Incertos os locais e os tempos em que viveram. Os tempos: mais de três mil anos atrás. [...] A área: o norte do subcontinente indiano, mas sem fronteiras precisas. Não deixaram objetos nem imagens. Deixaram somente palavras. Versos e fórmulas que marcavam rituais. Meticulosos tratados que descreviam e explicavam esses mesmos rituais. [1]
O Rigveda é um dos textos mais antigos da humanidade. Escrito em sânscrito, a ancestral língua sagrada dos hindus, ele detalha em minúcias os rituais e sacrifícios endereçados aos seus deuses primordiais, ou devas. Agni, deva do fogo, era tão importante que é o seu nome que inaugura a primeira linha do Rigveda. Depois dele, vieram muitos, muitos outros: Indra, Mitra, Varuna, Krishna, Shiva, Ganesha, a lista chegaria literalmente aos milhares.
Hoje o sânscrito é considerado uma língua morta, isto é, sem falantes nativos. Entretanto ele faz parte do conjunto de línguas oficiais da Índia, pois é até hoje extensivamente utilizado nos rituais religiosos, incluindo o canto de mantras. Mas, se hoje o sânscrito está longe de estar morto de fato, há milhares de anos ele serviu com base para a escrita de tantos documentos que pesquisadores estimam que há mais escritos antigos em sânscrito do que em latim e em grego antigo, somados.
Ao longo dos Vedas, os textos sagrados hindus, do qual o Rigveda foi o primeiro, os deuses são chamados de devas desde sempre. A palavra sânscrita deriva da raiz div, que significa “resplandecente, fonte de luz, luminoso”, e cujo uso como adjetivo remonta a algo “celeste, divino”. De vez em quando, os Vedas mais antigos associavam os devas a um outro nome, asura. Como veremos, este termo sânscrito foi consideravelmente ressignificado ao longo dos séculos, mas lá no início ele parecia se referir a uma qualidade: “poderoso”. Portanto, inicialmente muitos devas tinham a qualidade asura, e até mesmo alguns reis védicos eram associados ao termo.
Com o passar do tempo, no entanto, asura veio a significar coisa muito diferente: primeiro, semideuses sobre-humanos com boas e más qualidades; e, eventualmente, algo que se assemelha em muito ao que chamamos de demônios no Ocidente cristão. Ao que parece, os asura se tornaram deuses endemoniados, mas por que será que o termo passou por uma ressignificação tão radical?
Há uma teoria muito interessante que conecta o termo sânscrito a um termo muito parecido de um idioma que serviu como base para os textos sagrados do zoroastrismo, religião da antiga Pérsia: tal idioma era o avéstico, um primo do próprio sânscrito. Segundo os Gatas, os livros mais importantes da religião persa, cuja autoria é atribuída ao próprio Zoroastro, os deuses podiam ser divididos em duas classes: os ahuras eram aqueles dignos de adoração, enquanto os daevas deveriam ser evitados. O termo ahura estava, inclusive, associado ao próprio nome do deus e criador supremo dos seguidores dos Gatas: Ahura Mazda.
Com o passar do tempo, entre os zoroastristas os daevas foram sendo cada vez mais demonizados. Se antes eram somente deuses menores, indignos de adoração, eventualmente se tornaram... adivinhem? Isso mesmo: algo que se assemelha em muito ao que chamamos de demônios no Ocidente cristão. E não é necessário se aprofundar muito mais para notar o que a teoria nos diz: para os hindus, os deuses (ahuras) dos Gatas se tornaram demônios (asuras), ao passo que para os zoroastristas foi justamente o oposto, os deuses (devas) dos Vedas é que viraram demônios (daevas).
Aliás, conhecendo a humanidade como conhecemos, não é difícil compreender como essa teoria pode ter base sólida na realidade. Afinal, quantos não foram os povos ditos civilizados que classificaram todo e qualquer estrangeiro como bárbaro? E quantos não foram os religiosos que chamaram seus rituais de “religião oficial”, e todos os demais de “magia e bruxaria”? Assim, para boa parte da humanidade, o deus de um povo era o demônio do outro, e vice versa; mas terá sido sempre assim?
Pelo que dela me contaram, acho que não há nada de bárbaro e selvagem nessa nação, a não ser que cada um chame de barbárie o que não é seu costume. Assim como, de fato, não temos outro critério de verdade e de razão além do exemplo e da forma das opiniões e usos do país em que estamos. Nele sempre está a religião perfeita, o governo perfeito, o uso perfeito e consumado de todas as coisas. [2]
Quando os padres europeus vieram ao Brasil, então recém-descoberto por eles (mas os índios chegaram milênios antes), se depararam com a dupla tarefa de evangelizar tanto os indígenas quanto os escravizados africanos. E, se entre os índios havia tantos povos distintos que foi difícil determinar um único conjunto de deuses, entre os africanos essa etapa foi mais simples, pois muitos deles cultuavam os chamados orixás, que eram como deuses da natureza.
Não demorou muito, e eles tentaram identificar qual dos orixás seria o representante do mal, isto é, o demônio. Como encontraram um símbolo de Exu com um pênis ereto, e como muitos deles associavam o sexo ao pecado, e o pecado ao mal eterno, ficou acertado assim, de forma um tanto apressada, que na falta de um representante melhor, Exu seria o Coisa Ruim.
Ora, ocorre que entre os orixás, assim como entre muitos outros panteões, inclusive o dos deuses gregos, não há um representante do mal, um adversário direto do Criador, muito menos um anjo caído. Veja bem: isto não significa que os orixás, ou até mesmo os demais deuses, não possam praticar atos de maldade, eles apenas não representam o mal. Os deuses em geral já cometeram desde adultérios a genocídio generalizado por meio de dilúvios, mas isso por si só não quer dizer que Zeus e Jeová (para dar nome aos bois) sejam demônios, muito pelo contrário. Então, por que diabos Exu deveria ser demônio somente porque foi visto com o pênis ereto?
Uma das possíveis explicações para a ausência de um representante do mal entre os orixás pode ser o fato de que os povos africanos que cultuavam tais entidades da natureza não travaram nenhum tipo de conflito cultural, onde a religião de um povo tentou se infiltrar no território de outro, como provavelmente se passou entre os hindus e os zoroastristas. Mas talvez a explicação seja ainda mais simples, talvez o próprio demônio não seja exatamente aquilo que a maioria pensa.
O termo “demônio” vem do latim, daemon (em grego, daimon) cuja tradução aproximada está mais próxima do que chamamos hoje de “espírito”. Aliás, a prova de que o termo não era originalmente associado a algum ser maléfico, ou grupo de entidades que representavam o mal, e somente o mal, é que os gregos antigos usavam termos como eudaemon, um espírito ordeiro, e cacodaemon, um espírito caótico. Mesmo o cacodaemon não seria necessariamente mal, mas antes uma espécie de espírito zombeteiro, que não seguia as regras. O próprio Sócrates, grande sábio da filosofia grega, dizia estar em contato constante com seu daemon, isto é, uma espécie de espírito guardião.
E, se ainda não foi o suficiente para mudar sua opinião, os gregos ainda tinham um termo muito curioso para expressar uma espécie de estado de plenitude do ser, de grande felicidade e contentamento ante a existência, eudaimonia. E o que significa eudaimonia? Ser habitado por um bom daemon, viver sob a influência de um bom espírito.
Assim, da próxima vez que alguém passar pelo seu caminho desesperado, temendo o demônio que dobrou a esquina, diga para que não fuja, diga para chamá-lo para tomar um café. Vai saber, talvez o seu demônio na realidade seja o seu próximo grande amigo.
(este texto eu dedico ao meu amigo Robson Belli, pelo conjunto da Obra; a ideia inicial surgiu de um comentário do Guilherme Romano no Boteco Mayhem)
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[1] Trecho do início de O ardor, de Roberto Calasso (trad. Federico Carotti; Companhias das Letras).
[2] Trecho dos Ensaios de Montaigne, mais precisamente do ensaio intitulado Sobre os canibais, onde ele comenta sobre o que ouviu falar dos índios brasileiros (trad. Rosa Freire D’Aguiar; Companhia das Letras).
Crédito das imagens: [topo] raph (puja, ou ritual do fogo, celebrado de forma muito similar aos Vedas, aqui em Campo Grande/MS, por Atmaji e seus discípulos); [ao longo] Google Image Search (representação clássica de Ahura Mazda); Guito Moreto/O Globo (Exu representado no desfile da Grande Rio na Marquês de Sapucaí; a escola venceu o Carnaval de 2022).
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