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Por Alan Moore. Tradução de Luciano Prado e Rafael Arrais.
O poder da arte é imediato e irrefutável, imenso. Ela altera a consciência, consideravelmente, tanto do artista quanto da sua audiência. Ela pode mudar a vida dos homens e, dessa forma, mudar a história e a própria sociedade. Ela pode nos inspirar a maravilhas ou horrores. Ela pode oferecer as mentes jovens, maleáveis e expansíveis, novos espaços de habitação, ou oferecer conforto aqueles que se encontram perto da morte. Ela pode lhe fazer se apaixonar, ou fatiar a reputação de algum ídolo num piscar de olhos, e o manter mutilado frente aos seus adoradores, morto para a posteridade. Ela conjura demônios de Goya e anjos de Rosetti até a aparência visível. É ao mesmo tempo a perdição e o instrumento mais amado dos tiranos. Ela transforma o mundo em que vivemos, altera nossa visão do universo, altera a nossa visão daqueles a nossa volta e até de nós mesmos. Qual a conquista da feitiçaria que já não foi alcançada pela arte? Ela conduziu um bilhão para a luz e assassinou outro bilhão. Se o nosso objetivo é o desenvolvimento do poder e das habilidades ocultas, não poderíamos ter um meio mais produtivo e poderoso do que a arte para chegarmos lá. A arte pode não fazer sua vassoura ter vida própria e fazer uma faxina para você... mas tampouco poderia a magia, em todo caso... no entanto, simplesmente por haver imaginado a cena, Walt Disney ganhou dinheiro mais do que suficiente para pagar alguém para que cuidasse disso em seu lugar. E ainda sobrou o suficiente para guardar sua cabeça neste enorme cubo de gelo marcado por hieróglifos nalgum lugar abaixo do Magic Kingdom. Isso, certamente, é toda a implacável influência satânica que qualquer um, são ou louco, poderia pedir [Moore se refere a uma provável lenda urbana, difícil dizer se está sendo irônico ou não].
Ao reclamar a magia como A Arte, nua e furiosa numa selva de Rousseau sem nenhuma cabana, é provável que os apreensivos pela preposição sejam aqueles que se sintam desprivilegiados pela ideia, aqueles que suspeitam que a sua oferta artística está aquém da tarefa dada. Tais temores, embora compreensíveis, não podem estar ao lado da imagem heroica, destemida, que muitos ocultistas têm de si mesmo. Será que não há realmente nada, nenhum artesanato ou ofício, que eles não possam usar para implementar sua magia? Eles não têm nenhum talento que possa ser usado de forma criativa e mágica, seja para a matemática, a dança, os sonhos, o toque de tambor, a comédia stand-up, o strip-tease, o grafite, o encantamento de cobras, as demonstrações científicas, ou mesmo para serrar vacas perfeitamente ao meio, ou esculpir bustos assustadoramente realistas dos monarcas europeus a partir de suas próprias fezes? Ou, tipo, qualquer coisa? Mesmo que tais habilidades não sejam hoje abundantes ou evidentes, tais almas tímidas não poderiam imaginar que a capacidade para algum trabalho honesto precisa ser primeiro desenvolvida para depois ser aplicada para algo de útil? O trabalho duro não deveria ser um conceito totalmente estrangeiro para o Mago. E não é nem mesmo A Grande Obra que nós estamos necessariamente discutindo aqui, é apenas a Obra Boa-Mas-Nem-Tanto-Assim. Algo muito mais atingível. Se até mesmo isso soa muito difícil e trabalhoso, você pode sempre tornar a aquisição de talento artístico profundo e a conquista do sucesso o desejo mais íntimo do seu coração e então simplesmente bater uma para um sigilo. Aparentemente, nunca falha. Então, qual a desculpa que alguém teria para não abraçar a arte como magia, e a magia como A Arte? Se você é, por qualquer razão, realmente incapaz de ter alguma criatividade, hoje ou sempre, então você tem realmente certeza que a magia é o campo certo para você? Apesar de tudo, as redes de fast-food estão sempre contratando. Em dez anos você poderia se tornar um gerente.
Ao compreender a arte como magia, ao conceber caneta ou pincel como varinha mágica, nós então devolvemos ao mago seus poderes xamânicos originais e a sua importância social, damos de volta ao ocultismo tanto um produto quanto um sentido. Quem sabe? Pode ser que ao implementarmos tal mudança terminemos por remover toda a nossa necessidade egóica de encantos e maldições , nossa magia superficial.
Se formos realizados e prolíficos em nossa arte, talvez os deuses se preparem para nos enviar vales postais substanciais a cada semana, sem que nós sequer peçamos. Nos assuntos sexuais e românticos, como artistas nós nos sairíamos tão bem quanto Picasso. Mulheres e homens e animais se ofereceriam nus aos nossos pés. Já acerca da destruição de nossos inimigos, nós simplesmente não nos incomodaríamos de chamá-los para nossas celebrações e inaugurações, e eles simplesmente morreriam, com o tempo.
Este re-imaginar da magia como A Arte poderia beneficiar claramente o mundo ocultista em geral e o mago individual em particular, mas não esqueçamos o fato de que ele também poderia beneficiar as artes. É preciso ser dito que a cultura de massa [mainstream] moderna, em grande parte e sob a maioria das perspectivas civilizadas, é um balde plástico cheio de doença. Os artistas de nosso tempo (admitidamente, com algumas notáveis exceções) parecem ter a única intenção de refletir adiante o vazio e a consequente obsessão com a mera superficialidade que nós também achamos nos líderes e governantes de nossa era. Apenas um ou dois anos atrás, a retrospectiva de Blake na antiga Tate Gallery despertou nos críticos mordazes comparações com os artistas britânicos habitando atualmente um bairro descolado, destacando que a geração moderna de visionários se torna um tanto pálida quanto comparada com a sua luz. A “loucura” estudada e autoconsciente de Tracey Emin [artista multimídia britânica; Moore continua citando outros artistas contemporâneos a seguir] se torna domesticada ao lado da loucura santificada de Blake. Damien Hirst é chocante numa maneira superficial, mas não chocante ao ponto de ter prestado juramentos de lealdade, ou de ter de lidar com turbas de inquisidores ou julgamentos de sedição. As contribuições dos irmãos Chapman [Jake e Dinos] para o Apocalipse (a exposição, não a situação no Iraque) não são de forma alguma uma revelação. William Blake poderia tirar um apocalipse muito superior da bunda de uma escultura de um dragão vermelho sem nem pensar muito no assunto. O mundo da arte moderna hoje lida com itens de conceito sofisticado, como os campos da publicidade. Ele parece sofrer de certo problema de visão, se é que pode ainda ver alguma coisa, e oferece muito pouco para o caminho de sustentação da cultura em sua volta, que tem fome o suficiente para uma refeição decente, agora mesmo. A reafirmação da magia como arte não poderia prover a inspiração, emprestar a visão e a substância que estão tão claramente em falta no mundo da arte nos dias atuais? Tal infusão de alma não permitiria que a arte vivesse para o seu propósito, a sua missão, de insistir para que a voz humana interior e subjetiva seja efetivamente ouvida na cultura, no governo, e em todos os grandes palcos do mundo? Ou deveríamos nos sentar e esperar que os intelectos super-humanos de Sirius ou a vassoura mágica de Disney ou o próprio Aeon de Horus finalmente cheguem e resolvam toda essa confusão para nós?
Uma união produtiva, uma síntese da arte e da magia propagadas numa cultura, um meio ambiente, uma paisagem mágica sem os muros dos templos e os móveis antigos que todos ignoravam em todo caso. Encenado entre as samambaias ornamentais e o vapor púrpura de uma reestabelecida biosfera ocultista, essa conjunção apaixonada de duas faculdades humanas certamente constituiria um Casamento Alquímico em que, se formos sortudos e as coisas saírem completamente de controle na Recepção Alquímica, poderá precipitar uma Orgia Alquímica, um incidente, uma explosão turbulenta de impulsos criativos, uma copulação astral de ideias resultando em múltiplos nascimentos de quimeras e monstros radiantes. Ferozes centauros conceituais com suas patas de perfume e cabeças de música. Noções sereiantes, oscilantes filmes mudos que são arquitetura da cintura para baixo. Esfinges de gênero e mantícoras de estilo. Mutações desconhecidas e jamais sonhadas, formas de novelas copulando e se adaptando rápido o suficiente para acompanhar o mundo atual, agindo mais como formas de vida, como fauna e flora, proliferando em nossa projetada selva mágica. Esta possível liberação de energia de fusão tornada possível quando esses dois massivos elementos de nossa cultura, a magia e a arte, são levados a uma proximidade dinâmica o suficiente, poderá inundar nossa selva de luz faérica, e até mesmo ajudar a iluminar este pântano de cultura de massa [mainstream] em que estamos todos atolados.
Nada nos impede de nos livramos dos compassos e dos freios, das rodas de treinamento que têm retardado o progresso da magia por tanto tempo que o musgo já cobriu tanto as linhas férreas quando os sinalizadores de desvios. Nada pode nos impedir, caso tenhamos vontade, de redefinir a magia como uma forma de arte, como algo vital e progressivo. Algo que, em sua habilidade de lidar com o nosso mundo interior em vias de utilidade realmente demonstráveis, pode efetivamente ajudar as pessoas comuns, com seus mundos internos sendo usurpados cada vez mais por um exterior tirânico, colonialista, cujo objetivo é extrair até a última gota dos seus sonhos, da sua alegria ou automotivação. Se assim nos decidirmos, poderíamos restaurar a magia a sua potência, um propósito que mal foi tocado nos últimos quatrocentos anos. Caso estivermos preparados para assumir a responsabilidade desse empreendimento então o mundo poderá assistir novamente aos grandiosos e terríveis magos que, fora dos meigos e inofensivos livros para crianças ou dos filmes com orçamentos obscenos e extravagantes, ele tão somente se direcionou a esquecer. Pode ser arguido que neste momento angustiante de nossa situação humana as perspectivas mágicas não são apenas relevantes, mas necessárias e indispensáveis caso desejemos sobreviver com nossas mentes e personalidades intactas. Ao redefinir o termo “magia” poderíamos uma vez mais confrontar as perversidades e trevas mundanas com o nosso método preferido, honrado por sua ancestralidade: com uma palavra.
Faça com que a palavra “magia” signifique algo novamente, algo digno do nome, algo que, como uma definição de tudo o que é mágico, o deixaria encantado quando você tinha seis anos; ou quando tiver setenta. Caso alcancemos tal conquista, caso consigamos reinventar nossa arte assustadora, selvagem e fabulosa para estes novos tempos assustadores, selvagens e fabulosos pelo qual caminhamos, então poderemos oferecer ao ocultismo um futuro muito mais glorioso, transbordante de aventura, do que jamais pensamos ou desejamos que o seu passado fabuloso pudesse ter sido. A humanidade, trancada nesta penitenciária de um mundo material que temos construído para nós mesmos por séculos, talvez nunca tenha necessitado mais da chave, do bolo com uma serra oculta, do perdão de última hora do governo que a magia representa. Com suas religiões de pedófilos e os seus fundamentalistas dementes, com suas eminências farsantes e seus demagogos mais desavergonhados em atingir suas vis ambições do que jamais foi visto, a sociedade contemporânea, seja no leste ou oeste, parece ter imensa carência de um centro moral e espiritual, parece ter carência até mesmo da mais ínfima pretensão de algo parecido. A ciência que sustenta a sociedade, cada vez mais, em suas mais remotas fronteiras quânticas, descobre que precisa recorrer à terminologia da cabala ou da literatura sufi para afirmar adequadamente o que agora sabe sobre nossas origens cósmicas. Em todas as suas muitas áreas e compartimentos, todos os seus campos dispersos, o mundo parece estar praticamente gritando para que o numinoso venha e o resgate dessa frenética cultura material que nada mais fez do que comê-lo inteiro e cagá-lo através de uma peneira. E onde está a magia, enquanto tudo isso vem acontecendo?
Está tentando forçar nosso namorado a voltar para nós. Está esfregando dinheiro para afastar nossa dívida no cartão de crédito, tentando dar àquele babaca que fugiu com nossa ex-mulher algo terminal. Está garantindo que festas do pijama com o tema Teen Witch corram bem. Está colocando insignificantes pessoas New Age em contato com seus insignificantes anjos New Age, e elas estão todas dizendo, tipo, “De jeito nenhum”, e os anjos estão dizendo, tipo, “Tanto faz”. Está atendendo a todos os nossos repetidos rituais com o entusiasmo que um patrocinador vem assistir à peça The Mouse Trap pela centésima sétima vez. Ela gasta os finais de semana tentando ler nossos péssimos sigilos debaixo da obscurecedora camada de giz, e em retaliação somente nos coloca em contato com entidades capengas, Elohim do serviço comunitário que tagarelam como cientologistas bebuns e nunca fazem um tiquinho de senso. Está no escritório de marcas registradas, registrando selos mágicos. Está lidando com uma agência de encontros que representa nossa única chance de alguma vez conhecer uma estranha buceta gótica. Está conseguindo pra nós uma oferta melhor naquele Renault novo, ajudando a prolongar a miserável vida de nosso cego e incontinente cachorrinho Gandalf, fazendo networking como louco pra garantir os diretos daquele Tarot de Hogwarts do Harry Potter. Ainda está tentando resolver o congestionamento resultante do Aeon de Horus ter furado através do canteiro central e invadido a pista sentido sul, sendo atingido de frente pelo Aeon de Maat, que derramou sua carga de penas pretas no acostamento. Não tem certeza se a ketamina foi realmente uma boa ideia. Está sentada olhando nervosa para mil estantes de livros desde entrevistas com necrófilos sobre estilo de vida e retrospectivas de moda na família Manson. Está aparecendo em celebrações neo-nazistas perto de Dusseldorf. Está se perguntando se deve introduzir uma política de “não pergunte, não conte” com relação ao 11º Grau. Está aconselhando Cherie Blair sobre tachinhas de acupuntura, e Islington inteira sobre Feng Sui. Colocou piercing no pênis numa tentativa de chocar seus pais classe média dos Home Counties, que estão mortos há dez anos, de qualquer maneira. Ela queria ser David Blaine. Ela queria ser Buffy. Ou, bem francamente, qualquer um.
Poderíamos, se desejássemos, ter as coisas de outra maneira. Ao invés de uma magia que está em servidão com um passado de ouro ingenuamente imaginado, ou ainda em romance com um futuro lugubremente fantasiado de parque temático do Deus Ancião, poderíamos tentar ao invés disso uma magia adequada e relevante à sua própria e extraordinária época. Poderíamos, se assim decidíssemos, garantir que o atual ocultismo seja lembrado como o auge de uma fanfarra ao invés de um suspiro decadente; um balbuciar moribundo e envergonhado; nem mesmo uma lamúria. Poderíamos transformar este terreno árido em um abundante paraíso, um trópico onde cada pensamento poderia florescer como arte. Sob o altar está o estúdio, a praia. Poderíamos insistir nisso, fôssemos verdadeiramente quem dizemos que somos. Poderíamos atingir isso não rabiscando sigilos, mas compondo histórias, pinturas, sinfonias. Poderíamos permitir que nossa arte espalhasse suas asas de escaravelho psicodélico em toda sociedade mais uma vez, e talvez ao fazê-lo, deixar que alguma luz ou graça caia sobre aquele dolorido e obscuro organismo. Poderíamos ser refeitos em nosso ninho fresco, permanecer reinventados num verdadeiro alvorecer de nossa Arte dentro de um mundo matinal, com nossa tinta ainda fresca, recém saídos do ovo e com nossos olhos ainda avermelhados no Éden. Recém-nascidos na Criação.
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Crédito da imagem: Google Image Search/lexprojects.com (Alan Moore, The Great I Am)
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