Desde crianças ouvimos fantásticas histórias de fantasia. Lemos sobre grandes heróis corajosos que partiram numa grande jornada para ajudar alguém ou mesmo salvar o mundo. Esses heróis enfrentaram perigos inimagináveis: lutaram contra dragões, se feriram, arriscaram a vida. Até que, a muito custo, conseguiram cumprir seus objetivos. Nós admiramos esses heróis e desejamos ser como eles.
Joseph Campbell fala a respeito da “Jornada do Herói” em seus livros, mas em vez de explorar cada etapa da aventura, optarei por refletir a respeito do que significa esse símbolo e exemplo do herói para a vida de cada um de nós.
Thomas Cole fez uma série de pinturas chamada “The Voyage of Life”, representando os quatro estágios da vida humana: infância, juventude, maturidade e velhice. As pinturas mostram um viajante num barco, no Rio da Vida, acompanhado por um anjo da guarda. A paisagem de cada pintura reflete as estações do ano relacionadas a cada estágio da vida.
Na primeira pintura, a Infância, a criança e o anjo saem de uma caverna, que simboliza “nossa origem terrena e o Passado misterioso”. A paisagem é calma e ensolarada, lembrando a alegria e inocência da infância. É o amanhecer da vida.
Na segunda pintura, Juventude, em pleno dia, o anjo permite que o jovem assuma o controle de sua vida. O anjo o observa e abana, enquanto o aventureiro está ansioso por partir em sua jornada. A responsabilidade é assustadora e ao mesmo tempo empolgante.
Para o jovem, o rio parece calmo e promete levá-lo diretamente ao castelo ao longe, para realizar seus sonhos e ambições. Ele tem uma visão romântica conforme a mente eleva o comum ao magnífico, antes de experimentar a realidade.
Alheio aos desafios que esperam por ele, o homem, em sua maturidade, ousadamente tenta chegar ao castelo, emblemático dos sonhos da juventude e aspiração por glória e fama. Conforme o aventureiro prossegue em sua jornada, a fúria do rio o desvia de seu destino e o carrega para experimentar a fúria da natureza, com seus demônios e as dúvidas a respeito de sua existência.
Apenas a oração, sugere Cole, pode salvar o viajante de seu destino escuro e trágico. A série parece intrinsecamente ligada à doutrina cristã de morte e ressurreição.
A última pintura, Velhice, é uma imagem da morte. O homem envelheceu e sobreviveu às provações da vida. As águas se acalmaram e o rio corre para as águas da eternidade. Ao longe, anjos descem do céu e o anjo guardião que acompanha o homem no barco faz um gesto na direção dos outros.
O homem está alegre com o conhecimento que a fé lhe deu e sustentou ao longo da vida. Cole descreve a cena: “As correntes da existência corpórea estão caindo; e a mente já tem vislumbres da Vida Imortal.”
(Fonte para a descrição da série The Voyage of Life: artigo da Wikipedia, adaptado)
Não é somente na infância que somos expostos a grandes histórias de aventuras, retratando admiráveis heróis. Quando crianças, escutamos belos contos de fadas. Na adolescência temos super-heróis. Na idade adulta continuamos a ver incontáveis filmes e séries que, de uma forma ou de outra, retratam histórias fascinantes nas quais o personagem principal, muitas vezes uma pessoa comum, precisa superar seus medos para vencer uma difícil batalha e atingir seu objetivo.
Não vemos isso somente em filmes. Livros de literatura, jogos de videogame, muitas coisas de alguma forma parecem representar essa sede de partir numa jornada. Até mesmo jogos de tabuleiro, esportes, parece que estamos rodeados com esse imaginário.
Mas nossa vida não é uma história de fantasia. Sem dúvida, nós temos nossos momentos fantásticos. Mas em boa parte do tempo temos que lidar com as questões diárias da vida real: estudar e trabalhar, que, dependendo dos nossos estudos e ocupação, podem ter certa carga de diversão e emoção.
Ainda assim, parece sempre que o herói da história de fantasia está se divertindo mais que nós e fazendo coisas mais grandiosas. É óbvio que, se estivéssemos vivendo a vida dura que ele vive, dormindo ao relento, passando fome, sede, desconforto, frio, calor e arriscando a vida a todo momento, não seria tão divertido quanto parece.
E como medir a grandiosidade de um ato? Todo trabalho pode ter seu valor e ser grandioso. Mas sempre parece que o herói que sofre desconforto e arrisca sua vida ficou com a melhor parte.
Faço um paralelo disso com o foco nas penitências e no martírio que existe no cristianismo. Ainda assim, para o cristão é possível ser um herói e se martirizar através de outros meios. Não somente o martírio vermelho, que busca a tortura e morte reais, mas existe também o martírio branco e outros tipos de serviço a Deus: aquela vida que, através da repetição de pequenos atos diariamente, com fidelidade (oração, leituras, trabalhos manuais, etc) se pode chegar a ser digno do céu.
Em poucas épocas o ato de partir numa aventura foi tão romantizado como na Idade Média, época em que eram populares os romances de cavalaria, de caráter místico e simbólico e repletos de espiritualidade cristã.
O cavaleiro resgata a dama, após derrotar o dragão. Mas ele não fez isso de mãos vazias: tinha sua armadura, sua espada, talvez um escudo e um cavalo.
Uma forma de interpretar essa história é: o cavaleiro somos nós. A espada é nossa fé, o escudo são nossas penitências. O dragão são os três inimigos clássicos: o demônio, a carne e o mundo. E a princesa é a alma, o Espírito Santo, o próprio Deus.
No entanto, há outro simbolismo escondido, ainda mais profundo: o cavaleiro é Deus. A princesa somos nós. O dragão é nosso orgulho, que impede Deus de se aproximar. Afinal, não somos nós que vamos até Deus. É Deus que vai até nós. Porém, Deus é um cavalheiro. Ele só vai se aproximar se permitirmos. Se formos humildes e rezarmos, pedindo ajuda. Se sinceramente o amarmos. Ele sempre nos amou e só está esperando que esse amor seja correspondido. E ele vai esperar até o fim do mundo se for preciso.
Quando penso nos romances medievais de cavalaria, eu imediatamente lembro de muitos dos grandes santos, que gostavam de lê-los na infância e na juventude, como Santa Teresa e Santo Inácio de Loyola.
É interessante lembrar que tanto Santo Inácio de Loyola quanto São Francisco de Assis serviram no exército na juventude antes de entrarem para a vida religiosa. Isso significa que eles já tinham essa sede de aventura, essa vontade de partir numa grandiosa jornada e morrer por um ideal há muito tempo.
Porém, Santo Inácio de Loyola foi ferido na guerra e teve que retornar. Enquanto estava se recuperando dos ferimentos, começou a ler muitos livros espirituais, incluindo “A Imitação de Cristo” e foi imediatamente fisgado para a vida religiosa. Ele descobriu uma aventura ainda mais profunda que servir no exército: era a aventura que lhe daria não somente uma medalha e honra e glória terrenas, mas a coroa da eternidade.
São Francisco de Assis ficou doente na guerra e teve que retornar. Enquanto estava doente, teve muitas experiências espirituais e se transformou completamente.
Recentemente eu estava assistindo alguns vídeos de competições de pessoas que jogam videogame muito rápido e tentam terminar o jogo com o menor tempo possível. Muitos dedicam muitos anos a isso, talvez a vida toda, e treinam diariamente.
Não é difícil entender porque as pessoas fazem isso, assim como não é difícil entender porque alguém pode se dedicar a um jogo de xadrez ou futebol. Existe, sem dúvida, a sede do desafio, e as pessoas têm feito isso com jogos em todas as épocas: competições para desafiar seus próprios limites, o que pode gerar, mais do que rivalidades, verdadeiros laços de amizade.
Por que escalar uma montanha? Por que tocar um instrumento? Por que fazer coisas difíceis? Eu escrevi sobre isso num post, falando sobre o encanto das religiões difíceis.
Antigamente as pessoas desejavam partir numa aventura se alistando no exército ou se dedicando à religião. Eis duas formas de arriscar a vida. Elas fazem isso até hoje, embora atualmente existam novas formas de fazer isso, como se dedicar a esportes radicais e tantas outras coisas.
Além de buscar adrenalina, acredito que fazemos tudo isso numa jornada de autoconhecimento. Estamos entediados e vazios com tanto conforto e prazer. Estamos desapontados com as injustiças do mundo e com nossa incapacidade de resolvê-las todas de uma vez.
Nós queremos ser parte desse mundo, fazer alguma coisa, nos conectar com os outros, com a vida em si. Ou, no mínimo, queremos nos sentir vivos e não como cadáveres que andam.
Eu acredito que muito disso resume minha própria busca religiosa: o desejo de aventura, a ânsia de descobrir algum grande segredo sobre o mundo, sobre a vida, ou sobre mim mesma.
E onde estão os segredos e as aventuras? Os livros nos contam um pouco, mas há mais. Na experiência de nosso corpo e de nossos limites, na interação com os outros e com Deus aos poucos as coisas ficam mais claras.
Wanju Duli é escritora – Contato: facebook.com/WanjuDuIi
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Crédito da imagem: Joel Robinson
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