É preciso cair para levantar
O texto abaixo foi retirado de uma das respostas de minha amiga Wanju Duli (Juliana Duarte) dentro de um debate entre pensadores e espiritualistas do qual também participo. Os comentários ao final são meus.
Podemos falar um pouco sobre o significado de evolução ou progresso espiritual. Acredito que o termo "evolução" ficou muito conectado a Darwin, com um sentido de que se passa de um estágio mais baixo para outro mais alto de forma linear. No entanto, o próprio Darwin considerava o termo "evolução" inadequado. Afinal, segundo ele, cada espécie é bem-sucedida caso se adapte melhor ao ambiente em que vive. Isso não significa que um ser humano é necessariamente mais evoluído que um pássaro ou um tubarão, apesar de possuir razão. Caso a espécie humana fosse extinta, os seres mais bem-sucedidos seriam simplesmente os sobreviventes, do ponto de vista biológico. Através da razão, o homem criou tecnologia para voar ou respirar embaixo d'água, mas não necessariamente para tornar-se um ser moralmente bom, espiritualmente elevado ou feliz.
De acordo com Erasmo em Elogio da Loucura, "O homem não foi feito para ser perfeitamente feliz na terra". O próprio termo "progresso" nos lembra o positivismo, que não por acaso está na bandeira do Brasil. Ou seja, tanto "evolução" quanto "progresso" nos remetem à necessidade de avanços científicos para darmos um passo adiante, mas a experiência nos mostra que em alguns casos avanços da ciência podem até nos ser negativos. Nem preciso citar bombas e outras armas de guerra. Em vez disso, irei citar elementos ainda mais fundamentais. É evidente que descobertas que contribuam para saúde e conforto, e que economizem tempo e dinheiro, são boas, desde que bem utilizadas. Por outro lado, conforto e facilidades demais podem nos deixar mal acostumados e nos fazer perder alegrias simples. Deixar de plantar e cozinhar os próprios alimentos de certa forma nos desconectaram da natureza e nos fizeram esquecer um pouco do sentido natural da existência.
Uma coisa que consumimos muito ultimamente são comidas prontas, em nome do maior conforto e da economia de tempo. No entanto muitas comidas industrializadas são pobres em nutrientes, fazem mal para a saúde e baixam nossa imunidade. Consequentemente nossa saúde mental fica prejudicada pelo reflexo do que comemos.
[...] É óbvio que comer bem não é a receita mágica para a felicidade, mas é um fator importante que muitos livros de espiritualidade podem não levar em consideração. A "falta de tempo" é um dos fatores levantados para que as pessoas cozinhem menos e caminhem menos. Evolutivamente, nosso corpo e mente estão adaptados a funcionar gastando tempo caçando, colhendo e cozinhando. No momento em que deixamos de exercitar o corpo e comemos de forma inadequada, não somente a saúde do corpo é prejudicada, mas também a saúde mental. Isso interfere diretamente em nossa espiritualidade, pois podemos nos sentir deprimidos e sem energia.
Meu primeiro ponto é bem simples: para tratar do tópico "evolução" num sentido mental ou espiritual, devemos levar em consideração que não somos somente mente-alma-espírito, mas também corpo. É o corpo que fica doente, envelhece e morre. Foi por causa dessas condições do corpo que Buda iniciou sua busca espiritual. Um dia todos iremos passar pela morte corporal, e todos conhecemos a doença e a dor corporal. É também em nome delas, e não somente do sofrimento mental, que buscamos respostas na espiritualidade. As nossas perguntas começam na mente, mas também tiveram origem no corpo. As nossas respostas terminam na mente, mas também terminarão no corpo, já que todo bom caminho espiritual também deve gerar modificações físicas em nosso estilo de vida.
E agora vamos ao próximo ponto: "aperfeiçoamento mediante a ação lúcida e continuada da consciência". Anteriormente tratamos da natureza dos pensamentos e agora devemos pensar em que sentido esses pensamentos podem ser trabalhados visando uma evolução moral e espiritual. Para introduzir esse tópico tratarei do conceito de busca do aperfeiçoamento e da verdade citando um livro que admiro: O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse. Nesse livro se trata de um conceito que já existia desde a Grécia Antiga: a ideia de que todas as áreas do conhecimento estão, de alguma forma, conectadas umas com as outras. O cristianismo também adotou esse conceito, baseando-se na ideia de que Deus criou "o melhor dos mundos possíveis", e que tal universo é harmonioso e racional.
Hoje em dia temos dificuldade de entender como as diferentes áreas do conhecimento se conectam, pois somos incentivados a ter um conhecimento mais especialista do que generalista. Perdemos muito a ideia do polímata, homem universal ou renascentista, que sabia transitar em diferentes saberes. Por isso é dito no livro de Hesse que vivemos na "Idade Folhetinesca" e isso fica ainda mais evidente hoje com a internet: o conhecimento está tão fragmentado e reduzido em posts curtos de blogs ou frases de redes sociais para "não perdermos tempo" que ficamos com a impressão que sabemos muito de várias coisas, mas não sabemos conectar ou aprender a fundo nenhum desses saberes. Uma invenção medieval chamada "universidade" tenta resgatar isso, mas como ela não é mais baseada nas Sete Artes Liberais e sim em conhecimentos pragmáticos visando apenas o mercado de trabalho, ainda está longe dessa realização.
No paradigma secularista e materialista do século XXI, vivemos num universo sem sentido, em que muitos eventos ocorrem de forma aleatória, incluindo nossa própria vida e morte. No meio desse caos, nossa única esperança para esquecer a dor e a morte é ter o máximo de prazer e conforto possível, obtidos principalmente através do dinheiro. Talvez alguns problemas das filosofias espiritualistas do século XX e XXI sejam fruto da tentativa de construir uma solução moral e espiritual dentro desse paradigma. Nele o objetivo máximo é ser feliz através do "prazer" e do "sentir-se bem" seja com êxtase e emoções fortes ou paz.
Para buscarmos uma evolução consciente, seria bom lembrarmos do que nos diziam os gregos e romanos da Antiguidade, a exemplo dos estoicos. Diz Sêneca em Aprendendo a Viver:
Por que olhas para o cofre? A liberdade não pode ser comprada [...] Primeiro, livra-te do medo da morte, pois ela nos impõe o seu jugo, e, depois, deves perder o medo da pobreza.
Nós vivemos numa sociedade em que o maior objetivo da vida é não ser pobre, sendo que Jesus disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus. Isso significa que não podemos servir a dois deuses: a Deus e ao Dinheiro. É óbvio que tantas pessoas hoje se sentem depressivas e desconectadas do divino: porque estão adorando ao Deus errado. Eu respeito muitos Deuses de várias culturas e religiões, mas algo me diz que adorar ao Deus Mamon, conforme a história mostra, não tem gerado nem mesmo uma felicidade temporária nesse mundo.
Buda e Jesus nos deram outra resposta: a filosofia do sofrimento. Buda nos diz que a vida é sofrimento e Jesus nos convida a imitá-lo sofrendo com ele e carregando sua Cruz. O sofrimento pode não ser o problema, mas a resposta. Quem sabe o problema da humanidade seja achar que a dor e a morte sejam um erro, fugindo deles desesperadamente e se agarrando num sonho de felicidade. A solução é ver a morte como a chave para a vida, para o renascimento: o mártir que morre para o "eu" e renasce no "outro" e em "Deus" encontra a verdadeira vida. É preciso cair e morrer para levantar e nascer. A vida e o mundo não são erros a serem corrigidos pela ciência.
Comentários
A última vez em que falei da Wanju Duli aqui no blog foi trazendo a melhor resenha que já recebi para um livro, quando ela destrinchou o meu Ad Infinitum. Deveria ter trazido mais coisa dela para cá, visto que se trata de uma das maiores conhecedoras (no sentindo abrangente do termo) de magia e ocultismo da web e do meio literário nacional. Espero ter me redimido com este belo trecho que pesquei de nosso debate sobre espiritualidade em geral (também temos outros participantes, provavelmente esse “debate” ainda renderá um livro no futuro). Você também pode encontrar a Wanju na coluna sobre Magia do Caos do portal Teoria da Conspiração.
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Crédito da foto: David Uzochukwu
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