Platão comunista
“Críton, somos devedores de Asclépios, devemos-lhe um galo, pois bem, paga minha dívida, não te esqueças.”
Essas foram às últimas palavras de Sócrates, grande sábio da antiguidade grega, já após haver bebido do veneno, e cercado de seus discípulos mais próximos. Logo, o veneno fez seu efeito...
O filósofo com olhos de touro havia sido condenado pelo Estado ateniense à morte, e a contragosto daqueles que lhe amavam, mas permanecendo fiel ao que acreditava, escolheu seguir a vontade da polis, e jamais considerou a possibilidade de se exilar.
A acusação afirmava que ele era “culpado por não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, por introduzir novos cultos e, também, por corromper a juventude”. Na época Platão tinha em torno de 30 anos, e como jovem discípulo de Sócrates, jamais se recuperou do trauma de se ver privado de sua divina companhia pela decisão democrática (ele foi julgado por um tribunal popular).
Sobretudo por parte da linhagem de sua mãe, Platão tinha parentes diretamente envolvidos na política de Atenas. Era um aristocrata, como tantos outros jovens seduzidos pela sabedoria socrática. Mas nada disso evitou que se tornasse um profundo crítico do sistema político ateniense, e até mesmo que se aventurasse a criar suas próprias versões utópicas para tentar substituir ou reformar o sistema que havia assassinado o melhor homem que ele havia conhecido.
O termo utopia, é preciso lembrar, foi inventado muito após a época platônica. No entanto, uma de suas definições, isto é, “uma descrição imaginária de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade”, certamente se aplica ao que Platão tentou realizar em duas de suas obras mais complexas, A República e As Leis.
Platão foi profundamente conservador em suas ideias, ao ponto de estabelecer (em As Leis) regras estritas para os padrões da música, do canto e da dança na educação moral. Para resumir, e mal comparando, se Platão houvesse vivido no século XX, seria um dos primeiros a abominar o Rock & Roll. Talvez exatamente por isso seja chocante para muitos a defesa que o filósofo grego fez de uma espécie de revolução comunista, muitos séculos antes de Karl Marx.
Assim como o termo utopia deve ser aqui considerado com parcimônia (como dito acima), o mesmo sem dúvida vale para o termo comunismo. Dito isto, que cada um julgue por si só o quanto Marx bebeu de Platão, ou pelo menos quantos pontos em comum podem ser encontrados nas suas ideias políticas...
Em A República, sempre partindo de um conservadorismo arcaico, quase profético, Platão afirma que “nos primórdios da civilização grega” existiu um Estado ideal. Cita, nesse sentido, Hesíodo, e mostra como através dos tempos os homens foram se corrompendo: em consequência do desenvolvimento do espírito de lucro, surgiram as discórdias. Deste modo, nasceu a guerra de todos contra todos, até que por fim os homens entraram em acordo e resolvem dividir as terras e as casas, para implantar a propriedade privada e dividir a sociedade em amos e escravos.
Mas sem uma educação filosófica os homens, logo depois, não mais se contentam com a satisfação das próprias necessidades materiais. São dominados pela ambição e desejam viver luxuosamente. É então que surge a riqueza excessiva, e com ela a cobiça e as guerras de conquista. Tal situação explica o aparecimento de um exército permanente. O Estado se complica.
A insaciabilidade dos ricos determina a pobreza das massas. Afinal, a luta entre as classes termina com a vitória dos pobres, que sempre são mais numerosos, e a implantação da democracia. Mas a democracia, segundo Platão, logo cede lugar à tirania, isto é, ao domínio de indivíduos que enganam as massas para melhor oprimi-las. E é precisamente aqui que o trauma de seus 30 anos o influencia decisivamente em sua utopia comunista: Platão defende sim uma sociedade baseada em valores morais conservadores e em uma distribuição igualitária de terras e riquezas, mas isso não passa por decisões democráticas.
Segundo ele, enquanto os homens sensatos não estiverem à frente do governo, ou enquanto os reis e os príncipes não resolverem governar com inteligência e brandura, os governos não poderão suprimir os males que afligem os Estados e o gênero humano. Platão queria não uma monarquia, mas uma sucessão de reis filósofos, que deveriam ser os verdadeiros guardiões do Estado, procurando o auxilio dos funcionários e dos guerreiros para poderem realizar a sua missão. E as camadas dirigentes, em virtude de seu nível intelectual e moral superior, deveriam ficar situadas acima do povo.
Ou seja, no comunismo platônico, a distribuição de terras e riquezas não seria garantida pela ascensão das classes trabalhadoras e pobres a posições de comando, tanto o contrário: a sua utopia deveria ser garantida pela sabedoria dos reis filósofos, que deveriam zelar pelo bem de todos. Nada, em nenhum momento, foi dito sobre a situação dos escravos – o mundo humano, afinal, sempre evoluiu bem devagar.
Dizem os analistas que em A República Platão tentou revolucionar o Estado. Já em As Leis, seu último livro, que de fato deixou incompleto, ele já havia compreendido que uma revolução não seria possível nem desejável, mas sim uma reforma.
Para elaborar tal reforma ele toma como norte que o melhor Estado, a melhor Constituição e as melhores leis aparecerão quando a sociedade tiver por lema: tudo é comum entre amigos. Dessa forma, não é necessário buscar em parte alguma um modelo de Constituição ideal. Basta que os homens sejam fieis a esse lema ou que, pelo menos, se esforcem para atingi-lo.
E como fazer? Bem, tudo se iniciaria pela repartição de todas as terras. A divisão deveria ser feita de tal forma que cada um considere a porção que lhe coube como parte integrante da propriedade coletiva. Nessa altura Platão era consideravelmente mais pragmático, e mesmo dentro de sua utopia considerava que tais terras deveriam ser inicialmente inabitadas (coisa bem mais fácil de se achar na época), isto é: era a fundação de um novo Estado, e não uma revolução dentro de um já existente.
No entanto, a ideia de Platão era construir um Estado tão perfeito que eventualmente o seu sistema seria implementado pelo menos em toda a Grécia. Se obtivesse sucesso, a nobreza intelectual dirigiria o Estado, e os agricultores e os artesãos cuidariam exclusivamente das suas atividades profissionais, com o fim de desenvolver ao máximo todas as aptidões, nos limites da respectiva esfera profissional. Os trabalhos manuais penosos ou degradantes não seriam realizados pelos gregos, mas pelos estrangeiros ou pelos escravos. Os gregos deveriam se dedicar unicamente as suas obrigações de cidadãos ou desempenhar as profissões mais nobres.
Finalmente, ninguém poderia ter ouro, prata ou dinheiro em quantidade excedente às necessidades quotidianas. Ninguém poderia processar o Estado, e a justiça comum só valeria entre os cidadãos ou, claro, no caso do Estado precisar condenar algum crime. Para Platão, no entanto, um julgamento trágico como o de Sócrates jamais ocorreria, ele tinha plena convicção de que os reis filósofos, ou os governantes nobres, julgariam com mais sabedoria do que a população comum.
O seu objetivo não era conquistar riqueza e poder, mas sim erigir uma vizinhança mais nobre, um mundo mais justo... Os cínicos, obviamente, dirão que o Inferno está cheio de boas intenções, não sem alguma razão, devo admitir.
É sempre chocante analisar como um filósofo tão grandioso, tão essencial para o pensamento ocidental (incluindo aí o cristianismo), pôde ter ideias tão claramente desconexas de nossa realidade habitual. A despeito da diferença das eras, o comunismo platônico já era claramente inviável na sua época (e eu nem falei sobre a supressão das famílias, diga-se de passagem).
No entanto, se formos comparar sua utopia com o pensamento político dos últimos dois séculos, veremos que ali se encontram representadas não somente algumas das ideias marxistas, normalmente rotuladas de extrema esquerda, mas também ideias puramente conservadoras, próprias até mesmo de uma extrema direita que, por tampouco crer na democracia, pede por intervenções estatais que possam fazer a sociedade rumar novamente para “aquela época antiga onde o que valia eram a moral e os bons costumes”.
No fundo, ao menos em nossa época, os extremos se encontram e dão as mãos, embora não queiram enxergar. Já na antiguidade grega, onde tudo era novo e onde o mundo humano ainda estava sendo pensado e elaborado, é perfeitamente perdoável que Platão tenha escorregado aqui e acolá. É talvez por isso que os filósofos continuarão sendo filósofos, e os políticos continuarão sendo políticos. Tudo o que eles precisam, tudo o que nós precisamos, é de uma boa conversa.
***
Nota: seguidores do blog me alertaram que não se pode falar em "Estado comunista" em Marx. Como digo no texto, falo de possíveis pontos em comum entre Platão e Marx, pois certamente Platão não foi comunista, uma vez que o termo não existia na sua época. Dito isso, me parece claro que nas tentativas práticas de implementação do comunismo no "mundo real", sempre tivemos um Estado comunista (ou pelo menos na grande maioria das vezes).
Crédito da foto: Google Image Search + raph
Marcadores: artigos, artigos (251-260), comunismo, filosofia, história, Marx, Platão, política