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30.10.17

Um papo com Laudo Ferreira, autor de Yeshuah

Veio como uma criança indefesa, outros dizem que é lenda.

Há dois mil anos falamos dele. Ele mudou o mundo e cada um de nós, mesmo que não tenhamos consciência disso.

É a figura histórica a respeito de quem mais se escreveu, mais se inquiriu. As divergências na compreensão de seus ensinamentos já existiam entre os próprios apóstolos, antes mesmo de sua partida. Embora suas palavras, registradas por seus seguidores conforme se lembravam delas no mínimo trinta anos depois de sua morte, sejam simples, transmitindo conceitos básicos repetidos de diversas formas, o entendimento não é fácil, pois supõe uma mudança interior.

[...] Onde encontrá-lo?

Cada um que procura o seu Jesus o encontra dentro de si mesmo.

E nessa multiplicidade de seres ele se esparrama como chuva de estrelas, cada uma com seu brilho próprio, feitas, no entanto, todas da mesma essência de luz. Qual é mais verdadeira que as outras? Na obra aberta, como é a obra de Jesus, a maravilha é que todas são verdadeiras.


O texto acima é parte do prefácio de Júlia Bárány Yaari para a HQ Yeshuah (Salvação), de Laudo Ferreira (com arte-final de Omar Vinõle; Ed. Devir), e que considero uma das 5 melhores da história.

Não é que eu não entenda de quadrinhos, já li Promethea de Alan Moore, Nausicaä de Hayao Miyazaki, Dreadstar de Jim Starlin, e até mesmo Calvin e Haroldo de Bill Watterson. Portanto, não é a toa que a coloco entre tais obras.

Se ainda não a conhece, recomendo ouça o belo depoimento que seu autor, Laudo Ferreira, deu para o podcast Papo na Encruza, de um pessoal muito gente boa e entendido dos paranauês [1] (vão reparar que eu sou um dos caras que mais enviou perguntas durante o programa):

Gostou do que ouviu? Você pode encontrar Yeshuah Absoluto na Amazon, e comprando por este link ainda estará ajudando o blog.

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[1] Um dos apresentadores, Roe Mesquita, é o incrível ilustrador do nosso Tarot da Reflexão. Também recomendamos o episódio onde Leo Lousada, do canal Conhecimentos da Humanidade no YouTube, fala sobre a Kabbalah.

Crédito das imagens: Laudo Ferreira (Yeshuah)

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3.11.16

Estranho

“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.”

Foi em homenagem a esta frase de William Blake, o poeta inglês, que Aldous Huxley, seu conterrâneo de um século mais próximo ao nosso, deu o título ao seu clássico As portas da percepção, que por sua vez é o livro que Stan Lee está lendo em sua curtíssima aparição no novo filme da Marvel, Doutor Estranho.

Stephen Strange é um dos meus personagens favoritos nos quadrinhos da Casa das Ideias. Ele foi criado em 1963 por Lee e a lenda, Steve Dikto, que também foi cocriador de Peter Parker, o Homem-Aranha. Aliás, como veremos abaixo, há algum paralelo entre a origem e a motivação desses heróis, a despeito de sua diferença de idade.

Antes de prosseguir, no entanto, devo avisar que este artigo vai falar exatamente do novo filme de Estranho, e embora eu não vá falar de nada que já não esteja na origem do personagem nos quadrinhos, certamente o que virá a seguir trará alguns spoilers do filme, estejam avisados!

Spoilers ahead...

Não foi à toa que Lee apareceu com o livro de Huxley: toda a ideia por detrás do Doutor Estranho nasceu da brincadeira com a possibilidade da existência de incontáveis dimensões paralelas e outros planos de existência, ou de percepção da existência, bem aqui em nosso mundo e a nossa volta. Também não é por acaso que Lee está exclamando it’s hilarious! (isto é hilário!) em sua cena: talvez a sua grande qualidade seja exatamente essa, de não se levar tão a sério, tampouco as suas criações.

Aliás, é também isso que transparece nos filmes da Marvel Studios nos últimos anos, o que é muito bom por sinal, pois quadrinhos são entretenimento, e espera-se que eles sirvam mais para nos divertir e atiçar a imaginação do que para nos trazer reflexões acerca de como a existência é sombria, de como o mundo é ultraviolento, ou de como o nome de nossa mãe é algo sagrado.

Dito isso, não quer dizer que quadrinhos, ou filmes de quadrinhos, não possam trazer suas lições de moral, por mais que hoje elas sejam clichês algo antigos. É também dos anos 1960 a famosa reflexão que Peter Parker aprende a duras penas: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Tudo bem, é um clichê antigo, mas ainda é perfeitamente válido. Quadrinhos são mitologia líquida, profanada, hilária, divertida, e assim está bom – em todo caso, nada disso conseguiu apagar por completo a luz dos contos de outrora (basta lembrar que ainda temos um Thor e um Hércules na Marvel).

No filme de Estranho, apesar de ser muito fiel aos quadrinhos, não há somente uma frase capaz de resumir a moral da história toda, como no Homem-Aranha, mas ainda podemos refletir acerca de muitos ensinamentos:

Um outro sentido para a vida
Strange é um neurocirurgião muito bem sucedido em Nova York, talvez o melhor do mundo. Ele tem memória fotográfica, grande inteligência e uma capacidade de concentração incomparável. Mas, no final das contas, tudo depende do que ele consegue realizar na mesa de cirurgia: é ali que realiza não somente o seu grande show, como até então o grande sentido de sua vida.

Fica muito claro, no entanto, que Strange não está ali propriamente para curar pessoas, e sim para manter o seu status de grande cirurgião. Não exatamente pela grande quantia de dinheiro que recebe, mas simplesmente pela fama. Já diziam os estoicos que não devemos basear nossa vida nas coisas que não dependem de nós, como o status e a fama, e é precisamente isso que Strange tem de aprender, não pela sabedoria (que não tinha até então), mas pela dor, esta grandiosa professora...

Ao acordar do grave acidente de carro onde quase perdeu a vida, ele parece mais preocupado com a situação de suas mãos do que com o resto do corpo. De fato, ali poderíamos quem sabe dizer que ele trocaria a cegueira de um olho, ou até uma perna, por ter suas mãos novamente intactas. Afinal, elas eram o seu principal instrumento de trabalho, e consequentemente de status – sem elas o sentido de vida que ele havia construído para si estava arruinado. Uma lição e tanto.

A arrogância não leva a lugar nenhum
A arrogância, ou ignorância das próprias limitações humanas, é também um grande fardo para o ignorante: enquanto tudo vai bem, há a enorme angústia e preocupação em poder se manter na costumeira posição de status, onde se pode dizer “você sabe com quem está falando?”; mas, assim que as coisas vão mal, o arrogante encontra enorme dificuldade em achar um caminho de saída, de resolução para a situação atual, pois que há muitas coisas neste mundo das quais não temos controle algum.

O acidente de carro, a fatalidade, pegou Strange de calças curtas. Neste momento, a arrogância não lhe serve mais para nada, mas é exatamente a dor gerada por esta falta de controle do próprio destino que o encaminha para uma via espiritual, ainda que a princípio pelas razões erradas. Fato é que, bem ou mal, foi a fatalidade que o levou ao Oriente, a esta milenar metáfora para o caminho da sabedoria. Teria sido melhor que chegasse lá pelo autoconhecimento, mas como dizem por aí: seja pelo amor ou pela dor, caminhamos sempre!

Me ensine!
Como tantos outros místicos e ocultistas do mundo real, Strange chega ao templo no Oriente (de fato, poderia ser em qualquer outro canto) profundamente cético acerca do mundo espiritual. Basta atentar para o que a cultura moderna, científico-materialista, fez do significado dos termos “místico” e “ocultista” para compreender que, na maior parte dos casos, o ceticismo é um estágio inicial perfeitamente natural para as mentes racionais. E, embora trabalhem sua percepção muitas vezes muito além desta racionalidade, em nenhum momento se disse que místicos e ocultistas deveriam ser irracionais.

Apesar de recorrer aos velhos clichês de sempre, no filme este embate entre a racionalidade cética e a racionalidade “mente aberta” é, em geral, tratado de forma saudável. Quando finalmente vê com os próprios olhos que a magia é real, Strange vai aos poucos cedendo em seu ceticismo, e também em sua arrogância. A neurociência, a medicina de ponta, quem diria, não explicavam tudo o que havia por ser explicado. Existiam outras possibilidades, outros caminhos, e ao encarar sua guru e suplicar, “Me ensine!”, ele estava tão somente dando o seu primeiro passo, para dentro.

Não é sobre você, Stephen
Tão logo inicia seu caminho de mago, Strange se vê envolvido na costumeira batalha do bem contra o mal, embora no filme eles tenham tratado o “bem” e o “mal” de uma forma consideravelmente menos maniqueísta do que a média. Em todo caso, em se falando de caminho espiritual, tal batalha é muito mais interna do que externa. Assim como foi com Arjuna, a primeira reação de Strange é querer ficar de fora desta guerra.

No entanto, é somente lá para meados do filme que, numa derradeira conversa com sua guru, Strange finalmente percebe que, naquele cenário, fugir da batalha também era um ato egoísta. “Não é sobre você, Stephen”, é sobre a vizinhança, é sobre o mundo inteiro: que o objetivo desta grande guerra que cada ser trava dentro de si, para domesticar seus demônios sombrios, seu lado animal, é também o de salvar a humanidade toda.

Aqui se dá o grande paradoxo de tantos contos mitológicos: eles dizem respeito a você, todos os personagens são aspectos de nós mesmos; porém, ao mesmo tempo, a nossa evolução neste caminho diz respeito a um céu que ainda precisa ser erguido lá fora, nesta terra, nesta vizinhança. No fim das contas, todos os paradoxos de fato serão reconciliados...

Um pacto com Dormammu
O momento mais profundo e inteligente do filme, e também o mais hilário, é aquele em que Strange vai sozinho negociar um pacto com o grande demônio Dormammu na dimensão sombria.

Parece ser simples e trivial a solução de prendê-lo num loop temporal junto com si mesmo, de modo que ou ambos ficariam ali se digladiando pela eternidade (bem, não exatamente, pois Strange seria massacrado infinitas vezes, mas ainda assim, pela eternidade...), ou chegariam a uma espécie de trégua onde cada um poderia cuidar da sua vida sem intervir na do outro: Strange aqui na Terra, Dormammu em sua dimensão sombria.

Mas, pensem bem, não teria algo muito mais profundo se passando nesta negociação? Afinal, o que é a ignorância senão um loop temporal? Senão um rato correndo em sua gaiola, sem jamais sair do lugar? Senão um embate sem fim, e sem sentido, na dimensão sombria de nossa própria alma?

O que Strange realizou, afinal, foi um pacto com sua própria animalidade, sua própria ignorância: “Olha, já estamos aqui nos matando faz muito tempo, que tal seguirmos em frente agora?”.

E assim, ao se curar, ao salvar o seu próprio mundo, Strange não se tornou de fato nenhum mestre, nenhum guru, mas sim um médico de si mesmo, um Doutor Estranho.

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Crédito das imagens: Marvel Studios/Divulgação (Doutor Estranho)

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22.6.16

Lançamento: Laroyê

As Edições Textos para Reflexão, em parceria com a Like a Sir Press, publicam a sua primeira história em quadrinhos digital. E o tema é nada mais do que Umbanda para crianças!

Escrito e ilustrado pelo casal de artistas Lucy Fidelis e Roe Mesquita (que também ilustra o nosso Tarot da Reflexão), Laroyê traz um conto singelo sobre o orixá mensageiro, Exu (*). O e-book traz, como de costume, ilustrações em cores bem vibrantes, que serão melhor apreciadas no aplicativo gratuito do Kindle para tablets e smartphones. A versão impressa pode ser adquirida diretamente na editora dos autores:

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(*) Aliás, é sempre bom lembrar o que disse Marcelo Del Debbio, grande estudioso de mitologia e religiões, sobre o orixá Exu:

Assim como Hermes, Exu é o mensageiro dos deuses, seu poder é o de receber e transportar os pedidos e oferendas dos seres humanos ao Orum, o Mundo dos Deuses. É o Senhor dos Caminhos, das encruzilhadas, das trocas comerciais e de todo tipo de comunicação. Ele representa também a fertilidade da vida, os poderes sexual, reprodutivo e gerativo. Não podemos nos esquecer de que o sexo, diferentemente do que os católicos e evangélicos dizem (uma coisa de luxúria, de pecado), é na verdade um ato sagrado. Talvez por isso, por ele ser o poder sexual, os cristãos o comparem com o Demônio.
A origem do mito de associação de Exu com o Diabo vem dos Jesuítas. Quando os escravos estavam fazendo o sincretismo de suas religiões africanas com os Santos Católicos, os Jesuítas desconfiaram que havia alguma coisa errada… nas religiões africanas, não existe a figura do diabo, apenas de deuses com características humanas. Então eles encontraram um símbolo fálico representando o Exu e tiveram a “brilhante ideia” de associar o pênis ereto com o sexo (pecado) com o diabo para completar o panteão católico.
Adicione dois séculos de deturpação católica e (posteriormente) evangélica e temos a imagem do Exu como ela é nos dias de hoje.
Sem falar que normalmente a figura do Senhor Exu é colocada com chifres, rabo, pintado de vermelho, imagem bem parecida com a que os cristãos “desenham” o Diabo… Então, o Exu verdadeiro das religiões africanas nada tem em comum com o diabo lúdico, e as esquisitas estátuas comercializadas e utilizadas arbitrariamente em terreiros são frutos da imaginação de visionários que não enxergam nada além das manifestações dos baixos sentimentos em formas deprimentes, nos seres que lhes são afins.


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25.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 2)

« continuando da parte 1

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, orginalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

Sam: Você vê um elo íntimo entre a magia, a imaginação e a criatividade, uma ideia que foi desenvolvida em Promethea. Conte-nos mais sobre essa conexão.

Alan: Como já foi dito, a minha posição é a de que a arte, a linguagem, a consciência e a magia são todos aspectos do mesmo fenômeno. Com a arte e a magia vistas como quase totalmente intercomunicáveis e conectadas, o reino da imaginação se torna crucial para ambas as práticas.

O reino cabalístico lunar da imaginação é chamado Yesod, que é um termo hebraico que significa "Fundação". Isso sugere que a imaginação é a única fundação sobre a qual nossas funções mentais elevadas estão edificadas e, da mesma forma, por onde podem ser acessadas. A magia, segundo a nossa formulação, parece estar intimamente envolvida com a criatividade e a criação, em quaisquer contextos onde tais termos possam ser usados.

Sam: Promethea já foi descrito como "um passeio cabalístico", e traz uma empolgante visão geral das ciências ocultas. Ele abre a porta para este reino, e parece convidar as pessoas a aprenderem mais sobre ele. Foi esta a sua intenção?

Alan: A minha intenção original com Promethea, um título em que não perco muito tempo pensando hoje em dia, pois não me pertence, foi criar um modelo de história em quadrinho de super-heróis mais imaginativo e elaborado, usando as antigas heroínas do era da ficção pulp [pulp fiction] como meu ponto de partida.

Em uma ou duas edições, eu comecei a perceber como uma personagem desse tipo poderia evoluir para expressar de forma lúcida muitas das ideias que estavam há algum tempo no centro da minha mente e de todo o meu processo criativo.

Sam: Nos capítulos finais da série episódios inteiros foram usados para explorar cada esfera [sephirah] da Árvore da Vida. É verdade que você os escreveu enquanto se encontrava num estado de consciência alterada por rituais e meditações?

Alan: Eu comecei a explorar as esferas inferiores algum tempo antes de iniciar meu trabalho com Promethea. Minhas investigações se valiam tanto de rituais inventados quanto de drogas psicodélicas.

Após certo ponto em meu "passeio cabalístico", eu senti a necessidade de experienciar as esferas mais elevadas, de forma a representá-las de forma autêntica para o leitor. Uma delas, Hokhmah, foi alcançada através dos métodos já mencionados, enquanto para as demais eu decidi testar se a meditação intensa focada na escrita criativa seria suficiente para adentrar tais reinos elevados da consciência e do ser.

Me valendo do critério, "se você não pode imaginar a experiência então provavelmente ainda não alcançou a esfera", eu descobri que realmente poderia investigar todas as esferas superiores, para minha enorme satisfação.

A exceção foi Kether, neste caso eu comi um grande pedaço de haxixe, escrevi as três primeiras páginas da edição e depois praticamente desmaiei.

Sam: Os quadrinhos de Promethea se conectam com o conhecimento esotérico em múltiplas camadas. Para além das palavras e das imagens em si, por exemplo, os episódios que tratam das esferas da Árvore da Vida usam esquemas de cor apropriados para cada um dos reinos visitados. Isso lembra muito o Tarot Ritual da Golden Dawn, que usa as cores das esferas nos elementos simbólicos e no pano de fundo de forma a transmitir bastante informação logo que a carta é observada. O nível de detalhe em Promethea chega a atordoar – tudo isso foi planejado desde o início, ou foi crescendo conforme o título foi sendo escrito?

Alan: Conforme já foi dito, o ímpeto inicial se inclinava muito mais para uma narrativa mais tradicional, e o projeto pareceu evoluir intuitiva e organicamente conforme foi progredindo.

Sobre o assunto dos esquemas de cor cabalísticos, naquela altura eu já havia absorvido a lição de que enquanto os números, joias, plantas, animais, perfumes e divindades eram atributos das diversas esferas, as cores eram basicamente as esferas elas mesmas.

Apesar de na época não estarmos certos de que as várias escalas de cor seriam apropriadas em termos de publicação moderna de quadrinhos, nós decidimos tocar a ideia e, graças ao extraordinário trabalho de Jeremy Cox, formos recompensados com uma bela e envolvente demonstração do poder da atmosfera da decoração cabalística.

Sam: O desenhista, J. H. Williams III, disse que a criação do episódio sobre o Abismo cobrou o seu preço a todos os envolvidos no projeto. Houve outras experiências tão significativas durante o desenvolvimento de Promethea?

Alan: Bem, teve a minha experiência anterior a criação da edição sobre Hokhmah, que ocorreu junto à companhia de Steve Moore numa noite de sexta-feira, em 12 de Abril de 2002, quando estávamos tentando estabelecer se qualquer outra pessoa poderia ver a deusa lunar que ele havia passado cerca de um mês tentando materializar [imaginar], conforme descrevi na minha narrativa psicobiográfica, Unearthing.

O experimento foi não somente um aparente sucesso, como ocorreu no mesmo dia em que uma voz em minha cabeça (estranhamente, minha própria voz, embora dissociada da minha vontade) me disse que eu havia me tornado um mago [Magus], o que, ilusoriamente ou não, eu decidi levar a sério. Eu também recebi uma convicção muito firme de que a edição #32 de Promethea seria a última, e seria construída de alguma forma no formato de um pôster psicodélico.

Após Steve ter ido embora eu escrevi e digitei a edição sobre Hokhmah – foi a #22 ou algo assim – em menos de sete horas de um fluxo característico de energia criativa disforme e espontânea. Ainda não um exemplo de Moorcock em sua melhor forma, mas ainda assim alguma espécie de recorde pessoal.

Desde esse dia a minha vida e as minhas percepções têm sido notadamente diferentes.

Sam: Promethea é a última da longa lista de protagonistas femininas que você criou, desde Halo Jones em 2000AD. O que o atraiu a escrever sobre protagonistas mulheres?

Alan: Não acho que tenha escrito mais histórias com protagonistas femininas do que masculinos. Se parece haver uma preponderância de personagens femininos em minha obra, isso provavelmente nasceu da minha tentativa de abordar a desigualdade entre os gêneros que prevalece em nossa cultura.

Por outro lado, minha série baseada na obra de H. P. Lovecraft, Providence, mal tem quaisquer personagens femininos e, conforme se trata de um trabalho derivado da imaginação de um autor que é notoriamente avesso às mulheres, muitas das que aparecem com o tempo mostram serem monstros apavorantes.

Eu devo destacar que isso se dá por conta da percepção de mundo do Lovecraft, e não da minha.

Sam: No seu ensaio de 2002, Fossil Angels, você sugere que os rituais e a linguagem que circundam a magia conspiraram para manter a maioria das pessoas afastadas. Promethea por acaso foi uma tentativa de romper tais barreiras e despertar as massas para as tradições magísticas?

Alan: Todo o propósito do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels (do qual Promethea é claramente uma parte não-oficial) desde o seu nascimento foi o de expressar as ideias da magia da forma mais bela e lúcida possível.

Em nosso Bumper Book of Magic nós vamos além e demandamos que os magos modernos se posicionem ao centro da sociedade, ao invés de se esconderem em suas margens, se engajando na ciência, na arte, na política, na filosofia e nas questões sociais, assim reconectando a magia com a população em geral, conforme ela foi inicialmente elaborada para servir e iluminar.

» encerra na parte 3

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Crédito da imagem: Montagem do Jovem Nerd (Alan Moore e capas do Promehtea ao fundo)

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24.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 1)

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, originalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

A lenda dos quadrinhos, Alan Moore, é o autor de diversos títulos memoráveis, tais quais Watchmen, A Liga Extraordinária, V de Vingança e Do Inferno. Ele também é um praticante de magia cerimonial e cofundador do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels [O Grande Teatro Egípcio de Maravilhas da Lua e da Serpente]. Alan vê uma conexão íntima entre a magia e a criatividade artística, o que foi explorado na sua série Promethea. Sam Proctor resolveu lhe perguntar mais sobre este assunto...

Sam: Você disse que o seu interesse pela magia foi despertado enquanto pesquisava sobre a história da Maçonaria para compor Do Inferno, e que você anunciou publicamente a sua intenção de se tornar um mago em seu aniversário de 40 anos. Diga-nos mais sobre o que o levou a dar uma guinada tão radical em sua vida.

Alan: Como era de ser esperado, inúmeros fatores entraram na equação para tal decisão. Um deles, que por acaso não teve nenhuma relação com a minha pesquisa sobre a Maçonaria, foi uma linha de diálogo que eu já havia dado ao personagem principal de Do Inferno, afirmando que o lugar em que os deuses indubitavelmente existiam era a mente humana, onde eles eram reais em toda a sua "grandeza e monstruosidade".

Uma reflexão mais aprofundada das implicações desta linha de diálogo que surgiu casualmente na obra me deixou com aparentemente nenhuma forma de refutar tal afirmação, e assim fui obrigado a reajustar toda a minha racionalidade, que anteriormente vivia num ponto de vista muito estreito.

O território até então virgem e inexplorado da magia me pareceu ser a única área do conhecimento humano que poderia me oferecer alguma forma de tentar resolver tais ideias tão novas e intrigantes. Me autodeclarar um mago, com todo o risco de cair em ridículo e perder minha reputação, me pareceu um primeiro passo necessário para ingressar nesta nova identidade de visão radicalmente estendida, e até hoje mantenho a mesma opinião.

É claro que a coragem para dar este salto potencialmente desastroso nas trevas do intelecto foi grandemente facilitado pelo fato de eu estar num pub celebrando o meu aniversário, apreciando um bom jazz, e consideravelmente bêbado.

Sam: Você acredita que a magia pode nos oferecer uma forma de ver, compreender e nos relacionar com o mundo e com nós mesmos que a ciência e a psicologia não podem?

Alan: Em nosso livro por ser publicado, Moon & Serpent Bumper Book of Magic [autoria de Alan Moore e Steve Moore; eles não são parentes], nós consideramos que a consciência (interior), precedida pela linguagem, precedida pela representação (e a arte), eram todos fenômenos que surgiram mais ou menos no mesmo momento da história humana, e todos eles poderiam ser então percebidos como magia, um termo abrangente que abraçava todos os novos conceitos radicais nascidos do descobrimento do nosso mundo interior.

Isso nos permite dar uma definição para a magia como "um noivado com a consciência, uma busca dos significados dos seus fenômenos e possibilidades" [1]. Nós então prosseguimos para arguir que, originalmente, toda a cultura e todo pensamento humano se encontravam submergidos na visão mágica do mundo, e que com o advento das sociedades urbanas e a ascensão das profissões especializadas a magia foi lentamente dissociada das suas funções sociais.

Primeiramente as religiões organizadas a demoveram de sua profundidade espiritual, e então um crescente surgimento de autores, artesãos e artistas a demoveram de seu papel como fonte principal de visão imaginativa. Logo após, vizires e ministros tomaram o papel do xamã como principal conselheiro político da comunidade. Tudo isso deixou a magia com suas funções restantes, embora ainda vitais e frutíferas, de pesquisa alquímica, cura e investigação do mundo interior, até que a Renascença e o advento da Era da Razão delegaram os dois primeiros para os campos emergentes da ciência e da medicina, e finalmente, em torno de 1910, o terceiro foi capturado pela "nova ciência" de Freud e Jung, a psiquiatria.

Nós sugerimos que a totalidade da cultura na qual hoje residimos é nada menos que o cadáver desmembrado da magia (apesar dele ainda ter, de alguma forma, uma aparente capacidade de se comunicar), e que esse processo indubitavelmente necessário é exemplificado pelo princípio alquímico do solve, ou decomposição.

Nossa tese é a de que hoje se faz necessário o processo complementar de coagula, ou síntese, de forma a completarmos tal fórmula tão essencial. Para este fim, nós propomos que a arte e a magia devem ser intimamente reconectadas para o enorme benefício de ambas, conforme já foi dito em meu ensaio Fossil Angels, e o próximo passo deveria ser aprimorarmos o elo já existente entre as artes e as ciências, incluindo a psiquiatria, que eu já chamei um dia, sem nenhuma intenção de desrespeito, de "ocultismo num jaleco".

O passo final, mais importante e problemático, seria o de nutrir a conexão entre a ciência e a política, assegurando que as decisões políticas sejam feitas sob a luz do atual conhecimento científico, se valendo de todos os avanços científicos conquistados em, por exemplo, resoluções de conflitos armados, para o aprimoramento da humanidade como um todo.

Para finalmente responder a sua questão, um dos muitos benefícios que a magia oferece é uma visão de mundo plausível e, acredito eu, racional, onde tanto a ciência quanto a psicologia e todos os demais campos já mencionados podem coexistir conectados novamente a antiga ciência da existência, plena de significado, da qual eles um dia emergiram (Paracelso, praticamente o pai de quase todos os procedimentos modernos da medicina, também foi o primeiro a usar o termo "inconsciente", aproximadamente 400 anos antes da sua subsequente apropriação pela psicologia).

Com a magia, ao menos como nós a definimos, a principal vantagem em termos de relacionamento com o mundo é que ela nos oferece um ponto de vista coerente e sensivelmente integrado para nos relacionarmos com tudo a nossa volta. Da mesma forma, ao contrário de todos os campos e empreendimentos já mencionados, exceto a criatividade artística, a magia é inteiramente centrada nos princípios do êxtase e da transformação, coisas que cremos ser o alicerce das experiências humanas, e que se encontram totalmente deficientes na sociedade contemporânea.

Sam: Você disse um dia que ouviu falar que Einstein mantinha uma cópia de A Doutrina Secreta, de H. P. Blavatsky, aberta em sua escrivaninha. Ele trabalhou de forma bastante imaginativa e já afirmou que alcançou suas teorias primeiramente através da visualização (mental). Por acaso há uma barreira entre a ciência material e a oculta que precisa cair para o benefício da corrente principal da ciência [mainstream science]?

Alan: Einstein nós dá um bom exemplo. Ele afirmava que recebeu a inspiração para o seu trabalho com a relatividade durante uma espécie de sonho lúcido [daydream] onde ele imaginou a si mesmo correndo lado a lado com um faixo de luz. James Watson, que descobriu a molécula do DNA juntamente com Francis Crick, dizia que deduziu a sua estrutura através da lembrança de um sonho com escadas espiraladas.

Sir Isaac Newton foi um alquimista que incluiu o índigo no espectro de cores em acordo com a simpatia alquímica pelo número sete.

Nós poderíamos dizer que quando a ciência e a magia foram primeiramente separadas, cada uma delas perdeu algo vital: a ciência abandonou a sua capacidade de se relatar com qualquer espécie de mundo interior, enquanto a magia de certa forma pareceu haver perdido muito da sua capacidade de discriminação e análise intelectual. Conforme já foi dito, a reintegração dessas áreas divorciadas da cultura humana poderia ser, eu intuo, um imenso ganho para todas as partes envolvidas.

» continua na parte 2

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[1] Este trecho traz diversas possibilidades de tradução, e eu optei provavelmente pela mais poética e arriscada. No original, "magic as a purposeful engagement with the phenomena and possibilities of consciousness", temos o termo "engagement" que pode significar "compromisso", "engajamento", "noivado", e até mesmo "batalha". Portanto, uma tradução mais sóbria desta definição tão essencial para a compreensão do pensamento de Moore seria algo como "magia como um engajamento intencional com o fenômeno e as possibilidades da consciência".

Crédito da foto: Joe Brown (Alan Moore)

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12.8.14

Conectados, parte 4

« continuando da parte 3

Direitos autorais ou direitos de autor são as denominações empregadas em referência ao rol de direitos dos autores sobre suas obras intelectuais, sejam estas literárias, artísticas ou científicas. Já o copyright trata exclusivamente dos direitos de cópia e distribuição das obras.


O homem do amanhã

“Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.”

Aaron Swartz contava 22 anos de vida quando conseguiu resumir, com as palavras acima, o seu objetivo de vida. Parecem palavras de um sujeito um tanto experiente não? De fato, nesta idade Aaron já era considerado um expert em sua área.

Desde os 14 anos, ele trabalhava criando ferramentas, programas e organizações na Web. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Por exemplo, ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento acima, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

Aaron era um grande entusiasta da livre distribuição de todo tipo de obra em domínio público – literária, artística e, principalmente, científica. Uma obra entra em domínio público após uma certa quantidade de anos desde a morte do autor original. Isto significa que qualquer pessoa pode utilizar a obra do autor como quiser, inclusive escrever novas histórias com os seus personagens. Por exemplo, qualquer pessoa pode editar um livro com poemas de Fernando Pessoa e publicá-lo (não a toa, vemos tantas editoras publicando coletâneas de Pessoa hoje em dia) [1]; da mesma forma, qualquer pessoa pode escrever uma história com o personagem Sherlock Holmes, criação de Sir Arthur Conan Doyle (não a toa, vemos surgir tantos filmes e livros onde Holmes reaparece um tanto quanto “repaginado”) [2].

A maior parte dos países do mundo define o início do domínio público quando passados exatamente 70 anos da morte do autor das obras e personagens originais. Alguns países contam somente 50 anos, poucos outros contam até um século, e nos EUA... Bem, nos EUA é mais complicado...

No caso americano, qualquer obra publicada antes de 1923 está em domínio público desde 1998, independente da data da morte do autor original (mesmo que ele ainda se encontre vivo!); já o que foi publicado após 1923 pode estar em domínio público até 70 anos após a publicação original. Isto, em teoria, pois para “casos específicos”, como o famoso Mickey Mouse da Disney, este prazo pode ser prorrogado indefinidamente – o ratinho, que cairia em domínio público em 2003, ganhou uma sobrevida no cativeiro por mais 20 anos, mas nada impede que a Disney não vença outra batalha judicial para prorrogar novamente este prazo, em 2023.

Na verdade, é bem provável que os personagens da Disney, assim como boa parte dos super-heróis dos quadrinhos, como Superman e Homem-Aranha, jamais entrem em domínio público. Isto não deixa de ser um tanto quanto curioso, pois no universo dos personagens citados, vemos muitos outros personagens diretamente inspirados em contos de fadas e mitos, alguns dos quais não foram publicados há tanto tempo assim... Walt Disney nasceu cerca de um quarto de século após a morte de Hans Christian Andersen, célebre escritor de fábulas dinamarquês. Se a entrada em domínio público pudesse ser constantemente prorrogada desde aquela época, ou desde 500 anos atrás, ou desde o início da escrita, até hoje editoras como a Marvel deveriam montantes de dinheiro pelo uso de personagens como Thor ou Hércules. Difícil seria dizer a quem eles seriam pagos...

A própria Wikipedia só existe por causa do chamado copyleft, uma brincadeira (que se tornou séria) com o termo copyright. O copyleft significa liberdade para copiar, distribuir e modificar uma obra, desde que tudo que for agregado ao seu conteúdo também continue da mesma forma livre. A ideia surgiu mais ou menos assim: no início da década de 1980, um programador chamado Richard Stallman, indignado com a decisão da AT&T de proibir acesso amplo ao sistema operacional Unix, resolveu ele próprio escrever um sistema operacional e garantir que ele continuasse aberto, podendo ser modificado, copiado e redistribuído, desde que as pessoas que o modificassem subsequentemente também o mantivessem livre.

Nascia assim o sistema operacional chamado GNU, que veio a gerar o Linux. A grande peculiaridade desse sistema é que a colossal tarefa de desenvolvê-lo é distribuída entre colaboradores de todo o mundo, que, tal como a Wikipedia, testam, aperfeiçoam e modificam o software, desde que ele permaneça aberto. O copyleft representa uma flexibilização, feita de baixo para cima, da ideia de direito autoral que herdamos do século 19.

Até hoje em boa parte do mundo qualquer obra, mesmo um rabisco num guardanapo, já nasce legalmente com “todos os direitos reservados ao autor”. Foi precisamente a compreensão da necessidade de viabilizar uma distribuição mais simples do conteúdo autoral na era da internet que fez com que Aaron Swartz se dedicasse não somente ao desenvolvimento do conceito de Creative Commons, onde qualquer pessoa pode declarar previamente que a sua obra pode ser distribuída sob certas condições [3], como a muitas outras ideias que, infelizmente, dispararam um enorme sinal de alerta entre os agentes da estagnação e das ideias fossilizadas.

Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, e o contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. Aaron seria julgado em Abril de 2013. Se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

O julgamento, entretanto, nunca ocorreu. Em 11/01/2013 Aaron foi encontrado morto em seu apartamento em Nova York, aos 26 anos. A causa mais provável é o suicídio... Há argumentos de que ele sofria de depressão, mas não há como deixar de considerar que o que o levou a morte foi, direta ou indiretamente, a grande perseguição que sofreu das forças da estagnação.

“O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”, declarou Kevin Poulsen em artigo da Wired Magazine. Para o mundo da computação, da colaboração, do livre pensamento e do compartilhamento do conhecimento que é produzido para toda a humanidade, particularmente o científico, a perda de Aaron, mais um dos que vieram da Mansão do Amanhã, é irreparável.

Mas para o mundo do deus do consumo, dos grandes contratos de copyright, dos grandes conglomerados de mídia, e para todos aqueles que se deleitam em continuar atolados em seu Charco de Estagnação, a eliminação de Aaron do tabuleiro é uma jogada a ser comemorada.

Alguém aí pode ouvir suas gargalhadas e o brinde das champanhes?


Aaron está morto. Andarilhos deste mundo louco, nós perdemos um mentor, um sábio ancião. Hackers do bem, hoje somos um a menos. Educadores, instigadores, cuidadores, ouvintes, todos os pais aí fora, nós perdemos um filho. Deixemos que as lágrimas escorram. (Tim Barners-Lee, 11/01/13)


» Em seguida, a vida sem o botão de pausa...

***

» Veja também o site criado pelos parentes de Aaron em sua memória e o excelente artigo de Eliane Brum sobre a sua morte (do qual retirei alguns trechos).

» The Internet's Own Boy: The Story of Aaron Swartz (documentário sobre a vida de Aaron realizado via crowdfunding; ainda sem legendas em português)

[1] Toda a obra de Pessoa entrou em domínio público em 30/11/2005, 70 anos após sua morte.

[2] Como veremos no restante do artigo, nem sempre é simples definir quando uma obra entra ou sai do domínio público nos EUA. Até o momento, pelo menos, Holmes continua público.

[3] O meu blog, Textos para Reflexão, está dentro do Creative Commons, como podem ver no rodapé de todas as páginas. Qualquer conteúdo publicado aqui pode ser livremente distribuído, desde que o a fonte original seja citada, o conteúdo não seja modificado, e que o uso não seja comercial.

Crédito das imagens: [topo] Wired Magazine (Aaron Swartz); [ao longo] Brooks.

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5.9.13

Uma breve história dos deuses

Há muitos que são ateus para a Deusa Mãe;
Há muitos que são ateus para os deuses do antigo Egito;
Há muitos que são ateus para os deuses da antiga Grécia;
Há muitos que são ateus até mesmo para Nosso Senhor Jesus Cristo;
Mas me diga, ó príncipe: quem, quem será ateu para o Deus do Consumo?


***

Crédito da arte: Eduardo Salles - Cinismoilustrado.com

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14.9.12

Conversa Alheia: Guerra Fria, Propaganda, Capitão América e Crenças

Com vocês, mais um episódio do Conversa Alheia, onde alguns blogueiros e livres-pensadores falam sobre o que quer que lhes venha a mente...

Episódio #4: Guerra Fria, Propaganda, Capitão América e Crenças.
Igor Teo, Rodrigo Ferreira, Raph Arrais e Josinei Lopes falam sobre a obsolescência programada, honram a Mãe Rússia e falam de um herói que representa (ou não) uma nação. E alguém divaga...

Citado no programa:
A lâmpada centenária (sobre a obsolescência programada)

***

» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube

» Para baixar os vídeos do YouTube, você pode usar o complemento Ant Video Downloader (para Firefox)


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6.9.12

Conversa Alheia: Loucura, Sociedade, Coringa e Batman

Com vocês, mais um episódio do Conversa Alheia, onde alguns blogueiros e livres-pensadores falam sobre o que quer que lhes venha a mente...

Episódio #3: Loucura, Sociedade, Coringa e Batman.
Igor Teo, Rodrigo Ferreira, Raph Arrais e Josinei Lopes conversam sobre o papel da cultura na sociedade, a neurose urbana e a loucura do vilão Coringa na história do Batman.

Citado no programa:
Pirâmide de Maslow
De médicos e loucos (da série Para ser um médium)
Batman: A piada mortal

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» Ouça aos demais episódios no canal do Conversa Alheia no YouTube

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Ouça também esta parte dos "bastidores" deste episódio, onde eu falo sobre John Nash (o matemático esquizofrênico e prêmio Nobel) e a mediunidade:


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7.7.12

Parker

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...


Acabei de ver o novo filme de Peter Parker.

Para quem não sabe, Peter Parker é o Homem-Aranha. Mas o que todo mundo está comentando é sobre o reinício da série de filmes no cinema: “Como assim, não é o Homem-Aranha 4? É outro ator? Vão contar a história toda outra vez? Para que?”.

Tudo bem, talvez tenham relançado a “nova franquia” cedo demais; Em essência, no entanto, estão apenas seguindo a mitologia do Homem-Aranha: as histórias mitológicas estão sendo recontadas há milênios, e Parker é apenas mais um herói, mais um mito...

Nas noites estreladas de outrora, em torno das fogueiras, nas tavernas vikings, nas baladas medievais, os mitos não eram vistos por espectadores passivos através de uma projeção de cinema, mas ainda tanto melhor: eram imaginados, vivenciados e, por vezes, incorporados.

A melhor cena do filme pode ter passado desapercebida – não é central a história do filme em si, mas sim uma referência ao mito de Parker, o jovem herói com grandes responsabilidades... Nela, um garotinho precisa fugir de um carro suspenso pela teia do Aranha, mas sem poder contar com sua ajuda, já que o herói está a sustentar o carro no ar, evitando que caia de uma ponte. Parker retira a máscara e joga para o garoto: “Vá, ponha a máscara; Ela te transforma num herói, com ela não precisará ter medo”. No fim, claro, o garoto consegue alcançar o Aranha, é salvo, e Parker recoloca a máscara. Metalinguagem?

O cético não crê em deuses e antigos mitos: “É tudo mentira!”. Mas o cético pode ser um grande fã do Homem-Aranha: “Sei que não existe, mas eu amo o Peter Parker... As vezes me sinto como se fosse um herói como ele”. Ironia da ironia – por vezes é o cético quem melhor vivencia o mito, quem faz dele uma verdadeira religião sem dogmas... Como os homens de outrora.

Para não sair das histórias em quadrinhos, foi Alan Moore quem alertou [1]: “A maioria das pessoas tem pavor da responsabilidade de cuidar da própria alma”... Grandes poderes, grandes responsabilidades!

Todos temos o maior dos poderes: a vontade. O Homem-Aranha é rápido, ágil, escala paredes e têm um sentido que lhe alerta do perigo – mas foi Peter Parker quem teve a vontade de ser um herói.

Outro grande herói, bem mais antigo, nos disse algo bem parecido com isso: “Sois heróis! Dia virá que farão tudo que tenho feito, e ainda muito mais!”

Em nossa mente, em nossa alma, um lagarto monstruoso está na espreita, esgueirando-se pelo esgoto de nossa metrópole de pensamentos...

Mas não é o Homem-Aranha quem virá nos socorrer – nós somos o herói, nós somos Parker... “O que está esperando aí? Trate de saltar pela janela, para dentro de si mesmo, e caçar o seu lagarto!”

***

[1] Em The Mindscape of Alan Moore.

Crédito da imagem: Divulgação (O Espetacular Homem-Aranha, 2012)

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20.5.12

Os corvos de Wotan, parte 1

A chamada tradição oral é a preservação de histórias, lendas, usos e costumes através da fala. Origina-se do primórdio da história humana, quando ainda não havia a escrita e os materiais que pudessem manter e circular os registros históricos. Na atualidade própria das classes iletradas, a tradição oral tem sido, contudo, muito valorizada pelos eruditos que se dedicam ao seu estudo e compilação (as baladas da Edda Poética, por exemplo), ao considerarem que é na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Supõe-se, por exemplo, que a Ilíada e a Odisseia de Homero foram inicialmente, assim como as Eddas, longos poemas recitados de memória.

Joseph Campbell gostava de dizer que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Esse aparente paradoxo pode ser reconciliado se entendermos a tradição oral, mãe da mitologia, como a melhor forma com a qual o espírito humano pôde passar adiante suas experiências no contato com a essência das coisas, com o que há de eterno no mundo. Dessa forma, todas as variantes de um mesmo mito são, no fundo, uma mesma história. E toda mitologia é, no fundo, uma mesma mitologia, uma mitologia do espírito humano.

Mas hoje não vivemos mais em tribos e aldeias, e nem todos necessitam decorar tais histórias antigas. Além disso, não são os xamãs nem os anciãos quem nos passam os mitos, mas alguns poucos textos sagrados de outrora, que até hoje inspiram inúmeras variações na mente dos contadores de histórias modernos – a quem conhecemos, principalmente, como artistas. Existem mitos sendo recontados em todos os cantos: nos livros de vampiros adolescentes, nos filmes de Hollywood, nas séries de TV de fantasia, e até mesmo num gibi.

O deus que usarei como exemplo de referência neste artigo é hoje um conhecido personagem de histórias em quadrinhos da Marvel. Se você já leu algum gibi, ou viu algum filme recente, de seu filho, certamente o conhece: Odin (ou Wotan, ou Wôdan, variantes hoje menos conhecidas, mas que vieram do original germânico), é o Senhor de Asgard e pai de Thor, o heroico deus do trovão. Você pode achar que não há nada de muito profundo a se falar sobre um velho deus-herói-caçador aposentado que hoje se limita a governar uma cidade mítica, e talvez tivesse razão se considerarmos apenas a forma extremamente diluída deste mito que nos chegou aos dias atuais como um mero personagem de quadrinhos... Mas, não que eu esteja condenando Stan Lee e Jack Kirby, pelo contrário: apesar de terem “diluído” o mito, eles fizeram por ele bem mais do que o cristianismo, que por muitos séculos demonizou o grande deus dos povos nórdicos europeus, a fim de substituí-lo por sua versão bíblica.

Mas, o que exatamente eu quero dizer pelo mito de Odin, será que me refiro a uma entidade sobrenatural real? Bem, com todo o respeito à Freternidade de Odin [1], não é exatamente isso que quero dizer... É óbvio que não existe, na natureza terrestre pelo menos, um homem caolho a cavalgar os céus montado num cavalo de oito patas; mas, por outro lado, a iconografia de Odin é toda ela um imenso conjunto de símbolos, símbolos estes que existem e sempre existirão, ao menos enquanto existirem mentes com vontade de pensar sobre eles.

Os símbolos nada mais são do que imensas quantidades de informação reduzidas a uma única imagem ou história fantástica ou ícone que funcionam como uma chave mental para o acesso dessas informações e sensações, desde que a pessoa saiba, em seu pensamento, como usar esta chave de uma forma consciente. Você pode perfeitamente substituir a imagem (o símbolo) de Odin por uma série de palavras (formadas por conjuntos de símbolos – as letras do alfabeto) a formar uma extensa lista: sabedoria, fúria, excitação, guerra, caçada, mente, magia, poesia, escrita rúnica, etc. É claro que, dependendo da interpretação de cada pessoa, e de cada tradição folclórica, essa lista pode variar imensamente, mas não absolutamente. Odin é um conjunto de símbolos, ele serve para que acessemos tais ideias em nosso pensamento, sentimento e intuição, de forma simplificada e cada vez mais potente (o hábito faz o monge).

O grande problema do “uso dos mitos” é quando os entendemos como seres literais (e não metáforas), dispostos a barganhar conosco em troca de “favores espirituais”, “boa sorte”, “boa saúde”, etc. Isso é um problema porque, exatamente, a grande vantagem dos mitos é poder ativar a nossa vontade para que nós mesmos busquemos tais objetivos, que nós mesmos nos tornemos heróis a vivenciar a grande aventura da vida, que nós mesmos nos tornemos, enfim, deuses (“sois deuses, farão tudo o que faço e ainda muito mais” – disse o grande rabi da Galileia [2]).

Mas, retornando a Odin: é verdade que o que sabemos hoje sobre o seu mito é extensivamente baseado na Edda Poética, um grandioso conjunto de poemas vindos diretamente dos mitos dos povos nórdicos antigos da Europa, e que foi preservado no Codex Regius (“Livro Real”), um códice islandês que provavelmente foi escrito em cerca de 1270 d.C., mas que só se tornou “conhecido na modernidade” quando um bispo o encontrou na Islândia e o enviou como presente ao então rei da Dinamarca, em 1662. A Edda então permaneceu na Biblioteca Real de Copenhagen até 1971, quando foi escoltada por militares por terra e mar (um acidente aéreo poderia a danificar permanentemente), de volta a capital da Islândia, Reykjavík. Lá ela permanece até hoje, como uma legítima relíquia que guardou praticamente sozinha aos séculos da cultura de um povo, e impediu que seus mitos de diluíssem até não mais existirem.

O que os versos da Edda nos trazem, entretanto, são baladas e cânticos bardos de épocas ainda muito mais remotas... Diz-se que Odin já era conhecido desde os primórdios da língua protogermânica, que durou de 500 a.C. há 500 d.C., e que formou a base de diversos idiomas atuais, como o inglês, o escocês, o alemão, o dinamarquês, o norueguês e o islandês, dentre outras. De fato, Odin é tido como o grande responsável por trazer aos homens o conhecimento das runas, a base da escrita germânica antiga, do mundo espiritual (falaremos mais sobre isso na sequência). Ora, como as runas mais antigas encontradas datam dos séculos I e II d.C., podemos dizer que o mito de Odin era tão antigo quanto elas... Mas, talvez seja ainda muito mais antigo do que isso. Porém, como teremos certeza?

Certeza nós jamais teremos, pois a história não é somente uma mera reconstrução moderna dos tempos de outrora: mas uma reconstrução criada primordialmente pelos povos e países vencedores das guerras e dos embates dentre crenças religiosas... O Odin que conhecemos hoje é um Odin sobrevivente aos séculos de domínio romano e cristão, e é mesmo quase um milagre que ele tenha sobrevivido. Apesar das extensivas campanhas de demonização feitas pelos ditos cristãos, o mito mostrou-se persistente: Odin ainda cavalga pelos céus, pelas películas de cinema e pelas histórias em quadrinhos.

Dito isso, é preciso deixar claro que a própria natureza do mito é a de se transformar continuamente, preservando-se apenas sua essência, aquilo que está fora do tempo, e sobrevive exatamente por nos tocar a alma, por ser eterno... Portanto, e interpretação que mais conta é a atual; e, além disso: é a nossa interpretação. Porque os mitos que nos são despejados como dogmas pré-estabelecidos por pretensas figuras de autoridade não são muito mais do que propaganda enganosa. O que nos importa, o que sempre importou, é identificar a essência, a verdade guardada em inúmeras metáforas, percebida sabe-se lá por qual ancestral selvagem em meio ao inverno europeu, e que, espantosamente, ainda está aqui, ainda nos toca a alma, ainda é capaz de nos elevar a estados de consciência que nem sabíamos que existiam.

O que falarei a seguir, portanto, é da minha interpretação do mito de Odin. Baseada num estudo das inúmeras histórias que ainda se contam dele, é claro; mas, não obstante, minha interpretação. Sinta-se a vontade para questioná-la, interpretá-la, vivenciá-la, pois é isso o que os mitos nos pedem...

» Na próxima parte: Odin, seus lobos e seus disfarces...

***

[1] Sociedade secreta neopagã que até os dias atuais celebra os ritos antigos relacionados à Odin e a outros elementos da mitologia nórdica. Segundo eles, “Odin não é um arquétipo psicológico ou uma metáfora para referência as forças naturais, mas uma entidade real”. Eles também são “politeístas a fundo”, e ao contrário de outros politeístas que na realidade compreendem aos deuses como emanações de um único Deus Primordial (o que no caso faria de Odin o Deus, e Thor, por exemplo, um de seus Arcanjos ou Profetas, se formos fazer uma [má] comparação com o catolicismo), para eles não há nenhuma lógica em crer que uma única entidade emana toda a realidade conhecida de si própria. Bem, provavelmente eles nunca leram Espinosa... Por outro lado, existe sempre a possibilidade de terem inventado essa história com o propósito de afastar curiosos indesejados.

[2] João 10:34; João 14:12 (NT).

***

Crédito da imagem: Action figure por Randy Bowen (para a Marvel Comics)

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24.6.11

Rolando poliedros

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).

A chamada tradição oral é a preservação de histórias, lendas, usos e costumes através da fala. Origina-se do primórdio da história humana, quando ainda não havia a escrita e os materiais que pudessem manter e circular os registros históricos. Na atualidade própria das classes iletradas, a tradição oral tem sido, contudo, muito valorizada pelos eruditos que se dedicam ao seu estudo e compilação (os contos dos Irmãos Grimm, por exemplo), ao considerarem que é na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Supõe-se, por exemplo, que a Ilíada e a Odisseia de Homero foram, inicialmente, longos poemas recitados de memória.

Joseph Campbell gostava de dizer que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Esse aparente paradoxo pode ser reconciliado se entendermos a tradição oral, mãe da mitologia, como a melhor forma com a qual o espírito humano pôde passar adiante suas experiências no contato com a essência das coisas, com o que há de eterno no mundo. Dessa forma, todas as variantes de um mesmo mito são, no fundo, uma mesma história. E toda mitologia é, no fundo, uma mesma mitologia, uma mitologia do espírito humano.

Mas hoje não vivemos mais em tribos e aldeias, e nem todos necessitam decorar tais histórias antigas. Além disso, não são os xamãs nem os anciãos quem nos passam os mitos, mas alguns poucos textos sagrados de outrora, que até hoje inspiram inúmeras variações na mente dos contadores de histórias modernos – a quem conhecemos, principalmente, como artistas. Existem mitos sendo recontados em todos os cantos: nos livros de vampiros adolescentes, nos filmes de Hollywood, nas séries de TV de fantasia, e até mesmo num gibi.

Desde pequeno eu fui imediatamente atraído pela mitologia dos super-heróis do século passado. E o meu predileto é Steve Rogers, o Capitão América, que era fisicamente fraco, mas ao passar pelo processo “mágico” do projeto do supersoldado, tornou-se um ser sobre-humano. No entanto, a maior força de Steve sempre foi sua honra e sua ética, sua compaixão pelos fracos – tão fracos e indefesos como ele fora um dia. Ora, essa história é um mito, e esse mito nada tem a ver com os Estados Unidos da América. Steve calhou de ter sido criado durante a Segunda Guerra, por quadrinistas americanos, e por isso serviu como um elemento patriótico na luta contra o nazismo. Mas a guerra acabou. As guerras passam, os mitos permanecem.

Por isso os heróis das histórias precisam continuar lutando suas guerras, e vivenciando suas aventuras e jornadas de heróis – tais histórias podem hoje terem se tornado superficiais, mitos “diluídos” em uma sociedade que em sua maior parte se esqueceu da espiritualidade antiga... Mas ainda continuam narrando, em essência, aquilo que está fora do tempo. Continuam se tratando de jornadas espirituais. Mesmo que não saibamos, estamos até os dias de hoje vivenciando a mitologia, apenas uma mitologia moderna, que nos chega através de gibis e filmes 3D, e não pela boca de um contador de histórias, próximo à fogueira no centro da aldeia, numa noite de céu estrelado – salpicado de super-heróis.

Essa festa pode não ter nada de aparentemente estranha, mas isso é porque poucos interagem com os mitos. As histórias contadas da maneira antiga serviam principalmente para que cada homem e cada mulher se imaginassem como o herói ou heroína através de sua jornada. Não era algo para se ouvir e simplesmente decorar. Era algo para se ouvir, imaginar, experimentar, modificar, e só então passar adiante... Obviamente que as histórias foram alteradas, e seria estranho que não fossem. Mas, ainda mais estranho, é que tenham chegado aos dias atuais com sua essência inalterada – eis que são diversos modos de se abordar um mesmo mito, e o mito não se altera, pois sua essência reside fora deste mundo.

J. R. R. Tolkien foi um filólogo e escritor britânico que desde cedo se ressentiu do fato da maior parte da mitologia inglesa ter se perdido com o tempo. Ele decidiu resolver o problema criando uma nova mitologia inglesa. Claro que de nova ela não tinha nada, pois que todos os mitos são tão antigos quanto à humanidade, mas era uma mitologia moderna, uma mitologia que cativou seguidores em todo o mundo... Só para terem uma ideia, existem grupos que se reúnem para falar em quenya, um idioma fictício que existe apenas nas obras de Tolkien. Esses estão literalmente “entrando na história”, vivenciando o mito.

Mas foi através de Gary Gygax que encontramos uma forma totalmente inesperada de vivenciar mitos. Em 1974 ele adaptou, junto com seu amigo Dave Arneson, um jogo de guerra baseado no movimento de miniaturas em um tabuleiro. O tabuleiro passou a ser irrelevante, as partidas passaram a ocorrer principalmente na imaginação dos jogadores, e todos se tornaram contadores de histórias – novamente. No jogo de Gygax, o primeiro Role Playing Game da história (“Jogo de Interpretação de Personagens”), heróis enfrentavam jornadas épicas e aventuras sem fim, adentrando masmorras obscuras como labirintos de minotauros, e digladiando-se com dragões e outros seres mitológicos... Cabia ao jogador designado como mestre do jogo, um novo xamã da tribo, determinar o desenrolar da história – mas todas as escolhas dos heróis eram feitas por eles próprios, os jogadores. Todos estavam vivenciando a jornada.

Os resultados se suas ações eram determinados pelo resultado obtido em se arremessar poliedros regulares na mesa. Os famosos sólidos de Platão e Pitágoras continuavam a ser sagrados – são os rolamentos dos dados de 4, 6, 8, 12 e 20 faces que decidem o destino dos heróis (bem, existe também o dado de 10 faces, embora este não seja um poliedro regular). Todo jogo de RPG tem alguma coisa de experiência religiosa, mas foi só muito tempo depois de ter jogado a primeira vez, com cerca de 11 anos de idade, que me apercebi disso.

Cheguei a criar meu próprio mundo de fantasia e cenário de RPG. A mitologia moderna me atraiu, e não poderia ter sido de outra forma. Hoje compreendo: aquele jogo tão distinto, onde o tabuleiro existia principalmente em nossa mente, foi talvez a minha primeira festa estranha.

E, se não lhes pareceu suficientemente estranha, gostaria de lembrar brevemente que quando um personagem com o qual jogamos RPG eventualmente morre na história, podemos ser ressuscitados por feitiços, mas também podemos ter de criar um novo personagem. E, não importa se este novo é um guerreiro ou ladrão, enquanto o antigo era um clérigo ou mago, nosso entendimento do jogo se desenvolveu, nosso potencial para jogar e interpretar cada vez melhor é hoje maior do que ontem. E, se tivermos de começar uma vez mais do nível 1, não significa que tenhamos perdido a experiência de um dia termos chegado, quem sabe, a um nível 13 ou 14... Um dia chegaremos finalmente ao nível 20, e depois quem sabe a semi-deuses, e depois a algum nível que nem mesmo Gygax descreveu nas regras. E teremos de criar novas regras nós mesmos.

Assim também ocorre com o espírito. Esta vida é meu mais novo personagem, e sinceramente não sei mais em que nível eu estou...

***

Crédito da foto: Jason Thompson

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13.11.09

Poesia em quadrinhos

Ao lado temos um belo exemplo de como poesia também pode ser feita em pequenas tiras de arte seqüêncial, mais conhecida como quadrinhos. Clique na imagem para vê-la em tamanho maior.

Créditos e textos abaixo

Primeira tirinha:
Crédito: Do veterano quadrinista Laerte.
Texto: Vinha lendo, distraido, quando, de repente... (...) Era o mundo.

Segunda tirinha:
Crédito: Por João, o mais jovem quadrinista brasileiro.
Texto: Eu sou o Rei do Mundo!!! (...) Socorro!!!

Terceira e última tirinha:
Crédito: Do genial André Dahmer, nem sempre tão malvado assim.
Texto: "A coragem do primeiro pássaro" - No final das contas, somos todos sobreviventes de nós mesmos / Lá nas prisões do finito, ousar ser eterno: amor como atalho e labirinto / Mas se você não está morto, sonhará porto por perto / Anoiteça o que anoitecer, coração aberto

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17.12.08

Arte, Magia e Moore

Alan Moore é um dos responsáveis pelos quadrinhos americanos terem se "elevado" a um patamar onde são realmente considerados como arte pela maior parte do público. Os estúdios de Hollywood deveriam enviar a ele parte de sua renda com filmes de super-heróis todo ano, muito embora ele provavelmente se recusaria a receber, como se recusou a ter seu nome nos créditos de filmes baseados em suas obras-primas, como "V de Vingança" e "Watchmen" (e obviamente não recebeu nada por eles).

O interessante é que o Alan Moore real é muito, mas muito mas estranho e enigmático do que qualquer um de seus personagens. Por exemplo, ele se declara um mago, e pela forma como define a relação da Magia com a Arte, não poderemos dizer que não tem razão...

"A Arte é, como a Magia, a ciência de se manipular símbolos, palavras ou imagens para se alcançar estados alterados de consciência."
Alan Moore

***

Esse vídeo é parte do documentário "The Mindscape of Alan Moore", que pode ser visto na íntegra abaixo, com legendas em português (tradução por Patrick Berlinck):

Vale a pena vê-lo inteiro, mas é somente lá pela metade final que ele fala especificamente de ocultismo e magia.

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