso do tailandês Niroot Puttapipat, cuja arte ilustra este artigo).

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Crédito das imagens: Niroot Puttapipat

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15.3.22

Seria o Caibalion uma invenção moderna?

Neste vídeo vamos analisar se o "Caibalion" é uma obra que traz de fato conhecimentos da Antiguidade, ou se trata-se simplesmente de uma releitura moderna do hermetismo. Também abordaremos a história do hermetismo e tentaremos desvendar quem seriam, afinal, os Três Iniciados, os supostos autores do "Caibalion". Assista abaixo:

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9.3.22

O Caibalion é uma fraude?

Eu já não lembro mais o que exatamente me levou a adquirir o exemplar antigo do Caibalion que tenho na minha estante, mas certamente não foi pela beleza da capa, que é somente um símbolo semelhante a um meio círculo por cima de um fundo verde chapado. Poderia ser o título em si, mas duvido que soubesse do que se tratava “O Caibalion”. Quiçá fosse pelo “Três Iniciados” logo acima dele, mas acho que não: visualizando ela agora, posso apostar que foi pelo outro texto abaixo do título:

Estudo da filosofia hermética do antigo Egito e da Grécia

Até então eu nunca tinha lido nada de relevante sobre o antigo Egito, mas talvez as palavras “filosofia” e “Grécia” tenham me levado a um interesse maior, pois naquela época eu certamente já havia lido Platão. Em todo caso, uma vez que se pega o Caibalion numa estante de livraria e começa a folhear, fica difícil não ser seduzido – ao menos se você, como eu, se interessa por espiritualidade e mitologia. Também ajudou, é claro, o fato da edição da editora Pensamento ser bem em conta na época.

Isso possivelmente se passou no final do século passado, e de lá para cá eu não somente reli o Caibalion algumas vezes, como cheguei eu mesmo a traduzi-lo do inglês original. E, se eu sempre soube que era uma obra de autoria anônima, com o tempo alguns outros “mitos” em torno dela foram caindo: ela não foi escrita na Antiguidade, mas em 1908; seus autores, portanto, não eram sábios milenares, mas espiritualistas anônimos (ou nem tão anônimos, como veremos a seguir); e, finalmente, até mesmo os famosos “Sete Princípios Herméticos” não necessariamente advinham todos de textos herméticos mais antigos. Assim, uma dúvida desconfortável passou a transitar em minha mente:

O Caibalion é uma fraude?

Antes de respondermos a tal pergunta, é preciso considerar que atribuir antiguidade a uma doutrina ou filosofia, particularmente as que se conectam com o campo da religião, é uma prática muito comum na história da humanidade. Se formos nos ater estritamente à pesquisa acadêmica, o próprio hermetismo não é algo tão antigo quando se imagina, ao menos não antigo ao ponto de ter se originado no antigo Egito.

Segundo Mircea Eliade, um dos grandes estudiosos do campo em questão no século XX, “sob a denominação de hermetismo compreendemos a totalidade das crenças, ideias e práticas transmitidas na literatura hermética”. Depois, ele prossegue [1]:

“Trata-se de uma coletânea de textos de desigual valor, redigidos entre o século III a.C. e o século III d.C. Distinguem-se duas categorias: os escritos pertencentes ao hermetismo popular (astrologia, magia, ciências ocultas, alquimia) e a literatura hermética erudita, em primeiro lugar os 17 tratados, em grego, do Corpus Hermeticum.”

Eliade situa o hermetismo popular como algo mais antigo do que os tratados herméticos, que vieram a se tornar definitivamente populares somente no século II d.C. Ele também dá destaque a trajetória conturbada do hermetismo ao longo dos séculos:

“A transmissão do hermetismo constitui um capítulo apaixonante na história do esoterismo: efetuou-se através das literaturas siríaca e árabe, e sobretudo graças aos sabeus de Harran, na Mesopotâmia, que sobreviveram no Islã até o século XI. [...] No entanto, o verdadeiro “renascimento” do hermetismo na Europa ocidental teve início com a tradução do Corpus Hermeticum, empreendida por Marsílio Ficino por solicitação de Cosme de Médicis, e concluída em 1463.”

Assim, chegamos a duas datas importantes acerca do hermetismo: século II d.C., quando surgiu o Corpus Hermeticum no mundo grego, e 1464, quando ele foi redescoberto na Europa latinizada. Mas, e o Caibalion?

O Caibalion foi publicado pela primeira vez em 1908 na língua inglesa pela Yogi Society, ligada a um templo maçônico de Chicago, nos EUA. A obra é anônima, assinada somente pelo codinome ou pseudônimo “Três Iniciados”. No entanto, existem indícios de que o livro esteja ligado ao Movimento Novo Pensamento, que surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX. Esse movimento era formado por filósofos, espiritualistas, escritores e pessoas que compartilhavam crenças e participavam de estudos metafísicos associados a temas diversos da espiritualidade e da parapsicologia.

Das diversas teorias ligadas à autoria do Caibalion a mais aceita é a de que o livro foi escrito pelo espiritualista americano William Walker Atksinson (mais conhecido como Yogi Ramacharaka, e também popular por usar diversos pseudônimos em suas obras) em parceria com outros estudiosos, como o maçom Paul Foster Case ou a teosofista Mabel Collins. Por exemplo, na própria introdução do Caibalion há uma citação em destaque do trecho de um poema de Edward Carpenter, e esse mesmo trecho aparece em um dos livros (oficiais) de Atkinson. Em todo caso, a verdade é que nunca saberemos ao certo quantos foram os colaboradores da obra, e quais os seus nomes, principalmente porque, sejam quem forem, simplesmente optaram pelo anonimato.

Ora, era isso que eu pensava até pouco tempo atrás: que os autores do Caibalion optaram pelo anonimato para exaltar a obra em si, e não para aumentar sua “aura de mistério”. Afinal de contas, se é óbvio que o Caibalion se trata de um extenso comentário acerca de alguns poucos trechos de obras herméticas mais antigas, fato é que ele traz alguns princípios muito conhecidos do hermetismo, como o famoso Princípio da Correspondência: “O que está em cima é como o que está embaixo; o que está embaixo é como o que está em cima”. E, se ele traz pelo menos um princípio que sabemos ser de fato antigo, ou pelo menos do século II d.C., é claro que os demais também são, certo?

Mais ou menos. Pois se isso fosse inteiramente verdade, teríamos de explicar como diabos algum sábio, ou grupo de sábios, chegou à conclusão que “Nada está parado; tudo se move; tudo vibra” (o Princípio da Vibração) muito antes do advento do microscópio ou da física de partículas!

Mesmo Demócrito, quando observou pequenas partículas de poeira dançando na brisa matinal em um faixo de luz solar, jamais chegou a afirmar que tudo, absolutamente tudo, vibra. Pois ele não tinha um microscópio para dizer que até mesmo um átomo, então pura construção teórica, vibra e nunca está parado. Isso só foi descoberto muito, muito tempo depois. Em 1908, quando o Caibalion foi publicado, era uma ideia da vanguarda científica.

Por muito tempo essa questão me inquietou, e por muito tempo eu considerei que ela era talvez a maior prova de que os sábios herméticos tinham de fato alcançado um conhecimento da natureza inexplicável em sua época. Talvez tivessem aprendido a alcançar estados alterados de consciência que lhes permitisse observar as menores partículas em vibração, e daí tivessem intuído que tudo, absolutamente tudo vibra, até mesmo o que parece estar parado e imóvel: uma pedra, um galho seco, a sua mão, uma igreja, uma ponte de concreto, até mesmo um continente inteiro. E, se de fato sabemos disso com certeza há cerca de 150 anos, tal conhecimento era inacessível aos sábios herméticos de outrora.

Tal questão foi resolvida recentemente, quando vi o depoimento de um amigo que já frequentou incontáveis ordens iniciáticas, desde as discretas as invisíveis, e garantiu que o chamado Princípio da Vibração foi uma invenção dos autores do Caibalion, que simplesmente nunca existiu nem no Corpus Hermeticum nem em qualquer outro texto ou tratado hermético. De fato, hoje não tenho razão alguma para duvidar dele, e sim da intenção real dos autores do Caibalion. Mas, afinal, o Caibalion é uma fraude?

Mais ou menos. É inegável que o Caibalion foi extremamente bem sucedido no que seus autores se propunham: tornar a divulgação do hermetismo algo mais simples, mais acessível ao público leigo e aos curiosos em geral. Afinal, quantos de nós não demos nossos primeiros passos no hermetismo, e até mesmo nas ciências ocultas em geral, graças ao Caibalion?

Dito isso, o fato de os autores do Caibalion terem se valido justamente de mistificações para auxiliar na divulgação de um conteúdo místico não deve ser ignorado por nenhum estudioso sério do hermetismo. Assim, podemos muito bem agradecer aos “Três Iniciados” por nos fazerem chegar ao Corpus Hermeticum e obras similares, mas jamais endeusá-los nem considerar tudo o que disseram, principalmente os seus “Sete Princípios Herméticos”, como alguma espécie de verdade absoluta. Assim somos obrigados a continuar pensando por nós mesmos, a prosseguir tateando no escuro da história oculta, sem usar atalhos perigosos para alcançar algum mítico “conhecimento superior”. Este sim seria o grande pecado do hermetista moderno.

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[1] Trechos retirados de História das crenças e ideias religiosas, volume II, XXVI, 209. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda.

Crédito das imagens: [topo] Editora Pensamento (capa do Caibalion – edição de capa verde); [ao longo] Gravura de autoria anônima, vista primeiramente (em preto e branco) em um livro de Camille Flammarion intitulado L’atmosphère: météorologie populaire (1888).

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