Mas o que exatamente eu sou?
René Descartes foi um dos grandes pensadores modernos, tanto que é considerado por alguns como “o fundador da filosofia moderna”, e por outros como “o pai da matemática moderna”. E, de fato, ele foi tão ou mais importante para a ciência e a matemática quanto o foi para a filosofia em si. Entretanto, se formos analisar hoje pelo que Descartes é mais lembrado, será difícil escapar da sua célebre afirmação:
Penso, logo existo.
Tal frase, cuja tradução do latim original – cogito ergo sum – seria melhor definida como “Penso, logo sou”, surgiu em um livro que a princípio era quase que um prefácio para outras obras mais científicas, intitulado Discurso sobre o Método. Nesta obra, escrita em 1637 e publicada originalmente na Holanda, pois nessa época o pensador francês residia por lá, Descartes propõe um modelo quase matemático para conduzir o pensamento humano, uma vez que a matemática tem por característica a certeza, a ausência de dúvidas. De acordo com o próprio autor, parte da inspiração de seu método (descrito nesse tratado) veio de três sonhos ocorridos na noite de 10 para 11 de novembro de 1619: em tais sonhos lhe surgiu “a ideia de um método universal para encontrar a verdade”.
E o método de Descartes entrou para a história, ao ponto de se confundir com as bases do próprio método científico como veio a ser conhecido de lá para cá. Mas o que me interessa discutir aqui é a tal frase, o “penso, logo sou”. Como exatamente ele chegou nela?
Ora, Descartes estava preocupado com a validade das evidências que poderiam comprovar as verdades da nossa existência. Se devemos questionar tudo, por que devemos confiar nas informações que colhemos da natureza, já que tudo passa pela interpretação dos nossos cinco sentidos?
Tudo o que olhamos, cheiramos, escutamos, tocamos ou saboreamos só pode ser analisado pela consciência quando passa pelos nossos ouvidos, olhos, boca, tato e nariz. E, para piorar, essa interpretação é pessoal e intransferível. Como confiar que todas as pessoas perceberiam esses estímulos da mesma forma, permitindo que uma verdade se tornasse válida para todos?
O francês concluiu que nós só temos a capacidade de duvidar dos nossos sentidos (isto é, pensar) porque estamos vivos para receber esses estímulos. Ter a convicção da nossa existência seria a única coisa da qual não podemos duvidar. Eis as suas palavras, traduzidas do original:
“[...] ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.
Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. [Assim, percebi] que nada há no eu penso, logo sou que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir.”
Ou seja, ainda que tudo o que percebemos com os sentidos desde que nos entendemos por gente for algum tipo de ilusão, e ainda que não possamos obter uma certeza derradeira e absoluta sobre basicamente nenhuma verdade, ainda assim não podemos negar que existimos, que estamos aqui pensando sobre a existência. Descartes havia encontrado a única certeza genuína da filosofia, a única que não pode ser questionada. E vejam que, ainda assim, o fato de existirmos não significa que tenhamos sequer a certeza sobre a nossa própria vontade, ou liberdade de agir; porém, fato é que algo existe, e não nada.
Agora, me desculpem, mas nesse momento não posso deixar de sorrir ante tamanha ironia, isto é: que um dos tratados que servem de alicerce para o próprio método científico, que um dos pilares da racionalidade moderna seja mais lembrado justamente por sua afirmação mais mística, mais espiritual, ainda que a imensa maioria dos que esbarraram nela não tenha percebido sua profundidade abissal.
Sim, pois muitos se comportam diante dela como aqueles que estavam se preparando para a sua primeira aula de mergulho na praia mas, ao ver a placa informando “Perigo, correnteza forte”, preferiram se abster de mergulhar. Tivessem mergulhado, a primeira coisa que teriam de se deparar era com a continuação até mesmo óbvia da preposição de Descartes:
Penso, logo sou. Mas o que exatamente eu sou?
Então cairiam de cabeça no misticismo, ou seja, na tentativa de conceber a verdadeira natureza do que existe, do que é. E poderia falar aqui de Parmênides, dos estoicos, de Plotino ou Benedito Espinosa, mas será mais fácil se deixarmos a filosofia de lado e recorrermos à poesia, mais precisamente a poesia de Jalal ud-Din Rumi, um poeta sufi (o misticismo do Islam) que viveu no século XIII. Eis o que ele soube nos dizer sobre o tema:
Na verdade nós somos uma só alma, eu e você. Nos mostramos e escondemos, você em mim, eu em você.
Eis o sentido profundo da nossa relação: é que entre você e eu não existe nem eu nem você.
Os poemas de Rumi eram um eterno diálogo entre ele e Allah, ou Deus. Mas a ideia principal, a que permeia toda a sua obra, e também a de todo místico genuíno, é justamente esta: “entre eu e você, não existe nem eu nem você”. O que existe é o que é, sempre foi e será, justamente porque existe, porque não é nada. Mas isto não se entende com palavras.
Afinal, se fosse necessário pensar através de alguma espécie de linguagem, por mais rudimentar que fosse, então não existiríamos enquanto recém-nascidos, e só passaríamos a existir a partir de dado momento desta vida. Ocorre que mesmo tal ideia é absurda nesse contexto: “passar a existir”. Não faz o menor sentido. Mas isto também não se entende com palavras.
E, mesmo no ápice de sua racionalidade, o próprio Descartes intuiu a mesma coisa, embora talvez não tenha conseguido se expressar através de um conceito cristão. Pois o pensador francês ainda defende a existência de Deus poucas páginas após o trecho que eu trouxe acima. E, para tal, ele se vale de uma lógica que muitos consideram até mesmo infantil: ele afirmou basicamente que o fato de concebermos a ideia da perfeição e do infinito, mesmo sendo imperfeitos e finitos, era a prova da existência de Deus.
Faltou a Descartes justamente ir um pouco além, e mergulhar nos mares abissais do Grande Mistério. Nós não “concebemos” Deus, nós somos Deus. Nós somos o que existe.
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Crédito das imagens: [topo] Corbis (Descartes); [ao longo] Cristofer Maximilian/unsplash.
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