George Orwell é um fenômeno. Juntas, as suas principais obras, A Revolução dos Bichos e 1984 (publicadas, respectivamente, em 1945 e 1949 [1]), venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX. Uma grande parte da fama de tais livros se deve a maneira como o escritor britânico soube mesclar a literatura com a crítica política. Ou, como ele mesmo descreveu:
Quando eu me sento para escrever um livro, eu não digo a mim mesmo que vou produzir uma obra de arte. Eu escrevo porque há alguma mentira que eu quero expor, algum fato para o qual quero chamar atenção, e minha preocupação inicial é conseguir ser lido por uma boa audiência.
Lançadas nos últimos anos de sua vida, tais obras se destacaram pela coragem com que Orwell atacou o totalitarismo, particularmente o stalinismo e o fascismo, em uma época onde boa parte dos regimes criticados ainda estava em plena operação. Apesar de ter atacado o comunismo russo (ou o que ele se transformou), Orwell também nutria clara simpatia pelo socialismo. Isso, por si só, explica como até os dias de hoje qualquer menção a sua obra suscita as mais acaloradas discussões nas redes sociais: os simpatizantes da direita dizendo que ele na verdade nunca foi socialista, e que dedicou-se somente a criticar a esquerda autoritária; os simpatizantes da esquerda afirmando que, pelo contrário, ele sempre foi socialista, e suas críticas na verdade se direcionavam mais ao fascismo, ao totalitarismo de direita, do que ao stalinismo e outros regimes de esquerda que assassinaram a democracia [2].
Qual deles tem razão? Para tentar responder essa pergunta, é preciso voltar no tempo, conferir as obras e ensaios anteriores, onde ele esteve morando, quais guerras lutou, enfim: tentar entender melhor o que fez de Orwell o que ele é até hoje, um mito da literatura.
Para compreender sua importância, temos de tentar entender o que ele amava, e o que odiava. Contra o que ele se rebelou, e o que ele exaltou. É isso que nos dará a chave para a compreensão da sua obra. Orwell sempre odiou o grupo social do qual ele mesmo era, apesar dos pesares, um membro exemplar: os intelectuais. Desde cedo, ele quis ser um escritor, mas sempre se destacou em nunca realmente se encaixar em emprego algum. Ele nasceu em 1903, na Índia, que era na época uma parte do Império Britânico, mas foi enviado ainda criança para a Inglaterra, onde cresceu sem muita presença do pai, um funcionário público que atuava na colônia indiana. Era filho de pais em frágil situação econômica, que lutaram duro para que ele tivesse uma clássica educação inglesa de classe média, e esperavam que ele pudesse se tornar um médico ou um advogado. Orwell acabou conseguindo uma bolsa para estudar em Eton, um colégio tradicional de Berkshire (onde teve aulas de francês com Aldous Huxley), mas nunca teve notas boas o suficiente para tentar bolsas em grandes universidades. Mais tarde, decidiu servir como policial imperial na Birmânia (atual Mianmar), onde pôde conhecer mais da cultura do Oriente, e de como se estruturavam e funcionavam um império colonial e suas colônias. Ao retornar à Inglaterra, passou a se dedicar com mais afinco à escrita, e construiu uma carreira como jornalista e ensaísta político.
A geração de intelectuais da qual Orwell fazia parte, que havia testemunhado a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão, estava obcecada por novas doutrinas grandes e abstratas para redimir a humanidade. Alguns eram comunistas fanáticos, outros firmes defensores do capitalismo radical, e alguns estavam admirados com os novos regimes autoritários da Itália, Espanha e Alemanha, e queriam algo semelhante para a Inglaterra. Orwell ouviu, e foi por um breve período seduzido por algumas dessas doutrinas. Mas ele gradualmente veio a defender algo muito mais radical: os gostos, as opiniões, as necessidades e as perspectivas de alguém que ele chamou de “a pessoa comum”.
A jornada de Orwell na vida comum começou na primavera de 1928, quando ele deixou os privilégios de sua classe para trás, e passou a trabalhar em uma série de serviços braçais, nas capitais francesa e inglesa. Experiências que ele estava para contar em seu livro, Na pior em Paris e Londres (1933). Em outro livro narrando suas viagens ao redor da indústria de mineração de carvão, no norte da Inglaterra, O caminho para Wigan Pier (1937), Orwell lança um olhar generoso e complexo sobre as pessoas que conheceu. Sua experiência com a vida das pessoas comuns e ordinárias, em geral as grandes vítimas das guerras e dos regimes ditatoriais, explica em boa parte a profundidade de suas obras mais conhecidas.
E, se Orwell podia falar com propriedade da vida comum, também sabia o que era uma guerra em primeira mão! Juntou-se ao POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), uma milícia de marxistas revolucionários não-stalinistas, na luta contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler, na Guerra Civil Espanhola. Foi ferido no pescoço. Uma bala danificou suas cordas vocais, saindo pelas costas, e desde então sua voz ficou ligeiramente inaudível. Mais tarde escreveria o livro Lutando na Espanha (1938), em que relata sua experiência no conflito.
Mas foi num ensaio intitulado O Leão e o Unicórnio: O Socialismo e o Gênio Inglês, escrito em 1941, em plena Segunda Guerra, literalmente com bombas caindo nas proximidades [3], que Orwell me parece ter deixado mais clara a sua real posição política. Apesar da sua importância, é um ensaio relativamente desconhecido e/ou esquecido pelas editoras, quem sabe justamente por desmistificar muito do que já foi dito, tanto à direita quanto à esquerda, sobra suas crenças políticas.
A tese do seu ensaio afirma, basicamente, que aquele era o momento ideal para uma revolução socialista na Inglaterra [4]:
Não podemos esperar que este, ou qualquer governo similar, leve a cabo as mudanças necessárias por conta própria. A iniciativa terá de vir de baixo. Isso significa que será preciso surgir algo que nunca existiu na Inglaterra, um movimento socialista que de fato conte com o apoio da massa da população. Mas é preciso começar reconhecendo os motivos pelos quais o socialismo inglês fracassou.
Segundo Orwell, a grande mácula do socialismo na Inglaterra foi fazer chacota do patriotismo da população, ao invés de abraçá-lo, como ocorreu no fascismo e no nazismo:
Não é possível entender o mundo moderno tal como ele é sem que se reconheça a força esmagadora do patriotismo, da lealdade nacional. O cristianismo e o socialismo internacional são fracos como palha em comparação com ele. Hitler e Mussolini ascenderam ao poder em seus países em grande medida porque compreenderam esse fato, e seus opositores, não.
O escritor também busca explicar porque regimes totalitários nos moldes fascistas e nazistas conseguiram chegar ao poder sem grande oposição dos mais ricos:
Hitler defende uma economia centralizada, que despoja o capitalista de grande parte de seu poder, mas preserva quase intacta a estrutura anterior da sociedade. O Estado controla a indústria, mas ainda há ricos e pobres, patrões e empregados. Portanto, enquanto opositoras do socialismo genuíno, as classes abastadas sempre estiveram ao lado dele. Isso ficou cristalino na época da Guerra Civil Espanhola, e de novo claro na época em que a França se rendeu. O governo títere de Hitler não é de trabalhadores, mas uma gangue de banqueiros, generais caducos e políticos de direita corruptos.
E, mais para o final do longo ensaio, Orwell deixa muito claro que ainda acreditava num movimento socialista genuinamente democrático e igualitário como solução dupla para a Inglaterra: tanto no sentido de se igualar ao Estado nazista no fomento da máquina de guerra, e assim poder lutar de igual para igual, quanto nos sentido de criar uma nova sociedade onde a distribuição de renda seja uma realidade, e onde a pessoa comum possa enfim ter uma vida mais digna e justa. Eis o que ele diz:
Em tempos [de guerra] há a possibilidade, inexistente em épocas de paz, de sermos ao mesmo tempo revolucionários e realistas. Um movimento socialista que consiga atrair o apoio da massa da população, que desaloje os pró-fascistas das posições de comando, que elimine as injustiças mais flagrantes e permita à classe trabalhadora entrever uma razão pela qual lutar, que conquiste as classes médias em vez de antagonizá-las, que resulte numa política imperial viável em vez de uma mescla de enganação e utopianismo, que estabeleça uma parceria entre o patriotismo e a inteligência — pela primeira vez, um movimento desse tipo torna-se possível. [...] Esse governo socialista fará o essencial: nacionalizar a indústria, reduzir a disparidade de renda e implantar um sistema educacional não classista. Sua verdadeira natureza se tornará patente a partir do ódio que os homens ricos remanescentes no mundo sentirão por ele.
O Leão e o Unicórnio foi escrito anos antes das duas grandes obras literárias de Orwell, e no ensaio vemos claramente que, a despeito de já ser um crítico ferrenho do comunismo nos moldes stalinistas, Orwell continuava acreditando que uma revolução socialista seria o caminho mais eficaz para garantir que a pessoa comum inglesa, a única coisa que contava com sua genuína adoração, pudesse ter uma vida melhor. Depois disso vieram as bombas atômicas no Japão, a derrota de Hitler e a manutenção do totalitarismo do regime soviético (que contava com a conivência de boa parte do Ocidente). É difícil dizer se, ao escrever 1984, já perto da morte (por conta da tuberculose, que ele provavelmente contraiu ao ser tratado do tiro no pescoço em um hospital espanhol), Orwell ainda mantinha viva a crença no socialismo democrático, mas fato é que em nenhum momento da vida ele se aproximou do espectro oposto, seja no conservadorismo, seja no liberalismo econômico.
Assim, o veredito mais provável e honesto é este: Orwell foi um socialista que defendia a liberdade com unhas e dentes, e que não se furtou a criticar ferozmente o próprio socialismo, quando este enveredou pelo totalitarismo. Se ainda fosse vivo hoje, o mais provável é que Orwell fosse de centro-esquerda, devido à falência da ideia de uma revolução socialista viável.
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[1] Eu também traduzi as duas principais obras de Orwell pelas Edições Textos para Reflexão. Leia A Revolução dos Bichos e 1984 no seu Kindle, pelo preço de um café (os links levam para a loja da Amazon).
[2] Eu falo mais sobre totalitarismo de esquerda e de direita na série Reflexões Políticas. O tema é abordado mais especificamente na Parte 3, mas recomendo ler desde o início para ter uma visão abrangente do que busquei dizer.
[3] O ensaio se inicia de maneira épica: “No momento em que escrevo, seres humanos extremamente civilizados estão voando sobre mim, tentando me matar”. Era um momento em que Londres vinha sendo bombardeada pelos forças de Hitler.
[4] A partir desse ponto, todos os parágrafos em itálico trazem trechos retirados do ensaio. Ele pode ser encontrado em português na coletânea da Penguin & Companhia das Letras, Por que escrevo (Ensaios de Orwell na tradução de Cláudio Marcondes).
Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Orwell); [ao longo] luciusbooks.com (capa original do ensaio; ainda pode ser adquirido aqui).
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