Pirro e o ceticismo
Trechos do artigo de José Francisco Botelho para a revista Vida Simples. Os comentários ao final são meus.
Em Élida, no oeste da Grécia, vivia um pintor de minguados recursos e parcos talentos chamado Pirro. Ganhava a vida fazendo afrescos, mas é de se imaginar que sua clientela fosse pouco exigente: os antigos cronistas garantem que suas pinturas eram perfeitamente esquecíveis. Pirro compreendeu, decerto, que seus dotes pictóricos nada tinham de olímpicos; talvez embalado pela desilusão artística, resolveu tornar-se filósofo.
Foi uma decisão propícia: a nova ocupação levou-o – literalmente – longe. Naquela época, um rapaz baixote e megalomaníaco ocupava o torno da Macedônia, a maior potência militar da Europa. Em 356 a.C., o monarca de 22 anos marchou rumo ao Oriente, com o plano de espalhar seus domínios até os confins do mapa-múndi. Além dessas ambições desmedidas, Alexandre – que, apesar da estatura mínima, foi apelidado de “o Grande” – nutria veleidades literárias e filosóficas. Mesmo nas barracas militares, costumava dormir com um exemplar da Ilíada embaixo do travesseiro; e gostava de alardear que seu professor de retórica e metafísica fora o sublime Aristóteles.
Pois bem: em sua jornada de conquista universal, Alexandre alistou não apenas lanceiros, arqueiros e espadachins, mas também pensadores abstratos. E, dessa forma, o pintor frustrado tornou-se turista global: no séquito de Alexandre, Pirro embrenhou-se pela Pérsia, pela Arábia, pelo Egito; atravessou o árido coração da Ásia, molhou os pés no Ganges e respirou as brisas geladas do Himalaia. Ao longo da travessia, deparou-se com a indomável variedade da espécie humana: conheceu povos que veneravam crocodilos e chacais, outros que adoravam o fogo, outros que conversavam com as estrelas; na Índia, encontrou sábios que viviam no meio da floresta, alimentando-se de folhas secas e vestidos com cascas de árvores.
Do Mar Mediterrâneo às praias do Índico, o ser humano buscava a verdade; mas, em todo o vasto mundo, Pirro não encontrara uma única verdade igual a outra. Convenceu-se de que nada é convincente: de volta a Grécia, passou a pregar uma nova e estranha doutrina, segundo a qual todo conhecimento humano é mera suposição. Já não existe verdade segura, só nos resta esmiuçar o mundo de forma incansável, sem jamais nos determos em conclusões inquestionáveis: da infinita insegurança nasce a incabível curiosidade. Por isso, os seguidores de Pirro ficaram conhecidos como os céticos – do grego sképtomai, que significa “examinar” ou “investigar” [1].
A incerteza, para muita gente, é sinônimo de angústia – mas, para os seguidores de Pirro, ela é uma eficaz terapia. Ao longo da história, dogmas inumeráveis estontearam a humanidade; nós, pobres mortais, vivemos correndo atrás de certezas que sempre se encontram na curva do horizonte. A necessidade de ter razão pode nos tornar desarrazoados: quantas vezes não percebemos que andamos esbravejando sobe coisas que só conhecemos pela metade (ou nem isso) [2]?
Perante essas agruras, a terapia cética é de uma simplicidade implacável: antes de afirmar qualquer coisa, deveríamos admitir que não podemos afirmar tudo. Aceitar os limites do conhecimento humano é uma forma de libertação: quem abraça a eterna dúvida encontra a paz de espírito ou ataraxia, virtude que os antigos valorizavam sobe todas as coisas.
[...] O ceticismo, como tantos vocábulos profundos, perdeu um tanto do sentido original, à força de ser repetido ou mesmo sequestrado: Pirro consideraria dogmáticas muitas pessoas que hoje se declaram céticas. Digamos que alguém pergunte a um Pirro moderno se ele acredita em Deus. À primeira vista, existem duas respostas possíveis: sim ou não. O senso comum diria que a posição cética corresponde à segunda alternativa. Mas, nesse caso, o senso comum está enganado: para um cético clássico, devemos suspender o juízo a respeito de assuntos logicamente insolúveis.
É possível imaginar um universo criado por uma inteligência transcendente, além da compreensão humana; é também possível imaginar um cosmos solitário e materialista, sem outro sentido além do bailado dos átomos. Ou seja: ambas as hipóteses são verossímeis, mas nenhuma delas é verificável. Não podemos bater uma radiografia do universo e constatar a presença ou ausência de Deus, como quem identifica um órgão ou uma cartilagem; logo, tanto o sim quanto o não correspondem a um salto de fé.
O ateísmo, nos olhos pirrônicos, é apenas uma crença, igual às outras. Pirro, aliás, tornou-se sacerdote da antiga religião grega, após seu retorno a Élida; e George Berkeley, um dos nomes mais célebres do ceticismo moderno, era bispo da Igreja Anglicana.
Mas não precisamos nos alçar a enigmas metafísicos para testas a terapia pirrônica. Mesmo que deixemos o sentido do cosmos à escolha de cada um, veremos que o método tem efeitos salutares quando aplicado às coisas do dia a dia. Os céticos da Antiguidade colocavam em dúvida até mesmo o testemunho dos sentidos; alguns questionavam o brilho do Sol, a doçura do mel, ou a vermelhidão das coisas vermelhas [3] – mas não precisamos ir tão longe. Será suficientemente cético quem se ativer a esta máxima: somos criaturas finitas, enquanto a verdade é infinitamente complexa – e o universo talvez não caiba em uma casca de noz.
Isso não implica renunciar a toda a opinião – podemos deixar a suspensão total do juízo ao velho Pirro, em suas divagações. [...] Para nós, basta recordar que toda perspectiva humana é parcial. A visão completa das coisas só pertence aos deuses – e, bem, eles costumam guardar seus segredos com muito afinco.
Os antigos cartógrafos tinham o hábito de escrever, nas bordas dos mapas marítimos, o lema latino nec plus ultra – “daqui não passarás”. O objetivo era assustar os navegantes audazes – e lembrá-los de que toda viagem tem de chegar ao fim. O dogmatismo também anda, sempre, a rabiscar términos e limites na geografia da mente; com regra e esquadro, ele insiste em tascar pontos-finais à aventura do pensamento.
Nessas horas, um gole do antídoto pirrônico vem a calhar. Pois ele nos devolve a medida certa de modéstia e ousadia: não sabemos tudo; e, por isso mesmo, temos de acreditar que a busca continua. Sejamos então como Alexandre, que não quis se deter na Babilônia, nem em Persépolis, nem nos desertos do Afeganistão; seguiu marchando enquanto pôde e, ao olhar as estrelas, exclamava com sonhadora melancolia: “Há muitos mundos lá em cima; e não poderei conquistar nem mesmo este mundinho nosso, aqui embaixo”.
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[1] O ceticismo original nasceu, com Pirro, de uma constatação tão simples quanto profunda e humilde: a de que nenhum ser humano detém a verdade absoluta. Há uma parábola sufi que diz que Deus carregava um espelho e esse espelho era chamado “Verdade”. Um dia, ele deixou cair, e seu vidro se quebrou em inúmeros pedacinhos. Cada pessoa que descobriu um desses pedacinhos acreditou que havia descoberto toda a verdade, e foram raras as que chegaram à conclusão de que a verdade absoluta não pode nunca ser a propriedade de uma só pessoa, de uma só doutrina ou filosofia. É isto precisamente o ceticismo de Pirro: não uma negação da verdade, mas um reconhecimento de que ela só pode ser encontrada em parte, e somente por aqueles que não desistiram de continuar investigando.
[2] Infelizmente é muito comum encontrarmos entre os que se satisfazem com dogmas e certezas absolutas gente que não está aqui em busca de uma verdade para satisfazer as suas dúvidas internas, mas antes para expô-la aos demais, por vezes de forma grosseira e violenta, numa necessidade quase que insaciável de “ter razão”. Ironicamente, tais pessoas são as que se encontram, quase sempre, mais distantes da razão.
[3] O ceticismo moderno está, talvez irremediavelmente, contaminado pelo positivismo da Academia. O que isto quer dizer, basicamente, é que hoje é muito comum crermos que nossas dúvidas só podem ser solucionadas por comprovações objetivas, muitas vezes em um laboratório, e acompanhadas por calhamaços de estudos científicos e/ou estatísticas. Isto é bom, por exemplo, para o desenvolvimento da tecnologia; mas é muito ruim para o desenvolvimento do ser humano. Os céticos antigos questionavam tudo, é verdade, mas também aceitavam as comprovações subjetivas de suas próprias experiências pessoais, ainda que não pudessem, com isso, “evangelizar” suas comprovações adiante. Ocorre que Pirro e seus seguidores não perdiam seu tempo tentando convencer os outros de nada – nem do que existe, nem do que não existe.
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