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13.5.21

Orwell Político

George Orwell é um fenômeno. Juntas, as suas principais obras, A Revolução dos Bichos e 1984 (publicadas, respectivamente, em 1945 e 1949 [1]), venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX. Uma grande parte da fama de tais livros se deve a maneira como o escritor britânico soube mesclar a literatura com a crítica política. Ou, como ele mesmo descreveu:

Quando eu me sento para escrever um livro, eu não digo a mim mesmo que vou produzir uma obra de arte. Eu escrevo porque há alguma mentira que eu quero expor, algum fato para o qual quero chamar atenção, e minha preocupação inicial é conseguir ser lido por uma boa audiência.

Lançadas nos últimos anos de sua vida, tais obras se destacaram pela coragem com que Orwell atacou o totalitarismo, particularmente o stalinismo e o fascismo, em uma época onde boa parte dos regimes criticados ainda estava em plena operação. Apesar de ter atacado o comunismo russo (ou o que ele se transformou), Orwell também nutria clara simpatia pelo socialismo. Isso, por si só, explica como até os dias de hoje qualquer menção a sua obra suscita as mais acaloradas discussões nas redes sociais: os simpatizantes da direita dizendo que ele na verdade nunca foi socialista, e que dedicou-se somente a criticar a esquerda autoritária; os simpatizantes da esquerda afirmando que, pelo contrário, ele sempre foi socialista, e suas críticas na verdade se direcionavam mais ao fascismo, ao totalitarismo de direita, do que ao stalinismo e outros regimes de esquerda que assassinaram a democracia [2].

Qual deles tem razão? Para tentar responder essa pergunta, é preciso voltar no tempo, conferir as obras e ensaios anteriores, onde ele esteve morando, quais guerras lutou, enfim: tentar entender melhor o que fez de Orwell o que ele é até hoje, um mito da literatura.

Para compreender sua importância, temos de tentar entender o que ele amava, e o que odiava. Contra o que ele se rebelou, e o que ele exaltou. É isso que nos dará a chave para a compreensão da sua obra. Orwell sempre odiou o grupo social do qual ele mesmo era, apesar dos pesares, um membro exemplar: os intelectuais. Desde cedo, ele quis ser um escritor, mas sempre se destacou em nunca realmente se encaixar em emprego algum. Ele nasceu em 1903, na Índia, que era na época uma parte do Império Britânico, mas foi enviado ainda criança para a Inglaterra, onde cresceu sem muita presença do pai, um funcionário público que atuava na colônia indiana. Era filho de pais em frágil situação econômica, que lutaram duro para que ele tivesse uma clássica educação inglesa de classe média, e esperavam que ele pudesse se tornar um médico ou um advogado. Orwell acabou conseguindo uma bolsa para estudar em Eton, um colégio tradicional de Berkshire (onde teve aulas de francês com Aldous Huxley), mas nunca teve notas boas o suficiente para tentar bolsas em grandes universidades. Mais tarde, decidiu servir como policial imperial na Birmânia (atual Mianmar), onde pôde conhecer mais da cultura do Oriente, e de como se estruturavam e funcionavam um império colonial e suas colônias. Ao retornar à Inglaterra, passou a se dedicar com mais afinco à escrita, e construiu uma carreira como jornalista e ensaísta político.

A geração de intelectuais da qual Orwell fazia parte, que havia testemunhado a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão, estava obcecada por novas doutrinas grandes e abstratas para redimir a humanidade. Alguns eram comunistas fanáticos, outros firmes defensores do capitalismo radical, e alguns estavam admirados com os novos regimes autoritários da Itália, Espanha e Alemanha, e queriam algo semelhante para a Inglaterra. Orwell ouviu, e foi por um breve período seduzido por algumas dessas doutrinas. Mas ele gradualmente veio a defender algo muito mais radical: os gostos, as opiniões, as necessidades e as perspectivas de alguém que ele chamou de “a pessoa comum”.

A jornada de Orwell na vida comum começou na primavera de 1928, quando ele deixou os privilégios de sua classe para trás, e passou a trabalhar em uma série de serviços braçais, nas capitais francesa e inglesa. Experiências que ele estava para contar em seu livro, Na pior em Paris e Londres (1933). Em outro livro narrando suas viagens ao redor da indústria de mineração de carvão, no norte da Inglaterra, O caminho para Wigan Pier (1937), Orwell lança um olhar generoso e complexo sobre as pessoas que conheceu. Sua experiência com a vida das pessoas comuns e ordinárias, em geral as grandes vítimas das guerras e dos regimes ditatoriais, explica em boa parte a profundidade de suas obras mais conhecidas.

E, se Orwell podia falar com propriedade da vida comum, também sabia o que era uma guerra em primeira mão! Juntou-se ao POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), uma milícia de marxistas revolucionários não-stalinistas, na luta contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler, na Guerra Civil Espanhola. Foi ferido no pescoço. Uma bala danificou suas cordas vocais, saindo pelas costas, e desde então sua voz ficou ligeiramente inaudível. Mais tarde escreveria o livro Lutando na Espanha (1938), em que relata sua experiência no conflito.

Mas foi num ensaio intitulado O Leão e o Unicórnio: O Socialismo e o Gênio Inglês, escrito em 1941, em plena Segunda Guerra, literalmente com bombas caindo nas proximidades [3], que Orwell me parece ter deixado mais clara a sua real posição política. Apesar da sua importância, é um ensaio relativamente desconhecido e/ou esquecido pelas editoras, quem sabe justamente por desmistificar muito do que já foi dito, tanto à direita quanto à esquerda, sobra suas crenças políticas.

A tese do seu ensaio afirma, basicamente, que aquele era o momento ideal para uma revolução socialista na Inglaterra [4]:

Não podemos esperar que este, ou qualquer governo similar, leve a cabo as mudanças necessárias por conta própria. A iniciativa terá de vir de baixo. Isso significa que será preciso surgir algo que nunca existiu na Inglaterra, um movimento socialista que de fato conte com o apoio da massa da população. Mas é preciso começar reconhecendo os motivos pelos quais o socialismo inglês fracassou.

Segundo Orwell, a grande mácula do socialismo na Inglaterra foi fazer chacota do patriotismo da população, ao invés de abraçá-lo, como ocorreu no fascismo e no nazismo:

Não é possível entender o mundo moderno tal como ele é sem que se reconheça a força esmagadora do patriotismo, da lealdade nacional. O cristianismo e o socialismo internacional são fracos como palha em comparação com ele. Hitler e Mussolini ascenderam ao poder em seus países em grande medida porque compreenderam esse fato, e seus opositores, não.

O escritor também busca explicar porque regimes totalitários nos moldes fascistas e nazistas conseguiram chegar ao poder sem grande oposição dos mais ricos:

Hitler defende uma economia centralizada, que despoja o capitalista de grande parte de seu poder, mas preserva quase intacta a estrutura anterior da sociedade. O Estado controla a indústria, mas ainda há ricos e pobres, patrões e empregados. Portanto, enquanto opositoras do socialismo genuíno, as classes abastadas sempre estiveram ao lado dele. Isso ficou cristalino na época da Guerra Civil Espanhola, e de novo claro na época em que a França se rendeu. O governo títere de Hitler não é de trabalhadores, mas uma gangue de banqueiros, generais caducos e políticos de direita corruptos.

E, mais para o final do longo ensaio, Orwell deixa muito claro que ainda acreditava num movimento socialista genuinamente democrático e igualitário como solução dupla para a Inglaterra: tanto no sentido de se igualar ao Estado nazista no fomento da máquina de guerra, e assim poder lutar de igual para igual, quanto nos sentido de criar uma nova sociedade onde a distribuição de renda seja uma realidade, e onde a pessoa comum possa enfim ter uma vida mais digna e justa. Eis o que ele diz:

Em tempos [de guerra] há a possibilidade, inexistente em épocas de paz, de sermos ao mesmo tempo revolucionários e realistas. Um movimento socialista que consiga atrair o apoio da massa da população, que desaloje os pró-fascistas das posições de comando, que elimine as injustiças mais flagrantes e permita à classe trabalhadora entrever uma razão pela qual lutar, que conquiste as classes médias em vez de antagonizá-las, que resulte numa política imperial viável em vez de uma mescla de enganação e utopianismo, que estabeleça uma parceria entre o patriotismo e a inteligência — pela primeira vez, um movimento desse tipo torna-se possível. [...] Esse governo socialista fará o essencial: nacionalizar a indústria, reduzir a disparidade de renda e implantar um sistema educacional não classista. Sua verdadeira natureza se tornará patente a partir do ódio que os homens ricos remanescentes no mundo sentirão por ele.

O Leão e o Unicórnio foi escrito anos antes das duas grandes obras literárias de Orwell, e no ensaio vemos claramente que, a despeito de já ser um crítico ferrenho do comunismo nos moldes stalinistas, Orwell continuava acreditando que uma revolução socialista seria o caminho mais eficaz para garantir que a pessoa comum inglesa, a única coisa que contava com sua genuína adoração, pudesse ter uma vida melhor. Depois disso vieram as bombas atômicas no Japão, a derrota de Hitler e a manutenção do totalitarismo do regime soviético (que contava com a conivência de boa parte do Ocidente). É difícil dizer se, ao escrever 1984, já perto da morte (por conta da tuberculose, que ele provavelmente contraiu ao ser tratado do tiro no pescoço em um hospital espanhol), Orwell ainda mantinha viva a crença no socialismo democrático, mas fato é que em nenhum momento da vida ele se aproximou do espectro oposto, seja no conservadorismo, seja no liberalismo econômico.

Assim, o veredito mais provável e honesto é este: Orwell foi um socialista que defendia a liberdade com unhas e dentes, e que não se furtou a criticar ferozmente o próprio socialismo, quando este enveredou pelo totalitarismo. Se ainda fosse vivo hoje, o mais provável é que Orwell fosse de centro-esquerda, devido à falência da ideia de uma revolução socialista viável.

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[1] Eu também traduzi as duas principais obras de Orwell pelas Edições Textos para Reflexão. Leia A Revolução dos Bichos e 1984 no seu Kindle, pelo preço de um café (os links levam para a loja da Amazon).

[2] Eu falo mais sobre totalitarismo de esquerda e de direita na série Reflexões Políticas. O tema é abordado mais especificamente na Parte 3, mas recomendo ler desde o início para ter uma visão abrangente do que busquei dizer.

[3] O ensaio se inicia de maneira épica: “No momento em que escrevo, seres humanos extremamente civilizados estão voando sobre mim, tentando me matar”. Era um momento em que Londres vinha sendo bombardeada pelos forças de Hitler.

[4] A partir desse ponto, todos os parágrafos em itálico trazem trechos retirados do ensaio. Ele pode ser encontrado em português na coletânea da Penguin & Companhia das Letras, Por que escrevo (Ensaios de Orwell na tradução de Cláudio Marcondes).

Crédito das imagens: [topo] Google Image Search (Orwell); [ao longo] luciusbooks.com (capa original do ensaio; ainda pode ser adquirido aqui).

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2.8.14

Racismo é a mais pura ignorância

Em 12/05/2009 publiquei aqui no blog um post despretensioso, que basicamente explica como a ciência já comprovou que o que antes chamávamos de "raça humana" é basicamente somente uma diferenciação mínima entre algumas características físicas dos homo sapiens que vagaram por todo o globo, provavelmente vindos da África. A conclusão do post era a de que racismo é ignorância, principalmente no sentido do conhecimento científico.

Este post, entretanto, se tornou com o tempo um dos mais acessados do blog, certamente devido aos resultados de pesquisas no Google. Em homenagem a este fato, achei por bem trazer este complemento que nos demonstra, num vídeo de cerca de 5 minutos, como o racismo é, além de ignorância científica, também uma ignorância sociocultural. Em suma, a mais pura ignorância:

A apresentadora

Mo Asumang é filha de pai ganês de pele escura, e mãe alemã de pele clara. Como uma reconhecida apresentadora da TV germânica, ela se tornou o alvo de neonazistas e outros partidários de extrema direita anti-imigrantes, que basearam seus ataques no fato de Asumang não ter uma "descendência puramente ariana".

Hoje ela está filmando um documentário onde vai a redutos neonazis na Alemanha e do Ku Klux Klan na América para perguntar o que eles têm contra os negros e quais os seus planos. Os 5 minutos acima são uma breve apresentação do que tem ocorrido nestas tentativas de diálogo; uma produção da BBC News.

***

Crédito da foto: Divulgação/BBC (Mo Asamung ao lado de um membro da Ku Klux Klan)

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10.7.14

669 razões

Sir Nicholas Winton

Há muitas histórias de homens e mulheres que se tornaram celebridades por seus feitos heroicos, mas casos como o de Sir Nicholas Winton não são tão fáceis de se encontrar. Hoje Winton tem mais de um século de idade, mas o que ele realizou pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, segundo ele próprio, "não foi nada de heroico". Winton apenas tentou salvar o máximo de crianças judias que fosse possível da então Tchecoslováquia, evitando sua morte certa nos campos de concentração nazistas, porque "existia alguma chance de ser possível".

Winton acabou conseguindo trazer 669 crianças para a Inglaterra, com a ajuda do governo inglês e sueco (muitos outros governos europeus da época se recusaram a receber as crianças, e alguns até fecharam as fronteiras, impedindo que elas atravessassem seus territórios), mas depois não achou relevante contar para ninguém sobre o seu feito - nem mesmo para sua mulher. Ao arrumar o sótão de casa, ela descobriu por acaso, num velho álbum coberto de poeira, fotos de crianças, cartas e telegramas, e uma lista com nomes e datas de viagens de trens. Foi ela quem revelou ao mundo o feito do marido.

As 669 crianças tchecas salvas jamais viram novamente seus pais - todos, sem exceção, foram mortos pelos nazistas. Mas muitas delas seguiram suas vidas, adotadas por famílias ou vivendo em abrigos e orfanatos ingleses. Tais crianças se tornaram escritoras, jornalistas, engenheiros, biólogos, construtores, guias turísticos e até mesmo cineastas... Muitas, sabendo da história de como foram salvas, também se tornaram adultos generosos, adotando outras crianças e se dedicando ativamente a caridade.

Winton só lamenta que o último trem, que traria mais 250 crianças para a Inglaterra, não tenha conseguido sair da Tchecoslováquia - a guerra havia iniciado, e as fronteiras já se encontravam fechadas. Nenhuma das crianças que não conseguiram embarcar sobreviveu, morreram nos campos de extermínio junto com suas famílias.

Difícil imaginar o que se passa no coração e na alma de um homem como Winton. Difícil imaginar a alegria de haver salvo 669, e a tristeza de haver perdido as 250 do último trem. Há muita gente que acha a vida tediosa e monótona, e outros um grande sofrimento, há muita gente que não consegue encontrar uma razão para continuar tocando a vida, para viver com esperança e alegria duradouras - Sir Nicholas Winton encontrou 669 razões.

Um dia um programa de TV inglês encheu um auditório com boa parte das crianças que Winton havia salvo, naquela época já bem adultas - sem que ele soubesse. O que se seguiu, quando foram apresentadas, demonstra o quão maravilhosa pode ser a resposta da Vida a quem, um dia, fez o possível para a preservar (ver a partir de 6:25, no vídeo abaixo):

"Quem, na plateia, teve a vida salva por Nicholas Winton, fique de pé, por favor."

Trecho do programa Fantástico, da Rede Globo, exibido em 23/12/2007.

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Crédito das fotos: Arquivo de Nicholas Winton (fotos da época em que recebeu as crianças na Inglaterra, e de dias mais atuais)

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12.4.10

Reflexões sobre o mal, parte 2

continuando da parte 1...

Escuridão (substantivo): 1. Ausência de luz; 2. Breu.

Os mestres da escuridão

Era abril de 65 d.C., em uma villa aos arredores de Roma. Um centurião romano havia chegado à casa de um dos grandes filósofos do estoicismo com instruções do imperador: Sêneca deveria dar cabo de sua vida imediatamente. Aos 28 e portador de distúrbios mentais, Nero havia sido informado de que havia uma conspiração para afastá-lo do trono. Fora de si, procurava vingar-se indiscriminadamente. Embora não houvesse provas do envolvimento de Sêneca no conluio e apesar do fato de ele ter sido preceptor de Nero por cinco anos e ter atuado como seu leal ministro durante uma década, Nero o havia sentenciado à morte por medidas acautelatórias. Àquela altura ele já havia promovido o assassinato de seu meio-irmão, de sua mãe e de sua esposa; havia também se livrado de um grande número de senadores e cavaleiros, atirando-os aos crocodilos e leões, e incendiado Roma – Exaltado, comemorou ao vê-la consumida pelas chamas [1].

Ao tomarem conhecimento da ordem de Nero, seus amigos empalideceram e começaram a chorar. Mas Sêneca permaneceu impassível:

“Onde está sua filosofia, perguntou ele, e o que foi feito da decisão de jamais se deixarem abater diante da iminência de qualquer desgraça que, durante tantos anos, todos vêm incentivando uns aos outros a manter? Certamente ninguém ignorava que Nero era cruel – acrescentou – Depois de matar a mãe e o irmão, só lhe restava matar seu conselheiro e preceptor.”

Impassível até o fim, aquele que sempre esteve pronto para a sorte e o revés da Fortuna, despediu-se deste mundo com a tranqüilidade daqueles sábios que estavam em paz com a própria consciência: “Devo minha vida a filosofia” – afirmava, e realmente seguiu-a até o fim.

Eis que há muitos que consideram Nero um dos “mestres da escuridão”, um dos seres mais malévolos que já habitaram o planeta. Mas em que exatamente Nero era mestre? Perseguiu, torturou e matou qualquer um que fosse contra sua opinião, e mesmo aqueles que nunca foram, mas que em sua paranóia achou que fossem... Colocou fogo na própria cidade e tocou alegremente sua lira enquanto ela ardia em chamas... Condenou a morte uma das pessoas mais sábias de sua época, que inclusive foi seu mentor em filosofia durante anos...

Que tipo de “mestre” é esse? Um ser que não aceita frustrações? Que sente-se perseguido aonde quer que vá? Que apesar do imenso poder, apesar de todo seu império, nunca chegou nem perto de conquistar a si mesmo? Ora, isso mais me parece com um bebê mimado, que não aceitava um “não” da realidade (a deusa Fortuna a que Sêneca gostava de se referir)... Mas então, muitos podem afirmar que se tratava apenas de um doente mental.

Passemos adiante então: Século XX... Adolf Hitler, o grande “anticristo” responsável direto pela morte de milhões nas grandes guerras mundiais. Documentos apresentados durante o Julgamento de Nuremberg indicam que, no período em que Adolf Hitler esteve no poder, grupos minoritários considerados indesejados - tais como Testemunhas de Jeová, eslavos, poloneses, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e judeus - foram perseguidos no que se convencionou chamar de Holocausto. O grande líder carismático do Nazismo, que conseguiu convencer quase toda a Alemanha a acompanhá-lo em uma “marcha de purificação”, na tentativa de fazer uma “seleção natural forçada” que deixasse na face do planeta apenas sua adorada raça ariana.

Onde foi parar aquele jovem que desejava tornar-se um pintor em Viena? De onde vieram tais delírios de grandeza? Tamanha ignorância perante a natureza? Será mesmo que – apesar de todo seu conhecimento oculto – achou mesmo que poderia “bancar o Deus”, o “administrador supremo” das etnias da Terra? Aonde queria chegar ó grande “mestre da escuridão”?

Há quem acredite até os dias atuais que ele foi um grande líder do mal, um digno representante do mítico Satanás em nosso plano físico. Quanta inteligência, quanta força, quanto conhecimento usado para o mal!

Será mesmo? Será que aquele homem de origem humilde (fazia questão de esconder de onde veio), que inicialmente inclinou-se para as artes (de onde nunca deveria ter saído), era mesmo este homem impassível, este “senhor das trevas”?

Os fatos históricos falam por si mesmos: Adolf Hitler cometeu suicídio no seu quartel-general (o Führerbunker), em Berlim, a 30 de abril de 1945, enquanto o exército soviético combatia já as duas tropas que defendiam o Führerbunker (a francesa Charlemagne e a norueguesa Nordland). Segundo testemunhas, Adolf Hitler já teria admitido que havia perdido a guerra desde o dia 22 de abril, e desde já passavam por sua cabeça os pensamentos suicidas.

Um tiro na cabeça. Ó grande “mestre do mal”, é este o seu legado, é esta a sua força e sua determinação? Quando as coisas desandam e a realidade intervém, quando o poder esvai das mãos como óleo, é essa a sua demonstração de coragem? Meu caro artista frustrado, antes tivesse aproveitado sua vida para estudar as cores e o claro-escuro, a música e a filosofia, até mesmo na literatura oculta teria tido um melhor proveito... Ó grande conquistador, tudo o que conquistou foram sangue e ossos, que todos que o amaram seguiram uma ilusão – uma “nuvem de vontade” que se desfez na primeira brisa da Fortuna. Teria sido melhor conquistar a si próprio, e ter conquistado algo de real nessa existência!

Eis que todos esses “mestres da escuridão” apenas nos demonstraram o quão ignorantes, fracos e mimados, foram em suas patéticas existências. Afinal quem é mais forte, àquele que açoita por se achar no direito de julgar quem é bom e quem é mal, ou aquele que, mesmo em sendo açoitado, mesmo diante da morte, permanece impassível em sua confiança em si mesmo e na grandeza de seus ideais? – sejam eles vindos de sua religião ou filosofia ou ciência, ou de qualquer combinação entre elas...

O grande Sêneca tinha um conselho para aqueles que, em tendo seus desejos diminuídos ou extinguidos pela realidade, se tornavam raivosos e descontrolados – parecendo antes com animais do que com “senhores das trevas”:

“Não existe caminho mais rápido para a insanidade. Muitas pessoas irritadas atraem a morte para seus filhos, a pobreza para si e a ruína para seus lares, negando que estão encolerizadas, da mesma forma que os loucos negam a própria insanidade. Inimigos de seus amigos mais chegados... indiferentes às leis... agem pela força... O maior de todos os males apodera-se deles, o mal que supera todos os vícios.”

Raiva e irracionalidade, delírios de grandeza, ignorância plena das leis naturais que ditam em qualquer pedra e qualquer galho partido, e em cada uma das estrelas do céu: estamos todos conectados.

Oh! O mal, o “grande mal” – é só a ilusão dos fracos, o beco sem saída dos desesperados... Desistam dessas promessas feitas pelo mais medíocre dos mitos, venham para o outro lado, venham para onde há música! Há que se conquistar a si mesmo, esta sim é a verdadeira força [2], a verdadeira virtude:

Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (Cristianismo)

Melhor é o que demora a irar-se do que o poderoso; e o que controla o seu ânimo do que aquele que toma uma cidade. (Judaísmo)

O maior guerreiro não é aquele que vence em batalhas milhares de homens, mas aquele que vence a si mesmo. (Budismo)

A mais excelente jihad é a da conquista do ego. (Islamismo)

Aquele que vence os outros é forte; aquele que vence a si mesmo é poderoso. (Taoísmo) [3]


A seguir, será que nossa consciência conhece nosso mal?...

***

[1] O primeiro parágrafo foi retirado do texto de Alain de Botton em "As consolações da filosofia" (editora Rocco). Também utilizei ao longo do artigo algumas citações de Sêneca e Tácito (interpretado por David) conforme constam no mesmo livro. A tradução é de Eneida Santos.

[2] Uns acreditam que toda força está somente na ação, mas outros compreendem quanta força pode haver na inação. Gandhi nos ensinou a reconquistar um império utilizando outra espécie de força, infelizmente ainda desconhecida da maioria de nós.

[3] Citações de trechos das respectivas doutrinas religiosas de acordo com o livro “Unidade”, de Jeffrey Moses (editora Sextante). Obviamente que o conceito de cada palavra deve ser analisado dentro do contexto, o “poderoso” do Judaísmo não é o mesmo do Taoísmo.

***

Crédito da imagem: Wilhelm von Gloeden/Alinari Archives/CORBIS (homem vestido como o imperador Nero)

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