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29.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte final)

« continuando da parte 2

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, orginalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

Sam: Você esteve trabalhando no Moon and Serpent Bumper Book of Magic com Steve Moore. Este trabalho mira apresentar o conhecimento esotérico de uma forma totalmente prática e compreensível. Seria correto dizer que esta obra seria um passo além de onde você parou com Promethea, e qual o estágio do seu desenvolvimento?

Alan: Seria mais preciso dizer que Promethea foi um instrutivo primeiro passo, um Moon and Serpent não-oficial que nos ajudou a moldar nossas ideias para este grimório mais sério e elaborado que nós sempre falamos em produzir um dia.

O ensaio final está concluído, mas ainda há algumas seções do texto que preciso retrabalhar e finalizar, e no momento ainda estamos em busca dos artistas apropriados para cada uma das suas seções. Penso que será lançado, no mínimo, em meados de 2016.

Sam: Quais foram as fontes que mais o ajudaram em sua própria jornada mágica?

Alan: Tudo o que li foi de alguma forma útil para mim, mesmo os dementes que aparecem de vez em quando, que nos dão uma instrução muito útil sobre como não pensar.

Pelo lado positivo, tenho de dizer que a obra de Robert Anton Wilson foi altamente iluminadora, que William Blake e Austin Osman Spare me trouxeram algumas bases inestimáveis e que, acima de tudo, a maior influência sobre minha teoria e prática mágicas foi, seguramente, Steve Moore.

Sam: Em Fossil Angels você alertou sobre a necessidade de uma série de mudanças de comportamento em relação à prática da magia. Você acredita que alguma coisa mudou desde que o seu ensaio foi publicado?

Alan: Usualmente tais ideias levam anos ou décadas para se tornarem visíveis. Eu tenho certeza de que houve mudanças aqui e ali, mas não esperaria ver ainda uma grande reação.

Eu penso que ainda há mais trabalho a ser feito sobre a definição ou redefinição da identidade pública da magia antes de podermos ver um número significante de pessoas tomaram este caminho de forma mais séria.

Sam: Por acaso você se sente relacionado com a tradição bárdica do druidismo e sua conexão com o Awen [inspiração poética]?

Alan: Certamente. A tradição bárdica da magia, onde as sátiras eram justificadamente mais temidas do que maldições, e os compositores eram respeitados como magistas poderosos, e não como músicos sobrevivendo às margens da indústria do entretenimento, é uma tradição que faria muito bem aos ocultistas e escritores que por ventura se interessem em se familiarizar. Você pode matar ou curar com a palavra. Arregace suas mangas e corra atrás deste conhecimento.

Sam: Você vê a magia cerimonial como algo acessível e sem grande complexidade para todos, sejam druidas, pagãos, cristãos, budistas, hindus, ou o que for?

Alan: Bem, se as pessoas estão imersas no que Robert Anton Wilson se referiu como "um túnel de realidade", e a sua mentalidade religiosa dita que a magia é inexistente, má ou herege, então se relacionar com ela dificilmente será algo acessível ou simples. Eu creio que é melhor abordar a magia com uma mentalidade genuinamente aberta e nenhum "apego aos resultados". Se a sua mente não está voluntariamente receptiva em sua porta de entrada, então é mais provável que ela seja arrombada pela experiência mágica em si mesma, com consequências possivelmente desastrosas.

Preconceitos religiosos ou racionalistas, creio eu, contribuem para o que William Blake chamou de "algemas forjadas pela mente", e progredir mais neste assunto poderia se provar antiético.

Sam: Você é um reconhecido defensor de Northampton [cidade natal de Moore]. Seria parte disso uma conexão que você sente com a terra dos seus ancestrais?

Alan: Eu me sinto conectado com os processos históricos, geográficos, sociopolíticos e genéticos que resultaram nisto que eu sou. Da mesma forma, ao permanecer muito tempo num mesmo lugar você adquire uma compreensão mais profunda do seu significado e, por extensão, do significado que aguarda por ser descoberto em qualquer outro lugar do planeta.

E, claro, como destacou Spike Milligan, todos têm de estar em algum lugar.

Sam: Conte-nos mais sobre as performances musicais e teatrais das quais participou junto ao Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels. Tendo passado a maior parte de sua carreira nos teclados e máquinas de escrever, qual a importância desse tipo de performance ao vivo para você?

Alan: Na época das apresentações, eu sentia que era aquilo que nós fomos instruídos a fazer. Eu sempre gostei de performances, claro, dentro de certos limites. É uma experiência muito diferente de trabalhar nos teclados, como você disse.

No entanto, ultimamente eu tenho recusado muitas aparições ao vivo e apresentações. É que simplesmente não sinto que é o tipo de coisa em que devo me focar no momento.

Sam: Finalmente, você tem algum conselho para magos e artistas inexperientes que estejam nos lendo?

Alan: Sim. Lembre-se de que quando eu digo que a magia e a arte são equivalentes, você não deve deduzir que estou dizendo que a magia é somente arte; que estou de alguma forma tentando reduzir a magia ao associa-la com algo que todos creem ser algo comum e factível.

O que estou dizendo, em realidade, é que toda arte é e sempre foi tão somente magia, que todas as extraordinárias recompensas que dizem que podemos conquistar através da magia também podem ser alcançadas pela arte, e todos os horrores, pesadelos e perigos comumente associados à prática da magia também ameaçam o artista ou o escritor.

Aborde o seu trabalho com tanta reverência, compaixão, inteligência e precaução quanto você teria ao encontrar com um suposto anjo, deus ou demônio. A arte pode lhe matar ou lhe levar a loucura tanto quanto a invocação dos 72 Espíritos Infernais da Goétia de Salomão, e se você duvida disso, considere todos os artistas, poetas e atores que se suicidaram ou arruinaram suas vidas – aposto que a lista não será curta.

A arte e a magia são provavelmente as realizações mais preciosas da humanidade, elas são o nosso contato mais íntimo com a eternidade. Leve-as a sério; leve a sério a si mesmo, e lembre-se de que a sua arte e a sua magia são tão grandiosas, tão plenas de poder, tão perigosas e belas quanto você pode imaginá-las em seu ser.

Não as busque na esperança de obter dinheiro, poder, fama e status, ou como uma modinha, mas pelo que elas são em si mesmas. É este o significado da devoção, e se for praticada da forma certa, ela pode lhe transformar, assim como o mundo em que vive.

Oh, e encontre algum deus ou equivalente, ou melhor, deixe que um deus lhe encontre. Eu sugeriria um deus com algum cabelo estiloso, mas isso pode ser somente meu gosto pessoal. Boa sorte.

***

Comentário final
Devido a se tratar de uma entrevista já demasiado longa para ser publicada na íntegra aqui no blog, eu optei por ignorar algumas perguntas que, no fim das contas, são quase um “lugar comum” nas raríssimas entrevistas de Moore. Para quem tiver curiosidade, tais perguntas tratavam de Glycon (o controverso deus serpente da Antiguidade, o “deus escolhido” por Moore), das adaptações de suas obras para o cinema (em suma, ele continua achando tudo horrível e não quer tomar parte), de Grant Morrison (solenemente ignorado na resposta: “não creio que seja nem um escritor nem um mago”) e Austin Osman Spare (que Moore tem em grande crédito: “um mago quase perfeito”).

Crédito da foto: momentofmoore.com (Alan Moore)

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25.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 2)

« continuando da parte 1

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, orginalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

Sam: Você vê um elo íntimo entre a magia, a imaginação e a criatividade, uma ideia que foi desenvolvida em Promethea. Conte-nos mais sobre essa conexão.

Alan: Como já foi dito, a minha posição é a de que a arte, a linguagem, a consciência e a magia são todos aspectos do mesmo fenômeno. Com a arte e a magia vistas como quase totalmente intercomunicáveis e conectadas, o reino da imaginação se torna crucial para ambas as práticas.

O reino cabalístico lunar da imaginação é chamado Yesod, que é um termo hebraico que significa "Fundação". Isso sugere que a imaginação é a única fundação sobre a qual nossas funções mentais elevadas estão edificadas e, da mesma forma, por onde podem ser acessadas. A magia, segundo a nossa formulação, parece estar intimamente envolvida com a criatividade e a criação, em quaisquer contextos onde tais termos possam ser usados.

Sam: Promethea já foi descrito como "um passeio cabalístico", e traz uma empolgante visão geral das ciências ocultas. Ele abre a porta para este reino, e parece convidar as pessoas a aprenderem mais sobre ele. Foi esta a sua intenção?

Alan: A minha intenção original com Promethea, um título em que não perco muito tempo pensando hoje em dia, pois não me pertence, foi criar um modelo de história em quadrinho de super-heróis mais imaginativo e elaborado, usando as antigas heroínas do era da ficção pulp [pulp fiction] como meu ponto de partida.

Em uma ou duas edições, eu comecei a perceber como uma personagem desse tipo poderia evoluir para expressar de forma lúcida muitas das ideias que estavam há algum tempo no centro da minha mente e de todo o meu processo criativo.

Sam: Nos capítulos finais da série episódios inteiros foram usados para explorar cada esfera [sephirah] da Árvore da Vida. É verdade que você os escreveu enquanto se encontrava num estado de consciência alterada por rituais e meditações?

Alan: Eu comecei a explorar as esferas inferiores algum tempo antes de iniciar meu trabalho com Promethea. Minhas investigações se valiam tanto de rituais inventados quanto de drogas psicodélicas.

Após certo ponto em meu "passeio cabalístico", eu senti a necessidade de experienciar as esferas mais elevadas, de forma a representá-las de forma autêntica para o leitor. Uma delas, Hokhmah, foi alcançada através dos métodos já mencionados, enquanto para as demais eu decidi testar se a meditação intensa focada na escrita criativa seria suficiente para adentrar tais reinos elevados da consciência e do ser.

Me valendo do critério, "se você não pode imaginar a experiência então provavelmente ainda não alcançou a esfera", eu descobri que realmente poderia investigar todas as esferas superiores, para minha enorme satisfação.

A exceção foi Kether, neste caso eu comi um grande pedaço de haxixe, escrevi as três primeiras páginas da edição e depois praticamente desmaiei.

Sam: Os quadrinhos de Promethea se conectam com o conhecimento esotérico em múltiplas camadas. Para além das palavras e das imagens em si, por exemplo, os episódios que tratam das esferas da Árvore da Vida usam esquemas de cor apropriados para cada um dos reinos visitados. Isso lembra muito o Tarot Ritual da Golden Dawn, que usa as cores das esferas nos elementos simbólicos e no pano de fundo de forma a transmitir bastante informação logo que a carta é observada. O nível de detalhe em Promethea chega a atordoar – tudo isso foi planejado desde o início, ou foi crescendo conforme o título foi sendo escrito?

Alan: Conforme já foi dito, o ímpeto inicial se inclinava muito mais para uma narrativa mais tradicional, e o projeto pareceu evoluir intuitiva e organicamente conforme foi progredindo.

Sobre o assunto dos esquemas de cor cabalísticos, naquela altura eu já havia absorvido a lição de que enquanto os números, joias, plantas, animais, perfumes e divindades eram atributos das diversas esferas, as cores eram basicamente as esferas elas mesmas.

Apesar de na época não estarmos certos de que as várias escalas de cor seriam apropriadas em termos de publicação moderna de quadrinhos, nós decidimos tocar a ideia e, graças ao extraordinário trabalho de Jeremy Cox, formos recompensados com uma bela e envolvente demonstração do poder da atmosfera da decoração cabalística.

Sam: O desenhista, J. H. Williams III, disse que a criação do episódio sobre o Abismo cobrou o seu preço a todos os envolvidos no projeto. Houve outras experiências tão significativas durante o desenvolvimento de Promethea?

Alan: Bem, teve a minha experiência anterior a criação da edição sobre Hokhmah, que ocorreu junto à companhia de Steve Moore numa noite de sexta-feira, em 12 de Abril de 2002, quando estávamos tentando estabelecer se qualquer outra pessoa poderia ver a deusa lunar que ele havia passado cerca de um mês tentando materializar [imaginar], conforme descrevi na minha narrativa psicobiográfica, Unearthing.

O experimento foi não somente um aparente sucesso, como ocorreu no mesmo dia em que uma voz em minha cabeça (estranhamente, minha própria voz, embora dissociada da minha vontade) me disse que eu havia me tornado um mago [Magus], o que, ilusoriamente ou não, eu decidi levar a sério. Eu também recebi uma convicção muito firme de que a edição #32 de Promethea seria a última, e seria construída de alguma forma no formato de um pôster psicodélico.

Após Steve ter ido embora eu escrevi e digitei a edição sobre Hokhmah – foi a #22 ou algo assim – em menos de sete horas de um fluxo característico de energia criativa disforme e espontânea. Ainda não um exemplo de Moorcock em sua melhor forma, mas ainda assim alguma espécie de recorde pessoal.

Desde esse dia a minha vida e as minhas percepções têm sido notadamente diferentes.

Sam: Promethea é a última da longa lista de protagonistas femininas que você criou, desde Halo Jones em 2000AD. O que o atraiu a escrever sobre protagonistas mulheres?

Alan: Não acho que tenha escrito mais histórias com protagonistas femininas do que masculinos. Se parece haver uma preponderância de personagens femininos em minha obra, isso provavelmente nasceu da minha tentativa de abordar a desigualdade entre os gêneros que prevalece em nossa cultura.

Por outro lado, minha série baseada na obra de H. P. Lovecraft, Providence, mal tem quaisquer personagens femininos e, conforme se trata de um trabalho derivado da imaginação de um autor que é notoriamente avesso às mulheres, muitas das que aparecem com o tempo mostram serem monstros apavorantes.

Eu devo destacar que isso se dá por conta da percepção de mundo do Lovecraft, e não da minha.

Sam: No seu ensaio de 2002, Fossil Angels, você sugere que os rituais e a linguagem que circundam a magia conspiraram para manter a maioria das pessoas afastadas. Promethea por acaso foi uma tentativa de romper tais barreiras e despertar as massas para as tradições magísticas?

Alan: Todo o propósito do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels (do qual Promethea é claramente uma parte não-oficial) desde o seu nascimento foi o de expressar as ideias da magia da forma mais bela e lúcida possível.

Em nosso Bumper Book of Magic nós vamos além e demandamos que os magos modernos se posicionem ao centro da sociedade, ao invés de se esconderem em suas margens, se engajando na ciência, na arte, na política, na filosofia e nas questões sociais, assim reconectando a magia com a população em geral, conforme ela foi inicialmente elaborada para servir e iluminar.

» encerra na parte 3

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Crédito da imagem: Montagem do Jovem Nerd (Alan Moore e capas do Promehtea ao fundo)

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24.2.16

A arte da magia, uma entrevista com Alan Moore (parte 1)

Trechos da entrevista de Alan Moore para a revista Pagan Dawn, originalmente em inglês, com tradução de Rafael Arrais.

A lenda dos quadrinhos, Alan Moore, é o autor de diversos títulos memoráveis, tais quais Watchmen, A Liga Extraordinária, V de Vingança e Do Inferno. Ele também é um praticante de magia cerimonial e cofundador do Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels [O Grande Teatro Egípcio de Maravilhas da Lua e da Serpente]. Alan vê uma conexão íntima entre a magia e a criatividade artística, o que foi explorado na sua série Promethea. Sam Proctor resolveu lhe perguntar mais sobre este assunto...

Sam: Você disse que o seu interesse pela magia foi despertado enquanto pesquisava sobre a história da Maçonaria para compor Do Inferno, e que você anunciou publicamente a sua intenção de se tornar um mago em seu aniversário de 40 anos. Diga-nos mais sobre o que o levou a dar uma guinada tão radical em sua vida.

Alan: Como era de ser esperado, inúmeros fatores entraram na equação para tal decisão. Um deles, que por acaso não teve nenhuma relação com a minha pesquisa sobre a Maçonaria, foi uma linha de diálogo que eu já havia dado ao personagem principal de Do Inferno, afirmando que o lugar em que os deuses indubitavelmente existiam era a mente humana, onde eles eram reais em toda a sua "grandeza e monstruosidade".

Uma reflexão mais aprofundada das implicações desta linha de diálogo que surgiu casualmente na obra me deixou com aparentemente nenhuma forma de refutar tal afirmação, e assim fui obrigado a reajustar toda a minha racionalidade, que anteriormente vivia num ponto de vista muito estreito.

O território até então virgem e inexplorado da magia me pareceu ser a única área do conhecimento humano que poderia me oferecer alguma forma de tentar resolver tais ideias tão novas e intrigantes. Me autodeclarar um mago, com todo o risco de cair em ridículo e perder minha reputação, me pareceu um primeiro passo necessário para ingressar nesta nova identidade de visão radicalmente estendida, e até hoje mantenho a mesma opinião.

É claro que a coragem para dar este salto potencialmente desastroso nas trevas do intelecto foi grandemente facilitado pelo fato de eu estar num pub celebrando o meu aniversário, apreciando um bom jazz, e consideravelmente bêbado.

Sam: Você acredita que a magia pode nos oferecer uma forma de ver, compreender e nos relacionar com o mundo e com nós mesmos que a ciência e a psicologia não podem?

Alan: Em nosso livro por ser publicado, Moon & Serpent Bumper Book of Magic [autoria de Alan Moore e Steve Moore; eles não são parentes], nós consideramos que a consciência (interior), precedida pela linguagem, precedida pela representação (e a arte), eram todos fenômenos que surgiram mais ou menos no mesmo momento da história humana, e todos eles poderiam ser então percebidos como magia, um termo abrangente que abraçava todos os novos conceitos radicais nascidos do descobrimento do nosso mundo interior.

Isso nos permite dar uma definição para a magia como "um noivado com a consciência, uma busca dos significados dos seus fenômenos e possibilidades" [1]. Nós então prosseguimos para arguir que, originalmente, toda a cultura e todo pensamento humano se encontravam submergidos na visão mágica do mundo, e que com o advento das sociedades urbanas e a ascensão das profissões especializadas a magia foi lentamente dissociada das suas funções sociais.

Primeiramente as religiões organizadas a demoveram de sua profundidade espiritual, e então um crescente surgimento de autores, artesãos e artistas a demoveram de seu papel como fonte principal de visão imaginativa. Logo após, vizires e ministros tomaram o papel do xamã como principal conselheiro político da comunidade. Tudo isso deixou a magia com suas funções restantes, embora ainda vitais e frutíferas, de pesquisa alquímica, cura e investigação do mundo interior, até que a Renascença e o advento da Era da Razão delegaram os dois primeiros para os campos emergentes da ciência e da medicina, e finalmente, em torno de 1910, o terceiro foi capturado pela "nova ciência" de Freud e Jung, a psiquiatria.

Nós sugerimos que a totalidade da cultura na qual hoje residimos é nada menos que o cadáver desmembrado da magia (apesar dele ainda ter, de alguma forma, uma aparente capacidade de se comunicar), e que esse processo indubitavelmente necessário é exemplificado pelo princípio alquímico do solve, ou decomposição.

Nossa tese é a de que hoje se faz necessário o processo complementar de coagula, ou síntese, de forma a completarmos tal fórmula tão essencial. Para este fim, nós propomos que a arte e a magia devem ser intimamente reconectadas para o enorme benefício de ambas, conforme já foi dito em meu ensaio Fossil Angels, e o próximo passo deveria ser aprimorarmos o elo já existente entre as artes e as ciências, incluindo a psiquiatria, que eu já chamei um dia, sem nenhuma intenção de desrespeito, de "ocultismo num jaleco".

O passo final, mais importante e problemático, seria o de nutrir a conexão entre a ciência e a política, assegurando que as decisões políticas sejam feitas sob a luz do atual conhecimento científico, se valendo de todos os avanços científicos conquistados em, por exemplo, resoluções de conflitos armados, para o aprimoramento da humanidade como um todo.

Para finalmente responder a sua questão, um dos muitos benefícios que a magia oferece é uma visão de mundo plausível e, acredito eu, racional, onde tanto a ciência quanto a psicologia e todos os demais campos já mencionados podem coexistir conectados novamente a antiga ciência da existência, plena de significado, da qual eles um dia emergiram (Paracelso, praticamente o pai de quase todos os procedimentos modernos da medicina, também foi o primeiro a usar o termo "inconsciente", aproximadamente 400 anos antes da sua subsequente apropriação pela psicologia).

Com a magia, ao menos como nós a definimos, a principal vantagem em termos de relacionamento com o mundo é que ela nos oferece um ponto de vista coerente e sensivelmente integrado para nos relacionarmos com tudo a nossa volta. Da mesma forma, ao contrário de todos os campos e empreendimentos já mencionados, exceto a criatividade artística, a magia é inteiramente centrada nos princípios do êxtase e da transformação, coisas que cremos ser o alicerce das experiências humanas, e que se encontram totalmente deficientes na sociedade contemporânea.

Sam: Você disse um dia que ouviu falar que Einstein mantinha uma cópia de A Doutrina Secreta, de H. P. Blavatsky, aberta em sua escrivaninha. Ele trabalhou de forma bastante imaginativa e já afirmou que alcançou suas teorias primeiramente através da visualização (mental). Por acaso há uma barreira entre a ciência material e a oculta que precisa cair para o benefício da corrente principal da ciência [mainstream science]?

Alan: Einstein nós dá um bom exemplo. Ele afirmava que recebeu a inspiração para o seu trabalho com a relatividade durante uma espécie de sonho lúcido [daydream] onde ele imaginou a si mesmo correndo lado a lado com um faixo de luz. James Watson, que descobriu a molécula do DNA juntamente com Francis Crick, dizia que deduziu a sua estrutura através da lembrança de um sonho com escadas espiraladas.

Sir Isaac Newton foi um alquimista que incluiu o índigo no espectro de cores em acordo com a simpatia alquímica pelo número sete.

Nós poderíamos dizer que quando a ciência e a magia foram primeiramente separadas, cada uma delas perdeu algo vital: a ciência abandonou a sua capacidade de se relatar com qualquer espécie de mundo interior, enquanto a magia de certa forma pareceu haver perdido muito da sua capacidade de discriminação e análise intelectual. Conforme já foi dito, a reintegração dessas áreas divorciadas da cultura humana poderia ser, eu intuo, um imenso ganho para todas as partes envolvidas.

» continua na parte 2

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[1] Este trecho traz diversas possibilidades de tradução, e eu optei provavelmente pela mais poética e arriscada. No original, "magic as a purposeful engagement with the phenomena and possibilities of consciousness", temos o termo "engagement" que pode significar "compromisso", "engajamento", "noivado", e até mesmo "batalha". Portanto, uma tradução mais sóbria desta definição tão essencial para a compreensão do pensamento de Moore seria algo como "magia como um engajamento intencional com o fenômeno e as possibilidades da consciência".

Crédito da foto: Joe Brown (Alan Moore)

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19.2.16

Tudo ou nada

Um cientista diz que o universo surgiu do nada. Para ele, isto quer dizer que não há um Criador, nem espíritos nem almas, e boa parte ou mesmo a totalidade do que classificamos como espiritualidade não passa de mera fantasia provocada por algum estranho tilintar de neurônios em nosso cérebro. "Assim", diz o cientista, "estou defendendo a racionalidade e me valendo do ceticismo".

Ora, se formos na origem da etimologia de tais termos, descobriremos que a racionalidade implica em ser sensato e sempre questionar suas próprias crenças, buscando razões razoáveis para crer, ou continuar a crer, no que quer que seja. Some-se a isso o ceticismo, que filosoficamente implica em exaltar a dúvida e evitar as certezas, e temos efetivamente um manual prático contra todo e qualquer dogma, assim como todas as pressuposições ilógicas que encontramos por aí, ainda que venha da boca de um cientista.

Um cientista diz que o universo surgiu do nada. Ainda que seja amparado por "estudos", e ainda que ele se diga "cético e racional", não seria nem racional nem cético de nossa parte crer no que ele afirma sem questionar... E, questionando, poderíamos começar pela pergunta, "O que é o nada? Você pode defini-lo? Você já o observou, ou detectou com instrumentos? Você sabe como, quando e onde ele existiu? Será que poderá voltar a existir um dia?".

Se formos usar novamente a etimologia, descobriremos que, no frigir dos ovos, o "nada" é um termo que se refere a algo que não somente não existe, como não pode ser definido, nunca pôde, e jamais poderá. O "nada" não é o vácuo cósmico, que mesmo sem nenhuma espécie de matéria, nem nenhum átomo passageiro, ainda é preenchido por campos gravitacionais, radiação, flutuações quânticas etc. O "nada" não é o vazio, pois ainda que houvesse algum canto deste universo perfeitamente vazio, a própria qualidade do vazio implica em "algo a ser preenchido", o que evidentemente não é o "nada". O "nada" não é algum estado de consciência, alguma espécie de metáfora para a morte, nem mesmo para o nirvana. Ainda que muitas pessoas e doutrinas usem o "nada" para se referir a alguma outra coisa, fato é que, pela lógica mais pura e cristalina, o "nada" não pode existir, nem neste momento, nem em qualquer momento do passado ou do futuro. Tampouco ajuda usar o "nada" entre aspas, pois "nada" e nada também continuam sendo somente palavras.

Dizem que Deus também é somente uma palavra. No entanto, neste caso, ainda que seja uma palavra que se refere a algo que transcende a própria linguagem, e que não pode ser definido pelo uso das palavras, fato é que Deus tem uma qualidade essencial que o difere do nada: o primeiro definitivamente existe, enquanto o último definitivamente não existe. De fato, esta é a única certeza da filosofia e do ceticismo filosófico: existe algo, e não nada. Seja o que for este "algo", seja que nome queiramos dar a ele, "Deus" ou "Tudo" ou "Natureza" ou "Absoluto" etc., fato é que ele existe.

Carl Sagan foi um ardoroso defensor da ciência, da racionalidade e do ceticismo. Apesar de ele não crer num Criador conforme descrito nos manuais de verdades absolutas, ele não foi ateu, e sim agnóstico. Ou, como ele mesmo disse um dia, "Um ateu tem que saber muito mais do que eu sei. Um ateu é alguém que sabe que não existe um Deus". Sagan não tinha tanta certeza de que Deus, ou algo análogo a esta ideia transcendente, não existe. Em seu monumental Contato, inclusive, ele chega a postular que um suposto Criador poderia ter incluído na própria matemática mensagens cifradas que poderiam indicar sua existência. Tudo ficção, é claro, mas quem disse que a ficção não existe? A ficção definitivamente também é algo, e não nada.

Já Neil deGrasse Tyson, o cientista que encontrou com Sagan quando jovem, e que o considera um ídolo, tampouco acredita dispor de informações suficientes para abraçar o ateísmo e abandonar o ceticismo. Conforme ele confessa, "Eu não consigo me reunir e falar com todos numa sala sobre o quanto não acreditamos em Deus. Apenas não tenho energia para isso". O único "ista" pelo qual Tyson deseja ser reconhecido é o "cientista". Tyson definitivamente não é daqueles que tem certeza de que algo surgiu do nada.

Segundo Terence McKenna, a ciência moderna se baseia num princípio: dê-nos um milagre espontâneo e a gente explica o resto. Atualmente este "milagre" se chama Big Bang, e é a teoria mais aceita para o início do espaço-tempo, isto é, do universo onde vivemos. Talvez, quem saiba, existam muitos outros universos, mas isso também faz parte da especulação científica, e não pode sequer ser testado, quiçá comprovado. Então, o que resta? Uma teoria extremamente embasada em dados e observações sobre tudo o que ocorreu desde que o universo surgiu, sabe-se lá de onde, do quê, e em qual tempo.

Toda essa questão da Criação e do sentido da existência é o que tem angustiado mentes filosóficas e questionadoras desde o advento da história humana, provavelmente até mesmo antes da invenção da linguagem. Tudo ou nada, Deus existente e definido ou não existente e indefinido, tudo ter um sentido, nada ter um sentido: todas essas conclusões apressadas nada mais são do que os dois lado da mesma moeda, e esta moeda se chama "a acomodação ante o fim da angústia".

Ora, e tanto ateus quanto crentes encontram sua acomodação em dogmas: "existe", "não existe". Tanto faz, os questionamentos cessam da mesma forma, e a vida "fica resolvida". Mas os filósofos não querem ter esta vida resolvida, eles se recusam a se acomodar ante a angústia da existência. Enfim, eles aprenderam a amar a dúvida, a conviver com ela a cada momento de suas vidas, e analisar esta vida sob um prisma de muitas possibilidades.

No fim das contas, nos prometeram os antigos, todos os paradoxos serão reconciliados. Podemos acreditar neles? Talvez não com a razão puramente objetiva, mas quem sabe com o uso da emoção amparada pela razão, com o diálogo com nossa própria intuição, com a contemplação de nosso mundo subjetivo, com o autoconhecimento, com o passo a passo rumo adentro, com a descoberta de terras ocultas, esquecidas dentro de nós mesmos...

Depois de muito tempo, e muitas vidas, acho que estou começando a compreender que todos os paradoxos já estavam reconciliados desde o início, desde nosso primeiro questionamento, desde que reconhecemos esta única certeza: existe algo, e não nada.

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Crédito da imagem: raph

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10.2.16

O Tarot da Reflexão Online

Nós não estávamos brincando quando dissemos que O Tarot da Reflexão é um projeto em andamento...

Enquanto nosso baralho ainda está em construção, vocês já podem acessar o nosso site para realizar consultas de uma carta, três cartas e Cruz Celta (quem sabe outras mais, no futuro) usando o nosso Tarot ou o Tarot de Rider-Waite.

E o melhor de tudo é que, além de totalmente gratuito, o Tarot da Reflexão Online foi elaborado para funcionar perfeitamente em tablets, smartphones e outros dispositivos móveis. Acesse agora mesmo e confira:


O Tarot da Reflexão Online

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Obs.: O site não traz informações acerca do resultado das consultas. Isso foi feito propositalmente, pois não acreditamos em "receitas prontas" para oráculos de qualquer espécie. Assim sendo, nosso site é mera ferramenta: se quiser aprender a interpretar os resultados das consultas, recomendamos que assista aos cursos do Marcelo Del Debbio no EADeptus.


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