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2.3.15

O garoto de ouro da internet

“Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.”

Aaron Swartz contava 22 anos de vida quando conseguiu resumir, com as palavras acima, o seu objetivo de vida. Parecem palavras de um sujeito um tanto experiente não? De fato, nesta idade Aaron já era considerado um expert em sua área.

Desde os 14 anos, ele trabalhava criando ferramentas, programas e organizações na Web. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Por exemplo, ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento acima, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, e o contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. Aaron seria julgado em Abril de 2013. Se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

O julgamento, entretanto, nunca ocorreu. Em 11/01/2013 Aaron foi encontrado morto em seu apartamento em Nova York, aos 26 anos. A causa mais provável é o suicídio... Há argumentos de que ele sofria de depressão, mas não há como deixar de considerar que o que o levou a morte foi, direta ou indiretamente, a grande perseguição que sofreu das forças da estagnação.

“O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”, declarou Kevin Poulsen em artigo da Wired Magazine. Para o mundo da computação, da colaboração, do livre pensamento e do compartilhamento do conhecimento que é produzido para toda a humanidade, particularmente o científico, a perda de Aaron, mais um dos que vieram da Mansão do Amanhã, é irreparável...


Esta história triste, porém vital para a compreensão do nosso século e do advento da chamada "era da informação", é narrada de forma brilhante no documentário abaixo, The Internet's Own Boy, com legendas em português. Recomendamos enormemente que tirem cerca de 2 horas para vê-lo com a mente aberta e tranquila:

Aaron está morto. Andarilhos deste mundo louco, nós perdemos um mentor, um sábio ancião. Hackers do bem, hoje somos um a menos. Educadores, instigadores, cuidadores, ouvintes, todos os pais aí fora, nós perdemos um filho. Deixemos que as lágrimas escorram. (Tim Barners-Lee, 11/01/13)

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Crédito da imagem: Google Image Search/Divulgação

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21.8.14

Marina e o Tao da Política

Quero me desculpar uma vez mais com os leitores por ter de me aventurar novamente na política, e mais precisamente no atual momento político do Brasil. Eu sempre tento evitar tocar no tema, mas desta vez não tive como me segurar, é algo que precisa sair de mim, transbordar em palavras... Portanto, como não sou nenhum especialista em ciências políticas, vou tratar do tema através do que eu entendo, e que a meu ver está em sua essência, o taoísmo (ou a arte de se perceber e compreender os opostos).

“Não sou nem de esquerda nem de direita”. Há muitos especialistas em ciências políticas que abominam quando alguém diz isto. Para os especialistas da chamada “direita”, denota algum grau de alienação. Para os especialistas da chamada “esquerda”, denota que “o sujeito é de direita, mas não quer admitir”. Então, vamos lá, eu admito, sou de Esquerda. Mas não a esquerda dos projetos de poder, não a esquerda do neofeudalismo, não a esquerda das revoluções pela força das armas...

Eu bem sei que o Che Guevara vende muitas camisetas, mas não posso concordar com ele quando diz que “há que endurecer, mas sem perder a ternura”. Para mim, não há como endurecer sem perder a ternura, uma coisa é totalmente incompatível com a outra. A Revolução que eu acredito não é armada, é a Revolução da liberdade das ideias, do compartilhamento de informações, da junção de etnias, culturas e visões de mundo diversas. Meu revolucionário não se chama Che, mas Aaron, Aaron Swartz, o homem do amanhã (que infelizmente, foi massacrado pelo mundo do ontem).

E, se eu sou de Esquerda, devo agradecer todos os dias por haver Direita. E devo respeitá-la quando o respeito é recíproco. Num país do século 21 onde não há oposição, onde não há visões contrárias, não há Política e tampouco liberdade. Há feudalismo (ou neofeudalismo), há sobretudo um grande resquício de Idade Média. Por outro lado, nem sempre os “sonhos de soberania do reinado” vêm do governo; tantas vezes vêm daqueles que controlam o sistema, a informação, e que se veem cada vez mais desesperados num século onde o conhecimento é cada vez mais livremente compartilhado, onde os pensamentos voam cada vez mais libertos.

“É somente porque há escuridão que sabemos o que é a luz. É somente porque há frio que sabemos o que é o calor. É somente porque há tempestade que sabemos o que é a tranquilidade”. Taoísmo básico. Uma eterna dança de opostos – e o mesmo, é claro, ocorre na Política. O problema está em associar o “bem” a um dos lados, e o “mal” ao outro. Os extremistas são grandes especialistas neste tipo de coisa, os verdadeiros mestres da falácia do “8 ou 80” – “ou está comigo, ou está contra mim”.

No entanto, é até estranho de se pensar, mas os extremistas necessitam ardentemente uns dos outros. Bin Laden necessitava ardentemente de George Bush, e vice versa. O Hamas necessita ardentemente de um governo de extrema direita em Israel, e vice versa. Até mesmo aqui pelo Brasil, como vimos nas manifestações populares de Junho de 2013 e nos meses subsequentes, os Black Blocs necessitavam ardentemente de uma polícia militarista e violenta, e vice versa... Um antigo rabino já havia resumido muito bem, “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”.

O que muitos de nós que são seduzidos pelas extremidades não percebem é que os extremistas acabam por ajudar uns aos outros. O maior “mal” dos extremistas não é o “lado oposto”, mas o fim do conflito, o mundo dos moderados, dos pacíficos, dos mansos. Dizem que os mansos estão “em cima do muro”, que são “alienados” e etc. Um antigo andarilho (que também era muito manso) já havia resumido isto também:

“A alma vem primeiro. Se você não mudar o que a alma deseja, você irá apenas substituir a dominação romana por outra dominação, e nada nunca irá mudar. Primeiro você deve mudar o homem por dentro. Então o homem pode mudar o que está a sua volta. É o desejo de riquezas e poder que faz com que o homem queira dominar os outros. É o desejo que precisamos mudar, precisamos primeiro libertar a alma. Com amor.” [1]

Então chegamos ao atual momento político do país, onde dois partidos que vieram da mesma família ideológica brigam entre si como irmãos raivosos, e creem piamente que um é o oposto do outro. O irmão da “direita” acusa o outro de “haver tomado controle do parquinho, e não querer mais sair de jeito nenhum”; já o irmão da “esquerda” retruca que “todos os garotos ricos estão com vocês, e eles falam um monte de mentiras para tentar convencer os garotos pobres de que queremos controlar os brinquedos, e isso não é verdade!”.

A verdade... A verdade é uma coisa complicada em Política. Uma das principais razões da criação da Política e da Democracia, e que pareceu clara aos filósofos gregos, é que “ninguém é o dono da verdade, até mesmo porque não existe verdade absoluta”. Desta forma, a Política nasceu como forma de criar um diálogo muito necessário entre os pensamentos e crenças opostas, de forma que não seja necessária uma guerra ou matança para decidir quem, afinal, “tinha razão”. E, da mesma forma, os acordos servem para que a vontade da maioria seja realizada, sem que no entanto a vontade da minoria seja ignorada, ridicularizada, ou censurada...

O maior divertimento para quem, como eu, se equilibra na mureta do caminho do meio, é observar como as pessoas raivosas de um lado muitas vezes se comportam como o reflexo das pessoas raivosas do outro. Isto nunca foi tão evidente quanto quando Marina Silva surgiu como possibilidade de “terceira via” para o governo do Brasil.

Antes de mais nada, devo dizer que eu não voto em Marina no primeiro turno das eleições de 2014. Mas não deixo de votar nela porque a abomino, deixo de votar nela simplesmente porque acredito que exista um candidato imensamente superior a ela e a todos os demais, que se chama Eduardo Jorge. Eu poderia lhes trazer mais parágrafos e parágrafos explicando o motivo pelo qual Eduardo, assim como tantos outros bons candidatos que não abandonaram suas ideologias na Política do país, dificilmente vencerá alguma eleição enquanto não jogar o jogo do Grande Negócio Eleitoral, e aceitar os milhões de financiamento das empreiteiras e outras grandes empresas, e então ser eleito com o rabo preso (e etc.), mas acredito que isto todos vocês já estão cansados de saber. Então, prossigamos...

Quando Marina tentou criar sua Rede, preferiram liberar para o Kassab e encrencar com ela. Quando Marina se aliou a Eduardo Campos, disseram que “ela jamais aceitaria ser vice” e que “ela quer somente o poder”. Quando, finalmente, a tragédia em Santos nos privou da companhia do neto do grande Miguel Arraes na vida política brasileira, Marina despontou como possibilidade altamente viável para vencer as eleições para a presidência. E adivinhem o que ocorreu? Os extremistas passaram a acusá-la de “pertencer ao outro lado”. Eu não sei quanto a vocês, mas eu me divirto muito comparando frases como estas [2]:

“Depois de Collor de Mello e FHC, Marina é o novo ilusionismo da direita.” (Sergio Saraiva)

“Confesso ao leitor: tenho calafrios com a imagem de um segundo turno entre Dilma e Marina. É uma visão assustadora.” (Rodrigo Constantino)

Daqui a pouco podem ser grandes amigos...

Se é quase automático o repúdio da extrema direita a candidatura de Marina, é um tanto quanto irônico que muitos “direitistas” se vejam quase que obrigados a apoiá-la num segundo turno, por aparentemente (segundo as pesquisas de opinião) ser a única capaz de retirar a presidenta Dilma Rousseff do poder.

É mais hilário, no entanto, ver a extrema esquerda se comportar exatamente como a direita, só que para atacar uma adversária que, até outro dia, estava brincando no mesmo parquinho.

É hilário ver as línguas venenosas nos blogs chapa branca e nas redes antissociais alertarem para “a teocracia evangélica que se aproxima”, enquanto quase que ao mesmo tempo, vemos Dilma se dirigir nestes termos aos religiosos da Assembleia de Deus [3]:

“O Brasil é um Estado laico, mas, citando um salmo de Davi, eu queria dizer que feliz é a nação cujo Deus é o Senhor.” (Dilma Rousseff)

Eu quero crer que Dilma estava apenas lendo um discurso do seu “marqueteiro” de campanha. Pois além da frase já não fazer o menor sentido, denota no mínimo um grau enorme de falsidade, considerando que a presidenta sempre foi, para dizer o mínimo, “católica não praticante”. O que o Grande Negócio Eleitoral não faz pelas ideologias e as crenças dos políticos...

Agora, vejamos o que a própria Marina, que sempre foi extremamente religiosa (só que de verdade: antes católica, e depois evangélica), tem a dizer sobre a relação entre a fé e o Estado [4]:

“Eu acho que a grande conquista do nosso país é ser um Estado Laico. Um Estado Laico não pode ser confundido com um estado ateu. Um Estado Laico serve para defender os direitos de quem crê e de quem não crê. E a construção da laicidade do Estado é uma construção da Reforma Protestante, é uma pena que as pessoas tenham esquecido disso. Havia uma Igreja oficial que na época estava intimamente ligada ao Estado, e esta foi uma grande contribuição do protestantismo, o conceito de separação entre Igreja e Estado.” (Marina Silva)

Então, Marina é conta às pesquisas com células-tronco? Contra a legalização do aborto? Contra o casamento gay? Muito provavelmente... Porém, ao contrário de outros políticos de ideologias maquiadas pelo marketing eleitoral, ela **sempre** defendeu suas convicções, e não mudou de ideia para ganhar votos. Da mesma forma, nada, absolutamente nada, indica que o fato de ela ser eleita acarretará no arquivamento ditatorial destas ideias. Ela pode fazer plebiscitos (aliás, como Dilma propõe em muitas áreas essenciais), vetar de forma ditatorial, jamais (e ainda que fosse o caso, o próprio PT, na oposição, ajudaria em muito a derrubar qualquer veto do tipo).

Finalmente, temos o costumeiro ataque da “esquerda” que visa associar Marina aos grandes empresários e banqueiros, como se isto por si só fizesse dela uma “bruxa do mal”... Quanto a esta última questão, prefiro deixar uma frase do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que reflitam, e aproveito para encerrar esta minha breve excursão pelo pântano da política brasileira [5]:

“Não tem lugar no mundo onde o [banco] Santander esteja ganhando mais dinheiro que no Brasil” (ex-presidente Lula)

***

[1] Em realidade um trecho de A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis. Porém, acho verossímil que Jesus tivesse uma visão parecida. Em todo caso, o que importa aqui é a mensagem em si.

[2] Escolhi dois jornalistas que dão voz a opiniões de extrema esquerda (Luis Nassif Online) e extrema direita (Rodrigo Constantino/Veja). Não quero aqui fazer nenhum tipo de comparação entre eles para além disso. A frase de Saraiva foi retirada do artigo O discreto charme de Marina Silva, publicado no blog de Luis Nassif. A frase de Contantino foi retirada de sua coluna para a Veja, intitulada Marina vem aí? Ou: A Rede da demagogia.

[3] Fonte: Reuters Brasil.

[4] Retirado de vídeo que anda viralizando no YouTube, intitulado Marina Silva - Democracia, laicidade e não preconceito (o trecho inicia em torno de 01:45). Fiz uma ligeira adaptação ao final para deixar mais clara a citação.

[5] Fonte: Estadão. O ex-presidente Lula citava o episódio envolvendo o banco Santander, que emitiu, uma semana antes, um comunicado sugerindo que se a presidente Dilma Rousseff fosse reeleita haveria uma deterioração na economia brasileira.

Crédito das imagens: [topo] raph (montagem com imagens de Che Guevara e Aaron Swartz); [ao longo] raph (montagem em cima de cartaz do filme Malévola da Disney, com Angelia Jolie)

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12.8.14

Conectados, parte 4

« continuando da parte 3

Direitos autorais ou direitos de autor são as denominações empregadas em referência ao rol de direitos dos autores sobre suas obras intelectuais, sejam estas literárias, artísticas ou científicas. Já o copyright trata exclusivamente dos direitos de cópia e distribuição das obras.


O homem do amanhã

“Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.”

Aaron Swartz contava 22 anos de vida quando conseguiu resumir, com as palavras acima, o seu objetivo de vida. Parecem palavras de um sujeito um tanto experiente não? De fato, nesta idade Aaron já era considerado um expert em sua área.

Desde os 14 anos, ele trabalhava criando ferramentas, programas e organizações na Web. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Por exemplo, ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento acima, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.

Aaron era um grande entusiasta da livre distribuição de todo tipo de obra em domínio público – literária, artística e, principalmente, científica. Uma obra entra em domínio público após uma certa quantidade de anos desde a morte do autor original. Isto significa que qualquer pessoa pode utilizar a obra do autor como quiser, inclusive escrever novas histórias com os seus personagens. Por exemplo, qualquer pessoa pode editar um livro com poemas de Fernando Pessoa e publicá-lo (não a toa, vemos tantas editoras publicando coletâneas de Pessoa hoje em dia) [1]; da mesma forma, qualquer pessoa pode escrever uma história com o personagem Sherlock Holmes, criação de Sir Arthur Conan Doyle (não a toa, vemos surgir tantos filmes e livros onde Holmes reaparece um tanto quanto “repaginado”) [2].

A maior parte dos países do mundo define o início do domínio público quando passados exatamente 70 anos da morte do autor das obras e personagens originais. Alguns países contam somente 50 anos, poucos outros contam até um século, e nos EUA... Bem, nos EUA é mais complicado...

No caso americano, qualquer obra publicada antes de 1923 está em domínio público desde 1998, independente da data da morte do autor original (mesmo que ele ainda se encontre vivo!); já o que foi publicado após 1923 pode estar em domínio público até 70 anos após a publicação original. Isto, em teoria, pois para “casos específicos”, como o famoso Mickey Mouse da Disney, este prazo pode ser prorrogado indefinidamente – o ratinho, que cairia em domínio público em 2003, ganhou uma sobrevida no cativeiro por mais 20 anos, mas nada impede que a Disney não vença outra batalha judicial para prorrogar novamente este prazo, em 2023.

Na verdade, é bem provável que os personagens da Disney, assim como boa parte dos super-heróis dos quadrinhos, como Superman e Homem-Aranha, jamais entrem em domínio público. Isto não deixa de ser um tanto quanto curioso, pois no universo dos personagens citados, vemos muitos outros personagens diretamente inspirados em contos de fadas e mitos, alguns dos quais não foram publicados há tanto tempo assim... Walt Disney nasceu cerca de um quarto de século após a morte de Hans Christian Andersen, célebre escritor de fábulas dinamarquês. Se a entrada em domínio público pudesse ser constantemente prorrogada desde aquela época, ou desde 500 anos atrás, ou desde o início da escrita, até hoje editoras como a Marvel deveriam montantes de dinheiro pelo uso de personagens como Thor ou Hércules. Difícil seria dizer a quem eles seriam pagos...

A própria Wikipedia só existe por causa do chamado copyleft, uma brincadeira (que se tornou séria) com o termo copyright. O copyleft significa liberdade para copiar, distribuir e modificar uma obra, desde que tudo que for agregado ao seu conteúdo também continue da mesma forma livre. A ideia surgiu mais ou menos assim: no início da década de 1980, um programador chamado Richard Stallman, indignado com a decisão da AT&T de proibir acesso amplo ao sistema operacional Unix, resolveu ele próprio escrever um sistema operacional e garantir que ele continuasse aberto, podendo ser modificado, copiado e redistribuído, desde que as pessoas que o modificassem subsequentemente também o mantivessem livre.

Nascia assim o sistema operacional chamado GNU, que veio a gerar o Linux. A grande peculiaridade desse sistema é que a colossal tarefa de desenvolvê-lo é distribuída entre colaboradores de todo o mundo, que, tal como a Wikipedia, testam, aperfeiçoam e modificam o software, desde que ele permaneça aberto. O copyleft representa uma flexibilização, feita de baixo para cima, da ideia de direito autoral que herdamos do século 19.

Até hoje em boa parte do mundo qualquer obra, mesmo um rabisco num guardanapo, já nasce legalmente com “todos os direitos reservados ao autor”. Foi precisamente a compreensão da necessidade de viabilizar uma distribuição mais simples do conteúdo autoral na era da internet que fez com que Aaron Swartz se dedicasse não somente ao desenvolvimento do conceito de Creative Commons, onde qualquer pessoa pode declarar previamente que a sua obra pode ser distribuída sob certas condições [3], como a muitas outras ideias que, infelizmente, dispararam um enorme sinal de alerta entre os agentes da estagnação e das ideias fossilizadas.

Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, e o contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: “A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si”.

Indignado com a passividade dos acadêmicos diante do controle da informação por grandes corporações, ele conclamava a todos para lutar juntos contra o que chamava de “privatização do conhecimento”. Baixou milhões de arquivos do judiciário americano, cujo acesso era cobrado, apesar de os documentos serem públicos. Chegou a ser investigado pelo FBI, mas sem consequências jurídicas. Em 2011, porém, Aaron foi alcançado.

Em alguns dias, ele baixou 4,8 milhões de artigos acadêmicos de um banco de dados chamado JSTOR, cujo acesso é pago pelas universidades e instituições. Aaron usou a rede do conceituado MIT (Massachusets Institute of Technology) para acessar o banco de dados, fazendo download de muitos documentos ao mesmo tempo, o que era – é importante ressaltar – permitido pelo sistema. Não se sabe o que ele faria com os documentos, possivelmente dar-lhes livre acesso. Mas, se era esta a intenção, Aaron não chegou a concretizá-la. Ao ser flagrado, ele assegurou que não pretendia lucrar com o ato e devolveu os arquivos copiados para o JSTOR, que extinguiu a ação judicial no plano civil.

Havia, porém, um processo penal: Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. Aaron seria julgado em Abril de 2013. Se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares.

O julgamento, entretanto, nunca ocorreu. Em 11/01/2013 Aaron foi encontrado morto em seu apartamento em Nova York, aos 26 anos. A causa mais provável é o suicídio... Há argumentos de que ele sofria de depressão, mas não há como deixar de considerar que o que o levou a morte foi, direta ou indiretamente, a grande perseguição que sofreu das forças da estagnação.

“O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida”, declarou Kevin Poulsen em artigo da Wired Magazine. Para o mundo da computação, da colaboração, do livre pensamento e do compartilhamento do conhecimento que é produzido para toda a humanidade, particularmente o científico, a perda de Aaron, mais um dos que vieram da Mansão do Amanhã, é irreparável.

Mas para o mundo do deus do consumo, dos grandes contratos de copyright, dos grandes conglomerados de mídia, e para todos aqueles que se deleitam em continuar atolados em seu Charco de Estagnação, a eliminação de Aaron do tabuleiro é uma jogada a ser comemorada.

Alguém aí pode ouvir suas gargalhadas e o brinde das champanhes?


Aaron está morto. Andarilhos deste mundo louco, nós perdemos um mentor, um sábio ancião. Hackers do bem, hoje somos um a menos. Educadores, instigadores, cuidadores, ouvintes, todos os pais aí fora, nós perdemos um filho. Deixemos que as lágrimas escorram. (Tim Barners-Lee, 11/01/13)


» Em seguida, a vida sem o botão de pausa...

***

» Veja também o site criado pelos parentes de Aaron em sua memória e o excelente artigo de Eliane Brum sobre a sua morte (do qual retirei alguns trechos).

» The Internet's Own Boy: The Story of Aaron Swartz (documentário sobre a vida de Aaron realizado via crowdfunding; ainda sem legendas em português)

[1] Toda a obra de Pessoa entrou em domínio público em 30/11/2005, 70 anos após sua morte.

[2] Como veremos no restante do artigo, nem sempre é simples definir quando uma obra entra ou sai do domínio público nos EUA. Até o momento, pelo menos, Holmes continua público.

[3] O meu blog, Textos para Reflexão, está dentro do Creative Commons, como podem ver no rodapé de todas as páginas. Qualquer conteúdo publicado aqui pode ser livremente distribuído, desde que o a fonte original seja citada, o conteúdo não seja modificado, e que o uso não seja comercial.

Crédito das imagens: [topo] Wired Magazine (Aaron Swartz); [ao longo] Brooks.

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